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sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

A utopia necessária

Em 2016, são comemorados os 500 anos da redação de A Utopia, de Thomas More. Verdadeiro best-seller na sua época, o livro legou a nós uma palavra – o não lugar ou o lugar feliz, graças à etimologia dupla presente nela – e também uma forma de pensar. Participa da coincidência histórica que fez com que, em curto espaço de tempo, no começo do século XVI, um conjunto de obras e eventos redefinisse nossa compreensão da política: em 1513, com O príncipe, Maquiavel assentou as bases do entendimento moderno e contemporâneo dos dilemas envolvidos na relação entre moral e política. Em 1517, Martinho Lutero realizou o gesto inaugural da reforma protestante, ao afixar suas 95 teses sobre a venda de indulgências na porta da Catedral de Wittenberg, desencadeando o processo que levaria à separação entre Igreja e Estado, que é crucial para a política contemporânea e, em particular, para a própria possibilidade da democracia.
A obra de Thomas More apresenta outra faceta desta redefinição da política, ao enfatizar os elementos de indefinição e de liberdade na maneira pela qual homens e mulheres produzem sua vida em sociedade. Quando, na segunda parte do livro, o narrador descreve um mundo organizado de forma diferente, na Ilha de Utopia, o que ele está dizendo a seu público é que a sociedade não precisa ser obrigatoriamente do jeito que é. Muitas das instituições que More descreve parecem pouco atraentes para leitores contemporâneos. Há excessivo controle sobre a vida privada, com escassa liberdade individual. As relações entre os sexos eram revolucionariamente simétricas para a época em que A Utopia foi escrita, mas muito longe da igualdade que reivindicamos hoje. Existe trabalho escravo, única maneira que o autor encontrou para resolver o problema da escassez e do conflito distributivo. A despeito destes e de outros problemas, a lição central do livro continua a falar a nosso tempo.
Há alguns anos, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman fez uma observação muito pertinente sobre um paradoxo da sociedade contemporânea, ao menos da sociedade ocidental: nós achamos que a questão da liberdade está resolvida, isto é, que vivemos numa sociedade tão livre quanto é possível. Mas, ao mesmo tempo, tendemos a crer que o mundo é do jeito que é e nada, ou muito pouco, pode ser mudado. A “estrutura básica” da sociedade – as relações sociais de produção, as formas de gestão do poder político – está dada. Ou seja, somos livres, mas não podemos mudar o curso do mundo.
Mas que liberdade é essa, em que a possibilidade de transformar o mundo está afastada?
O pensamento utópico nos ensina o contrário. A primeira lição de Thomas More é que a sociedade é organizada da forma que surge das interações entre as mulheres e os homens que a compõem. Não é possível ver na organização social um reflexo da vontade de deus (ou do mercado, que aqui cumpre a mesma função). Ela é fruto da nossa vontade coletiva – o que inclui, certamente, o fato de que algumas vontades têm hoje mais condições de se impor do que outras. Mas se trata exatamente da possibilidade de projetar uma organização social diferente, em que esse quadro seja mudado.
É por isso que é necessário um elemento utópico nas lutas pela transformação social: a visualização de um mundo diferente, alimentada pela convicção (que é correta, que é bem embasada) de que o mundo não está condenado a permanecer do jeito que é.
Em parte da tradição da esquerda, o utopismo guarda um sentido pejorativo. Marx e Engels fizeram questão de diferenciar sua visão, “científica”, dos socialismos anteriores, nos quais grudaram o adjetivo “utópico” para marcá-los como irrealistas e infundados. Mas é possível entender de outra forma, vendo a utopia como sendo (nas palavras do filósofo francês André Gorz), “a visão de futuro sobre a qual uma civilização pauta seus projetos, funda seus objetivos ideais e suas esperanças”. Se é assim, o socialismo marxista também é utópico.
Como regra, porém, a crítica à utopia costuma vir do pensamento conservador, que nela vê ou uma evasão, ou, pior, uma inimiga da liberdade individual. Um sociólogo alemão, Ralf Dahrendorf, sintetizou as críticas ao afirmar que a utopia “é, pela natureza da ideia, uma sociedade totalitarista”. É um julgamento que aparece também em obras clássicas do pensamento de direita, como A sociedade aberta e seus inimigos, de Karl Popper, ou Anarquia, Estado e utopia, de Robert Nozick. Ao descrever uma sociedade ideal, a utopia negaria legitimidade a outros arranjos sociais. E ao descrever uma sociedade perfeita, exigiria a adaptação total de cada um a ela, para que nada trave seu mecanismo. A perfeição exige que o comportamento de todos seja predizível, logo não pode ser livre.
A crítica ao utopismo reflete, assim, duas ideias básicas do pensamento conservador. Primeiro, que a liberdade humana se realiza de acordo com o modelo do mercado, em que trocas autointeressadas levam a resultados indeterminados e assimétricos. Depois, que é necessário tomar cuidado com o racionalismo. A hunanidade deve evitar a ideia de que o uso da razão pode levar à solução dos problemas da organização social. Todos os grandes teóricos conservadores, do setecentista Edmund Burke ao recente Michael Oakeshott, batem na mesma tecla: a razão é limitada. Devemos nos apoiar na sabedoria da experiência, acumulada durante gerações e cristalizada nas tradições e mesmo nos preconceitos. A utopia aponta na direção inversa, propondo exatamente reinventar o mundo.
A crítica ao caráter totalitário, feita pelo pensamento conservador, não é inteiramente desprovida de sentido. Há experiências históricas terríveis – da Revolução Cultural maoísta ao regime de Pol Pot, no Camboja – que mostram os perigo de um voluntarismo absoluto, disposto a implantar um novo mundo sem olhar para as circunstâncias ou para os custos humanos. A ideia do “novo homem”, o ser humano aprimorado para um mundo aprimorado, que emerge já nas utopias do Renascimento (mais do que em More, na Cidade do Sol, de Tommaso Campanella), carrega um inegável perigo autoritário.
Mas é igualmente autoritário congelar as pessoas e o mundo social naquilo que são hoje, como se fossem inevitáveis e imutáveis. Recusar desta forma o utopismo é, assim, negar legitimidade a qualquer alternativa ao já existente e tentar eliminar da política o dever-ser. Nas palavras do historiador polonês Bronisław Baczko, “a invenção utópica se mostra cúmplice da invenção do espaço democrático. De fato, é apenas com a invenção deste espaço que a sociedade se dá a representação de ser fundada apenas sobre ela mesma, sobre sua ‘vontade’ livremente expressa e fundadora de sua ordem. De pronto, este espaço se oferece como um espaço social a modelar, a gerar, a reinventar”.
A narrativa utópica afirma a sociedade humana como auto-instituída – regida por normas que os homens e mulheres se deram e que, se quiserem, podem alterar. As forças conservadoras tentam, ao contrário, indicar que o mundo que temos é o único mundo possível. Em todo o projeto político transformador, há, ao menos em germe, a visão de uma sociedade nova, que ainda não existe em lugar nenhum. Sem isto, a humanidade estaria condenada a permanecer com o já existente e a disputa política seria reduzida à mera alocação de recursos.

in Boitempo. blog

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