Um Deus em que podemos acreditar
Por Todd Mcgowan, traduzido por Cassandra Véras.
Trecho extraído do livro Capitalism
and desire: the psychic cost of free markets (Capitalismo e desejo: os
custos psíquicos do livre mercado).
Um Deus em que podemos acreditar
NÃO DEUS, MAS UM OUTRO
A modernidade capitalista criou a
possibilidade de conceber a liberdade humana. Ao contrário de outros
sistemas socioeconômicos, o capitalismo não exige ampla obediência a uma
entidade transcendente para funcionar. Embora as relações hierárquicas
permaneçam, elas não estão enraizadas em uma justificação divina que
tornaria as ações livres impossíveis. Isso marca uma quebra dramática
com os sistemas do passado. Ao mesmo tempo, a ciência moderna também
implica uma rejeição da intervenção divina como um fator em seus
cálculos sobre o universo. Cientistas podem acreditar em Deus (embora a
maioria não o faça), mas eles não podem explicar ações humanas ou
naturais recorrendo a Deus e continuar a ter uma posição séria entre
outros cientistas. Esta ausência de Deus na modernidade capitalista cria
o espaço no qual sujeitos podem, pela primeira vez na história humana,
acreditar na liberdade sem contradição. A liberdade só é pensável sem a
presença de uma força divina ativa no mundo.
Se a ausência de Deus no mundo se torna
evidente após o nascimento da modernidade capitalista, o capitalismo
erige simultaneamente uma nova forma de divindade, uma forma ainda mais
tirânica do que a forma antiga. O novo deus é o mercado e, ao contrário
do Deus onipotente e onisciente das tradições monoteístas, o mercado não
esclarece sua tirania. Nunca se proclama um deus ciumento da maneira
que o Senhor faz. Não parece restringir a liberdade, como Deus faz, mas
sim estimulá-la. O mercado livre substitui Deus e age como o Outro, como
autoridade social, na modernidade capitalista. Como Deus, diz aos
sujeitos o que deseja e dirige suas ações, mas o faz de forma
sub-reptícia. Os métodos de Deus e os do mercado estão, portanto, em
desacordo, embora sua função como garantia da existência social seja a
mesma. O Deus tradicional e o mercado são bastiões contra o trauma da
liberdade. A modernidade capitalista abre a possibilidade da liberdade
apenas para encerrá-la, mas essa abertura é, não obstante, o evento
decisivo da época moderna.
Deus não desaparece na modernidade –
ainda é permitido acreditar –, mas essa época acaba com Deus como uma
presença física no mundo. Enquanto Deus existir como um ser físico que
governa os movimentos do mundo, não há possibilidade para a liberdade
humana porque toda atividade humana ocorre em referência a um realmente
existente – mais que espiritual – Outro. A concepção geocêntrica do
mundo permite à humanidade não apenas se ver como o centro da criação,
mas encontrar segurança na existência certa de um Outro substancial
(isto é, numa figura substancial de autoridade). Com este pano de fundo,
podemos dar sentido a um mistério histórico.
De uma perspectiva contemporânea, é
difícil entender por que o sistema heliocêntrico copernicano teve um
efeito tão radical sobre as autoridades católicas. Para os fiéis, por
que importaria se a Terra ou o Sol fossem o centro do sistema solar? Se
alguém consultasse os crentes hoje, provavelmente nem um deles
declararia que o colapso do geocentrismo incomoda seu sono. O próprio
Copérnico nunca precisou se preocupar com a ira da Igreja, pois teve a
sorte de morrer no dia em que De revolutionibus orbium coelestium
apareceu em 1543. Outros não tiveram tanta sorte. A crença no
heliocentrismo desempenhou um papel importante na execução da Inquisição
de Giordano Bruno em 1600 e levou Galileo Galilei a negar seu próprio
apoio publicamente declarado à tese copernicana, a fim de evitar um
destino semelhante. A coragem de Bruno e a capitulação de Galileu foram o
resultado da intensa pressão que a Igreja sentiu para manter o sistema
geocêntrico. O ataque ao geocentrismo teve o efeito de um ataque à
natureza de Deus.
Embora não haja passagens bíblicas
declarando inequivocamente que a Terra é o centro do universo, a
hipótese heliocêntrica, no entanto, incomodou muito as autoridades da
Igreja. Fê-lo porque desenraizou Deus da localização específica que este
ser poderia ter dentro do sistema ptolemaico ou aristotélico. Deus
poderia continuar a existir e ser onipresente ou mesmo simplesmente
espiritual, mas Deus nunca mais poderia ter um lugar definitivo. Com o
desenvolvimento teórico do sistema heliocêntrico, Deus deixa de ser uma
substância[1]. Esta é a maior perturbação da tradição da modernidade. O deslocamento de Deus pode levar (e levou) a todo tipo de fideísmo[2]*,
mas também rasga o terreno transcendente da autoridade social. É apenas
um pequeno passo do deslocamento ou espiritualização de Deus para a
liberdade que torna possível a execução do monarca[3].
Como um ser com um lugar definido na
estrutura do mundo, Deus poderia funcionar como a causa última ou
principal motor de toda ação dentro do mundo. A espiritualização de Deus
não elimina imediatamente a possibilidade da relação causal de Deus com
o mundo, mas torna essa relação problemática. Assim como Descartes
exige que a glândula pineal ligue causas na mente com efeitos físicos no
corpo, uma espécie de glândula pineal cósmica seria necessária para
conectar a natureza espiritual de Deus com as ações que ocorrem no
universo físico. Tal como acontece com a postulação de Descartes, não é
provável que nenhuma pesquisa aumente a possibilidade de existência de
tal glândula cósmica. Assim, uma barreira entre Deus, enquanto causa, e o
universo físico, enquanto efeito, surge pela primeira vez com a
modernidade heliocêntrica. Torna-se possível, até mesmo necessário,
separar a crença religiosa da pesquisa científica devido à
intratabilidade da barreira. Mas essa barreira é também a fonte da
liberdade que a modernidade lega ao sujeito. Um Deus espiritualizado, um
Deus sem um lugar físico, deixa de ser aquele que detém e dá todas as
cartas, antecipadamente, aos jogadores que atuam no universo físico.
Liberdade nunca é simplesmente a liberdade de fazer o que se quer[4].
Como pensadores de Platão em diante insistiram, o que se quer é sempre
mediado socialmente e, portanto, necessário antes de ser livre. Nós não
geramos nossos próprios desejos, mas os herdamos de nosso meio e de suas
restrições. Nunca somos mais determinados do que quando estamos fazendo
o que queremos, e é por isso que a liberdade não deve simplesmente ser
equivalente à capacidade de agir da maneira que nos agrada.
A liberdade envolve uma ausência de
confiança no Outro como uma figura substancial de autoridade. Para o
sujeito livre, o Outro não tem uma existência substancial. Não há
garantia de suporte e responsabilidade pelas decisões que o sujeito
toma. Isso significa que a barreira mais significativa para a liberdade
não é um membro da polícia me forçando a comer brócolis em vez de
chocolate, mas um anúncio de televisão me dizendo que George Clooney (ou
qualquer representante da autoridade social) gosta de chocolate.
Liberdade é liberdade da figura do Outro enquanto autoridade social,
fornecer um suporte ontológico para meus atos.
