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sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

A utopia necessária

Em 2016, são comemorados os 500 anos da redação de A Utopia, de Thomas More. Verdadeiro best-seller na sua época, o livro legou a nós uma palavra – o não lugar ou o lugar feliz, graças à etimologia dupla presente nela – e também uma forma de pensar. Participa da coincidência histórica que fez com que, em curto espaço de tempo, no começo do século XVI, um conjunto de obras e eventos redefinisse nossa compreensão da política: em 1513, com O príncipe, Maquiavel assentou as bases do entendimento moderno e contemporâneo dos dilemas envolvidos na relação entre moral e política. Em 1517, Martinho Lutero realizou o gesto inaugural da reforma protestante, ao afixar suas 95 teses sobre a venda de indulgências na porta da Catedral de Wittenberg, desencadeando o processo que levaria à separação entre Igreja e Estado, que é crucial para a política contemporânea e, em particular, para a própria possibilidade da democracia.
A obra de Thomas More apresenta outra faceta desta redefinição da política, ao enfatizar os elementos de indefinição e de liberdade na maneira pela qual homens e mulheres produzem sua vida em sociedade. Quando, na segunda parte do livro, o narrador descreve um mundo organizado de forma diferente, na Ilha de Utopia, o que ele está dizendo a seu público é que a sociedade não precisa ser obrigatoriamente do jeito que é. Muitas das instituições que More descreve parecem pouco atraentes para leitores contemporâneos. Há excessivo controle sobre a vida privada, com escassa liberdade individual. As relações entre os sexos eram revolucionariamente simétricas para a época em que A Utopia foi escrita, mas muito longe da igualdade que reivindicamos hoje. Existe trabalho escravo, única maneira que o autor encontrou para resolver o problema da escassez e do conflito distributivo. A despeito destes e de outros problemas, a lição central do livro continua a falar a nosso tempo.
Há alguns anos, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman fez uma observação muito pertinente sobre um paradoxo da sociedade contemporânea, ao menos da sociedade ocidental: nós achamos que a questão da liberdade está resolvida, isto é, que vivemos numa sociedade tão livre quanto é possível. Mas, ao mesmo tempo, tendemos a crer que o mundo é do jeito que é e nada, ou muito pouco, pode ser mudado. A “estrutura básica” da sociedade – as relações sociais de produção, as formas de gestão do poder político – está dada. Ou seja, somos livres, mas não podemos mudar o curso do mundo.
Mas que liberdade é essa, em que a possibilidade de transformar o mundo está afastada?
O pensamento utópico nos ensina o contrário. A primeira lição de Thomas More é que a sociedade é organizada da forma que surge das interações entre as mulheres e os homens que a compõem. Não é possível ver na organização social um reflexo da vontade de deus (ou do mercado, que aqui cumpre a mesma função). Ela é fruto da nossa vontade coletiva – o que inclui, certamente, o fato de que algumas vontades têm hoje mais condições de se impor do que outras. Mas se trata exatamente da possibilidade de projetar uma organização social diferente, em que esse quadro seja mudado.
É por isso que é necessário um elemento utópico nas lutas pela transformação social: a visualização de um mundo diferente, alimentada pela convicção (que é correta, que é bem embasada) de que o mundo não está condenado a permanecer do jeito que é.
Em parte da tradição da esquerda, o utopismo guarda um sentido pejorativo. Marx e Engels fizeram questão de diferenciar sua visão, “científica”, dos socialismos anteriores, nos quais grudaram o adjetivo “utópico” para marcá-los como irrealistas e infundados. Mas é possível entender de outra forma, vendo a utopia como sendo (nas palavras do filósofo francês André Gorz), “a visão de futuro sobre a qual uma civilização pauta seus projetos, funda seus objetivos ideais e suas esperanças”. Se é assim, o socialismo marxista também é utópico.
Como regra, porém, a crítica à utopia costuma vir do pensamento conservador, que nela vê ou uma evasão, ou, pior, uma inimiga da liberdade individual. Um sociólogo alemão, Ralf Dahrendorf, sintetizou as críticas ao afirmar que a utopia “é, pela natureza da ideia, uma sociedade totalitarista”. É um julgamento que aparece também em obras clássicas do pensamento de direita, como A sociedade aberta e seus inimigos, de Karl Popper, ou Anarquia, Estado e utopia, de Robert Nozick. Ao descrever uma sociedade ideal, a utopia negaria legitimidade a outros arranjos sociais. E ao descrever uma sociedade perfeita, exigiria a adaptação total de cada um a ela, para que nada trave seu mecanismo. A perfeição exige que o comportamento de todos seja predizível, logo não pode ser livre.
A crítica ao utopismo reflete, assim, duas ideias básicas do pensamento conservador. Primeiro, que a liberdade humana se realiza de acordo com o modelo do mercado, em que trocas autointeressadas levam a resultados indeterminados e assimétricos. Depois, que é necessário tomar cuidado com o racionalismo. A hunanidade deve evitar a ideia de que o uso da razão pode levar à solução dos problemas da organização social. Todos os grandes teóricos conservadores, do setecentista Edmund Burke ao recente Michael Oakeshott, batem na mesma tecla: a razão é limitada. Devemos nos apoiar na sabedoria da experiência, acumulada durante gerações e cristalizada nas tradições e mesmo nos preconceitos. A utopia aponta na direção inversa, propondo exatamente reinventar o mundo.
A crítica ao caráter totalitário, feita pelo pensamento conservador, não é inteiramente desprovida de sentido. Há experiências históricas terríveis – da Revolução Cultural maoísta ao regime de Pol Pot, no Camboja – que mostram os perigo de um voluntarismo absoluto, disposto a implantar um novo mundo sem olhar para as circunstâncias ou para os custos humanos. A ideia do “novo homem”, o ser humano aprimorado para um mundo aprimorado, que emerge já nas utopias do Renascimento (mais do que em More, na Cidade do Sol, de Tommaso Campanella), carrega um inegável perigo autoritário.
Mas é igualmente autoritário congelar as pessoas e o mundo social naquilo que são hoje, como se fossem inevitáveis e imutáveis. Recusar desta forma o utopismo é, assim, negar legitimidade a qualquer alternativa ao já existente e tentar eliminar da política o dever-ser. Nas palavras do historiador polonês Bronisław Baczko, “a invenção utópica se mostra cúmplice da invenção do espaço democrático. De fato, é apenas com a invenção deste espaço que a sociedade se dá a representação de ser fundada apenas sobre ela mesma, sobre sua ‘vontade’ livremente expressa e fundadora de sua ordem. De pronto, este espaço se oferece como um espaço social a modelar, a gerar, a reinventar”.
A narrativa utópica afirma a sociedade humana como auto-instituída – regida por normas que os homens e mulheres se deram e que, se quiserem, podem alterar. As forças conservadoras tentam, ao contrário, indicar que o mundo que temos é o único mundo possível. Em todo o projeto político transformador, há, ao menos em germe, a visão de uma sociedade nova, que ainda não existe em lugar nenhum. Sem isto, a humanidade estaria condenada a permanecer com o já existente e a disputa política seria reduzida à mera alocação de recursos.

