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segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Na Hora da nossa morte (novela)

DIÁRIO DE CARLOS -6


Desci a montanha de faces lisas como um cone apontado ao céu. Pedregosa, as pedras rolando, os sapatos rompendo-se nos gumes acerados dos sílex espetados no solo. Escorreguei e caí de borco uns metros abaixo, na argila seca e dura, sem um caule de arbusto, sem uma flor silvestre que a alegrasse. A planície abria-se diante de mim, lívida sob uma lua de cemitério. Vasta, imensa, sem sinal de rio, lagoa ou mar, que trouxesse uma miragem ou uma brisa. Desértica, árida, silenciosa como um túmulo, nem um golpe de asa, um grasnido de animal feroz, o vulto de um roedor noctívago. O único espectro era eu, que não sabia o que fazia ali, que não sabia sequer que era eu. Somente uma sombra difusa que me identificava. Alguém em mim gritou. Nenhum eco se ouviu. Ao longe, muito ao longe, uma pequenina e diáfana luminosidade parecia que me chamava, guiando-me os passos. Mas aquilo que em mim sentia teve medo. Um antiquíssimo medo, vindo dos confins das florestas e das savanas. Aquilo que em mim era um corpo estava semi-curvado, equilibrando-se com dificuldade sobre os pés, as unhas grossas e encurvadas, totalmente coberto de pêlos, negros e hirsutos. Fez-se subitamente escuro, uma nuvem tapou a lua. Dei um passo, tacteei o solo, dei outro passo e mergulhei num poço. Tombei sobre algo mole que me aparou a queda. Mexeu-se. A lua reapareceu e vi. Vi um corpo semelhante ao meu. Olhava-me com uma espécie de contentamento nos olhos nebulosos. Uma mão mais fina que a minha procurou o meu ombro. Estremeci e despertei. A janela estava escancarada e a lua era pálida. Levei a mão ao copo de água à minha cabeceira e bebi-a de um trago. Estivera a sonhar. Estranho sonho que não se compunha manifestamente do presente, claro o seu significado latente, porém escapava-me o seu propósito. A propósito de que coisa, situação, emoção? Vejo-o com um regresso, retrocesso, como se me colocasse sem recurso a máquinas que hão-de vir num presente já passado, remotíssimo, em que eu – nós - não possuía ainda um eu, uma individualidade, apenas um corpo bruto em transição, sensitivo desprovido de sentimentos, daquela matéria de que se fazem os pensamentos.


Quem sou? Que faço aqui?


Meu amor que nunca vieste, nunca ficaste, nunca foste, quem sou?

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