Embora Descartes vislumbre essa concepção
de liberdade quando adota a subjetividade, e não a divindade, como seu
ponto de partida filosófico, sua filosofia plenamente desenvolvida
baseia-se em um Outro (na forma de Deus) como a garantia da verdade. O
retorno a Deus na Terceira Meditação representa a admissão tácita de Descartes de que o sujeito não pode ficar em pé sozinho[5].
Descartes, o primeiro filósofo da modernidade capitalista, recua diante
da liberdade porque reconhece o horror que ela manifesta. A liberdade
implica a ausência de qualquer outro substancial, a falta de garantias
para orientar as escolhas do sujeito. O sujeito livre existe sozinho com
suas decisões, e qualquer que seja a moralidade que ele adote decorre
apenas dele, não de Deus ou de qualquer figura autorizada. Muitos depois
de Descartes também cometeram recuos similares diante da liberdade e
abraçaram várias formas do Outro – Nação para o fascista, História para o
comunista, Jesus para o fundamentalista cristão, e assim por diante.
O único pensador que se recusou a
retirar-se para os braços do Outro na questão da liberdade foi Immanuel
Kant. A filosofia moral de Kant representa um marco na história da
filosofia porque o sujeito moral deve derivar suas diretrizes de si
mesmo e não de qualquer fonte externa. Mesmo que a lei moral seja
universal, o sujeito deve definir essa universalidade em si, que é o
problema crucial. Alenka Zupančič reconhece em sua análise o grande
salto que Kant realiza com sua concepção de moralidade. Ela argumenta:
“Aquilo que não pode ser reduzido sem abolir a ética como tal não é a
variabilidade multicolorida de cada situação, mas o gesto pelo qual todo
sujeito, por meio de sua ação, postula o universal, realiza uma certa
operação de universalização”[6].
Mesmo a razão, que alerta o sujeito para a existência da lei moral, não
constitui a lei nem orienta sua implementação. Em vez disso, o sujeito
deve decidir unicamente por si mesmo.
Kant identifica a existência nua da lei
moral como a fonte e o índice da liberdade do sujeito. Nenhuma entidade
não livre, como Kant a vê, poderia ter a capacidade de dar-se leis e
romper seu ser instintivo. Embora Kant acredite que a lei moral nos
permite assumir a existência de Deus, Deus não fornece nenhuma
orientação moral na filosofia de Kant. A moralidade leva a Deus mais que
Deus leva à moralidade. Isso significa que somos completamente livres,
sem nenhum Outro para guiar nossas ações.
Se Deus existe para Kant, não é Ele que
fornece a chave para a ação moral e, portanto, também não tem ligação
com nossa liberdade radical. É por isso que Kant insiste que a lei moral
– a livre decisão do sujeito – deve servir como árbitro final do bem e
do mal. Deus não tem voz. Na Crítica da Razão Prática, afirma
Kant, “o conceito de bem e mal não deve ser determinado antes da lei
moral (para a qual, como parece, esse conceito teria de ser a base), mas
apenas (como foi feito aqui) depois dele e por meio dele. ”[7]6
O sujeito é livre porque não tem autoridade externa em quem ele possa
confiar. A grandeza de Kant como filósofo reside principalmente em sua
compreensão das implicações para a liberdade do sujeito implícita na
modernidade.[8]
Embora Georg Lukács tente reduzir Kant a
ser o filósofo das antinomias do pensamento burguês, ele é capaz de
fazê-lo apenas se limitando ao Kant teórico da Crítica da razão pura. Na segunda Crítica,
a distância de Kant ao capitalismo se torna aparente por sua
insistência em uma forma de liberdade que o capitalismo não pode
tolerar. A Crítica da razão prática mostra que a liberdade não está simplesmente sujeita à indecidibilidade de teorizá-la encontrada nas primeiras tentativas da Crítica.
Em vez disso, sabemos que somos livres e que essa liberdade não se
baseia em garantias externas (como Deus ou o bem). Sabemos disso através
da experiência de restrição que a lei moral efetua. Mas a lei moral não
é outra substância que possa substituir Deus ou até mesmo um novo Deus.
A lei moral não é o Outro, mas sua ausência. É o lugar da liberdade
autêntica porque não é nada além da autodivisão do sujeito. Assim, a sua
existência é o índice da liberdade radical da ruptura da modernidade
com Deus[9].
Se a modernidade inaugura a possibilidade
da liberdade e Kant a desenvolve filosoficamente, o capitalismo fornece
o caminho perfeito para evitar o trauma inerente à liberdade. Isso é
irônico, dado que todo apologista do capitalismo começa colocando em
primeiro plano o papel que a liberdade desempenha dentro do sistema
capitalista. Mesmo que o capitalismo produza injustiça, mesmo que o
capitalismo leve à imoralidade, ele permite que os sujeitos ajam
livremente. De Adam Smith à Ayn Rand e a Donald Trump, a liberdade é a
palavra de ordem capitalista sempre nos lábios de seus defensores. Mas a
concepção de liberdade do capitalismo tem poucas razões para
recomendá-lo. Tem mais em comum com a liberdade dos comunistas, que
acreditam estar agindo em nome das forças objetivas da história, do que
com a liberdade genuína que Kant exalta. A liberdade capitalista é
totalmente falsa, e é por isso que nos apegamos a ela com tanta
veemência.
A POBREZA DA LIBERDADE
A concepção empobrecida de liberdade do
capitalismo manifesta-se no pensamento de quase todos os economistas
capitalistas. Esses economistas não traem a autêntica liberdade
capitalista através de sua concepção dela, mas tornam aparente o efeito
deletério que o capitalismo tem sobre a liberdade real, isto é, sobre a
liberdade do Outro e suas garantias, que orientam nossa existência. O
capitalismo fornece a liberdade para acumular, mas determina como essa
acumulação ocorrerá. Apesar da identificação completa do capitalismo com
liberdade, os sujeitos deste sistema não têm liberdade para escolher
suas carreiras, suas posses ou o que irão construir. Como quase todos os
economistas capitalistas mostram, o livre mercado não permite a
liberdade.
Em nenhum lugar essa contradição é mais
aparente do que no trabalho de Ludwig von Mises. Ao contrário da maioria
dos outros expoentes do livre mercado (como, por exemplo, Milton
Friedman), von Mises não garante a existência de qualquer forma de
liberdade que não seja aquela produzida pelo mercado. Ele diz: “Não há
nenhum tipo de independência e liberdade além do tipo que a economia de
mercado produz”[10].
A liberdade política é inteiramente secundária e até inconsequente para
von Mises. A liberdade econômica – a liberdade de comprar e vender as
próprias mercadorias sem restrição – é o que torna a vida social
suportável. Quando se pode comprar e vender livremente, pode-se ter o
tipo de satisfação que seria impossível sob qualquer outro sistema
econômico. Essa liberdade é um fim em si mesmo para von Mises, um bem
que deve existir em todas as ordens sociais e que devemos promulgar a
todo custo.
