FÁBULAS – SARA
Vasco de Espinosa fora meu
condiscípulo no Liceu de António Enes, na então Lourenço Marques. Adolescente,
embora, era já alto, quase gordo (este “quase” perdê-lo-ia com a idade), eu mal
lhe dava pelos ombros. Vasco tinha uns olhos escuros e mansos, inteligentes e
constantemente observadores. Nada neles havia de astúcia ou “esperteza”. Leal
na amizade mas teimoso como uma mula. Verbo fácil mas seco, frases enxutas até
ao osso, de sintaxe perfeita. Encarava-me fixamente quando falava, enquanto eu,
ao invés, fixava um ponto inalcançável no horizonte e ali me quedava. Enquanto
eu jogava o jogo das metáforas e metonímias, ele encadeava os raciocínios à
maneira dos geómetras. Dizia que o método dos geómetras era o único que
permitia escapar aos preconceitos: “ E só esta razão teria por certo bastado
para que a verdade permanecesse para sempre oculta para o género humano, se a
matemática, que se ocupa não dos fins, mas das essências e das propriedades das
figuras, não tivesse mostrado aos homens uma outra verdade.”
Quando pelo meu emérito professor
de filosofia, de nome Cansado Gonçalves, banido para a colónia pelo Salazar,
ouvi falar de Baruch Espinosa, o filósofo judeu holandês filho de portugueses,
questionei o Vasco sobre as suas origens. Que sim, muito provavelmente
descendia de um primo de Baruch, marrano
que se instalara cautelosamente no Alto Douro, conforme seu pai investigara em
arquivos. Havia até em casa uma reprodução emoldurada de um célebre retrato do
“Príncipe dos filósofos”. Percebi então que ele citava de memória trechos das
obras do judeu “embriagado de Deus” como alguém o descreveu. E que os seus
olhos evocavam os grandes olhos de Baruch, no retrato, o prenúncio de um
sorriso indecifrável.
Adolescentes, namorámos à vez a
mesma moça. Primeiramente eu, depois ele. Sara era uma morenita de belíssimos
olhos verdes (por causa deles chamavam-lhe no Liceu a “Soraya”, fulgurante
esposa do Xá da Pérsia), uma doçura em pessoa, que os pais, de origem modesta,
vigiavam à maneira antiga sem motivo algum que não fosse a inferioridade
protegida das mulheres. Troquei-a (terrível expressão!) sem apelo e muito
agravo por um mocetona de olhos celestes e cabelos de trigo maduro, nem mais
inteligente, nem melhor pessoa, apenas atrevida e irremediavelmente sedutora. Mergulhei
uns parcos meses nas ondas oceânicas da perdição. Largou-me com a tranquilidade
esfíngica de Afrodite e passou-se com armas e bagagens para os braços atléticos
de um campeão de basquetebol. Quando quis regressar à espuma de açúcar da Sara,
com a corda ao pescoço como o Egas Moniz, fez-se tarde: já o Vasco se enamorara
dela (suspeitei que sempre estivera enamorado) e reciprocamente julgo eu.
Até ao termo dos estudos liceais
convivemos puco, talvez por essa razão. Via-os sempre juntos e isso não me dava
jeito nenhum. Contudo, conversávamos durante e após algumas palestras a que
assistíamos sobre cinema ou teatro (artes muito frequentadas na cidade, ao
tempo do crítico Eugénio Lisboa e do saudoso Mário Barradas). A propósito de
assuntos que viramos tratados em filmes ou livros, lembro-me de alguns ditos
dele: “Todos os preconceitos (…) dependem de um só, os homens supõem comummente
que todas as coisas naturais agem como eles próprios, tendo em vista um fim e,
mais ainda, consideram coisa certa que o próprio Deus tudo dispõe em vista de
um determinado fim, pois dizem que Deus fez todas as coisas para o homem (…)
todos os homens nascem ignorantes das causas das coisas e todos têm vontade de
buscar o que lhes é útil, disso tendo consciência. Daqui decorre, em primeiro
lugar, que os homens se julgam livres, porque têm consciência da sua volição e
do seu apetite, e que não cuidam, nem mesmo em sonhos, das causas que os predispõem
a desejar e a querer, posto que as ignoram. Decorre, em segundo lugar, que os
homens agem tendo em vista um fim, ou seja, tendo em vista o que de útil desejam
(…) Além disso, encontram em si próprios e fora de si próprios um grande número
de meios que lhes servem excelentemente para obter o que lhes é útil (…) Acabam
assim por considerar todas as coisas naturais como meios ao serviço da sua
própria utilização.” Creem-se meios para Deus e tomam Este como um meio.