in Boitempo. blog

Uma autora e uma leitura urgentes

Arundhati Roy

Traducción de Carmen Valle
comparte:
La India es un país de mil doscientos millones de personas y es la «democracia» más grande del mundo, con más de 800 millones de votantes. Pero las 100 personas más ricas del país poseen activos que equivalen a una cuarta parte del Producto Interior Bruto. El resto de la población son fantasmas en un sistema más allá de su control. Millones de personas viven con menos de dos dólares al día. Cientos de miles de agricultores se suicidan cada año incapaces de hacer frente a sus deudas. Los dalits son expulsados de sus aldeas porque los propietarios, que les arrebataron sus tierras por no tener escrituras de propiedad, quieren dedicar la tierra a la agroindustria. Estos son sólo algunos ejemplos de los «brotes verdes» de una economía que ha corrompido a la India contemporánea.
Arundhati Roy examina el lado oscuro de la democracia y muestra cómo las exigencias del capitalismo globalizado han sometido a miles de millones de personas al racismo y a la explotación. La autora expone cómo las megacorporaciones han desposeído de recursos naturales al país y han sido capaces de influir a través del Gobierno en todas las partes del país, utilizando habitualmente al ejército y su fuerza bruta con fines lucrativos, así como a una amplia gama de ONG y fundaciones, para decidir la formulación de políticas en la India.
» Roy ha recibido el Premio Booker y el Premio Sídney de la Paz por sus campañas sociales