O panegírico para o livre mercado que
anima o pensamento de von Mises é representativo do encontrado em todos
os defensores da economia capitalista. Mas o panegírico para o livre
mercado que anima o pensamento de von Mises é representativo do
encontrado em todos os defensores da economia capitalista. Contudo, o
ideal de liberdade para comprar e vender o que se quer comprar e vender,
não é apenas ideologia capitalista. A pessoa realmente tem essa
liberdade no sistema capitalista, e isto separa o capitalismo de outras
formas econômicas nas quais o estado ou alguma outra organização
restringe o que se pode comprar ou vender. Embora cada mercado tenha
algumas restrições – a loja de departamentos local não pode vender
bombas nucleares ou filmes sobre como usar drogas – o mercado de uma
economia capitalista tem apenas restrições mínimas justificadas em nome
da segurança pública. Embora certas empresas possam trabalhar para
limitar a produção de certas mercadorias (como fizeram as companhias de
petróleo com o carro elétrico), essas instâncias representam violações
do ideal inerente do capitalismo e não eliminam os efeitos reais desse
ideal. Não obstante, o livre mercado, mesmo em sua forma ideal e
irrestrita, não é um bastião da liberdade, como o próprio von Mises
surpreendentemente revela.
Von Mises apresenta-se como um apóstolo
da liberdade, como alguém tão comprometido com a liberdade que ele
admitirá a extrema desigualdade para sustentá-la.[11]
Mas então, quando ele exalta as virtudes do mercado, ele elogia sua
capacidade de nos resgatar de nossa liberdade. Este é um daqueles
momentos chocantes quando um pensador inadvertidamente expõe o desejo
inconsciente, em jogo no seu projeto consciente. Segundo von Mises, “O
processo de mercado é o ajuste das ações individuais dos vários membros
da sociedade de mercado aos requisitos da cooperação mútua. Os preços de
mercado dizem aos produtores o que produzir, como produzir e em que
quantidade. ”[12]
Ao invés de confrontar o peso da liberdade quando decidimos sobre o
trabalho de nossa vida, von Mises acredita que o mercado decide por nós.
Este é o movimento crucial no pensamento de von Mises e muitos outros
defensores do capitalismo. Eles dão ao mercado o status do
Outro para assuntos quando o assunto é a economia capitalista. Esses
defensores são ainda mais perspicazes do que o próprio Marx em mostrar
como o capitalismo prescinde da liberdade no ponto preciso – o mercado –
onde ele postula uma liberdade absoluta.
O mercado substitui Deus na medida em que
nos diz o que devemos desejar. Mas é uma versão melhorada de Deus
porque nos permite reter a ideia de nós mesmos como seres livres.
Enquanto os teólogos cristãos precisam lutar constantemente com o
problema da liberdade humana diante de um Deus onipotente, o apologista
do capitalismo nunca enfrenta um problema semelhante, porque o livre
mercado nos assegura incessantemente, mesmo que ela não passe de um
apelido, nossa liberdade. Ou seja, o Outro capitalista, ao contrário de
Deus, não nos força a questionar como poderíamos reconciliar a liberdade
e a onipotência do Outro, e, no entanto, o mercado nos liberta de nossa
liberdade com muito mais eficácia do que Deus. Deus deixa margem para
dúvidas, enquanto o mercado raramente o faz.[13]
Quando pensamos sobre a diferença entre
Deus e o mercado, parece fácil julgar qual é a forma mais opressiva do
Outro. Os partidários do Deus cristão na Idade Média queimaram na
fogueira os hereges que se recusaram a aceitar a limitação divina de sua
liberdade. O capitalismo, ao contrário, deixa os hereges em paz.
Aqueles que rejeitam o mercado podem forjar uma existência fora de suas
exigências sem quaisquer ramificações legais. O capitalismo não condena
os incrédulos ao inferno. Mas essa tolerância explícita esconde uma
severidade ideológica muito mais extrema do que a da Inquisição. A
associação do mercado com a liberdade é tão difundida no universo
capitalista que é quase impossível pensar fora desses termos. Mesmo
aqueles que optam por sair do sistema geralmente buscam a forma de
liberdade que o próprio sistema capitalista promulga – a liberdade de
controlar seu destino econômico. A heresia pode não ter sido comum no
mundo medieval, mas se torna mais rara quando o mercado substitui Deus
porque o mercado é uma forma aperfeiçoada de Deus, uma divindade que nos
isola da liberdade, insistindo o tempo todo que somos livres.[14]
Em O caminho da servidão, F. A.
Hayek repete a mesma contradição que aprisiona von Mises, embora ele
discuta isso em termos de trabalhador e não de empresário. Hayek
argumenta que a sociedade não deveria fornecer qualquer garantia de
emprego, mas permitir que os trabalhadores perdessem seus empregos
quando esses empregos deixassem de ser socialmente necessários. Em vez
de ver essa posição como fria, Hayek a vê como iluminada. Uma das
virtudes do capitalismo é que ele elimina o trabalho socialmente
desnecessário, tornando o trabalho não lucrativo. A utilidade governa o
universo capitalista e elimina rapidamente posições que não mais
contribuem para o bem coletivo.
Quando eu examino o campo de
possibilidades para minha vida profissional, a escolha parece
impossível. Eu poderia dedicar-me à pesquisa médica, à negociação de
ações, à exploração do cosmos, à coleta de lixo, ao estudo da história
ou a uma quantidade quase infinita de outras opções. Mas quando olho
para a ausência de oportunidades de carreira para os professores de
história e para o grupo de corretores, a escolha fica clara. Mesmo
aqueles que não têm o privilégio de escolher uma carreira e devem
simplesmente decidir onde se candidatar a um emprego recebem orientações
do mercado, que lhes diz para se candidatarem no Walmart, e não na
livraria local. O livre mercado me resgata da horrível liberdade de não
ter motivos para decidir o que desejo ocupar como ocupação.
A maneira como pais e professores nos
falam sobre essa decisão revela a profunda ligação entre a orientação
oferecida pelo mercado e a que vem de Deus. Eles explicam que saberemos
que encontramos nossa vocação quando a encontramos. Nós nos
encontraremos como Paulo na estrada para Damasco. Mas a voz que indica
nossa carreira não é a voz de Deus. É a voz, como Hayek deixa claro, do
livre mercado.
O que Hayek gosta neste veredicto
econômico é a extrema clareza que ele fornece para o trabalhador que
enfrenta uma decisão livre sobre o emprego. Ele observa: “Mesmo com a
melhor vontade do mundo, seria impossível para qualquer um escolher
inteligentemente entre várias alternativas se as vantagens oferecidas
não estivessem relacionadas à sua utilidade para a sociedade. Para saber
se, como resultado de uma mudança, um homem deve deixar um comércio e
um ambiente de que veio a gostar, e trocá-lo por outro, é necessário que
o valor relativo modificado dessas ocupações na sociedade encontre
expressão nas remunerações que elas oferecem”.[15]
Não precisamos nos debater procurando o que fazer dentro do sistema
capitalista. A magia do mercado nos direcionará para a linha de trabalho
adequada e socialmente necessária. Apesar da insistência de Hayek de
que apenas o capitalismo garante nossa liberdade absoluta, aqui ele
descreve seu freio a essa liberdade como uma virtude.
É difícil expressar choque suficiente na
presença dessa passagem, dado o zeloso compromisso de Hayek com a
liberdade. Indo ao encontro do início da Constituição da Liberdade,
uma extensa homilia à liberdade, ele fornece sua definição do conceito.
Ele sustenta que a liberdade nada mais é do que a ausência de coerção, a
capacidade de agir sem ser obrigado de uma maneira ou de outra.[16] Esse é um sentimento que Hayek ecoa em O caminho da servidão também:
a liberdade é o valor fundamental para Hayek e, no entanto, ele celebra
o capitalismo por nos libertar de seu fardo, direcionando nosso desejo.