O tempo passou. Vim estudar
Letras para a Metrópole, o Vasco ingressou em Engenharia, aluno que fora excecional
nas matemáticas. Envolvi-me na urgência de um combate contra a ditadura,
combate que se afigurava mais legítimo que o imperativo categórico de Kant.
Renunciei a prazeres da juventude para não perder tempo nem vacilar, esticando
a corda da “ potência de ação” até ao limite da minha natureza, diria Espinosa.
Quando após um fatídico desastre de automóvel estive internado seis meses num
hospital, recebi a visita do Vasco. Estava mais alto, mais gordo, mais inteligente.
Como eu me encontrava detido sob a vigilância da PIDE, evitou-se falar de
política. Apenas proferiu estra sentença que bem lembro: “ Ao homem nada é mais
útil do que o homem; os homens (…) nada podem desejar de melhor para
conservarem o seu ser do que estarem todos de acordo sobre todas as coisas, de
tal maneira que os espíritos e os corpos de todos componham por assim dizer um
único espírito e um único corpo, e todos se esforcem ao mesmo tempo, tanto
quanto possam, por conservarem o seu ser, e todos procurem ao mesmo tempo o que
é útil a todos”. Tens escutas aqui no quarto do hospital? - Não, as enfermeiras
já vistoriaram tudo. Então, disse subtilmente, bem a seu modo: a causa
essencial da degradação dos Estados reside na corrupção das leis que preservam
a igualdade e a liberdade, e de que quanto maior é a liberdade melhor se
defende a segurança do Estado e a sua estabilidade. Na Democracia autêntica, os
cidadãos ao delegarem no Estado direitos e deveres não perdem, por isso, os
seus direitos naturais, são tanto mais ativos e criadores quanto mais o Estado
preservar a liberdade e a segurança de todos. E os deveres? - Pois, está por
redigir-se uma Declaração Universal dos Deveres do Homem e do Cidadão,
retorquiu.
Meses depois de ter alta do
hospital, apoiado em muletas, a PIDE veio prender-me em casa pelas sete horas
da manhã. Nessa primeira prisão não festejei o Natal e o Ano Novo, enjaulado
nos calabouços da Rua do Heroísmo, na cidade do Porto. Algum tempo após esse
“batismo de fogo” encontrava-me eu no Café Ceuta que os antifascistas frequentavam
e nele se distribuíam panfletos escondidos em livros de estudo quando me
apareceu o Vasco. Vinha saber do meu estado de saúde e de ânimo. Dessa conversa
recordo o seguinte dito: “Todo o homem sofre afeções e, sobre elas, afetos.
Chama-se desejo quando tem consciência
dos apetites, esse é o seu estado comum e natural. Todos nós temos tendência
para ser, ou seja, para agir, e devemos distinguir entre os afetos aqueles que
aumentam a nossa potência de agir, ou, pelo contrário, a diminuem. Daí resulta
que a nossa luta é sempre entre a submissão e a liberdade. Encontramo-nos sempre
submetidos a paixões como parte da natureza que somos. Quando o corpo encontra
outros corpos que se adequam à nossa natureza, sentimos alegria; em caso
contrário, é tristeza que sentimos, ou ódio, ou inveja; o amor é a alegria
acompanhada pela ideia de uma causa exterior que realiza um encontro positivo;
a esperança, alegria inconstante, nascida da imagem de uma coisa futura ou
passada cujo desfecho nos parece duvidoso; e é o medo o sentimento mais comum e
com o qual aqueles que nos submetem nos manipulam.
Em suma: Sara, de olhos oceânicos,
fora para o meu amigo o tal raro “encontro adequado”.
