A
cultura não pode ser uma luz que ilumina uns quantos enquanto o resto
permanece na sombra. Para Eduardo Lourenço, a cultura é, antes, “o
diálogo da humanidade consigo própria”. Porém, esse diálogo está hoje a
ser esvaziado em função de uma distração sublime, de um olhar em frente
que confunde com a realidade as sombras projetadas no fundo da caverna.
Sim, Platão é para aqui chamado. E Comte, Lévi-Strauss, Kierkegaard. O
professor prefaciou Schwanitz e imprimiu-lhe um tom mais cauteloso.
Afinal, de que falamos quando falamos de cultura?
O título do livro de Dietrich Schwanitz é “Cultura — Tudo o Que É Preciso Saber”. O que é preciso para ser-se culto?
Seria melhor se fosse “tudo o que convém saber”. Porque a cultura não tem o monopólio do que é preciso ou não saber. Ela é o lugar onde se discute o sentido de tudo quanto somos capazes de fazer. E, como tal, a cultura não é a resposta, é a questão. A questão que a humanidade tem consigo própria. Antes dos gregos, civilizações mais arcaizantes não tinham essa exigência autocrítica, de se discutirem a elas próprias. E nós, enquanto herdeiros dos gregos, reservamos-lhe um lugar matricial. Nascemos de uma cultura de diálogo, ou pelo menos essa era a nossa convicção no século XIX. É por isso que o título do livro é importante: porque descobrimos que a cultura também é aquilo que separa, que divide os homens entre cultos e não cultos. Hoje, cada um pensa que a cultura é dele. Mas nada justifica esta pretensão de que os outros estão numa espécie de sombra. Uma das pessoas mais lúcidas a pensar sobre isto foi Claude Lévi-Strauss. Para ele, tudo é cultural. Porque o homem é um ser falante e pensante.
A cultura é uma construção?
É uma construção que nunca esteve ausente. E em vez de ser a maneira mais autocompreensiva de a humanidade se entender e de entender tudo quanto faz, de ser uma leitura do mundo, está a transformar-se numa espécie de luz imposta, tão ofuscante que acaba sendo rejeitada. Por outro lado, cultura é também isso: a tentativa de separar o que é sombra do que é luminoso, o aceitável do inaceitável.
Uma espécie de validador?
É uma espécie de diálogo, o da humanidade consigo própria. Veja que, de alguns anos para cá, apareceu o conceito de ‘contracultura’. Ou seja, uma parte da humanidade, particularmente os jovens, exprime o que sente de uma forma diferente da chamada ‘cultura culta’ — tradicional, herdada da Grécia e, no Renascimento, mitificada e promovida a um ideal. Esta contracultura pode parece bárbara, mas é uma cultura. Não podemos escapar ao cultural.
Hoje temos acesso a quase tudo. Somos mais cultos?
A cultura não tem um padrão. Não há nada que meça o que é ou não cultural. Em todo o caso, o destino da humanidade é o de distinguir sem cessar, e o ser humano é o ser da escolha. E o que é cultura depende daquilo que somos, em termos individuais e coletivos. Não há um paradigma, ‘uma’ cultura.
Porém, Dietrich Schwanitz tenta defini-la, ao dizer que a cultura é “a compreensão da nossa civilização” ou “o conhecimento que sabe avaliar-se a si mesmo”.
Penso que todas as grandes culturas, e não só a ocidental — que a certa altura parecia uma exceção no meio de culturas confrontadas com questões de sobrevivência vital — são um espaço de ócio. A cultura nasceu quando os homens criaram uma resposta à coisa mais insuportável de todas: o tédio. O tédio é um tempo sem matéria, uma matéria nula em que nada se passa. Pascal disse que a infelicidade da humanidade é a incapacidade de estar sozinha num quarto. É não se contentar com o que está à volta ou com as coisas urgentes que a solicitam e que deveriam ocupá-la. A cultura é, assim, a invenção contínua de respostas para a expulsão do não-sentido.
O autor dedica o livro aos que se sentem desiludidos com um sistema educativo em crise e sem relação com a vida. Da educação advém a cultura?
Essa espécie de música, de lengalenga, sempre existiu. Mas houve um tempo em que a educação era um privilégio de certas classes, e a distribuição do saber não era igualitária ou codificada de forma a todos poderem participar. Isso modificou-se quando Rousseau a colocou no centro da formação humana. A educação passa a ser o espaço — e a prática — através do qual o homem se vive a si mesmo e se torna exigente em relação ao que lhe é proposto como sendo evidências, que se podem discutir e até transformar.