O capitalismo coloca um Outro no lugar do Deus deslocado da
modernidade. Ao ressuscitar esse Deus, Hayek revela a liberdade que ele
celebra. Essa ressurreição não é simplesmente sua má interpretação
teológica do capitalismo. Ele corretamente vê que o capitalismo fornece
aos sujeitos uma nova forma de autoridade social, um novo Outro para
guiar suas ações, mesmo que essa autoridade seja invisível.
Em um sentido ontológico, minha liberdade
tem sua base na inexistência do Outro, no fato de que não há Outro para
me dizer como desejar. Devo interpretar o desejo do Outro que não
existe para constituir minha própria subjetividade como desejante.
Estamos condenados à liberdade, não como diria Jean-Paul Sartre, porque
poderíamos também decidir agir de maneira diferente, mas porque não há
outro Autoritário e substancial para nos dizer como desejar. Qualquer
figura desse tipo que chamamos é o produto de um ato de crença, e é isso
que ocorre com o capitalismo, como Hayek legitimamente descreve. Na
forma de mercado, o capitalismo nos fornece a imagem de um Outro
substancial em que podemos acreditar.
Dada a completa hostilidade a qualquer restrição de liberdade de escolha expressa nos dois livros, tanto em Ação humana como em O caminho para a servidão,
as passagens citadas acima são surpreendentes. Von Mises e Hayek
exaltam a virtude do capitalismo por fornecer alívio à nossa liberdade
de escolhermos a que queremos dedicar nossas vidas. Sob o capitalismo,
não precisamos decidir por conta própria; em vez disso, o sistema,
através de sua formulação de demanda e alocação de salários, nos permite
saber que negócios devemos empreender e que trabalho seria socialmente
útil, e o que é socialmente útil é o que, segundo von Mises e Hayek,
deveríamos escolher.
O capitalismo, em outras palavras, nos
diz como pertencer à nossa ordem social, como nos adequarmos às demandas
da sociedade. Não há possibilidade aqui de liberdade para fazer algo
que não atenda à demanda social. Nós só podemos agir de acordo com essa
demanda, e o capitalismo se destaca ao tornar essa demanda completamente
clara. Embora possamos acreditar que escolhemos livremente nosso
trabalho – e Hayek argumenta que sempre fazemos isso – o capitalismo
tira o peso desse fardo de nossos ombros, mostrando para onde devemos
direcionar nossas energias. O sistema de salários e o anúncio dos cargos
disponíveis oferecem um esquema para entender o desejo do Outro. Esse
esquema é a estrutura da fantasia através da qual o capitalismo nos
permite escapar à inexistência do Outro e, portanto, ao horror de
reconhecer que não há ninguém ou nada para nos dizer como desejar.
Mas a instalação capitalista desse novo
Outro ou nova forma de Deus vem logo no encalço da destruição da forma
anterior. Em suma, o capitalismo matou Deus.[17]
Somente depois do início da modernidade capitalista é que Spinoza
imaginou uma concepção de substância horizontal, em vez de vertical, na
qual Deus seria totalmente imanente à criação. O Deus de Spinoza não
mais “age com um fim em vista” porque ele não tem mais status fora ou acima do mundo.[18]
Esse destronamento de Deus é o resultado direto da introdução das
relações capitalistas de produção. O capitalismo desmantela hierarquias,
níveis de relações sociais e elimina privilégios. Nem mesmo Deus pode
sobreviver a esse processo.
É claro que as pessoas na modernidade
ainda acreditam em Deus – e não apenas na versão imanente de Spinoza.
Mas Deus não funciona mais como o principal significante para a ordem
social no universo capitalista. Deus não diz mais aos sujeitos o que
eles deveriam desejar. Mas é difícil suportar essa ausência de Deus
enquanto autoridade social, e é por isso que encontramos refúgio em
outras formas de atividade social, uma vez que a hipótese de Deus não é
mais sustentável como base para a ordem social. A crença em Deus é tão
atraente porque Deus provê alívio do confronto com a inexistência do
Outro. Se Deus fornece esse tipo de orientação, requer um salto de fé
para obter acesso a ela. As diretrizes de Deus sobre o desejo não são
divulgadas publicamente dentro da ordem social capitalista. A crença
continua generalizada, mas o universo capitalista é incompatível com a
figura tradicional de Deus.
O verdadeiro horror da espiritualização
de Deus ou da inexistência do Outro não é que o sujeito não possa
interpretar o que Deus ou o Outro deseja. É que o Outro mesmo já “não
sabe” e começa a bombardear o sujeito com questões sobre o desejo. Uns
se abraçam o atentado suicida, se tornam homens-bombas, outros começam a
assistir aos realities shows – ambas as escolhas são respostas
semelhantes para o mesmo problema – descobrir o que o Outro quer – mas
continua-se a confrontar a inexistência do Outro mesmo em meio a essas
atividades. O Outro contemporâneo não oferece os mandamentos do Deus
tradicional.
Embora a modernidade capitalista elimine o
Deus transcendente da religião tradicional, ela introduz um Deus
imanente. Este não é o Deus de Spinoza, que é correlativo ao mundo
criado, mas sim um Deus que nos diz o que deseja. Este valor é o próprio
mercado. Em vez de deixar-nos sozinhos apenas com a nossa liberdade e
sem a ideia do que devemos desejar, o mercado nos liberta do fardo da
liberdade, porém somos capazes de manter a palavra. No universo
capitalista, a “liberdade” nos salva da liberdade.
NÃO DEUS, MAS UM ANÚNCIO
De todo sucesso do capitalismo em
direcionar o desejo dos sujeitos quando se trata da produção e do
trabalho, a mais visível destruição da liberdade no sistema capitalista
ocorre no ato do consumo. O universo capitalista hoje gira em torno do
consumo e não da produção ou do trabalho, e é aqui que a nova forma de
Deus se torna totalmente evidente. A publicidade não existe meramente –
ou mesmo principalmente – para vender produtos, mas para salvar os
sujeitos de sua liberdade. As propagandas fornecem uma imagem do Outro
que nos permite acreditar que não estamos simplesmente sozinhos quando
se trata de como devemos consumir.
O anúncio não nos diz diretamente o que
deseja – nenhum anúncio de sucesso diria, “Beba uma cerveja agora”, por
exemplo – mas, em vez disso, trabalha para criar uma crença na
existência de um Outro particular. O comercial da cerveja mostra o Outro
nos recompensando pelo ato de beber cerveja. Vemos o homem bebedor
cercado por um grupo de jovens mulheres vestidas apenas com roupas de
banho, uma imagem que mostra o apoio social que alguém recebe por
escolher essa cerveja; quem bebe aquela cerveja se encaixa na ordem
social e atinge o reconhecimento máximo. Deste modo, sabe-se desejar e,
assim, se evita o trauma da sua liberdade.
O anúncio permite que o sujeito
capitalista acredite que, em cada escolha do consumidor, ele está sendo
visto. Ou seja, o Outro recompensa o consumidor por suas escolhas
através do reconhecimento que decorre da compra adequada. Quando estou
bebendo certo tipo de cerveja, não me imagino necessariamente cercado
por mulheres adoráveis, mas imagino o Outro vendo minha escolha e
aprovando-a. O anúncio me diz que minha escolha tem o selo de aprovação
do Outro, e os melhores anúncios permitem que o sujeito negue essa
confiança na aprovação do Outro ao mesmo tempo em que a oferece de forma
mais completa.
