A crítica marxista aos keynesianismos (excerto)
Capítulo 11 do livro “Keynes, poskeynesianos y keynesianos neoclássicos: apuntes de economía política”, de Rolando Astarita.
11. A Crítica Marxista
Ao longo da exposição explicamos alguns
dos desacordos entre as teorias de Keynes e Marx. No entanto, expor o
conjunto das diferenças superaria muito os limites deste trabalho. Por
isso, apresentamos aqui somente algumas das principais críticas que os
marxistas fizeram ao sistema de Keynes e desenvolvemos com alguma ênfase
duas das questões as quais existe uma maior sobreposição de abordagens
entre marxistas e pós-keynesianos. Em primeiro lugar, a teoria do
dinheiro e do juro; em segundo, a perspectiva subconsumista, defendida
por marxistas influenciados pelo sistema de Keynes.
A TRADIÇÃO MARXISTA
Os marxistas tradicionalmente centraram
sua crítica a Keynes no que é limitado em sua ruptura com a teoria
neoclássica. Maurice Dobb, por exemplo, questionou que se possa falar de
uma “revolução keynesiana” devido aos fortes elementos de continuidade
da Teoria Geral com a doutrina estabelecida. Ainda que Dobb
reconheça que as ideias de Keynes enfrentaram o pressuposto ortodoxo do
pleno emprego, “nada fizeram […] para desafiar ou perturbar a teoria
existente […] e se pode dizer que se formularam dentro de seu marco
geral” (Dobb, 1975, p.235)
Também Sweezy criticou Keynes por nunca
ter superado “as limitações da concepção neoclássica” e por somente
tentar reformá-la; porque ignorou muitos problemas vitais do
capitalismo, e por ter introduzido o Estado como um “olímpico
interventor que resolve tudo” (Sweezy, 1974, p.104). Mesmo assim, Sweezy
valorizava positivamente a crítica de Keynes à lei de Say e sua ideia
de que “a depressão e o desemprego, longe de serem impossíveis, são a
norma a que tende a economia capitalista” (ibid., p.102). Além
disso, na opinião de Sweezy, Keynes teria sido “o maior economista
inglês (ou americano) desde Ricardo” e que muitas ideias de Marx
adquiriram “novo significado” à luz de suas contribuições. Na verdade,
Sweezy incorporou a importância que Keynes concedia à demanda de consumo
em sua própria abordagem.
MARX E KEYNES, DIFERENÇAS GERAIS
Quanto às diferenças mais gerais entre
Keynes e Marx, é preciso destacar o propósito, muito distinto, de suas
obras. Como explica Robinson, discípulo de Keynes, Marx “trata de
entender o sistema com o objetivo de precipitar sua queda”, enquanto
Keynes “representa a defesa do capitalismo” (Robinson, 1959, p. 331).
Keynes era um decidido defensor do sistema capitalista e inimigo do marxismo. Sobre isso, escreveu:
[…] o socialismo
marxista há de permanecer sempre como um prodígio para os historiadores
da opinião: como uma doutrina tão ilógica e tão vil pode ter exercido,
de modo tão poderoso e duradouro, uma influência sobre a mente dos
homens e, através delas, sobre os acontecimentos da história (Keynes,
1988, p. 288).
Com plena consciência
Keynes tomava o partido de sua classe, a burguesia, e rechaçava
filiar-se ao Partido Trabalhista porque “é um partido de classe, e a
classe não é a minha. […] Posso estar influenciado pelo o que me parece
ser justiça e bom senso, mas a luta de classes me encontrará ao lado da bourgeoisie educada” (ibid., p. 300).
Em seu “breve panorama da Rússia”, de
1925, se pronunciou no mesmo sentido: “Como posso adotar uma crença que,
preferindo o talo à folha, exalta o grosseiro proletariado acima da
burguesia e da intelectualidade que, apesar dos defeitos que têm,
possuem qualidade de vida e germinam com segurança a semente de todo o
progresso humano?” (ibid., p. 262)
Marx, pelo contrário, se considerava um
“filho adotivo” da classe operária e colocava que o progresso da
humanidade passava por acabar com a sociedade capitalista, exploradora e
alienante, através do triunfo da revolução proletária.
A partir de tomadas de posições políticas
e sociais tão distintas pode-se entender diferenças profundas entre a
teoria keynesiana e a marxista. Fundamentalmente, é preciso compreender a
importância que a teoria do valor-trabalho tem para Marx. A partir
desta teoria, Marx distingue cuidadosamente “valor do trabalho”, uma
expressão que não tem sentido, de “valor da força de trabalho”, que é o
que o capitalista paga ao trabalhador na forma de salário. Dessa
maneira, Marx pôde explicar a formação da mais-valia e demonstrar que o
modo de produção capitalista se assenta na exploração do trabalho, o que
deu sustentação científica à reivindicação dos socialistas ricardianos:
que o “produto do trabalho seja para quem o gerou”.
Nada disso pode ser encontrado em Keynes.
Em seu sistema, o salário não está relacionado com o valor da força de
trabalho, mas sim com a produtividade marginal, sem dar nenhuma noção de
exploração. Na teoria de Keynes – ou na dos pós-keynesianos –, a origem
do juro remete ao “prêmio por separar-se da liquidez”, noção que
recorda o “prêmio de espera” com que a economia tradicional explicou o
lucro. E o capital é “uma coisa”, um meio de produção, e não uma relação
social de produção objetivada, como acontece em Marx. É natural, então,
que as teorias do emprego de Marx e Keynes sejam muito distintas.