A cultura implica um passado e uma memória. Ter cultura não significa sempre recuar?
Somos herdeiros de uma série de discursos sobre nós próprios. E pouco a pouco ficou assente que há um caminho real e outros subalternos, saberes de segunda ordem, que aparecem em relação aos dominantes como qualquer coisa de inferior. Ora, a cultura verdadeira não é secundarizante. Temos de evitar duas coisas: a apologia de um saber que, de forma mitificada, se assume como o incontornável absoluto para os iniciados na cultura; e a determinação do que seria um ‘mínimo vital’ na ordem da cultura, ou seja, as migalhas distribuídas generosa e caritativamente ao resto da humanidade menos privilegiada. Não, a cultura é, em si, o absoluto que o homem pode atingir.
O livro divide-se em duas partes, saber e poder. Juntos, estes termos têm um significado político: evocam a função da cultura como capacitação do indivíduo para fazer as suas escolhas.
A divisa do positivismo de Auguste Comte era ‘saber é poder’. No tempo das sociedades antigas, guerreiras, o poder era um poder fáctico, era a capacidade de dominar o outro. A história não é um conto de fadas, é extremamente violenta. E a cultura, digamos, é uma resposta que estabelece um espaço diferente dessa violência radical, original, do mundo. A cultura é a barca que construímos para acedermos a um destino que pensamos ser mais adequado à humanidade.
Uma sociedade culta é uma sociedade mais justa, menos violenta?
Já vimos que não há padrões. Os gregos fizeram uma separação entre eles e os bárbaros. E o que é o bárbaro? É um outro, com outra cultura e outra linguagem. Aquela linguagem que nós não entendemos. E eles podiam dizer de nós a mesma coisa. É como a relação entre patrões e criados: os patrões pensam que dispõem da lucidez, das boas maneiras, e que os criados são cegos. Não, foram é silenciados durante parte da história. Até que se revoltam, de forma violenta como Espártaco, ou caseiramente como nos romances do século XIX.
Na introdução que escreveu, quebra um pouco o otimismo do autor. Este diz-nos que a cultura está ao nosso alcance e o professor contrapõe que o nosso tempo é o da caverna de Platão, um tempo de aparências. Porquê?
Porque é o preço que pagámos por pensar que estávamos já na luz plena. A humanidade tem tendência a pensar que o ponto onde está é ponto ómega da história, e tal não existe. Na ordem cultural, não há como separar o positivo do negativo, o que nos perde do que nos salva, o que nos engrandece do que nos diminui. Essa é uma luta interna, e é uma luta que não tem sujeito. A humanidade inteira é assim.
Mas viver na caverna não significa vivermos enganados?
Só nos salvamos da caverna com a consciência de estarmos na caverna. Isto aplica-se à televisão: pensa-se que aquelas imagens são reais mas o real está lá fora, é o que ilumina o fundo da caverna. Para vermos o real, temos de voltar a cabeça para trás.
E estamos a olhar para a frente?
Estamos sempre a ver as imagens, em vez de estarmos em contacto com a realidade.
A dada altura, constata que nunca como hoje houve de forma tão marcada o oposto da cultura, que existe para nos distrair dela.
Em vez de a cultura ser aquilo que nos acorda, é aquilo que nos distrai — uma espécie de distração sublime. Nós podemos ser sufocados pela riqueza, como as abelhas no seu mel. Kierkegaard, autor que aprecio muito, ficou muito indignado porque o protestantismo na Dinamarca era vivido como se fosse água, como algo comum. Em vez de ser qualquer coisa que pusesse as pessoas em causa, era recebido como um caramelo.
É assim que vivemos hoje? Como “personagens de jogos de vídeo”, num presente que se basta a si próprio?
Um presente contínuo. Se a humanidade tem uma essência qualquer, é justamente ter memória de si mesma. Portanto, estamos a roubar a memória a nós próprios. Recorrendo a um exemplo extremo: a humanidade podia, praticamente desde que nasce até que morre, estar a olhar para a televisão. Poderíamos passar uma vida inteira a assistir a um filme no qual somos os atores principais, sem vivermos nada. Este é um pesadelo tão grande como o de Kafka. Porém, não se deve fazer uma leitura totalmente negativista, porque nessa nova atividade o futuro está implicado.