O comercial de cerveja é muitas vezes o
mais simples em sua evocação do Outro. O Outro existe na forma de um
grupo de potenciais objetos de amor, amigos assistindo a um jogo de
futebol juntos, ou nostálgicos cavalos Clydesdale[19]*
lembrando o espectador de uma era anterior em que as escolhas eram mais
claras. Em cada caso, o anúncio oferece um ponto de identificação a
partir do qual o sujeito pode se ver sendo visto. Este ponto é o Outro
que existe e autoriza as escolhas do sujeito. O visualizador adequado
desses anúncios ganha deles um sentimento de pertencimento que tem o
efeito de salvar o sujeito de sua liberdade.
Propagandas mais bem-sucedidas – e mais
perigosas – oferecem a imagem de pertencimento através da liberdade ou
do desapego do Outro. Em tais anúncios, o Outro se forma através da
imagem de sua inexistência e assim se torna ainda mais firmemente
entrincheirado. Um dos grandes exemplos desse fenômeno foi o comercial
Monster.com dos anos 90. Nesse comercial um grupo de crianças pequenas
ironicamente expressa seu desejo de se encaixar no sistema capitalista.
Um deles diz: “Quero ser forçado a me aposentar precocemente”, enquanto
outro proclama: “Eu quero ser um gerente médio”. Essa série de acusações
condenatórias da falta de esperança do sistema capitalista serve para
apoiar um investimento no Monstro.com como descanso desta falta de
esperança e como uma forma do Outro que criará uma região dentro da
economia capitalista onde se pode encaixar sem sacrificar a liberdade de
alguém. Desta forma, Monster.com, como o Google ou a Apple,
apresentam-se como veículos para a libertação do sujeito da conformidade
que o mercado exige enquanto sustenta uma imagem do Outro que é a base
para o sucesso do mercado. O apelo da propaganda da Monster.com é
indissociável de sua vileza. É uma ofuscação ainda mais potente da
liberdade do que a Budweiser Clydesdales[20]**. Podemos acreditar que estamos rejeitando o mercado e, ao mesmo tempo, encontrando reconhecimento nessa nova forma de Deus.
A ligação entre a propaganda e Deus se destaca em uma das principais cenas de O grande Gatsby,
de F. Scott Fitzgerald. O romance conta a história da busca de Jay
Gatsby por seu amor perdido, Daisy Buchanan, a quem ele está tentando
atrair para longe de seu marido Tom. Depois de um confronto entre Tom,
Daisy e Gatsby, eles fogem de Nova York para suas casas em Long Island.
Daisy dirige com Gatsby e Tom entra em outro carro. Ao atravessar o
“Vale das Cinzas” que separa a cidade de seus subúrbios ricos, Daisy
bate e mata Myrtle Wilson, que está tendo um caso com seu marido Tom.
Embora Daisy não pretenda atacar Myrtle, ela dirige descuidadamente e
nem para depois do acidente. Embora o comportamento de Daisy revele a
insularidade da classe dominante, a importância da cena reside
principalmente no que acontece após a morte de Myrtle e na reação de seu
marido George.
George recorre a um anúncio como resposta à morte de Myrtle. A descrição de Fitzgerald do “Vale das Cinzas” destaca um outdoor que paira sobre o terreno baldio industrial. Este outdoor apresenta o que o narrador, Nick Caraway, descreve como “os olhos do dr. T. J. Eckleberg”. O outdoor
em declínio anuncia um oftalmologista mostrando um enorme par de olhos
com óculos que dão para o “Vale das Cinzas”. Ao longo do romance, os
olhos do Dr. T. J. Eckleberg funcionam como o Outro, a forma moderna de
Deus que garante e direciona nossas ações. Quando Myrtle morre, George
descobre o papel do outdoor e de todas as propagandas na modernidade capitalista[21]*.
Ao discutir o que ele pretende fazer com
seu vizinho Michaelus, George olha para os olhos do Dr. T. J. Eckleberg
para obter garantia. Ele diz a Michaelus: “Deus vê tudo”, e então seu
vizinho responde: “Isso é apenas uma propaganda”[22]. Com essa troca, Fitzgerald capta perfeitamente a relação entre publicidade e Deus, bem como a mudança no status
de Deus na modernidade. Embora a publicidade agora desempenhe o papel
de Deus – os olhos do Dr. T. J. Eckleberg nos dizem como desejar e como
fugir de nossa liberdade –, essa nova forma de Deus está ausente em vez
de presente. Assim, podemos proclamar, com Michaelus, que o Outro não
existe, mesmo que isso exija abandonar a segurança que o Outro que tudo
vê proporciona.
Quando concebemos Deus no mundo moderno,
devemos abandonar a ideia de um ser transcendente e, em vez disso, tomar
a imagem de Fitzgerald como nosso ponto de partida. Os olhos do Dr. T.
J. Eckleberg acalmam George porque permitem que ele imagine que nossas
ações ocorrem com um apoio ontológico. Esses olhos autorizam sua
vingança equivocada quando ele mata Gatsby pelo crime de Daisy. Da mesma
forma, as propagandas fornecem um bálsamo para todos os consumidores,
oferecendo uma imagem do que deveríamos desejar.
Mesmo que não compremos os produtos que
os anúncios tentam nos vender, nós nos consolamos na ideia do Outro que
eles sustentam. A conclusão de George sobre o outdoor estava
errada – Deus não vê tudo –, mas seu erro é, no entanto, completamente
compreensível. O Dr. T. J. Eckleberg é o novo deus. Assim como o velho
Deus, este existe para que não tenhamos que ser livres, mas ao contrário
da versão antiga, esta existe em uma época em que sua existência foi
completamente questionada.[23]
O PROBLEMA DE ADAM SMITH
Entender a nova versão de Deus do
capitalismo nos permite compreender a solução para a questão
frequentemente debatida sobre o relacionamento entre as duas grandes
obras de Adam Smith, A teoria dos sentimentos morais e A riqueza das nações. Esse debate provocou tanto furor que chegou a adquirir seu próprio nome: “Das Adam Smith Problem”.
O problema básico é que os dois trabalhos principais de Smith não
parecem concordar filosoficamente. Ele argumenta em sua filosofia moral
por um apego sentimental aos outros e em seu trabalho econômico por uma
ênfase no interesse privado em vez de preocupações públicas. Esse
problema ganha interesse renovado à luz da compreensão do livre mercado
como a nova forma do Outro. A solução para o problema de Adam Smith está
no livre mercado, substituindo Deus e salvando os sujeitos capitalistas
da liberdade.
A solução requer que pensemos sobre o
problema de Adam Smith em termos diferentes daqueles que costumamos usar
para abordá-lo. A resposta do senso comum a esse problema foi por muito
tempo historicista: a posição de Smith simplesmente evoluiu ao longo do
tempo a partir da escrita de sua filosofia moral em 1759 e seu tratado
econômico em 1776. Hoje essa resposta não tem mais adeptos, e a tarefa
se torna a de identificar as fontes de continuidade em vez de enfatizar
as diferenças.
Embora o problema da diferença entre o
Smith-moral e o Smith-capitalista tenha desaparecido amplamente, a
questão das preocupações compartilhadas de seus dois livros permanece no
ar. Como David Wilson e William Dixon observam, “um problema de Adam
Smith persiste: ainda não existe uma versão amplamente aceita do que é
que liga esses dois textos, além de seu autor comum; não há uma versão
amplamente aceita de como, se é que é possível, a postulação de
interesse próprio de Smith como princípio organizador da atividade
econômica se encaixa em suas preocupações morais e éticas mais amplas.”[24]
O problema de Adam Smith surge porque seus os dois livros parecem quase
completamente conflitantes entre si. O primeiro defende a existência da
moralidade humana com base em um apego sentimental aos outros, enquanto
o segundo sustenta que o interesse próprio dirige o ser humano.