Entrevista com Eduardo Lourenço

A cultura não pode ser uma luz que ilumina uns quantos enquanto o resto permanece na sombra. Para Eduardo Lourenço, a cultura é, antes, “o diálogo da humanidade consigo própria”. Porém, esse diálogo está hoje a ser esvaziado em função de uma distração sublime, de um olhar em frente que confunde com a realidade as sombras projetadas no fundo da caverna. Sim, Platão é para aqui chamado. E Comte, Lévi-Strauss, Kierkegaard. O professor prefaciou Schwanitz e imprimiu-lhe um tom mais cauteloso. Afinal, de que falamos quando falamos de cultura?
O título do livro de Dietrich Schwanitz é “Cultura — Tudo o Que É Preciso Saber”. O que é preciso para ser-se culto?
Seria melhor se fosse “tudo o que convém saber”. Porque a cultura não tem o monopólio do que é preciso ou não saber. Ela é o lugar onde se discute o sentido de tudo quanto somos capazes de fazer. E, como tal, a cultura não é a resposta, é a questão. A questão que a humanidade tem consigo própria. Antes dos gregos, civilizações mais arcaizantes não tinham essa exigência autocrítica, de se discutirem a elas próprias. E nós, enquanto herdeiros dos gregos, reservamos-lhe um lugar matricial. Nascemos de uma cultura de diálogo, ou pelo menos essa era a nossa convicção no século XIX. É por isso que o título do livro é importante: porque descobrimos que a cultura também é aquilo que separa, que divide os homens entre cultos e não cultos. Hoje, cada um pensa que a cultura é dele. Mas nada justifica esta pretensão de que os outros estão numa espécie de sombra. Uma das pessoas mais lúcidas a pensar sobre isto foi Claude Lévi-Strauss. Para ele, tudo é cultural. Porque o homem é um ser falante e pensante.
A cultura é uma construção?
É uma construção que nunca esteve ausente. E em vez de ser a maneira mais autocompreensiva de a humanidade se entender e de entender tudo quanto faz, de ser uma leitura do mundo, está a transformar-se numa espécie de luz imposta, tão ofuscante que acaba sendo rejeitada. Por outro lado, cultura é também isso: a tentativa de separar o que é sombra do que é luminoso, o aceitável do inaceitável.
Uma espécie de validador?
É uma espécie de diálogo, o da humanidade consigo própria. Veja que, de alguns anos para cá, apareceu o conceito de ‘contracultura’. Ou seja, uma parte da humanidade, particularmente os jovens, exprime o que sente de uma forma diferente da chamada ‘cultura culta’ — tradicional, herdada da Grécia e, no Renascimento, mitificada e promovida a um ideal. Esta contracultura pode parece bárbara, mas é uma cultura. Não podemos escapar ao cultural.
Hoje temos acesso a quase tudo. Somos mais cultos?
A cultura não tem um padrão. Não há nada que meça o que é ou não cultural. Em todo o caso, o destino da humanidade é o de distinguir sem cessar, e o ser humano é o ser da escolha. E o que é cultura depende daquilo que somos, em termos individuais e coletivos. Não há um paradigma, ‘uma’ cultura.
Porém, Dietrich Schwanitz tenta defini-la, ao dizer que a cultura é “a compreensão da nossa civilização” ou “o conhecimento que sabe avaliar-se a si mesmo”.
Penso que todas as grandes culturas, e não só a ocidental — que a certa altura parecia uma exceção no meio de culturas confrontadas com questões de sobrevivência vital — são um espaço de ócio. A cultura nasceu quando os homens criaram uma resposta à coisa mais insuportável de todas: o tédio. O tédio é um tempo sem matéria, uma matéria nula em que nada se passa. Pascal disse que a infelicidade da humanidade é a incapacidade de estar sozinha num quarto. É não se contentar com o que está à volta ou com as coisas urgentes que a solicitam e que deveriam ocupá-la. A cultura é, assim, a invenção contínua de respostas para a expulsão do não-sentido.
O autor dedica o livro aos que se sentem desiludidos com um sistema educativo em crise e sem relação com a vida. Da educação advém a cultura?
Essa espécie de música, de lengalenga, sempre existiu. Mas houve um tempo em que a educação era um privilégio de certas classes, e a distribuição do saber não era igualitária ou codificada de forma a todos poderem participar. Isso modificou-se quando Rousseau a colocou no centro da formação humana. A educação passa a ser o espaço — e a prática — através do qual o homem se vive a si mesmo e se torna exigente em relação ao que lhe é proposto como sendo evidências, que se podem discutir e até transformar.
A cultura implica um passado e uma memória. Ter cultura não significa sempre recuar?
Somos herdeiros de uma série de discursos sobre nós próprios. E pouco a pouco ficou assente que há um caminho real e outros subalternos, saberes de segunda ordem, que aparecem em relação aos dominantes como qualquer coisa de inferior. Ora, a cultura verdadeira não é secundarizante. Temos de evitar duas coisas: a apologia de um saber que, de forma mitificada, se assume como o incontornável absoluto para os iniciados na cultura; e a determinação do que seria um ‘mínimo vital’ na ordem da cultura, ou seja, as migalhas distribuídas generosa e caritativamente ao resto da humanidade menos privilegiada. Não, a cultura é, em si, o absoluto que o homem pode atingir.
O livro divide-se em duas partes, saber e poder. Juntos, estes termos têm um significado político: evocam a função da cultura como capacitação do indivíduo para fazer as suas escolhas.
A divisa do positivismo de Auguste Comte era ‘saber é poder’. No tempo das sociedades antigas, guerreiras, o poder era um poder fáctico, era a capacidade de dominar o outro. A história não é um conto de fadas, é extremamente violenta. E a cultura, digamos, é uma resposta que estabelece um espaço diferente dessa violência radical, original, do mundo. A cultura é a barca que construímos para acedermos a um destino que pensamos ser mais adequado à humanidade.
Uma sociedade culta é uma sociedade mais justa, menos violenta?
Já vimos que não há padrões. Os gregos fizeram uma separação entre eles e os bárbaros. E o que é o bárbaro? É um outro, com outra cultura e outra linguagem. Aquela linguagem que nós não entendemos. E eles podiam dizer de nós a mesma coisa. É como a relação entre patrões e criados: os patrões pensam que dispõem da lucidez, das boas maneiras, e que os criados são cegos. Não, foram é silenciados durante parte da história. Até que se revoltam, de forma violenta como Espártaco, ou caseiramente como nos romances do século XIX.
Na introdução que escreveu, quebra um pouco o otimismo do autor. Este diz-nos que a cultura está ao nosso alcance e o professor contrapõe que o nosso tempo é o da caverna de Platão, um tempo de aparências. Porquê?
