Michael Löwy: A crítica romântica de Charles Dickens ao capitalismo
Embora fosse completamente alheio às ideias socialistas, Charles Dickens era um dos autores favoritos de Marx. Seu romance Tempos difíceis,
publicado em 1854, contém uma expressão excepcionalmente articulada da
crítica romântica à sociedade industrial. Não faz uma homenagem tão
explícita às formas pré-capitalistas, geralmente medievais, quanto a
maioria dos românticos ingleses – como Burke, Coleridge, Cobbett, Walter
Scott, Carlyle (a quem Tempos difíceis
é dedicado), Ruskin e William Morris –, mas a referência aos valores
morais do passado é um componente essencial da atmosfera criada por ele.
Por um paradoxo que é apenas aparente, o refúgio desses valores aparece
na forma de um circo, uma comunidade um tanto arcaica, mas
autenticamente humana – na qual as pessoas ainda têm um “bom coração” e
uma “atitude muito natural” – que se situa fora, e em franca oposição, à
sociedade burguesa “normal”.
Em Tempos difíceis,
o espírito frio e quantificador da era industrial é magnificamente
personificado por um ideólogo utilitarista e membro do Parlamento,
Mister Thomas Gradgrind (senhor “Triturador-sob-medida” é a tradução
aproximada do nome…). Trata-se de um homem que tem “uma régua e uma
balança, e a tabuada sempre no bolso” e está sempre “pronto para pesar e
medir qualquer parcela da natureza humana, e dizer o resultado exato”.
Para Gradgrind, tudo no universo é “mera questão de números, um caso de
simples aritmética”, e ele administra com mão de ferro a educação das
crianças, segundo o princípio salutar de que “aquilo que não se podia
expressar em números, ou demonstrar que era comprável no mercado mais
barato e vendável no mais caro, não existia, e não deveria existir”. A
filosofia de Gradgrind – a amarga e dura doutrina da economia política,
do utilitarismo estrito e do laisser-faire clássico – era que:
tudo
devesse ser pago. Não se podia, em hipótese alguma, dar nada a ninguém,
ou oferecer ajuda gratuita. A gratidão deveria ser abolida, e as
virtudes que dela brotavam deveriam deixar de existir. Cada minuto da
existência humana, do nascimento até a morte, deveria ser uma barganha
diante de um guichê.1
A esse retrato poderoso e evocador – quase um tipo ideal weberiano – do éthos
capitalista, cujo triste triunfo se concretizará quando “o romance for
expulso” da alma humana, Dickens contrapõe sua fé na vitalidade das
“sensibilidades, afeições e fraquezas” da alma humana, “desafiando todos
os cálculos do homem, e tão desconhecida da sua aritmética como é o seu
Criador”. Ele acredita, e toda a trama de Tempos difíceis é
um arrazoado apaixonado em favor dessa crença, que existem no coração
dos indivíduos “essências sutis da humanidade que escaparão até da maior
habilidade algébrica, até o dia em que o som da última trombeta fizer
em pedaços até mesmo a álgebra”. Recusando-se a ceder à
máquina-de-triturar-sob-medida, ele abraça valores irredutíveis aos números2.
Mas Tempos difíceis
não tratam apenas da trituração da alma: o romance ilustra também como a
modernidade expulsou da vida material dos indivíduos qualidades como
beleza, cor e imaginação, reduzindo-a a uma rotina fastidiosa, cansativa
e uniforme. A cidade industrial moderna, “Coketown”, é descrita por
Dickens como “uma cidade de máquinas e chaminés altas, pelas quais se
arrastavam perenes e intermináveis serpentes de fumaça que nunca se
desenrolavam de todo”. Suas ruas eram semelhantes umas às outras, “onde
moravam pessoas também semelhantes umas às outras, que saíam e entravam
nos mesmos horários, produzindo os mesmos sons nas mesmas calçadas, para
fazer o mesmo trabalho, e para quem cada dia era o mesmo de ontem e de
amanhã, e cada ano o equivalente do próximo e do anterior”3.