Na abertura de A teoria dos sentimentos morais,
Smith defende uma limitação fundamental do egoísmo humano que parece
totalmente incompatível com suas posteriores proclamações econômicas.
Ele diz: “Por mais egoísta que possamos supor seja o homem, há
evidentemente alguns princípios em sua natureza que o fazem
interessar-se pela sorte de outros, e tornam sua felicidade necessária
para ele, embora disso ele não derive nada a não ser o prazer de
assisti-la. A piedade ou compaixão são sentimentos desse tipo, a emoção
que sentimos pela miséria dos outros, quando a vemos, ou a podemos
conceber de uma maneira muito viva.”[25]
A emoção nos conecta com os outros mesmo quando falhamos em ver a
conexão. A compaixão pode não ser consciente, mas funciona e governa
nossas interações com os outros. Toda a filosofia moral de Smith tem sua
base na identificação emocional ou sentimental que as pessoas
experimentam uma em relação à outra, e esse tipo de identificação não
desempenha nenhum papel em sua concepção da atividade do mundo
econômico. Não é de admirar, portanto, que a tentativa de conciliar os
dois textos famosos de Smith tenha se tornado um problema teórico
suficiente para ganhar seu próprio nome.
É preciso apenas uma breve olhada na
justaposição da filosofia moral de Smith com seu tratado sobre economia
para reconhecer que suas preocupações nos dois textos são díspares. Em A riqueza das nações,
Smith argumenta que o interesse próprio fornece a base para a interação
humana. Nós nos beneficiamos dos outros porque eles agem de acordo com
seu interesse próprio, e quando apelamos para eles por mercadorias que
necessitamos, fazemos isso com base no cumprimento desse interesse
próprio. Nos trabalhos posteriores de Smith, o interesse próprio é o fio
condutor e a conexão emocional parece inteiramente ausente. A ênfase em
um sentimento inquebrantável de compaixão que domina o livro anterior
não tem lugar nessa perspectiva econômica. Há uma conexão entre os
sujeitos, mas essa conexão deriva das manifestações inconscientes do
amor-próprio, não da compaixão inconsciente pela angústia ou miséria dos
outros.
A maioria das soluções para “O problema Adam Smith” enfoca o status
ético da concepção de capitalismo do autor. Samuel Fleischacker é um
dos expoentes dessa posição. Sua defesa não afirma que o capitalismo
necessariamente leva ao tipo de virtude que Smith defende na A teoria dos sentimentos morais,
mas sim que estabelece as bases para essa virtude. Ou seja, o
capitalismo não é inerentemente moral; ele facilita a moralidade. Ele
fornece a base estrutural para o desenvolvimento da moralidade.
O capitalismo faz isso apesar de sua
produção de prosperidade. De acordo com Fleischacker, “o comércio tende a
trazer a liberdade em seus rastros e ajuda a melhorar o alojamento, a
roupa e o sustento dos que estão em pior situação. Esses bens básicos
são tudo o que se precisa para levar uma vida decente – e, portanto,
suficiente para fazer com que valha a pena lutar e preservar a sociedade
comercial.”[26]
Fleischacker flerta com a ideia de que o capitalismo fortalece as
virtudes o que acaba por levar ao fim da violência. Mas ele abandona
esta tese por ser excessivamente ‘forte’ e se reconcilia com uma visão
mais fraca da conexão entre os dois textos. Ele vê que existe uma lacuna
profunda com apenas alguns pontos de sobreposição, apesar de seus
próprios esforços de reconciliação.
A questão é que os dois textos são
trabalhos díspares e as preocupações de Smith em seu tratado sobre
economia estão muito longe de suas preocupações na discussão da
moralidade. No geral, parece que não podemos reconciliá-los, exceto
através da afirmação de que o mesmo autor escreveu cada um deles. Mas
há, no entanto, um ponto nodal que une as duas obras – a visão de Deus
de Smith. Esta é a sobreposição fundamental entre a A teoria dos sentimentos morais e a A riqueza das nações, e é ainda mais reveladora dada à relativa ausência de Deus do pensamento de Smith como um todo.
Em nenhum dos dois trabalhos Smith
menciona explicitamente uma divindade tradicional. Não obstante, a noção
moderna de Deus – a reformulação capitalista de Deus – aparece em ambos
os livros como o Outro que direcionaria nosso desejo e o salvaria do
abismo. Embora Smith escreva ambas as obras (em 1759 e 1776) antes da Crítica da Razão Prática
de Kant (em 1788), elas representam um recuo antecipado diante da
liberdade kantiana moderna. É como se Smith lesse Kant e depois
construísse uma teoria moral e econômica que nos permitiria escapar das
ramificações traumáticas da liberdade kantiana.[27]
De fato, o traço definidor do pensamento de Smith, como o de tantos
defensores do capitalismo, é o voo da liberdade. Smith concebe os
sujeitos como livres, mas essa liberdade tem um apoio em um Outro, como
tanto A teoria dos sentimentos morais quanto a A riqueza das nações evidenciam.
A grande convergência dos dois livros de
Smith ocorre quando ele menciona – ocorre apenas uma vez em cada texto –
a mão invisível. Essa é a metáfora de Smith para o Deus moderno, a
autoridade social que dá uma direção para o desejo do sujeito. Em A teoria dos sentimentso morais,
Smith apresenta a mão invisível de uma forma menos ideológica do que no
trabalho posterior. Em uma parte chocante do livro, Smith admite que a
riqueza, ao contrário do que nós e os próprios ricos acreditamos, não
traz felicidade. Para um defensor do capitalismo, essa é uma admissão
potencialmente condenatória, e seria difícil imaginá-la na boca dos
crentes capitalistas de hoje. Buscamos a riqueza, como Smith vê, a
partir de uma premissa completamente equivocada, mas essa busca traz
grande benefício para a sociedade. A busca da riqueza funciona como a
astúcia da razão de Hegel: o universal beneficia-se dos sacrifícios
feitos pelos particulares.[28]
A busca da riqueza permite que a ordem social se desenvolva e que
avancem os interesses da sociedade, embora não traga a felicidade
prometida para aqueles que a perseguem.
Quando Smith se volta para uma discussão
sobre a distribuição de recursos que derivam da busca da riqueza, ele
recorre à metáfora da mão invisível. Comentando sobre os ricos, ele
observa: “Eles são conduzidos por uma mão invisível a fazer quase a
mesma distribuição das necessidades da vida que teria sido feita se a
terra estivesse dividida em partes iguais entre todos os seus
habitantes, e assim sem pretender, sem saber, promovem o interesse da
sociedade e proporcionam meios para a multiplicação das espécies.”[29]
A mão invisível funciona como Deus, orientando os ricos a investirem e
gastarem seu dinheiro nos empreendimentos apropriados. Sem a mão
invisível, estaríamos moralmente à deriva, e nada garantiria que nossas
ações se correlacionassem umas com as outras para o bem. O conceito da
mão invisível, em outras palavras, permite que Smith sustente uma ideia
de uma rede de segurança social que une os sujeitos e coordena seus
desejos. Também os livra do peso de sua própria liberdade diante da
ausência do Outro.