Porque é o preço que pagámos por pensar que estávamos já na luz plena. A humanidade tem tendência a pensar que o ponto onde está é ponto ómega da história, e tal não existe. Na ordem cultural, não há como separar o positivo do negativo, o que nos perde do que nos salva, o que nos engrandece do que nos diminui. Essa é uma luta interna, e é uma luta que não tem sujeito. A humanidade inteira é assim.
Mas viver na caverna não significa vivermos enganados?
Só nos salvamos da caverna com a consciência de estarmos na caverna. Isto aplica-se à televisão: pensa-se que aquelas imagens são reais mas o real está lá fora, é o que ilumina o fundo da caverna. Para vermos o real, temos de voltar a cabeça para trás.
E estamos a olhar para a frente?
Estamos sempre a ver as imagens, em vez de estarmos em contacto com a realidade.
A dada altura, constata que nunca como hoje houve de forma tão marcada o oposto da cultura, que existe para nos distrair dela.
Em vez de a cultura ser aquilo que nos acorda, é aquilo que nos distrai — uma espécie de distração sublime. Nós podemos ser sufocados pela riqueza, como as abelhas no seu mel. Kierkegaard, autor que aprecio muito, ficou muito indignado porque o protestantismo na Dinamarca era vivido como se fosse água, como algo comum. Em vez de ser qualquer coisa que pusesse as pessoas em causa, era recebido como um caramelo.
É assim que vivemos hoje? Como “personagens de jogos de vídeo”, num presente que se basta a si próprio?
Um presente contínuo. Se a humanidade tem uma essência qualquer, é justamente ter memória de si mesma. Portanto, estamos a roubar a memória a nós próprios. Recorrendo a um exemplo extremo: a humanidade podia, praticamente desde que nasce até que morre, estar a olhar para a televisão. Poderíamos passar uma vida inteira a assistir a um filme no qual somos os atores principais, sem vivermos nada. Este é um pesadelo tão grande como o de Kafka. Porém, não se deve fazer uma leitura totalmente negativista, porque nessa nova atividade o futuro está implicado.
Isso é, como preconiza, o fim do sujeito cultural, com memória.
É para onde tendemos, nesta espécie de ludismo universal. O que não significa que não existam hoje pessoas que possam vir a ser os próximos Dante ou Proust. Penso que todos nós somos atores do cultural. Todos queremos estar nessa situação — nem que seja pela aberração ou pela diferença — que não faça de nós um robô, antes que as nossas invenções nos convertam num tipo de existência robótica.
Como se sai daqui?
Em última instância, o importante é a nossa relação com o outro. É não falhar a relação que estabelecemos com uma só pessoa. O resto virá por acréscimo.
Diz que o “fim da história” diagnosticado por Fukuyama é o fim do tempo europeu e o início de um “antitempo” americano. Quer explicar?
O “fim da história” é uma ideia que vem de Hegel e que foi retomada por Marx. É o fim de nós enquanto incapazes de nos apropriarmos plenamente do nosso destino. Até agora, a história humana é a história da nossa própria escravidão. O fim da história é o acordar desse longo período de escravidão para reconhecer as exigências do real. A história é uma luta entre quem tem e não tem poder. E os EUA, já na Grande Guerra mas sobretudo na II Guerra Mundial, ficaram com a possibilidade de condicionar o destino da humanidade. Assumiram esse papel, que originou um paradigma cultural. A expressão mais lúdica de todas, o cinema, mostra-o bem. O grande acontecimento deste ano foi o “Star Wars”. Quando estava a ver o filme, pensava para mim: na Europa andamos há muito vestidos de americanos. É que, mesmo que os europeus quisessem — e não por falta de talento —, não poderiam fazer um filme como aquele. A América sente-se mesmo responsável pela marcha do mundo.
E a Europa não?
A Europa esteve várias vezes à beira do abismo. E agora estamos à espera que acorde. Tem um passado que é como as asas longas do albatroz de Baudelaire: impede-a de marchar. A humanidade habituou-se a conhecer a sua própria história como uma sucessão de impérios, e cada um pretendia ser o último. Desta vez, os Estados Unidos são mesmo o último império — ainda que provavelmente já numa fase crepuscular. Mas, sabe, no outro dia, no centenário de Frank Sinatra, prometi nunca mais dizer nada de negativo contra os americanos.
Porquê?
Porque pessoas como Sinatra são um fenómeno só americano. É um sujeito que parte do nada, europeu, e que por uma qualidade, um talento, conquista aquele país. Este é o triunfo da Europa na América, mas também da América sobre a Europa

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

ma antiga realidade sociológica e política

O mapa que os jornais não publicaram e que mostram algo que nem Marcelo conseguiu mudar

Uma antiga realidade sociológica e política

O mapa que os jornais não publicaram e que mostram algo que nem Marcelo conseguiu mudar


Debruados a vermelho os distritos em que Marcelo rebelo de Sousa não alcançou a maioria absoluta. E Santarém não entra nele por uma unha de 1,11 pontos percentuais.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

O quarto poder

Os quase dois milhões e meio de votos no candidato da direita vencedor não vieram das hostes revanchistas dos partidos que nos infernizaram a vida durante quatro anos, estes sofreram uma derrota clamorosa (em votos) nas legislativas. Não vieram dos convictos reaccionários das políticas de agressão ao povo, de extorsão e saque dos contribuintes, dos convictos neoliberais. Vieram do meu vizinho que abre a oficina de bate-chapas às oito da manhã, dos reformados do café do meu bairro que folheiam de borla o Correio da Manhã, da Dona Otília que vende na mercearia o pãozinho quente, da professora que, numa corrida nervosa, deixa o filho no jardim de infância, dá um beijinho cordial e fugidio na sua colega educadora e abre a sala de aula com o coração aos pulos. Vieram do médico bem ou mal pago, temeroso das mudanças que façam perigar o seu rendimento, do paciente da terceira idade que adormece nas telenovelas que distraem a mulher. Vieram do senhor Faustino que labuta de sol a sol na courela ingrata e que não lê coisa nenhuma desde os bancos da escola. Vieram de muitos eleitores que até simpatizam com o primeiro-ministro e com aquilo que o governo promete.
Vieram através do jornal e da estação de televisão mais vistos. Vieram não do quarto poder, mas do segundo que faz o primeiro.

