Sim, eu apoio a Coreia do Norte! Notas sobre anticolonialismo, imperialismo e hegemonia
Coluna de estreia de Jones Manoel no Blog da Boitempo: "Não tenho medo de ser chamado de dogmático, stalinista, fanático ou qualquer coisa do tipo por manifestar meu apoio a um povo que deseja ser livre. Meu maior medo, quando o assunto é a Coreia Popular, é ver esse povo terminar como o líbio ou o palestino."
Por Jones Manoel.
No distante ano de 2013, tive contato com o artigo de Domenico Losurdo “Como nasceu e como morreu o ‘marxismo ocidental’”.
Nele, Losurdo observa a certa altura como Michael Hardt e Antonio Negri
afirmam que os palestinos podem contar com a simpatia deles, mas que, a
partir do momento em que a libertação nacional palestina for
conquistada, quando for construído o Estado nacional, não se pode mais
estar do “lado deles”. Ao ler esse trecho imediatamente pensei: ninguém
em sã consciência deve concordar com isso. Imaginei ser um raciocínio
por demais infantil crer que só podemos apoiar um povo oprimido no seu
momento de máxima opressão e, quando esse povo começar a construir sua
emancipação – o objetivo da luta –, o encanto se acaba.
Eu estava errado. No ano seguinte, ainda
cursando História na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), eu
conversava com um professor que me disse ter participado quando jovem de
protestos contra a Guerra do Vietnã. A pergunta imediata que lhe fiz
foi a respeito da situação do bravo país asiático hoje. A resposta não
poderia ser mais chocante: “não sei, depois que eles conseguiram
derrotar os Estados Unidos, houve um processo de burocratização com a
construção do Estado Nacional, deixou de ser um processo
revolucionário”.
A resposta do meu antigo professor, longe
de ser uma compreensão particular, exprime o espírito de nosso tempo: o
Vietnã só interessava quando era a encarnação máxima e mais brutal da
opressão, uma espécie de representação asiática da fábula bíblica de
Davi contra Golias; mas depois da libertação, quando a prioridade da
luta anticolonial e anti-imperialista passa a ser a construção econômica
e a institucionalização da descolonização, a luta perde o seu charme.
Em 2018, a Boitempo lançou no Brasil o livro O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer.
O marxista italiano trabalha vários problemas nesse livro, mas dois são
os que mais nos interessam nessa reflexão. Primeiro, Losurdo aponta
como uma tendência de longo prazo do que chama de “marxismo ocidental” –
sem o tom elogioso normalmente atrelado ao termo – a exclusão da
reflexão sobre a questão nacional e colonial. Com análises rápidas, mas
profundas, coloca em revisão a obra de uma série de pensadores como
Adorno, Horkheimer, Žižek, Althusser e muitos outros, para demonstrar
sua tese.
Ao mesmo tempo, nomes como Jean-Paul
Sartre e Herbert Marcuse, intelectuais europeus que dedicaram grande
atenção política e teórica a luta dos Condenados da Terra, são
criticados por uma espécie de absolutização do momento da resistência
como oprimidos. Losurdo classifica o anticolonialismo de Sartre como
populista e idealista. Não tenho certeza se concordo com essa
caracterização de Sartre, mas vale a pena ler as palavras do italiano:
“Concentrando sua
atenção apenas no esforço desesperado dos “condenados da terra” para
romper as correntes da escravidão colonial e reservando sua simpatia
exclusivamente para o grupo em fusão, protagonista do momento mágico,
mas breve, da revolução, aquele entusiasmo gera responsável pela
destruição de um antigo regime universalmente odiado, Sartre é o
defensor de um anticolonialismo certamente apaixonado e meritório, mas
que ao mesmo tempo é, contudo, populista e idealista. É um
anticolonialismo que não consegue compreender a fase da revolução
empenhada na construção da nova ordem.” (O marxismo ocidental, p. 115)
Esse argumento será o fio condutor de nossa reflexão. A Palestina é um exemplo de colonialismo clássico.
Ocupação militar direta, regime de segregação racial, papel central das
forças repressivas como mediação de controle, desumanização e
animalização do povo oprimido e produção política-ideológica do
colonizador como um ser superior que quer apenas viver sua vida, mas os
bárbaros, o Outro violento, não permitem e, portanto, suas ações
coloniais são apenas a defesa do seu “estilo de vida”. Mas há muito
tempo sabemos que existem várias formas de dominação
colonial-imperialista. É possível que um povo se liberte da ocupação
militar direta do colonizador e continue dominado sob um regime
classicamente denominado neocolonial.