A mais famosa menção da metáfora da mão invisível ocorre em A riqueza das nações,
onde Smith defende o efeito socialmente benéfico da busca do interesse
próprio. Aqui, a mão invisível coordena, de outro modo, os interesses
próprios dos concorrentes em um todo coerente. Smith diz: “ao direcionar
essa indústria de tal maneira que seu produto pode ser de grande valor,
ele pretende apenas seu próprio ganho; e ele está nisso, como em muitos
outros casos, liderado por uma mão invisível para promover um fim que
não fazia parte de sua intenção. Nem sempre é pior para a sociedade que
não faz parte dela. Ao perseguir seu próprio interesse, ele
frequentemente promove o bem-estar da sociedade mais efetivamente do que
quando realmente pretende promovê-lo.”[30]
Embora os campeões posteriores do capitalismo percebam a insistência de
Smith na busca do próprio ganho, o que se destaca ainda mais em essa
passagem é a direção que a mão invisível fornece a toda atividade
interessada. Não há risco de o sistema se destruir, como Smith o vê,
porque uma mão invisível o vigia, assim como vigia a “distribuição moral
das necessidades da vida”. Essa é a versão moderna de Deus: uma força
que fornece garantias de que todas as nossas atividades funcionarão para
o bem, apesar de nossas intenções. Este é o ponto em que a A teoria dos sentimentos morais e a A riqueza das nações se alinham perfeitamente.[31]
A solução para “O problema de Adam Smith”
também é a solução para o capitalismo nos controlar como sujeitos. A
modernidade capitalista acaba com Deus como uma força presente nas
relações sociais, mas o instala como uma ausência determinante. O Outro,
como um campo ausente que direciona o desejo dos sujeitos, surge com o
capitalismo na medida em que a modernidade destrói a figura de Deus como
guia para o esse desejo. Isto é, Deus deixa de ser uma mão visível e se
torna uma mão invisível. A mão invisível atravessa os livros díspares
de Smith como a força unificadora entre eles. Também representa a
contribuição mais importante de Smith para a compreensão do sucesso do
capitalismo.
A concepção de Deus como uma mão
invisível não é apenas uma idiossincrasia dos dois livros de Smith. O
fato de o termo aparecer uma única vez em cada obra permite que ele se
destaque, mas o conceito sustenta a totalidade das duas obras e da
economia capitalista como tal. A mão invisível não é apenas ideologia
capitalista, uma concepção gerada para suavizar os antagonismos do
sistema capitalista. É, antes, uma parte inextricável desse sistema, seu
produto necessário.
Os amantes do capitalismo – e quem não
pertence a esse grupo, ainda que inconsciente-mente? – o adoram
exatamente por sua mão invisível. Através desta figura, ressurge de
forma muito mais palatável o Deus morto. A mão invisível não exige que
abandonemos atividades agradáveis como testemunhar falsamente e cobiçar a
esposa do vizinho. Longe de proibi-los, integra essas atividades ao
alinhamento de desejos concorrentes dentro do universo capitalista. Este
universo é aquele em que todos nós temos um lugar e do qual ninguém
precisa ser expulso, desde que abandonemos nossa liberdade e aceitemos o
veredicto do novo deus. A mão invisível não só resolve “O problema de
Adam Smith”, mas também o problema de uma liberdade horrível porque
desinvestida de um Outro.
O OUTRO EXISTE
O projeto fundamental da psicanálise é o
seu combate contra a crença na mão invisível. Em termos psicanalíticos, o
nome preciso de um crente na mão invisível é neurótico. O neurótico
busca refúgio de sua própria liberdade na ideia de um Outro que fornece
uma orientação oculta a qual o neurótico deveria desejar. Enquanto Deus
existir como uma presença física no mundo, direcionando o desejo, a
neurose não pode se desenvolver.[32]
O guia para o desejo do sujeito é claramente declarado nos ditames de
Deus. Mas quando a modernidade elimina Deus ou consigna Deus a um reino
espiritual, o sujeito se volta para um novo Outro que existe apenas em
sua ausência. Esse Outro – a mão invisível do mercado de Smith – diz ao
sujeito como desejar, e o sujeito que aceita esse Outro se torna
neurótico. A luta contra a neurose é, portanto, a luta contra a crença
subjacente que sustenta a economia capitalista. Se somos todos
neuróticos, em certa medida, isso significa que todos temos algum grau
de investimento no sistema capitalista.
Uma das principais queixas dos marxistas
psicanalíticos no século XX dizia respeito à tendência do capitalismo de
tornar seus sujeitos neuróticos. Para a maioria desses pensadores, o
problema está na repressão que o capitalismo exige. Mesmo uma
não-marxista como Karen Horney identifica o sistema econômico
capitalista como a fonte do que ela chama de “a personalidade neurótica
de nosso tempo”. No livro de Horney que tem esse título, ela afirma: “Do
centro econômico, a competição irradia para todas as outras atividades e
permeia o amor, as relações sociais e o fazer. Portanto, a competição é
um problema para todos em nossa cultura, e não é de todo surpreendente
considerá-la um centro infalível de conflitos neuróticos.”[33]
A competição capitalista não leva a sujeitos livres, mas a sujeitos
neuróticos. Requer repressão para enquadrar os sujeitos nas posições
limitadas que a economia de mercado exige.
A associação do capitalismo com a neurose
representa um diagnóstico preciso com uma causa equivocada. Michel
Foucault está, sem dúvida, correto ao questionar o ataque ao capitalismo
como um sistema puramente repressivo, mas a crítica de Foucault não
percebe outro vínculo possível entre capitalismo e neurose. O
capitalismo não alimenta o sujeito neurótico através de sua capacidade
de promover a ilusão de que o Outro existe. A base da neurose não é
apenas a repressão do desejo sexual e sua substituição por um sintoma,
mas a crença na existência substancial do Outro, a crença de que uma
autoridade social autoidêntica pode emitir exigências claras que
resolvam os problemas da subjetividade e da liberdade. A neurose é a
dependência de uma autoridade externa que permite ao sujeito evitar
assumir a responsabilidade por seus próprios atos. Essa redefinição da
neurose é crucial tanto para entender a estrutura neurótica do
capitalismo quanto para evitar a crítica de Foucault a esse diagnóstico.
O problema com a neurose é que a
autoridade social que o neurótico obedece não existe. Embora as
autoridades sociais façam exigências constantes sobre os sujeitos, elas
não conhecem seu próprio desejo e, portanto, não podem direcionar o
desejo dos sujeitos que olham para elas. Isto é, a autoridade não pode
dizer o que realmente quer.[34]
Como o sujeito, a autoridade social tem um inconsciente que impede sua
articulação inequívoca de demandas. Como o sujeito, a autoridade social
sofre da divisão entre o que diz e o ponto a partir do qual articula
essa demanda. A demanda é sempre articulada com significantes, e os
significantes sempre criam um sujeito dividido a partir da pretensão de
autoridade.