Serpa 2010


COMUNICAÇÕES

Declaração final do III Encontro Civilização ou Barbárie
Declaración Final del III encuentro Internacional Civilização ou Barbárie
Declaração final do III Encontro Civilização ou Barbárie - Árabe
IIIème Rencontre Internationale Civilisation ou Barbarie - Declaration finale
Declaration of the III International Conference on Civilization or Barbarism

III ENCONTRO CIVILIZAÇÃO OU BARBÁRIE
-Os desafios do mundo contemporâneo

Promovido por odiario.info e a Revista Vértice realizar-se-á em Serpa, de 30 de Outubro a 1 de Novembro, o III Encontro Internacional «Civilização ou Barbárie» – os desafios do mundo contemporâneo.
A iniciativa reunirá naquela cidade alentejana pensadores e cientistas políticos de 16 países: Argentina, Bolívia, Brasil, Canadá, Colômbia, Cuba, Espanha, Estados Unidos da América, França, Líbano, México, Portugal, El Salvador, Reino Unido e Venezuela.
TEMAS A DEBATER:
O agravamento da crise estrutural do capitalismo. O socialismo como única alternativa à barbárie
Lutas de movimentos sociais progressistas e de organizações revolucionárias. Actualidade de Marx e Lenine.
A estratégia de dominação planetária de Obama e as guerras de agressão imperiais.
Revolução e contra-revolução na América Latina
Lutas sociais e politicas na União Europeia. Agudização da crise portuguesa. O Centenário da República Portuguesa
A perversão mediática e a hegemonia das transnacionais na comunicação social.

PARTICIPANTES ESTRANGEIROS

Alexandr Droban (Rússia); Angeles Maestro (Espanha); Carlos Aznarez (Argentina); Carlos Lozano (Colômbia); Carolus Wimmer (Venezuela); Domenico Losurdo (Itália); Georges Gastaud (França); James Petras (EUA); Jean Salem (França);John Catalinotto (EUA); José Paulo Netto (Brasil) ;Leila Ghanem (Líbano); Luciano Alzaga (El Salvador); Marcos Domich (Bolívia) ;Michel Chossudovsky (Canadá);Osvaldo Martinez (Cuba); Piedad Córdoba (Colômbia); Remy Herrera (França); Thierry Labica (França); Virginia Fontes (Brasil).

PARTICIPANTES PORTUGUESES

Anabela Fino, André Levy, Avelãs Nunes, Carlos Lopes Pereira, Correia da Fonseca, Eduardo Chitas, Fernando Correia, Filipe Diniz, Francisco Melo, João Aguiar, João Fagundes, José Paulo Gascão, Luís Gomes, Manuel Gusmão, Miguel Urbano Rodrigues, Nozes Pires, Pedro Carvalho, Rui Namorado Rosa, Sérgio Vinagre, Silvestre Lacerda.

À primeira volta

A vitória do
«entertainer» político



O título deste post é obviamente simplificador mas com ele o que pretendo significar é que, no resultado de Marcelo Rebelo de Sousa, o que mais pesa, sobretudo em relação ao que terá conseguido acima da votação do PAF em 4/10) não pertence ao território da política (ou, pelo menos, como a temos concebido) mas sim ao território de uma incomparável notoriedade, de uma longuíssima exposição mediática, da simpatia pessoal e da prolongada visita dominical aos lares dos portugueses a que há que acrescentar a ajuda da construída maquilhagem e opacidade políticas do candidato durante a campanha. Antes não o poderia escrever mas agora nada obsta a que insista na ideia de que, sendo uma parte decisiva das intenções de voto em MRS pertencente a este último território da não-política, todos os justos argumentos e críticas feitas por outros candidatos a MRS pertenciam a um mundo diferente e não podiam ter um efeito significativo ou decisivo do ponto de vista da necessária erosão das intenções de voto em Marcelo. Eram territórios ou mundos diferentes praticamente impermeabilizados a efeitos de um sobre o outro.

Porque muitos eleitores infelizmente o não compreenderam  e há o perigo certo de nas redes sociais e nos media aparecerem cidadãos e comentadores a insistir num grande equívoco, quero salientar que a vitória de MRS à primeira volta nada tem que ver com a diversidade  de candidatos à sua esquerda. De um ponto de vista aritmético (atenção, é aquele que conta para haver ou segunda volta) não eram deslocações de votos entre os candidatos à esquerda de Marcelo que mudavam ou alteravam as intenções maioritárias de voto em Marcelo. Todos os votos desses candidatos não iam para Marcelo e, portanto, todos contribuiam numericamente para o forçar a uma segunda volta. Para que este objectivo fosse alcançado era indispensável sim que intenções de voto fixadas em MRS se deslocassem para outros candidatos.

Quero sinceramente saudar Edgar Silva, porventura o mais injustiçado dos candidatos,  (e todos os que ergueram a sua combativa e corajosa campanha) e manifestar um imenso apreço pelas suas qualidades de humanismo e poderoso compromisso com os ideais de Abril manifestados numa batalha extraordináriamente díficil onde o preconceito médiático anticomunista voltou a exibir-se e cujo resultado, a meu ver,  foi muito provavelmente afectado pelo facto de um segmento do eleitorado da CDU ter preferido usar o seu voto para resolver a competição  entre Sampaio da Nóvoa e Maria de Belém.

A vida e a luta continuam, amanhã é outro dia e há muitas outras batalhas para travar. De ciência certa, lá estaremos.