Vasco convidou-me para o seu
casamento. Com Sara evidentemente. Realizou-se no restaurante panorâmico no Bom
Jesus do Monte, Braga. Pude dizer que ambos se mostravam abençoados por uma
“paixão alegre”.
Cada um seguiu o destino que
escolheu “com a sua circunstância”. De quando em vez ia sabendo dos sucessos do
amigo Vasco na sua qualidade de engenheiro. Dirigia obras espetaculares nos
quatro cantos do planeta. Imaginava-o no seu vasto ateliê, compenetrado, a tentar
descobrir os materiais mais revolucionários, exatos, perfeitos, expressões
criadoras da Razão, capazes de vencer todos e quaisquer “constrangimentos
externos”, à maneira do seu ilustríssimo primo. A sua bela Sara a chamá-lo para
o jantar e ele, distraído dos prazeres mundanos, a teimar penetrar nos segredos
do infinitamente pequeno. A paixão da Razão.
Dez anos depois esperava-me em
casa uma missiva do Vasco. Duas curtas frases, em letra firme e geométrica:
“Sara morreu-me. Doença incurável. Vou residir para o Brasil onde o meu
trabalho é reconhecido. Até sempre meu amigo.”
Nunca mais soube nada dele. Até
que, certo dia, à beira da passagem do milénio, estava eu em casa rememorando a
ÉTICA de Espinosa, minha mulher mostrou-me a página de um jornal onde se lia:
“Faleceu o engenheiro Vasco de Espinosa. O funeral realiza-se amanhã pelas 10h.
“ Em cima uma fotografia.
Vasco teria regressado a Portugal
e eu ignorava! Talvez sabendo-se sofrer de doença incurável veio para a sua
pátria para morrer. Fui. Algumas dezenas de pessoas acompanharam o féretro para
o Cemitério dos Prazeres. Deixei-me ficar postado a um canto vendo os grupos escoarem-se
aos poucos. Chuviscava. O sol, indiferente na sua natureza, não lhe prestou
homenagem. Ao dirigir-me para o carro fui interpelado por um indivíduo envergando
um fato austero de ocasião, óculos escuros, que me perguntou delicadamente se
eu era…(disse o nome), aquiesci, e desfechou-me esta seta mortal: “ O falecido
era muito seu amigo. Eu sou, quero dizer, fui, o seu advogado desde sempre. Um
mês antes da sua morte, Vasco pediu-me que fosse o senhor a tratar do destino
da sua biblioteca e escritos. Acha-se capaz dessa tarefa?”. Fiquei abismado.
Estive demasiado tempo a olhar fixamente o indivíduo para acreditar no que
ouvia, por fim consegui balbuciar: De que morreu o Vasco? Doença fulminante?
Sofreu muito? O homem desenhou a custo um sorriso triste e redarguiu com estas
palavras misteriosas: “Morreu…ou deixou-se morrer simplesmente.” Talvez se
tenha matado, pressenti. Trágico fim para um espinosista que tem o suicídio
como um ato absurdo, na medida em que não existe em nós força maior do que conservar
o nosso próprio ser, e o verdadeiro filósofo pensa mais na vida do que na morte
…
Logo que pude dirigi-me à morada
que me fora indicada, moradia de arquitetura sóbria mas elegante, ao redor um
amplo jardim abandonado. O escritório: enorme ateliê, milhares de livros e
dossiês. Procurei horas a fio o que ansiosamente buscava: Cadernos onde se
espelhariam os frutos revolucionários de uma mente excecional, equações e
cálculos matemáticos a que eu me vergaria impotente, construções utópicas, nanotecnologias
de ponta, realidades virtuais com as quais deixaríamos de saber qual seja a
verdadeira, pontes visionárias e réplicas exatas de órgãos humanos…
Encontrei. Eram dezenas de pastas
contendo folhas soltas. Li na primeira: “Sara”. Li na segunda, terceira,
centésima: “Sara”. Em todas elas uma data. Nada mais do que isto. O sentido da
vida. Um nome.
Um nome para a eternidade.
NOZES PIRES
2 comentários:
Acabei de ler, Zé!
Só tenho a dizer que tenho muito orgulho em ser tua amiga.
Um abraço e saudades.
Obrigado Meg. Tudo de bom para ti.
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