O espaço e o tempo parecem ter perdido toda diversidade qualitativa e
toda variedade cultural, tornando-se uma estrutura única, contínua,
moldada pela atividade ininterrupta das máquinas.
Para a
civilização industrial, as qualidades da natureza não existem: ela só
leva em conta as quantidades de matéria-prima que pode extrair dela.
Coketown é, em consequência, uma “feia cidadela, onde a Natureza era
mantida firmemente do lado de fora pelas mesmas paredes de tijolos que
mantinham os ares e os gases letais do lado de dentro”; suas altas
chaminés, lançando “suas baforadas venenosas”, escondiam o céu e o sol, e
este estava “eternamente em eclipse, através de uma barreira de vidro
enfumaçado”. Os que ansiavam “tomar ar fresco” ou queriam ver uma
paisagem verdejante, árvores, pássaros, um pouco de céu azul, tinham de
percorrer alguns quilômetros pela ferrovia e caminhar pelos campos. Mas
ainda assim não estavam em paz: poços abandonados, depois que todo o
ferro ou todo o carvão haviam sido extraídos da terra, escondiam-se no
mato, como armadilhas mortais.4
Dickens era
um moderado favorável às reformas sociais, mas a crítica romântica da
quantificação também pode assumir formas conservadoras e reacionárias:
por exemplo, na defesa de Adam Müller e outras figuras do romantismo
político da propriedade feudal tradicional, que supostamente
representaria uma forma qualitativa de vida, contra a monetarização e a
alienação mercantil da terra. Ou então no ódio antissemita contra o
judeu identificado com o dinheiro, a usura e as finanças, e visto como
considerado um fator de corrupção e subversão do Antigo Regime. O
panfleto de Edmund Burke contra a Revolução Francesa é um exemplo
clássico da utilização contrarrevolucionária do argumento romântico a
respeito da quantificação moderna: denunciando a humilhação que os
revolucionários de 1789 impuseram à rainha da França, ele exclama: “A
idade do cavalheirismo passou – sucedeu-lhe a dos sofistas, dos
economistas e dos calculadores; e a glória da Europa está extinta para
sempre”5.
* Este artigo é um trecho do livro Revolta e melancolia: o romantismo na contracorrente da modernidade, de Michael Löwy e Robert Sayre, que integra a coleção “Marxismo e literatura” coordenada por Michael Löwy na Boitempo.
NOTAS
1. Charles Dickens, Tempos difíceis
(trad. José Baltazar Pereira Júnior, São Paulo, Boitempo, 2014), p. 15,
38 e 322-3. Mais tarde, eleito para o Parlamento, Thomas Gradgrind
torna-se “um dos respeitados membros dos pesos e medidas, um dos
representantes da tabuada, um dos honoráveis cavalheiros surdos, um dos
honoráveis cavalheiros mudos, um dos honoráveis cavalheiros cegos, um
dos honoráveis cavalheiros mancos, um dos honoráveis cavalheiros mortos,
a qualquer outra consideração” (ibidem, p. 111).
2. Ibidem, p. 187, 244 e 119, respectivamente.
3. Ibidem, p. 37.
4. Ibidem, p. 81, 188 e 299. O herói do romance, o operário Stephen Blackpool, cai em um desses poços – o “velho Poço do Inferno” e morre.
5. Edmund Burke, Reflexões sobre a Revolução em França (trad. Renato de Assumpção Farias, Denis Fontes de Souza Pinto e Carmen Lídia Richter Ribeiro Moura, Brasília, UnB, 1997), p. 100.
2. Ibidem, p. 187, 244 e 119, respectivamente.
3. Ibidem, p. 37.
4. Ibidem, p. 81, 188 e 299. O herói do romance, o operário Stephen Blackpool, cai em um desses poços – o “velho Poço do Inferno” e morre.
5. Edmund Burke, Reflexões sobre a Revolução em França (trad. Renato de Assumpção Farias, Denis Fontes de Souza Pinto e Carmen Lídia Richter Ribeiro Moura, Brasília, UnB, 1997), p. 100.
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