P.S.: apesar de este ser um post sintético, seria absurdo não referir o excelente resultado de Marisa Matias e o impressionante afundamento da candidatura de Maria de Belém.
Via: O Tempo das Cerejas

OPINIÃO

ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS

Pode-se dizer que Marcelo Rebelo de Sousa venceu porque é um epifenómeno dos media, que não precisou de fazer campanha, que os dois milhões e meio de portugueses que nele votaram não foram nem são eleitores de Passos Coelho e de Paulo Portas mas sim eleitores do charme televisual do vencedor.
Pode-se dizer que o o principal derrotado é o Partido Socialista porque não se mobilizou à volta de Nóvoa, ou quem realmente foi destroçada foi a sua ala direita e Costa saiu incólume, ou que o PS foi o principal responsável pela vitória da Direita.
Pode-se dizer que o Bloco de Esquerda (BE) sai sempre a ganhar com a aposta em mulheres, simpáticas e empáticas que ficam muito bem nos pequenos ecrãs.
Pode-se dizer que quem realmente mais perdeu fomos todos nós, povo trabalhador, as maiorias que trabalham no Estado ou na economia privada, reformados ou desempregados. Foi o povo português. Marcelo Rebelo de Sousa não nos representa, é de outra classe, doutra elite, doutros interesses.
Contudo, deve-se dizer que o PCP perdeu e não foi pouco. Em casa e por culpa própria.

domingo, 24 de janeiro de 2016

Ventos de esperança!    Por Cauê Seignemartin Ameni
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Nos EUA, nova arrancada de Bernie Sanders revela: é possível vencer preconceitos da mídia — desde que se apresente propostas concretas, em vez de discurso doutrinário
Diminui a cada dia, nos EUA, a distância que separava a candidata oligárquica do Partido Democrata à Casa Branca, Hillary Clinton, do outsider à sua esquerda, o senador Bernie Sanders. O próprio New York Times reconhece: em um mês, Hillary viu sua vantagem de 20 pontos percentuais, entre os membros do partido aptos a votar nas eleições primárias, derreter para 7 pontos. Outras sondagens já mostram uma virada na primárias de dois estados importantes. Em Iowa, onde começa a disputa (em 1º/2) e New Hampshire (9/2), Sanders está à frente com 5 pontos de vantagem. Sua liderança concentra-se entre os candidatos mais jovens, onde tem o dobro de preferência. Quais as razões? A esquerda brasileira teria algo a aprender com elas?A primeira grande barreira que Sanders parece saber enfrentar é a do preconceito. Para frear o ascensão do candidato, seus adversários apostam no desgaste da palavra que o senador emprega para definir a si mesmo: “socialista”. Contudo, Sanders não se presta ao papel de espantalho, analisa Robert Reich, professor de Políticas Públicas da Universidade de Berkeley e ex-ministro do Trabalho (no governo de Bill Clinto). Segundo ele, as pessoas começaram a entender que o senador não é o socialista retratado nas caricaturas da Fox News, mas alguém semelhante a Franklin Roosevelt.“Há um século, Roosevelt quebrou a Standard Oil porque ela representava um perigo à economia dos EUA. Hoje, os bancos de Wall Street representam um perigo ainda maior”, diz Reich. Refere-se a uma proposta de Sanders, que pretende restabelecer a lei rooseveltiana Glass-Steagall, revogada em 1999 pelo lobby de Wall Street. A lei tem dois objetivos: 1) combater a cartelização bancária; e 2) impedir a especulação desenfreada com ativos financeiros. Joseph Stiglitz, Nobel de Econômica, e Nouriel Roubini, o economista que previu a crise de 2008, concordam com a reforma em Wall Street proposta pelo senador. “O plano mais modesto de Hillay Clinton é inadequado” conclui Reich.O colapso financeiro de 2008, causado por Wall Street, parece não ter promovido apenas instabilidade econômica. Também abriu as portas para o que o sociólogo Immanuel Wallerstein chama de “o colapso do centro”, em muitas “democracias” ocidentais. As pesquisas norte-americanas revelam um cenário eleitoral semelhante ao registrado nas urnas espanholas, portuguesas e gregas, onde parte da esquerda conseguiu se reinventar e transformar a revolta dos 99% em novas esperanças.Como na Europa, há dois grandes desafios. O primeiro é formular propostas mais ousadas e atraentes que os pré-candidatos da nova direita. Nos EUA, são hoje mais carismáticos e nacionalistas, gente como o bilionário Donald Trump e o religioso Ted Cruz. O segundo é superar velha esquerda, insossa porém poderosa, representada por Hillary Clinton.Aparentemente, Sanders progride. Não decola somente nas pesquisas eleitorais, mas também nos sinais de um engajamento social massivo. O senador atingiu, há dias, nova marca histórica de doações individuais: 2 milhões de apoiadores. Bateu o recorde ao dobrar o inédito desempenho de Obama em 2008. Nos últimos três meses, angariou US$ 33 milhões para sua campanha, apenas US$ 4 milhões a menos que Hillary — que aceitou doações de Wall Street e de lobistas das grandes redes de prisões privadas. Na soma total Sanders continua em desvantagem: obteve U$ 73 milhões, enquanto Clinton angariou US$ 112 milhões.Do lado do Partido Republicano, a maior dificuldade dos pré-candidatos tem sido propor saídas para estancar o aumento da pobreza, segundo aponta Eduardo Porter no New York Times. Entre os países da OCDE, os EUA figuram entre as piores colocações quando o assunto é desigualdade de renda e pobreza. Estão atrás até mesmo dos estigmatizados “PIGS” da Europa (Portugal, Itália, Grécia e Espanha), e à frente apenas do México. Porter mostra como o plano de mais austeridade do histriônico bilionário Donald Trump e Ted Cruz, ligado ao movimento ultradireitista Tea Party e ex-assessor de George W. Bush, só aprofundariam ainda mais a crise no país. E, para azar dos dois, aliados do 1% da elite financeira, 63% dos norte-americanos acham a questão da desigualdade muito importante, mostra pesquisa recente do Gallup. Por isso, mesmo tendo uma cobertura midiática 23 vezes menor que Trump, o socialista Bernie Sanders tem um potencial de vitória crescente, com uma vantagem de 13% nas eleições gerais sobre a principal liderança republicana; e uma rejeição nacional menor que Clinton (59% dos americanos a consideram “desonesta e nada confiável”). Isso explica porque Sanders foi capaz de reunir multidões – mais de 100 mil pessoas, na soma de seus últimos comícios — além de uma onda de seguidores nas redes sociais. Tornou-se, de longe, a maior atração na campanha eleitoral. Enquanto os ventos sopram à direita nos países afetados recentemente pela crise, como na América Latina, parecem empurrar à esquerda nos países que hoje lutam contra a recessão imposta após a crise.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