Isso é, como preconiza, o fim do sujeito cultural, com memória.
É para onde tendemos, nesta espécie de ludismo universal. O que não significa que não existam hoje pessoas que possam vir a ser os próximos Dante ou Proust. Penso que todos nós somos atores do cultural. Todos queremos estar nessa situação — nem que seja pela aberração ou pela diferença — que não faça de nós um robô, antes que as nossas invenções nos convertam num tipo de existência robótica.
Como se sai daqui?
Em última instância, o importante é a nossa relação com o outro. É não falhar a relação que estabelecemos com uma só pessoa. O resto virá por acréscimo.
Diz que o “fim da história” diagnosticado por Fukuyama é o fim do tempo europeu e o início de um “antitempo” americano. Quer explicar?
O “fim da história” é uma ideia que vem de Hegel e que foi retomada por Marx. É o fim de nós enquanto incapazes de nos apropriarmos plenamente do nosso destino. Até agora, a história humana é a história da nossa própria escravidão. O fim da história é o acordar desse longo período de escravidão para reconhecer as exigências do real. A história é uma luta entre quem tem e não tem poder. E os EUA, já na Grande Guerra mas sobretudo na II Guerra Mundial, ficaram com a possibilidade de condicionar o destino da humanidade. Assumiram esse papel, que originou um paradigma cultural. A expressão mais lúdica de todas, o cinema, mostra-o bem. O grande acontecimento deste ano foi o “Star Wars”. Quando estava a ver o filme, pensava para mim: na Europa andamos há muito vestidos de americanos. É que, mesmo que os europeus quisessem — e não por falta de talento —, não poderiam fazer um filme como aquele. A América sente-se mesmo responsável pela marcha do mundo.
E a Europa não?
A Europa esteve várias vezes à beira do abismo. E agora estamos à espera que acorde. Tem um passado que é como as asas longas do albatroz de Baudelaire: impede-a de marchar. A humanidade habituou-se a conhecer a sua própria história como uma sucessão de impérios, e cada um pretendia ser o último. Desta vez, os Estados Unidos são mesmo o último império — ainda que provavelmente já numa fase crepuscular. Mas, sabe, no outro dia, no centenário de Frank Sinatra, prometi nunca mais dizer nada de negativo contra os americanos.
Porquê?
Porque pessoas como Sinatra são um fenómeno só americano. É um sujeito que parte do nada, europeu, e que por uma qualidade, um talento, conquista aquele país. Este é o triunfo da Europa na América, mas também da América sobre a Europa
O título do livro de Dietrich Schwanitz é “Cultura — Tudo o Que É Preciso Saber”. O que é preciso para ser-se culto?
Seria melhor se fosse “tudo o que convém saber”. Porque a cultura não tem o monopólio do que é preciso ou não saber. Ela é o lugar onde se discute o sentido de tudo quanto somos capazes de fazer. E, como tal, a cultura não é a resposta, é a questão. A questão que a humanidade tem consigo própria. Antes dos gregos, civilizações mais arcaizantes não tinham essa exigência autocrítica, de se discutirem a elas próprias. E nós, enquanto herdeiros dos gregos, reservamos-lhe um lugar matricial. Nascemos de uma cultura de diálogo, ou pelo menos essa era a nossa convicção no século XIX. É por isso que o título do livro é importante: porque descobrimos que a cultura também é aquilo que separa, que divide os homens entre cultos e não cultos. Hoje, cada um pensa que a cultura é dele. Mas nada justifica esta pretensão de que os outros estão numa espécie de sombra. Uma das pessoas mais lúcidas a pensar sobre isto foi Claude Lévi-Strauss. Para ele, tudo é cultural. Porque o homem é um ser falante e pensante.
A cultura é uma construção?
É uma construção que nunca esteve ausente. E em vez de ser a maneira mais autocompreensiva de a humanidade se entender e de entender tudo quanto faz, de ser uma leitura do mundo, está a transformar-se numa espécie de luz imposta, tão ofuscante que acaba sendo rejeitada. Por outro lado, cultura é também isso: a tentativa de separar o que é sombra do que é luminoso, o aceitável do inaceitável.
Uma espécie de validador?
É uma espécie de diálogo, o da humanidade consigo própria. Veja que, de alguns anos para cá, apareceu o conceito de ‘contracultura’. Ou seja, uma parte da humanidade, particularmente os jovens, exprime o que sente de uma forma diferente da chamada ‘cultura culta’ — tradicional, herdada da Grécia e, no Renascimento, mitificada e promovida a um ideal. Esta contracultura pode parece bárbara, mas é uma cultura. Não podemos escapar ao cultural.