A independência política, caso não
acompanhada do desenvolvimento de um aparato produtivo, científico e
técnico desenvolvido, além de uma capacidade de defesa efetiva da nova
ordem, torna-se apenas formal. Um exemplo bastante ilustrativo é a
situação de vários Estados africanos e sua dependência neocolonial à
França. Esses Estados africanos, por exemplo, até hoje não têm um Banco Central e é a França que controla a emissão de suas moedas.
Vários pensadores revolucionários, como
Frantz Fanon, Ho Chi Minh, Mao Tsé-Tung, Amílcar Cabral etc., perceberam
que a independência política, ou a emancipação nacional formal, pode se
tornar uma hábil armadilha do imperialismo. Quando a Revolução Chinesa
triunfou complemente em 1949, o imperialismo estadunidense flertou com a
ideia de atacar o país com bombas atômicas e reduzi-lo a um grande
nada, mas logo as mentes astutas do Império passaram a uma estratégia
mais realista. Conscientes da pouca experiência dos comunistas na
administração da economia urbana e cientes das próprias dificuldades de
reconstrução do país devastado por décadas de ocupação colonial e
guerras, os Estados Unidos passaram a aplicar uma série de bloqueios
econômicos, sabotagens, pressões diplomáticas e cercos de todo tipo. Era
necessário impedir com todas as forças o desenvolvimento econômico para
tornar a revolução anticolonial e socialista uma casca vazia.
Quando o desenvolvimento econômico da
nação revolucionária não é totalmente impedido, o imperialismo, via de
regra, parte para uma estratégia de cerco e isolamento mundial,
transformando o país em uma espécie de pária do mundo. Enquanto existia
campo socialista, União Soviética e movimento terceiro-mundista, a
eficácia dessa estratégia de isolamento era relativa. Mas, como sabemos,
desde o início dos anos 1990 o terceiro-mundismo e o comunismo foram
derrotados. Os povos que ousam ser livres estão mais sozinhos do que
nunca.
Mas e a Coreia?
Agora podemos começar a falar da
República Popular Democrática da Coreia, normalmente chamada de Coreia
do Norte. Mas falar da Coreia Popular, na conjuntura brasileira,
significa antes de mais nada chamar atenção para dois aspectos. O
primeiro é a nossa ignorância não só sobre o país como sobre o
continente asiático de maneira geral. Repare: nas universidades
brasileiras, os centros de estudo sobre a Ásia, como o que existe na
UFPE, são raríssimos. A oferta de disciplinas sobre o tema também é algo
bastante difícil de encontrar. A exceção vem sendo o crescimento do
interesse pela China – como o trabalho incrível do LabChina da UFRJ
(Universidade Federal do Rio de Janeiro). Retrocedendo um pouco mais, na
escola, os professores não estão preparados para trabalhar história da
Ásia e nos livros didáticos em geral ainda predomina a perspectiva
eurocêntrica da história, de forma que a Ásia comparece no conteúdo
didático apenas como elemento para contar a história europeia (como a
expansão imperialista do século XIX).
No mercado editorial a situação não é
melhor. O número de autores asiáticos consumidos na cultura brasileira é
reduzidíssimo. Quando publicados, como no caso dos sul-coreanos Ha-Joon
Chang e Byung-Chul Han, são autores com produção teórica
ocidentalizada. Estudiosos acadêmicos da Ásia de grande importância,
como o norte-americano Bruce Cumings, não têm tradução para o português.
Também não preciso falar muito sobre a ausência de publicação das
reflexões de intelectuais da Coreia Popular sobre os rumos do seu
próprio país. Em suma, somos dominados por um colonialismo cultural
de base eurocêntrica que condiciona o nosso conhecimento para um
estranhamento/desconhecimento não só da África e da Ásia, como de nosso
próprio território – a Amérca Latina.
A despeito disso, quase todos os
militantes de esquerda no Brasil têm uma opinião negativa sobre a Coreia
Popular. Quem forma essa opinião? Os monopólios de mídia. É necessário
refletir com mais profundidade sobre a produção dessas notícias. No
geral, sobre os monopólios de mídia nativos, sabemos que pertencem a um
pequeno número de famílias e têm ramificações com diversos negócios
capitalistas e com partidos e políticos da ordem. Mas e quanto às
notícias internacionais? Como elas são produzidas? Domenico Losurdo, no
seu livro Democracia ou Bonapartismo, cita um dado do final dos anos 1990 muito interessante:
“O mercado da
informação é quase monopólio de quatro agências: Associated Press e
United Press (Estados Unidos), Reuters (Grã-Bretanha) e France Press.