FÁBULAS – SARA



FÁBULAS – SARA
Vasco de Espinosa fora meu condiscípulo no Liceu de António Enes, na então Lourenço Marques. Adolescente, embora, era já alto, quase gordo (este “quase” perdê-lo-ia com a idade), eu mal lhe dava pelos ombros. Vasco tinha uns olhos escuros e mansos, inteligentes e constantemente observadores. Nada neles havia de astúcia ou “esperteza”. Leal na amizade mas teimoso como uma mula. Verbo fácil mas seco, frases enxutas até ao osso, de sintaxe perfeita. Encarava-me fixamente quando falava, enquanto eu, ao invés, fixava um ponto inalcançável no horizonte e ali me quedava. Enquanto eu jogava o jogo das metáforas e metonímias, ele encadeava os raciocínios à maneira dos geómetras. Dizia que o método dos geómetras era o único que permitia escapar aos preconceitos: “ E só esta razão teria por certo bastado para que a verdade permanecesse para sempre oculta para o género humano, se a matemática, que se ocupa não dos fins, mas das essências e das propriedades das figuras, não tivesse mostrado aos homens uma outra verdade.”
Quando pelo meu emérito professor de filosofia, de nome Cansado Gonçalves, banido para a colónia pelo Salazar, ouvi falar de Baruch Espinosa, o filósofo judeu holandês filho de portugueses, questionei o Vasco sobre as suas origens. Que sim, muito provavelmente descendia de um primo de Baruch, marrano que se instalara cautelosamente no Alto Douro, conforme seu pai investigara em arquivos. Havia até em casa uma reprodução emoldurada de um célebre retrato do “Príncipe dos filósofos”. Percebi então que ele citava de memória trechos das obras do judeu “embriagado de Deus” como alguém o descreveu. E que os seus olhos evocavam os grandes olhos de Baruch, no retrato, o prenúncio de um sorriso indecifrável.
Adolescentes, namorámos à vez a mesma moça. Primeiramente eu, depois ele. Sara era uma morenita de belíssimos olhos verdes (por causa deles chamavam-lhe no Liceu a “Soraya”, fulgurante esposa do Xá da Pérsia), uma doçura em pessoa, que os pais, de origem modesta, vigiavam à maneira antiga sem motivo algum que não fosse a inferioridade protegida das mulheres. Troquei-a (terrível expressão!) sem apelo e muito agravo por um mocetona de olhos celestes e cabelos de trigo maduro, nem mais inteligente, nem melhor pessoa, apenas atrevida e irremediavelmente sedutora. Mergulhei uns parcos meses nas ondas oceânicas da perdição. Largou-me com a tranquilidade esfíngica de Afrodite e passou-se com armas e bagagens para os braços atléticos de um campeão de basquetebol. Quando quis regressar à espuma de açúcar da Sara, com a corda ao pescoço como o Egas Moniz, fez-se tarde: já o Vasco se enamorara dela (suspeitei que sempre estivera enamorado) e reciprocamente julgo eu.
Até ao termo dos estudos liceais convivemos puco, talvez por essa razão. Via-os sempre juntos e isso não me dava jeito nenhum. Contudo, conversávamos durante e após algumas palestras a que assistíamos sobre cinema ou teatro (artes muito frequentadas na cidade, ao tempo do crítico Eugénio Lisboa e do saudoso Mário Barradas). A propósito de assuntos que viramos tratados em filmes ou livros, lembro-me de alguns ditos dele: “Todos os preconceitos (…) dependem de um só, os homens supõem comummente que todas as coisas naturais agem como eles próprios, tendo em vista um fim e, mais ainda, consideram coisa certa que o próprio Deus tudo dispõe em vista de um determinado fim, pois dizem que Deus fez todas as coisas para o homem (…) todos os homens nascem ignorantes das causas das coisas e todos têm vontade de buscar o que lhes é útil, disso tendo consciência. Daqui decorre, em primeiro lugar, que os homens se julgam livres, porque têm consciência da sua volição e do seu apetite, e que não cuidam, nem mesmo em sonhos, das causas que os predispõem a desejar e a querer, posto que as ignoram. Decorre, em segundo lugar, que os homens agem tendo em vista um fim, ou seja, tendo em vista o que de útil desejam (…) Além disso, encontram em si próprios e fora de si próprios um grande número de meios que lhes servem excelentemente para obter o que lhes é útil (…) Acabam assim por considerar todas as coisas naturais como meios ao serviço da sua própria utilização.” Creem-se meios para Deus e tomam Este como um meio.
O tempo passou. Vim estudar Letras para a Metrópole, o Vasco ingressou em Engenharia, aluno que fora excecional nas matemáticas. Envolvi-me na urgência de um combate contra a ditadura, combate que se afigurava mais legítimo que o imperativo categórico de Kant. Renunciei a prazeres da juventude para não perder tempo nem vacilar, esticando a corda da “ potência de ação” até ao limite da minha natureza, diria Espinosa. Quando após um fatídico desastre de automóvel estive internado seis meses num hospital, recebi a visita do Vasco. Estava mais alto, mais gordo, mais inteligente. Como eu me encontrava detido sob a vigilância da PIDE, evitou-se falar de política. Apenas proferiu estra sentença que bem lembro: “ Ao homem nada é mais útil do que o homem; os homens (…) nada podem desejar de melhor para conservarem o seu ser do que estarem todos de acordo sobre todas as coisas, de tal maneira que os espíritos e os corpos de todos componham por assim dizer um único espírito e um único corpo, e todos se esforcem ao mesmo tempo, tanto quanto possam, por conservarem o seu ser, e todos procurem ao mesmo tempo o que é útil a todos”. Tens escutas aqui no quarto do hospital? - Não, as enfermeiras já vistoriaram tudo. Então, disse subtilmente, bem a seu modo: a causa essencial da degradação dos Estados reside na corrupção das leis que preservam a igualdade e a liberdade, e de que quanto maior é a liberdade melhor se defende a segurança do Estado e a sua estabilidade. Na Democracia autêntica, os cidadãos ao delegarem no Estado direitos e deveres não perdem, por isso, os seus direitos naturais, são tanto mais ativos e criadores quanto mais o Estado preservar a liberdade e a segurança de todos. E os deveres? - Pois, está por redigir-se uma Declaração Universal dos Deveres do Homem e do Cidadão, retorquiu.
Meses depois de ter alta do hospital, apoiado em muletas, a PIDE veio prender-me em casa pelas sete horas da manhã. Nessa primeira prisão não festejei o Natal e o Ano Novo, enjaulado nos calabouços da Rua do Heroísmo, na cidade do Porto. Algum tempo após esse “batismo de fogo” encontrava-me eu no Café Ceuta que os antifascistas frequentavam e nele se distribuíam panfletos escondidos em livros de estudo quando me apareceu o Vasco. Vinha saber do meu estado de saúde e de ânimo. Dessa conversa recordo o seguinte dito: “Todo o homem sofre afeções e, sobre elas, afetos. Chama-se desejo quando tem consciência dos apetites, esse é o seu estado comum e natural. Todos nós temos tendência para ser, ou seja, para agir, e devemos distinguir entre os afetos aqueles que aumentam a nossa potência de agir, ou, pelo contrário, a diminuem. Daí resulta que a nossa luta é sempre entre a submissão e a liberdade. Encontramo-nos sempre submetidos a paixões como parte da natureza que somos. Quando o corpo encontra outros corpos que se adequam à nossa natureza, sentimos alegria; em caso contrário, é tristeza que sentimos, ou ódio, ou inveja; o amor é a alegria acompanhada pela ideia de uma causa exterior que realiza um encontro positivo; a esperança, alegria inconstante, nascida da imagem de uma coisa futura ou passada cujo desfecho nos parece duvidoso; e é o medo o sentimento mais comum e com o qual aqueles que nos submetem nos manipulam.
Em suma: Sara, de olhos oceânicos, fora para o meu amigo o tal raro “encontro adequado”.
Vasco convidou-me para o seu casamento. Com Sara evidentemente. Realizou-se no restaurante panorâmico no Bom Jesus do Monte, Braga. Pude dizer que ambos se mostravam abençoados por uma “paixão alegre”.
Cada um seguiu o destino que escolheu “com a sua circunstância”. De quando em vez ia sabendo dos sucessos do amigo Vasco na sua qualidade de engenheiro. Dirigia obras espetaculares nos quatro cantos do planeta. Imaginava-o no seu vasto ateliê, compenetrado, a tentar descobrir os materiais mais revolucionários, exatos, perfeitos, expressões criadoras da Razão, capazes de vencer todos e quaisquer “constrangimentos externos”, à maneira do seu ilustríssimo primo. A sua bela Sara a chamá-lo para o jantar e ele, distraído dos prazeres mundanos, a teimar penetrar nos segredos do infinitamente pequeno. A paixão da Razão.
Dez anos depois esperava-me em casa uma missiva do Vasco. Duas curtas frases, em letra firme e geométrica: “Sara morreu-me. Doença incurável. Vou residir para o Brasil onde o meu trabalho é reconhecido. Até sempre meu amigo.”
Nunca mais soube nada dele. Até que, certo dia, à beira da passagem do milénio, estava eu em casa rememorando a ÉTICA de Espinosa, minha mulher mostrou-me a página de um jornal onde se lia: “Faleceu o engenheiro Vasco de Espinosa. O funeral realiza-se amanhã pelas 10h. “ Em cima uma fotografia.
Vasco teria regressado a Portugal e eu ignorava! Talvez sabendo-se sofrer de doença incurável veio para a sua pátria para morrer. Fui. Algumas dezenas de pessoas acompanharam o féretro para o Cemitério dos Prazeres. Deixei-me ficar postado a um canto vendo os grupos escoarem-se aos poucos. Chuviscava. O sol, indiferente na sua natureza, não lhe prestou homenagem. Ao dirigir-me para o carro fui interpelado por um indivíduo envergando um fato austero de ocasião, óculos escuros, que me perguntou delicadamente se eu era…(disse o nome), aquiesci, e desfechou-me esta seta mortal: “ O falecido era muito seu amigo. Eu sou, quero dizer, fui, o seu advogado desde sempre. Um mês antes da sua morte, Vasco pediu-me que fosse o senhor a tratar do destino da sua biblioteca e escritos. Acha-se capaz dessa tarefa?”. Fiquei abismado. Estive demasiado tempo a olhar fixamente o indivíduo para acreditar no que ouvia, por fim consegui balbuciar: De que morreu o Vasco? Doença fulminante? Sofreu muito? O homem desenhou a custo um sorriso triste e redarguiu com estas palavras misteriosas: “Morreu…ou deixou-se morrer simplesmente.” Talvez se tenha matado, pressenti. Trágico fim para um espinosista que tem o suicídio como um ato absurdo, na medida em que não existe em nós força maior do que conservar o nosso próprio ser, e o verdadeiro filósofo pensa mais na vida do que na morte …
Logo que pude dirigi-me à morada que me fora indicada, moradia de arquitetura sóbria mas elegante, ao redor um amplo jardim abandonado. O escritório: enorme ateliê, milhares de livros e dossiês. Procurei horas a fio o que ansiosamente buscava: Cadernos onde se espelhariam os frutos revolucionários de uma mente excecional, equações e cálculos matemáticos a que eu me vergaria impotente, construções utópicas, nanotecnologias de ponta, realidades virtuais com as quais deixaríamos de saber qual seja a verdadeira, pontes visionárias e réplicas exatas de órgãos humanos…
Encontrei. Eram dezenas de pastas contendo folhas soltas. Li na primeira: “Sara”. Li na segunda, terceira, centésima: “Sara”. Em todas elas uma data. Nada mais do que isto. O sentido da vida. Um nome.
Um nome para a eternidade.
NOZES PIRES


terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Magalhães-Vilhena: um marxista erudito – e não só

Saiba o meu eventual leitor, desde já, que dois motivos me levam a trazer à baila o nome de Vasco de Magalhães-Vilhena (1916-1993), no instante mesmo em que localizo, entre meus velhos livros, a sua obra – seminal e clássica – sobre Sócrates (e Platão). O primeiro motivo é lembrar que, neste ano, decorrerá o centenário de nascimento do filósofo, quando certamente os círculos mais lúcidos da cultura portuguesa (e não apenas dela) haverão de homenageá-lo devidamente; o segundo é registrar a recente publicação de um conjunto de apontamentos seus acerca de uma questão central do pensamento marxista, a questão da ideologia.
Devo confessar que a minha primeira aproximação à obra de Magalhães-Vilhena não foi propriamente das mais fecundas – e agora, corrido tanto tempo, ouso desculpar-me pela leitura pouco produtiva invocando a (in)desculpável ignorância filosófica dos meus verdes anos… Aconteceu na década de 1960 o meu contacto inicial com o pensamento de Magalhães-Vilhena: então, em Belo Horizonte (num espaço livreiro que não sei se ainda existe – na minha memória ficou algo como “Livraria J. M. Gomes”, que vendia livros novos e usados, instalado em sala de um prédio da Rua da Bahia), deparei-me com um exemplar do seu Le problème de Socrate e logo o comprei. Retornando dias depois àquela livraria, pude adquirir Socrate et la légende platonicienne (ambos os livros publicados em Paris, em 1952, pelas Presses Universitaires de France; estão hoje traduzidos sob os títulos O problema de Sócrates e Platão e a lenda socrática, editados pela Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, respectivamente em 1984 e 1998). Seguramente já imagina o leitor que sobra dizer que o estudante pouco letrado percorreu com avidez e com a atenção possível os dois volumes… mas aproveitou pouquíssimo, ou quase nada, do que continham aquelas largas centenas de páginas.
Somente uns anos mais tarde, com uma cuidadosa releitura, pude ter alguma consciência da relevância desses textos de Magalhães-Vilhena – resultantes, com efeito, da sua tese de doutoramento (defendida em 1949, na Sorbonne), tese que o tornou reconhecido como um qualificado analista da filosofia antiga: em 1954, foi agraciado com o máximo prêmio da Association des Études Grecques, respeitada instituição ligada à academia francesa. Aquela releitura, feita ao fim do primeiro terço dos anos 1970, fixou para mim a imagem de Magalhães-Vilhena como um notável erudito, cuidadoso pesquisador marxista que revolucionou com brilhantismo a visão tradicionalmente estabelecida de um capítulo extremamente significativo da filosofia ocidental.
magalhaes vilhena socrates
Essa imagem, embora com elementos de verdade, logo se revelaria unilateral, como pude verificar no período em que estive trabalhando em Portugal, na sequência da Revolução dos Cravos. Só então constatei que Magalhães-Vilhena foi muito mais que um erudito: foi, sem qualquer prejuízo do seu específico trabalho acadêmico, antes estimulando-o, um exemplar militante comunista – na década de 1930, muito jovem, já ingressara no Partido Comunista Português/PCP, em cujas fileiras haveria de permanecer até à morte.
Obrigado ao exílio em 1945, quando foi excluído do corpo docente da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (lecionava então a disciplina História da Filosofia Antiga), radicou-se em Paris; aí se doutorou e construiu sólida carreira intelectual, vinculando-se, na Sorbonne, ao Centre de Recherches sur la Pensée Antique (1946-1974) e ao Centre National de la Recherche Scientifique (1947-1967). Com o processo revolucionário aberto pelo 25 de Abril, pôde enfim retornar a Portugal, assumindo uma cátedra na Universidade de Lisboa, na qual se aposentou em 1980, por razões de saúde. Ao longo das três décadas de exílio, nunca esmoreceu na luta antifascista: integrado na ação do PCP no exterior, denunciou corajosa e sistematicamente o regime de Salazar e, desde 1950, atuou no Conselho Mundial da Paz.
No seu regresso a Portugal, a intelectualidade marxista mais jovem já tinha em Magalhães-Vilhena o seu maître à penser, de um lado pelo seu descortínio no trato da história da filosofia (expresso na obra coletiva que organizou e que a censura fascista não pôde impedir de circular: Panorama do pensamento filosófico. Lisboa: Cosmos, I-II-III, 1956, 1958 e 1960) e, doutro lado e sobretudo, pelo seu seguríssimo domínio da textualidade de Marx e Engels (atestada, por exemplo, na sua intervenção à edição do Manifesto do partido comunista. Lisboa: Avante!, 1975). Ademais, figuras daquela intelectualidade, também forçadas ao exílio, haviam anteriormente contactado com Magalhães-Vilhena e com ele estabelecido relações de colaboração científica que prosseguiriam no Portugal libertado em abril de 1974 – com destaque para Eduardo Chitas (1937-2011) e Hernâni Resende (1942), que responderiam com zelo por parte do seu espólio literário.
O grande segmento já de conhecimento público do espólio de Magalhães-Vilhena documenta que a sua obra não se restringe, absolutamente, aos limites da erudição acadêmica própria ao especialista que ele foi da filosofia antiga (com muitos outros desenvolvimentos para além da sua tese de 1949). O filósofo discutiu Bacon e Hegel, polemizou com figuras decisivas do pensamento português do século XX (p. ex., com Antônio Sérgio) e tematizou questões epistemológicas de interesse contemporâneo.* Entretanto, parte desse espólio – conservado por sua companheira, Hélène Lanièce de Magalhães-Vilhena, falecida em 1996, e em seguida entregue aos cuidados do PCP – contém ainda materiais inéditos. E agora, nestas últimas linhas, o meu eventual leitor tem o segundo motivo que me leva a recordar Magalhães-Vilhena.
Poucos anos antes de sua morte precoce e inesperada, Eduardo Chitas ocupava-se de examinar originais constantes do espólio de Magalhães-Vilhena, com atenção especial a textos eventualmente inéditos. Chitas, prestigiado professor da Universidade de Lisboa – um dos fundadores do Grupo de estudos marxistas/GEM, que nucleia pesquisadores marxistas e já é bem conhecido pelos seminários internacionais que promove em Lisboa (os colóquios Marx em maio) –, convocou para trabalhar com ele no exame mencionado o jovem filósofo João Vasco Fagundes, ativo membro do GEM (é autor de um ensaio precioso: A dialética do abstrato e do concreto em Karl Marx. Lisboa: GEM, 2014). Entre os vários materiais inéditos que chamaram a atenção de ambos estava um original, redigido em francês e vazado em 135 páginas datilografadas; nelas, provavelmente escritas em meados dos anos 1960, Magalhães-Vilhena, deixando sem título o texto, aponta o seu objeto com a seguinte notação: “Ideologia e sociedade; ideologia e ciência; papel da ideologia na direção científica dos processos sociais”.
magalhaes v livros
Pois é este o material que foi há pouco publicado, em volume intitulado Fragmentos sobre ideologia (Lisboa: GEM, 2015). A confiável tradução é de João Vasco Fagundes, que manteve a estrutura expositiva formalmente assistemática do original, apôs-lhe notas esclarecedoras e antecedeu-a com um longo (quase 40 páginas) e eficiente prefácio. Nele, Fagundes não apenas dá conta dos procedimentos de que se valeu para editar o texto, socorrendo-se inclusive do recurso a outras obras de Magalhães-Vilhena; especialmente sustenta, com argumentação persuasiva, que o caráter formalmente assistemático da exposição (donde, no título, a referência a fragmentos), provavelmente devido ao seu inacabamento, não impede que nas reflexões constitutivas do volume se patenteie “um conteúdo recheado de sistematicidade”, evidenciando “uma concepção de fundo que lhes oferece [aos fragmentos] nexo e coerência” (p. XIX). E, a meu juízo, a leitura cuidadosa dos apontamentos de Magalhães-Vilhena demonstra que esta interpretação de Fagundes é procedente.
O importante, todavia, é considerar aquele “conteúdo” e aquela “concepção de fundo” que as reflexões de Magalhães-Vilhena extraem e inferem da minuciosa análise textual dos “pais fundadores” (os “clássicos” Marx e Engels, mas também Lenin), análise que combina criticamente o trato imanente da escritura “clássica” com a abertura à sua historicidade histórico-cultural concreta. Das elaborações de Magalhães-Vilhena resultam determinações essenciais – portanto, atuais – para a dilucidação da ideologia, de suas relações com a ciência e de sua funcionalidade social.
Resumidamente, o certo é que a leitura desses Fragmentos sobre ideologia, na passagem do centenário de nascimento de Vasco de Magalhães-Vilhena, permite compreender por que o insigne marxista português ainda permanece um maître à penser – para todos nós.
NOTAS
* Remeto o leitor interessado na biobibliografia de Magalhães-Vilhena aos vários trabalhos contidos em E. Chitas e H. Resende, coords., Filosofia. História. Conhecimento. Homenagem a Vasco de Magalhães-Vilhena. Lisboa: Caminho, 1980. Posteriormente, tanto Eduardo Chitas quanto Hernâni Resende publicaram textos referidos a seu mestre comum.

Viagem à Polónia

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Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

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Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.