Hoje temos acesso a quase tudo. Somos mais cultos?
A cultura não tem um padrão. Não há nada que meça o que é ou não cultural. Em todo o caso, o destino da humanidade é o de distinguir sem cessar, e o ser humano é o ser da escolha. E o que é cultura depende daquilo que somos, em termos individuais e coletivos. Não há um paradigma, ‘uma’ cultura.
Porém, Dietrich Schwanitz tenta defini-la, ao dizer que a cultura é “a compreensão da nossa civilização” ou “o conhecimento que sabe avaliar-se a si mesmo”.
Penso que todas as grandes culturas, e não só a ocidental — que a certa altura parecia uma exceção no meio de culturas confrontadas com questões de sobrevivência vital — são um espaço de ócio. A cultura nasceu quando os homens criaram uma resposta à coisa mais insuportável de todas: o tédio. O tédio é um tempo sem matéria, uma matéria nula em que nada se passa. Pascal disse que a infelicidade da humanidade é a incapacidade de estar sozinha num quarto. É não se contentar com o que está à volta ou com as coisas urgentes que a solicitam e que deveriam ocupá-la. A cultura é, assim, a invenção contínua de respostas para a expulsão do não-sentido.
O autor dedica o livro aos que se sentem desiludidos com um sistema educativo em crise e sem relação com a vida. Da educação advém a cultura?
Essa espécie de música, de lengalenga, sempre existiu. Mas houve um tempo em que a educação era um privilégio de certas classes, e a distribuição do saber não era igualitária ou codificada de forma a todos poderem participar. Isso modificou-se quando Rousseau a colocou no centro da formação humana. A educação passa a ser o espaço — e a prática — através do qual o homem se vive a si mesmo e se torna exigente em relação ao que lhe é proposto como sendo evidências, que se podem discutir e até transformar.
A cultura implica um passado e uma memória. Ter cultura não significa sempre recuar?
Somos herdeiros de uma série de discursos sobre nós próprios. E pouco a pouco ficou assente que há um caminho real e outros subalternos, saberes de segunda ordem, que aparecem em relação aos dominantes como qualquer coisa de inferior. Ora, a cultura verdadeira não é secundarizante. Temos de evitar duas coisas: a apologia de um saber que, de forma mitificada, se assume como o incontornável absoluto para os iniciados na cultura; e a determinação do que seria um ‘mínimo vital’ na ordem da cultura, ou seja, as migalhas distribuídas generosa e caritativamente ao resto da humanidade menos privilegiada. Não, a cultura é, em si, o absoluto que o homem pode atingir.
O livro divide-se em duas partes, saber e poder. Juntos, estes termos têm um significado político: evocam a função da cultura como capacitação do indivíduo para fazer as suas escolhas.
A divisa do positivismo de Auguste Comte era ‘saber é poder’. No tempo das sociedades antigas, guerreiras, o poder era um poder fáctico, era a capacidade de dominar o outro. A história não é um conto de fadas, é extremamente violenta. E a cultura, digamos, é uma resposta que estabelece um espaço diferente dessa violência radical, original, do mundo. A cultura é a barca que construímos para acedermos a um destino que pensamos ser mais adequado à humanidade.
Uma sociedade culta é uma sociedade mais justa, menos violenta?
Já vimos que não há padrões. Os gregos fizeram uma separação entre eles e os bárbaros. E o que é o bárbaro? É um outro, com outra cultura e outra linguagem. Aquela linguagem que nós não entendemos. E eles podiam dizer de nós a mesma coisa. É como a relação entre patrões e criados: os patrões pensam que dispõem da lucidez, das boas maneiras, e que os criados são cegos. Não, foram é silenciados durante parte da história. Até que se revoltam, de forma violenta como Espártaco, ou caseiramente como nos romances do século XIX.
Na introdução que escreveu, quebra um pouco o otimismo do autor. Este diz-nos que a cultura está ao nosso alcance e o professor contrapõe que o nosso tempo é o da caverna de Platão, um tempo de aparências. Porquê?