Todas as rádios, todas as cadeias de televisão, todos os jornais do
mundo compram os serviços destas agências. 65% das “informações”
mundiais partem dos Estados Unidos”. (Latouche apud Losurdo, 2004, p. 280-281).”
Recentemente, fui buscar dados
atualizados sobre as famigeradas Agências de Notícias – tema pouco
falado, mas de fundamental importância para entender a disputa pela
hegemonia no mundo. Hoje apenas três agências de notícia controlam o
mercado global de “informações”. Associated Press (EUA), Agence
France-Presse (França) e Reuters (Inglaterra, mas como escritório
principal em Nova York). Essas três agências têm um poder tão grande que
“um estudo sobre a cobertura da guerra na Síria por nove dos principais
jornais europeus ilustra claramente essas questões: 78% de todas as
publicações foram baseadas, completa ou parcialmente, em notícias de
agências e 0% em pesquisa investigativa”. Ou seja, é de Paris, Londres e
Nova York que são distribuídas as “notícias internacionais” sobre o
mundo. Alguém pode argumentar que essa concentração monopólica não
significa que a qualidade em si das notícias seja ruim.
Vejamos a questão mais de perto. O estudo
que acompanhamos mostra como as agências de notícia são onipresentes no
jornal, na TV, no rádio, nos portais da internet e afins. Normalmente,
esses veículos de comunicação não citam suas fontes, mas elas são essas
agências. Se alguma das três grandes não noticia um acontecimento, ele
se torna de automático um não-acontecimento. Mas e os correspondentes
internacionais? No geral, são poucos ou inexistentes- – e quando atuam,
não têm capacidade de oferecer um volume de informações como essas
agências.
Também não é raro encontrar
correspondentes internacionais que mal dominam o idioma local ou que não
têm qualquer bagagem intelectual sobre o país. Sua função, no geral, é
servir de elo entre a agência de notícias e a redação da empresa no qual
são empregados, ou aparecer ao vivo no local de modo a emprestar um ar
de maior credibilidade à notícia produzida. O ambiente construído não
permite muitos questionamentos sobre a versão oficial dos fatos. Algumas
pessoas poderiam pensar que isso está relacionado apenas aos interesses
privados, comerciais e financeiros envoltos na questão. Na realidade,
não é só isso.
“Entre os atores mais
ativos em ‘plantar’ notícias geopolíticas questionáveis estão os
ministérios militares e de defesa. Em 2009, por exemplo, o chefe da
agência de notícias americana AP, Tom Curley, divulgou que o Pentágono emprega mais de 27 mil especialistas em RP que
trabalham na mídia circulando manipulações direcionadas, com um
orçamento anual de quase 5 bilhões de dólares. Não obstante, generais de
alto escalão dos EUA ameaçaram “arruinar” a AP e o Tom Curley caso os
jornalistas cobrissem criticamente demais o exército dos EUA. Apesar
– ou por causa? – de tais ameaças dos militares, nossos meios de
comunicação publicam, regularmente, informações duvidosas com base em
‘informantes’ não identificados dos ‘círculos de defesa dos EUA’ […]
Obviamente, os serviços de inteligência também possuem um grande número
de contatos diretos na nossa mídia, os quais podem ‘vazar’ informações
se necessário. Porém, sem o papel central das agências de notícias
globais, a sincronização mundial de propaganda hegemônica e de
desinformação nunca seria tão eficiente. Por meio do ‘multiplicador de
propaganda’, histórias e informações suspeitas de especialistas em RP –
que trabalham para governos, militares e serviços de inteligência –
chegam ao público em geral praticamente sem serem checadas ou filtradas.
Isto é, os jornalistas citam as agências de notícias, e as agências de
notícias citam as suas fontes; embora, muitas vezes, os jornalistas
tentem apontar incertezas com termos como ‘aparente’, ‘alegado’ e
similares para se protegerem, embora a essa altura o boato já se
espalhou para o mundo e causou seu efeito”.1
A informação é uma questão de poder
político e geopolítico, tratada como razão de Estado pelo imperialismo
mundial. Com o sucesso das interpretações reformistas da obra de Antônio
Gramsci, passou a se tratar a luta pela hegemonia (isto é, a disputa
pela direção moral e intelectual da sociedade a partir de aparelhos
‘privados’ de hegemonia), como algo que se realizaria a partir de
condições democráticas: uma espécie de competição mais ou menos igual
entre as classes exploradas e burguesas na disputa pela hegemonia.2 Nada mais falso.