Enquanto Keynes levanta que é possível, apesar de difícil, alcançar o
pleno emprego, Marx sustenta que o desemprego é uma condição sine qua non
para a existência do capital. Isso se deve ao valor da força de
trabalho, que está dado em cada momento histórico, e a mais-valia –ou o
lucro, que é a sua forma mistificada-, restante que surge do
prolongamento da jornada de trabalho além do tempo de trabalho
necessário para reproduzir o valor da força de trabalho. Isso faz com
que o salário não possa superar um determinado limite, a partir do qual
se colocaria em questionamento a existência da mais-valia. Por isso, na
teoria de Marx “o desemprego é gerada de maneira endógena pelo sistema capitalista”. [1] Ou seja, o desemprego é sistêmico.
DIFERENTES CONCEPÇÕES SOBRE O DINHEIRO
As diferenças sobre o valor em Marx, por
um lado, e Keynes e os pós-keynesianos, por outro, dão lugar a
diferentes concepções do dinheiro. Destacamos o tema porque muitos
marxistas têm adotado a concepção keynesiana de dinheiro e tendem a
confundi-la com a de Marx. [2]
De início, recordamos que Keynes e os
pós-keynesianos defendem a abordagem cartalista, ou seja, a de que o
dinheiro é uma criação estatal que pode anteceder, inclusive, o mercado.
Nas palavras de Wray, uma autoridade “impõe um adiantamento na forma de
uma unidade de conta social, gerado -um dinheiro- para medir a
obrigação [do pagamento de impostos]. Isso não requer a preexistência de mercados” (Wray, 2004, p. 7, grifo nosso).
Em Marx, pelo contrário, o dinheiro é uma criação social derivada das contradições da mercadoria,
e constitui a encarnação do valor, o equivalente ao qual as mercadorias
devem expressar seu valor. O dinheiro é imprescindível e é gerado
-exista ou não o Estado- porque é a única forma de superação da
contradição entre o caráter privado e ao mesmo tempo social da produção
mercantil; somente através da metamorfose da mercadoria em dinheiro é
que o trabalho privado empregado na produção dos bens torna-se social.
[3] Isso explica por que, na teoria de Marx, existe uma incerteza que é
inerente à venda, tanto que esta constitui o “momento da verdade” para o
produtor, a instância em que se valida ou não seu trabalho privado como
trabalho social. A incerteza da que falam Keynes e os pós-keynesianos fixa-se nesta contradição objetiva,
que existe entre a forma de produção privada da sociedade mercantil e
sua natureza social. O dinheiro não pode salvar esta contradição e
apenas constitui o meio para que as contradições contidas na mercadoria
-entre valor de uso e valor, entre trabalho concreto e abstrato- possam
mover-se e dessassociar-se. [4]
É por isso também que, segundo a
concepção de Marx, o dinheiro não pode desmaterializar-se completamente.
Apesar do papel-moeda constituir-se como uma representação simbólica
complexa e mediada pelo valor, não deixa de referir-se, em última instância, ao dinheiro mercadoria equivalente, ao ouro.
Isso explicaria porque, na atualidade, o ouro segue cumprindo uma
função monetária, apesar das vezes em que se foi proclamada a
“desmaterialização completa do dinheiro”. [5]
Também encontramos na teoria de Marx uma
diferenciação hierarquizada das funções do dinheiro: medida de valor,
meio de troca, reserva de valor, meio de pagamento e dinheiro
internacional. Cada uma delas se enlaça organicamente com as outras e em conjunto constituem um todo articulado.
A criação bancária do dinheiro – o dinheiro endógeno que teorizam os
pós-keynesianos- só pode ocorrer porque existe uma confiança última nos
depósitos que podem ser transformados a qualquer momento em fiat money, ou seja, em base monetária. Assim, o dinheiro é tanto endógeno quanto exógeno,
já que não pode existir dinheiro completamente endógeno, como mera
criação bancária -como sustentam os horizontalistas- pois sempre haverá
uma referência última ao dinheiro como papel-moeda, encarnação e símbolo
do valor. O que, por outro lado, coloca limites à possibilidade,
contemplada por alguns economistas neoclássicos, de que exista um
dinheiro puramente virtual baseado nas novas tecnologias informáticas e
computacionais.
Por isso também que na teoria de Marx as
diversas funções do dinheiro só podem ser cumpridas, em sua totalidade,
pela base monetária -líquido nas mãos do público e em reservas dos
bancos- e somente ela é dinheiro propriamente dito. Os créditos
monetizados -letras de câmbio, cheques pré-datados, cheque especial,
cartões de débito e crédito, etc.- não são reserva de valor e não podem
cumprir uma função de meio de pagamento último no sistema monetário; só
cumprem uma função do dinheiro, a de meio de troca; Não
constituem dinheiro em sentido pleno, ainda que permitam reduzir a
necessidade de pagamento realizado nos sistemas monetários. Por isso não
tem sentido falar de “massa monetária” como um todo indiferenciado. A
“massa monetária” –papel moeda e todo tipo de depósitos- não cumpre as
funções do dinheiro e seu crescimento não possui efeitos inflacionários.
Se o aumento da base monetária tem efeitos inflacionários, essa
quantidade deriva da perda de confiança na possibilidade de converter os
papéis-moeda com o respaldo- constituído por moeda estrangeira ou ouro-
de uma certa paridade estabelecida, seja essa paridade legal ou
determinada pela prática do mercado.(...)»
in Lavra Palavra. blogspot. com
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