Porque é o preço que pagámos por pensar que estávamos já na luz plena. A humanidade tem tendência a pensar que o ponto onde está é ponto ómega da história, e tal não existe. Na ordem cultural, não há como separar o positivo do negativo, o que nos perde do que nos salva, o que nos engrandece do que nos diminui. Essa é uma luta interna, e é uma luta que não tem sujeito. A humanidade inteira é assim.
Mas viver na caverna não significa vivermos enganados?
Só nos salvamos da caverna com a consciência de estarmos na caverna. Isto aplica-se à televisão: pensa-se que aquelas imagens são reais mas o real está lá fora, é o que ilumina o fundo da caverna. Para vermos o real, temos de voltar a cabeça para trás.
E estamos a olhar para a frente?
Estamos sempre a ver as imagens, em vez de estarmos em contacto com a realidade.
A dada altura, constata que nunca como hoje houve de forma tão marcada o oposto da cultura, que existe para nos distrair dela.
Em vez de a cultura ser aquilo que nos acorda, é aquilo que nos distrai — uma espécie de distração sublime. Nós podemos ser sufocados pela riqueza, como as abelhas no seu mel. Kierkegaard, autor que aprecio muito, ficou muito indignado porque o protestantismo na Dinamarca era vivido como se fosse água, como algo comum. Em vez de ser qualquer coisa que pusesse as pessoas em causa, era recebido como um caramelo.
É assim que vivemos hoje? Como “personagens de jogos de vídeo”, num presente que se basta a si próprio?
Um presente contínuo. Se a humanidade tem uma essência qualquer, é justamente ter memória de si mesma. Portanto, estamos a roubar a memória a nós próprios. Recorrendo a um exemplo extremo: a humanidade podia, praticamente desde que nasce até que morre, estar a olhar para a televisão. Poderíamos passar uma vida inteira a assistir a um filme no qual somos os atores principais, sem vivermos nada. Este é um pesadelo tão grande como o de Kafka. Porém, não se deve fazer uma leitura totalmente negativista, porque nessa nova atividade o futuro está implicado.
Isso é, como preconiza, o fim do sujeito cultural, com memória.
É para onde tendemos, nesta espécie de ludismo universal. O que não significa que não existam hoje pessoas que possam vir a ser os próximos Dante ou Proust. Penso que todos nós somos atores do cultural. Todos queremos estar nessa situação — nem que seja pela aberração ou pela diferença — que não faça de nós um robô, antes que as nossas invenções nos convertam num tipo de existência robótica.
Como se sai daqui?
Em última instância, o importante é a nossa relação com o outro. É não falhar a relação que estabelecemos com uma só pessoa. O resto virá por acréscimo.
Diz que o “fim da história” diagnosticado por Fukuyama é o fim do tempo europeu e o início de um “antitempo” americano. Quer explicar?
O “fim da história” é uma ideia que vem de Hegel e que foi retomada por Marx. É o fim de nós enquanto incapazes de nos apropriarmos plenamente do nosso destino. Até agora, a história humana é a história da nossa própria escravidão. O fim da história é o acordar desse longo período de escravidão para reconhecer as exigências do real. A história é uma luta entre quem tem e não tem poder. E os EUA, já na Grande Guerra mas sobretudo na II Guerra Mundial, ficaram com a possibilidade de condicionar o destino da humanidade. Assumiram esse papel, que originou um paradigma cultural. A expressão mais lúdica de todas, o cinema, mostra-o bem. O grande acontecimento deste ano foi o “Star Wars”. Quando estava a ver o filme, pensava para mim: na Europa andamos há muito vestidos de americanos. É que, mesmo que os europeus quisessem — e não por falta de talento —, não poderiam fazer um filme como aquele. A América sente-se mesmo responsável pela marcha do mundo.
E a Europa não?
A Europa esteve várias vezes à beira do abismo. E agora estamos à espera que acorde. Tem um passado que é como as asas longas do albatroz de Baudelaire: impede-a de marchar. A humanidade habituou-se a conhecer a sua própria história como uma sucessão de impérios, e cada um pretendia ser o último. Desta vez, os Estados Unidos são mesmo o último império — ainda que provavelmente já numa fase crepuscular. Mas, sabe, no outro dia, no centenário de Frank Sinatra, prometi nunca mais dizer nada de negativo contra os americanos.
Porquê?
Porque pessoas como Sinatra são um fenómeno só americano. É um sujeito que parte do nada, europeu, e que por uma qualidade, um talento, conquista aquele país. Este é o triunfo da Europa na América, mas também da América sobre a Europa
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