Junte o orçamento de todos os aparelhos
de hegemonia das classes populares brasileira que se dedicam ao
jornalismo: esse montante não vai chegar nem perto dos 5 bilhões de
dólares gastos pelo Pentágono para propagar as notícias “adequadas”. A
despeito disso, há uma estranha lógica na militância de esquerda
brasileira: repetem como mantra que a “Globo ou a mídia no geral
mentem”, mas acreditam piamente nas “notícias internacionais” estilo
Assad usando armas químicas contra civis quando a guerra estava quase
ganha, Venezuela prendendo crianças, Cuba torturando opositores, Kaddafi
bombardeando civis com caças aéreos etc., etc., etc.
No caso da Coreia Popular, a ação dos
monopólios de mídia é ainda mais brutal. O país é provavelmente o mais
caricaturado do mundo. Volta e meia, aparece nos monopólios de mídia com
amplo destaque alguma notícia fantástica sobre a Coreia Popular: o
“ditador” Kim Jong-Um teria forçado todos os habitantes do país a usar o
mesmo corte de cabelo; arqueólogos norte-coreanos descobriram a
existência de unicórnios; os cidadãos acreditam que a Coreia ganhou a
Copa de 2014; Kim Jong-Un mantou matar o tio com um lança mísseis porque
ele dormiu numa reunião (minha preferida!); Kim mandou matar a namorada
porque ela falava muito e assim segue. Poucos dias depois, é claro, os supostos mortos aparecem vivos
e as notícias falsas, muitas vezes propagandeadas pelo Serviço Secreto
da Coreia do Sul, não desmentidas são 1% da publicidade da mentira
original.
O anticomunismo se combina com o
orientalismo e o racismo colonial (só o racismo colonial para fazer uma
pessoa achar crível um líder de Estado matar seu tio com um lança
mísseis porque dormiu numa reunião ou que na Coreia existe um
canibalismo onipresente, imagens típicas da representação europeia da
Ásia durante a expansão colonial-imperialista do final do século XIX)
para fazer da Coreia do Norte um dos países mais atacados do mundo e um
pária que quase ninguém no campo intelectual brasileiro abre a boca para
defender. Malcolm X disse certa vez que “se você não for cuidadoso, os
jornais farão você odiar o oprimido e amar o opressor”. Nesse caso, as
mídias no geral, incluindo os jornais, já conseguiram fazer isso com
militantes pouco “cuidadosos”.
O que você deveria saber sobre a Coreia Popular, mas não sabe
O importante intelectual canadense Michel Chossudovsky, escreveu um artigo
falando sobre as conquistas sociais da Coreia Popular. Usando apenas
dados oficiais de fontes ocidentais (esquivando-se assim da eventual
“acusação” de fazer apologia ao “regime” por usar dados produzidos no
próprio país), o pesquisador começa mostrando que o relatório da Anistia
Internacional que indica uma crise na saúde da Coreia Popular e uma
sistemática falta de médicos e enfermeiros é falso. Diz o trecho:
“A Organização Mundial
da Saúde (OMS) diz que o relatório da Anistia Internacional sobre o
sistema de saúde da Coreia do Norte não é científico e está
desatualizado. A Anistia afirmou que a Coreia do Norte não está
conseguindo atender às necessidades básicas de saúde de seu povo. O
relatório da Anistia é baseado em entrevistas com 40 desertores
norte-coreanos e profissionais da saúde estrangeiros. Em abril, a
diretora da OMS [Organização Mundial da Saúde] visitou a Coreia do Norte
e disse que seu sistema de saúde era o motivo de inveja pelo mundo em
desenvolvimento”.
Qual seria o motivo da inveja?
Chossudovsky cita os dados da Divisão Federal de Pesquisas da Biblioteca
do Congresso dos EUA, que afirma
“A Coreia do Norte tem um serviço médico
nacional e um sistema de seguro de saúde. Em 2000, cerca de 99% da
população tinha acesso a saneamento e 100% tinham acesso à água, mas a
água nem sempre era potável. O tratamento médico é gratuito. No passado,
havia um médico para cada 700 habitantes e uma cama de hospital para
cada 350 habitantes.”
O acesso a água e saneamento, na Coreia
Popular, é melhor que no Brasil e que na maioria dos países asiáticos
(lugar por excelência de comparação com a situação da Coreia). A relação
de médicos e leitos por número de habitantes também é melhor que a
nossa. Ainda no âmbito da exposição de dados, diz o pesquisador “em
2006, a expectativa de vida era estimada em 74,5 anos para mulheres e
68,9 para homens, ou quase 71,6 anos no total” (esses números não
combinam com o retrato de um país tão sem comida ao ponto de existir um
suposto canibalismo onipresente. É necessário lembrar que pessoas sem
comida não vivem em média até os 71 anos). E, para concluir, Michel
Chossudovsky fala sobre a educação na Coreia Popular:
“Segundo a Unesco, a
educação pública na República Democrática Popular da Coreia (RPDC) é
universal e totalmente financiada pelo Estado. De acordo com fontes
oficiais do governo americano (Divisão Federal de Pesquisa da Biblioteca
do Congresso): “A educação na Coreia do Norte é, há 11 anos, gratuita,
obrigatória e universal dos quatro aos 15 anos de idade nas escolas
estatais. A taxa nacional de alfabetização para os cidadãos com 15 anos
de idade ou mais é de 99%.” (Biblioteca do Congresso, Divisão Federal de Pesquisa, p. 7).
Em 2013, a Vice realizou uma entrevista
com Pier Luigi Cecioni, curador responsável pelo site ocidental do
Estúdio de Arte Mansudae, em Pyongang (capital da Coreia Popular),
provavelmente um dos estúdios com maior produção no mundo. A matéria
aborda o realismo socialista na Coreia Popular e o papel do Mansudae,
que tem quatro mil funcionários e mais de mil artistas. Cecion,
respondendo às perguntas da jornalista Nadja Sayej, começa explicando a
produção cultural na Coreia:
“A maioria dos melhores
artistas do país está no Mansudae. Praticamente todos eles têm um curso
universitário ou formação em belas-artes. Quando um estudante se
destaca na universidade, ele ou ela é convidado a se juntar ao Mansudae.
E se um artista se destaca em outro centro, ele ou ela pode ser
convidado a entrar para o estúdio. É uma grande honra fazer parte do
Mansudae.”
Em seguida, o italiano, deixando claro
não ser especialista no tema, descreve o que sabe do sistema educacional
do país, afirmando que as crianças e adolescentes frequentam a escola
pela manhã e no período da tarde, voluntariamente, podem praticar
música, dança, teatro, esportes etc. (bem pouco parecido, infelizmente,
com as escolas do Brasil). Responde perguntas sobre a experiência da
visita dos coreanos à Europa e conclui com um balanço sobre o realismo
socialista na Coreia Popular:
“Eu não diria que o
propósito de toda a arte norte-coreana seja mensagem política. O
realismo socialista representa a Coreia do Norte sob uma luz positiva e,
num sentido mais amplo, quer inspirar os espectadores a ter sentimentos
positivos, patrióticos e a celebrar; especialmente as grandes
esculturas e pinturas exibidas em espaços públicos: os líderes. Os temas
estão frequentemente relacionados ao trabalho, um assunto que não é
comum no ocidente. Uma forma particular do realismo socialista são os
cartazes. Eles são pintados à mão, não impressos, e têm mensagens
políticas e sociais. Muitos têm como alvo os Estados Unidos, visto como
um agressor do passado e um agressor em potencial. Além do realismo
socialista, pinturas de paisagens são muito populares. Assim como
pinturas de flores e da natureza em geral. Há também muitos retratos,
principalmente de trabalhadores. Mas há tantos tipos de arte –
escultura, cerâmica, bordado, vários tipos de pintura, xilografia,
caligrafia e algumas outras – que não é possível generalizar”.
O professor da FGV (Fundação Getúlio
Vargas) Paulo Ferracioli, especialista em política de comércio exterior e
com vasta experiência de pesquisa sobre a Coreia do Sul, fez uma viagem
à Coreia Popular. Em seu relato de viagem,
o professor, que não é nenhum fã da ideologia Juche, diz que as cidades
são limpas, bem organizadas e que em uma quadra da Avenida Paulista
você vê mais pessoas em situação de rua do que em toda Pyongyang. Por
falar em Pyongyang, continua Ferracioli, é possível ver no final da
tarde pessoas nos vários jardins e praças públicas conversando, rindo,
brincando com os filhos (ele destaca que não se vê nenhuma criança em
situação de vulnerabilidade, como é possível entrar em toda cidade
brasileira) ou em estabelecimentos conversando e tomando cervejas.
O leitor pode pensar que estou falando
das conquistas sociais mas ocultando a dimensão política do país. A
Coreia é normalmente retratada como uma monarquia, um país dominado por
uma família, uma espécie de stalinismo de maior intensidade. Como
costuma ocorrer nos tratamentos dados às experiências de transição
socialista, é tomado como um consenso óbvio que nada existe de
democracia, poder popular ou liberdade no país. Bem, primeiro, chamar a
Coreia de monarquia é uma prova de extrema superficialidade.
O professor Paulo Visentini, um dos autores de um livro recente sobre a Coreia Popular (A revolução coreana: o desconhecido socialismo Zuche)
– livro aliás ignorado no geral pela militância de esquerda
(desconheço, por exemplo, qualquer intelectual de esquerda que tenha
escrito ou resenha ou tentado refutar as análises de Visentini) –, diz o
seguinte sobre a ideia da Coreia ser uma monarquia:
“É importante ressaltar
que o sistema político norte-coreano é republicano e bastante complexo,
havendo limites ao poder do dirigente e certo grau de liderança
coletiva e participação popular. Por outro lado, a situação de tensão
militar externa reforça os elementos para a identificação da nação com
uma pessoa, cuja liderança de continuidade também é fundamental para
evitar crises sucessórias que, no caso da RPDC, seriam, certamente,
fatais. A liderança quase sacralizada representa mais um símbolo de
unidade nacional do que o poder em si mesmo. O povo norte-coreano e sua
liderança expressam orgulho por suas realizações e não se dobram sequer à
China, cujos interesses são oscilantes. A ideologia Zuche, de
autossuficiência, representa uma política de autopreservação que não
pretende ser imposta a outras nações, apesar da grande cooperação
existente com dezenas de Estados em desenvolvimento.” (A revolução coreana, São Paulo, Unesp, 2015, p. 23)
E continua em outro momento do livro:
“A compreensão do ethos
norte-coreano depende do conhecimento das origens da revolução
(relacionadas à guerrilha antijaponesa) e, principalmente, do terrível
impacto que a guerra teve sobre o país. A luta pela libertação nacional
foi condicionada pela intensa mobilização de diferentes grupos sociais e
pela percepção das lideranças de que a unidade deveria ser construída
através de uma consciência nacional. Foi nesse cenário que Kim Il-Sung
expôs os elementos constitutivos da Ideia Zuche (ou Juche) e a linha
revolucionária baseada nessa doutrina, cujos princípios já faziam parte
das raízes do movimento. O Zuche se desenvolveu em um quadro de lutas
externas e internas e seria aprofundado como base para a reorganização
do país no pós-guerra. Fortemente apoiado em uma visão nacionalista,
serviu como teoria e método para o regime consolidado. A Guerra da
Coreia foi uma guerra de extermínio, com o uso de napalm e bombardeios
massivos para destruir todas as cidades e a infraestrutura do país.
Houve ameaça nuclear explícita, como visto anteriormente, e chegou a ser
defendida a criação de um corredor radioativo de até 60 km junto à
fronteira com a China. Como resultado, o país desenvolveu uma
mentalidade de bunker e centenas de quilômetros de túneis, assim como 15
mil refúgios profundos foram construídos, abrigando depósitos de
mantimentos e armamentos, hospitais, fábricas, hangares para aviões e
refúgios para a população. O medo de um ataque nuclear foi real nesse
momento, inclusive porque os EUA estacionaram armas atômicas na Coreia
do Sul e no Japão.” (p. 67)
Visentini desenvolve ainda uma excelente
argumentação sobre as influências pré-revolucionárias na estrutura de
poder atual da Coreia Popular e a mescla, única no mundo, entre
elementos da cultura asiática, o neoconfucionismo e o marxismo. Não
podemos, no âmbito desta coluna, abordar a complexidade do assunto, mas
adiantamos que quem não conhece nada da milenar história coreana, das
tradições estatais e do confucionismo, provavelmente vai cair na
tentação fácil e preguiçosa de assimilar a dinâmica da Coreia Popular à
da União Soviética de Stálin, colocando à ambos o rótulo fácil e que
nada diz de culto à personalidade.
Em uma fortaleza sitiada, toda dissidência é traição
A frase acima é de Fidel Castro. O
revolucionário e estadista cubano conseguiu compreender o grande
problema da transição socialista do século XX, ainda que tardiamente, no
final da sua vida. Ao contrário de certa compreensão hegemônica,
pautada diretamente pelos monopólios de mídia e pela ideologia
dominante, o grande problema do socialismo no século passado não foi a
falta de democracia ou liberdade, mas o desafio
de se conseguir construir uma democracia operária, superior na forma e
no conteúdo à democracia burguesa, em um estado de guerra permanente
durante a tentativa de superar o subdesenvolvimento e a dependência.
Muitas vezes, ao olharmos nossa história,
deixamos de racionalizar um dado básico: toda experiência socialista
até hoje passou por uma invasão militar imperialista ou teve que
enfrentar uma cruel guerra civil antes da conquista do poder e com a
revolução vitoriosa. Na imensa maioria das vezes, essa invasão militar
foi derrotada, mas não sem enormes custos humanos e de riqueza. Toda
experiência de transição socialista, as passadas e as atuais, teve ou
tem que despender enormes quantidades de riqueza material para defender
sua soberania nacional. E como bem disse Fidel, “em uma fortaleza
sitiada, toda dissidência é traição”. O estado de guerra não condiciona o
fortalecimento da democracia – de qualquer forma de democracia,
inclusive a burguesa. E quando falamos estado de guerra, a questão não
diz respeito apenas a confrontos militares diretos. Mais uma vez, um
dado universal, mas pouco estudado: toda experiência socialista passada e
atual sofreu/sofre com asfixiantes bloqueios econômicos do imperialismo
(convido o leitor a refletir: quantos artigos ou livros você já leu
sobre bloqueios econômicos? Sabe como funcionam? Seus impactos?).
Recentemente o Center for Economic and Policy Research lançou um estudo
dirigido por Mark Weisbrot e Jeffrey Sachs – respectivamente, um
jornalista progressista e um economista liberal – que analisa os
impactos das sanções econômicas dos Estados Unidos contra a Venezuela
impostas de 2017 até os dias atuais e chega a uma conclusão
perturbadora: “[as sanções] foram responsáveis pela morte dezenas de
milhares de venezuelanos no biênio de 2017-2018 – uma estimativa de
aproximadamente 40 mil pessoas”. Esse estudo não teve qualquer
repercussão na mídia ou entre os intelectuais de esquerda – inclusive,
os “críticos” do “autoritarismo de Maduro”.
Já a Coreia Popular é país mais bloqueado
do mundo. A situação do país depois do fim da URSS e do campo
socialista foi catastrófica, com o padrão de vida decrescendo em ritmo
assustador. A partir dos anos 2000, conseguiu superar a crise econômica e
seus efeitos mais agudos, período chamado de Árdua Marcha, mas não
consegue forcar no desenvolvimento econômico e no bem-estar do seu povo.
O imperialismo não permite. No último dia 9 de maio, o navio cargueiro
“Wise Honest” que transportava carvão e maquinaria para Coreia Popular
foi empreendido por ordem do Departamento de Estado dos EUA em uma
manobra única, acusando de violar as sanções dos Estados Unidos.
O blog De Pyongyang a La Habana lançou um estudo completo
sobre todos os bloqueios e sanções econômicas que sofre a Coreia
Popular. Esse texto mostra o grau de severidade do bloqueio contra a
Coreia Popular – novamente, um estudo ignorado pela maioria dos
militantes brasileiros. Já o jornal The New York Times, em matéria de 2017 coloca como título [tradução livre] “A fome na Coreia do Norte é devastadora. E a culpa é nossa”.
Apesar do tom sensacionalista e do uso de alguns dados questionáveis, a
matéria do jornal estadunidense é certeira ao apontar que as
dificuldades alimentares do país têm uma origem bem precisa: a sabotagem
econômica do imperialismo ocidental. Diz Kee B. Park, que assina a
coluna:
“Liderada pelos Estados
Unidos, a comunidade internacional está estrangulando a economia da
Coreia do Norte. Em agosto e setembro [de 2017], o Conselho de Segurança
da ONU aprovou resoluções banindo a exportação de carvão, ferro,
chumbo, frutos do mar e têxtis e limitando a importação de óleo bruto e
derivados de petróleo refinado. Os Estados Unidos, o Japão e a Coreia do
Sul, cada um, impuseram sanções à Pyongyang para isolar ainda mais o
país.”
A justificativa oficial para essa asfixia
econômica, como sabemos, é impedir a Coreia Popular de desenvolver seu
programa nuclear. Supostamente, o país seria uma ameaça ao mundo. Um
país pequeno sem qualquer histórico de golpes militares, invasões ou
sabotagens contra seu vizinho, é atacado pela “comunidade internacional”
liderada pelos Estados Unidos: país com mais 800 bases militares
espalhadas pelo mundo, mais de 50 golpes de estado aplicados com
participação direta e indireta, uma série de invasões neocoloniais
(Iraque, Afeganistão, Panamá, Vietnã, Guatemala etc., etc., etc.) e a
ação da CIA pelo mundo todo buscando a “mudança de regime” de projetos
políticos que buscam algum grau de soberania nacional.
A realidade é que a guerra é um perigo
real para o povo coreano. Na guerra de 1950-1953, cerca de 30% da
população coreana foi morta e o país completamente destruído – um país
já devastado devido à guerra de libertação contra o colonialismo
japonês. O nível de brutalidade por parte dos EUA foi tão grande que E
ainda depois do cessar-fogo temporário de 1953, juridicamente, a Guerra
da Coreia nunca acabou: além da milenar Nação Coreana ter sido dividida
em duas, os Estados Unidos nunca deixaram de manter uma pressão militar
permanente.
Até hoje a Coreia Popular é cercada por
mais ou menos 20 mil soldados dos Estados Unidos e arsenal atômico. Não é
a Coreia Popular que está na fronteira dos EUA buscando uma “mudança de
regime”, mas o contrário. Os líderes coreanos aprenderam desde muito
cedo que o imperialismo só entende a linguagem da força. Quem discorda,
basta olhar para Líbia, que de país com melhor IDH e infraestrutura da
África passou a um mar de lama e sangue dominado por grupos armados
fundamentalistas, contando, inclusive, com o tráfico de humanos
escravizados.
Conclusão
Diante de tudo que escrevemos, a
conclusão é inequívoca: eu apoio e defendo a Coreia Popular. Esse apoio e
defesa não se confunde com uma adoração acrítica do país. Mesmo sendo
um historiador que dentro dos seus limites estuda a história asiática,
conhece um pouco as tradições do país e o confucionismo, a
forma-política do Estado coreano não me agrada. Também não tenho
qualquer simpatia por desfiles militares pomposos e culto de armas. Mas
não sou idealista. O mundo não é, ainda, o que queremos.
No mundo real, temos uma experiência
revolucionária que desde que nasceu não consegue se desenvolver
livremente. É atacada, caluniada, cercada, perseguida, asfixiada
economicamente. Todo esse bloqueio do imperialismo gera deformações e
certo nível de burocratização pouco agradável a alguém que defende uma
democracia operária. Mas a prioridade quando o assunto é a Coreia
Popular, é defender o país do imperialismo. Agitar a bandeira da
autodeterminação dos povos, contra o uso de armas nucleares e da
reunificação pacífica na península.
Temos uma experiência igualitária (ainda
que com privilégios corporativos), fundamentada no ideário socialista e
com um povo com ardentes sentimentos anti-imperialistas. É uma
experiência nossa, do nosso campo, com todos seus erros e acertos,
glórias e caricaturas, e eu a abraço sem reservas envergonhadas ou
tímidas geradas por sentimentos liberais, anticomunistas ou
orientalistas.
Não tenho medo de ser chamado de
dogmático, stalinista, fanático ou qualquer coisa do tipo por manifestar
meu apoio a um povo que deseja ser livre. Meu maior medo, quando o
assunto é a Coreia Popular, é ver esse povo terminar como o líbio ou o
palestino. Mas isso, tenho certeza, não irá acontecer. A Revolução
Coreana segue firme. E o imperialismo, por mais ameaçador que pareça, é
um tigre com dentes de papel!
***
Vale a pena conferir a participação de
Jones Manoel na mesa de YouTubers marxistas que encerrou a Festa de
Aniversário do Marx organizada pela Boitempo em parceria com a Fundação
Lauro Campos e Marielle Franco. Junto com Sabrina Fernandes (Tese Onze),
Humberto Matos (Saia da Matrix), Larissa Coutinho (Revolushow) e Debora
Baldin (mediação), ele falou sobre “Como começar a ler Marx?”, tema do
debate, e muito mais…
Notas
1 Vinícius Moraes, “A Propagação Hegemônica: como as agências globais e a mídia ocidental cobrem a geopolítica (parte 2)”, Revista Ópera, 23 abr. 2019.
2 Caio Navarro de Toledo, “A modernidade democrática da esquerda: adeus à revolução?”, em: Crítica Marxista n. 1, 1994.
2 Caio Navarro de Toledo, “A modernidade democrática da esquerda: adeus à revolução?”, em: Crítica Marxista n. 1, 1994.
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Jones Manoel
é pernambucano, filho da Dona Elza e comunista de carteirinha. Começou
sua militância na favela onde nasceu e cresceu, a comunidade da
Borborema, construindo um cursinho popular, o Novo Caminho, junto com
seu amigo Julio Santos (ele, Julio e outro amigo, Felipe Bezerra, foram
os primeiros jovens da história de Borborema a entrar em uma
universidade pública). Depois de dois anos com o cursinho popular,
passou a militar no movimento estudantil em paralelo ao seu curso de
história na UFPE. Pouco tempo depois, ingressou nas fileiras da UJC (a
juventude do PCB). Ativo no movimento estudantil até 2016, hoje atua no
movimento sindical e na área da educação popular. Mestre em serviço
social, atualmente é professor de história, mantém um canal no YouTube e
participa do podcast Revolushow. Segue militante do PCB. Escreve para o
Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
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