A divisão na autoridade social torna-se
evidente se examinarmos como as figuras de autoridade respondem àqueles
que cumprem literalmente suas exigências. Por exemplo, a aluna que
sempre vem para a aula preparada; sempre entrega tarefas cedo; sempre
tem a resposta correta para a pergunta, à mão, para fornecer, incomoda o
professor, em vez de conquistar o amor dele. O aluno que sabe quando
desobedecer e quando desafiar a autoridade do professor tem uma chance
muito maior de se tornar o aluno amado. O aluno perfeitamente obediente
iguala a demanda do professor ao desejo do professor, enquanto o aluno
que às vezes desafia a autoridade lê o desejo do professor como distinto
da demanda. O estudante que desafia a autoridade reconhece que a
autoridade social não existe, mesmo que o professor de carne e osso a
represente. O aluno obediente, em contraste, se apega neuroticamente à
ideia de uma autoridade substancial incorporada no professor, uma
autoridade que sabe e pode dizer o que quer.
Em seu Seminário XII, intitulado Problemas cruciais para a psicanálise,
Jacques Lacan identifica a neurose com o desejo da demanda do Outro,
que é outra maneira de dizer que o sujeito neurótico acredita na
existência substancial do Outro. Lacan diz: “Na neurose […] é em relação
à demanda do Outro que o desejo do sujeito é constituído.”[35]
O neurótico pensa que a obediência estrita da demanda do Outro – não
excede o limite de velocidade nem que seja por pouco, exemplo – trabalha
para capturar o desejo do Outro. Mas esse alinhamento da demanda do
Outro com o desejo do Outro nunca ocorre. O motorista que nunca acelera
ganha não o respeito da autoridade social, mas sua suspeita, assim como o
aluno que falha em ver que o professor não deseja a perfeita obediência
que ele ou ela exige. O Outro não quer realmente o que exige porque tem
um inconsciente como o próprio sujeito.
O erro do neurótico é a crença de que o
Outro existe, que o Outro não tem inconsciente, o que leva o neurótico a
se apegar à demanda do Outro, em vez de confrontar o abismo de sua
própria subjetividade. Essa tentativa de se apegar à demanda do Outro
sempre leva o sujeito ao erro – e representa o elo fraco na cadeia
capitalista – porque o Outro nunca quer que o sujeito faça o que ele
exige. O resultado é uma falha neurótica por parte do sujeito para
encontrar ‘satisfação satisfatória’. O capitalismo necessariamente
produz neurose. Não é, como o mundo contemporâneo nos lembra
constantemente, um sistema repressivo, mas é, mesmo assim, neurótico, na
medida em que nos permite encontrar refúgio no mercado enquanto
autoridade social.
O capitalismo exige uma crença na
existência do Outro. Isso é o que Adam Smith deixa claro em sua
discussão sobre a mão invisível, e é a razão da popularidade duradoura
dessa imagem entre os defensores do capitalismo. A ideia de uma mão
invisível ou de um Outro guiando nosso desejo nos permite acreditar em
nossa liberdade – não há um Deus claramente delineado ou autoridade nos
dizendo o que fazer – e encontrar descanso dessa liberdade ao mesmo
tempo. É, portanto, o sistema perfeito para a destruição da liberdade
que a modernidade oferece aos seus súditos.
A catástrofe fundamental da modernidade é
o desaparecimento de Deus como um Outro substancial. Assuntos como
Donald Trump tentam compensar essa catástrofe, comprando seu caminho
para a popularidade, que é simplesmente uma situação em que o Outro
oferece demandas claras e distintas. Mas a popularidade, como o
capitalismo, sempre leva ao desapontamento. Um nunca é popular o
suficiente, assim como nunca se tem capital suficiente. A mão invisível
acaba nos traindo. Como sujeitos da modernidade, devemos existir sem uma
mão visível ou invisível. Temos de dissociar a modernidade do
capitalismo – uma dissociação que é o único caminho para a liberdade
autêntica.
A catástrofe fundamental da modernidade é
o desaparecimento de Deus como um Outro substancial. Assuntos como
Donald Trump tentam compensar essa catástrofe, comprando seu caminho
para a popularidade, que é simplesmente uma situação em que o Outro
oferece demandas claras e distintas. Mas a popularidade, como o
capitalismo, sempre leva ao desapontamento. Ninguém nunca é popular o
suficiente, assim como nunca se tem capital suficiente. A mão invisível
acaba nos traindo. Como sujeitos da modernidade, devemos existir sem uma
mão visível ou invisível. Temos de dissociar a modernidade do
capitalismo – uma dissociação que é o único caminho para a liberdade
autêntica.
[1]
O esforço de Spinoza para manter Deus como a única substância na Ética
ocorreu em resposta a essa ameaça. Essa virada teológica não foi uma
solução aceitável para as autoridades da Igreja, no entanto, que
essencialmente impediu a publicação da obra-prima de Spinoza durante sua
vida. O problema com a extensão de Deus por Espinosa como substância
exclusiva e única é que ela não corrige o desenraizamento da autoridade
social que a teoria heliocêntrica encena. Deus não recupera um lugar no
pensamento de Spinoza. Mas Spinoza também não chega a um acordo adequado
em relação ao deslocamento da modernidade de Deus. Caberia a Hegel
reconhecer as implicações desse deslocamento quando ele percebe que a
própria substância está sujeita, que a substância sofre da mesma
autodivisão do sujeito.
[2]*
Fideísmo. Doutrina teológica que, desprezando a razão, preconiza a
existência de verdades absolutas fundamentadas na revelação e na fé.
Etimologia. Rad. lat. de fides ‘fé’+ –ismo, prov por infl. do fr. fidéisme ‘id.’. [N.T]. Houaiss Eletrônico 3.0, 2009.
[3] A linha que leva do deslocamento de Deus para a execução do monarca apoia a declaração de Albert Camus em “The Rebel” de que Deus, não Luís XVI, é o verdadeiro alvo da guilhotina. CAMUS, Albert. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Record, 2017.
[4]
Talvez a maior diferença entre filósofos liberais e dialéticos se
refira à definição de liberdade. Para os primeiros, a liberdade é
simplesmente a capacidade de fazer o que se quer. Para os últimos,
requer uma ruptura com a ordem substancial que produz o sujeito e seus
desejos. O pensador dialético não acredita que se eu agir exatamente
como a substância social me ordena a agir, isso possa ser chamado de
liberdade.
[5] Na Terceira Meditação,
Descartes concede a Deus os atributos de um Outro que ele, como
sujeito, carece. Isso representa um claro fracasso em aderir ao que diz
Hegel em A Fenomenologia do Espírito sobre devermos apreender a
substância como sujeito. Para Descartes, substância é realmente
substância e, portanto, um Outro substantivo no qual se pode confiar.
Até mesmo a falta de conhecimento de Descartes sobre Deus não é uma
barreira para essa confiança. Ele declara: “Não importa que eu não
compreenda o infinito, ou que haja incontáveis atributos adicionais de
Deus que eu não posso de maneira alguma compreender, e talvez não possa
nem mesmo despertar em meu pensamento; pois é da natureza do infinito
não ser apreendido por um ser finito como eu.” René Descartes, Meditações sobre a Primeira Filosofia, trad. John Cottingham (Cambridge: Cambridge University Press, 1986), 32.
[6] Alenka Zupančič, Ethics of the Real: Kant, Lacan (New York: Verso, 2000), 61.
[7] Immanuel Kant, Critique of Practical Reason, in Practical Philosophy,
ed. and trans. Mary J. Gregor (New York: Cambridge University Press,
1996), 190.A moralidade kantiana não apenas elimina Deus como ponto de
partida, mas inverte a relação entre o bem e a moralidade. O bem não
determina moralidade, mas a lei moral determina o bem.
[8]
Kant entende que o nosso papel na determinação da lei moral nos
constitui como sujeitos livres, e assim inverte a relação típica entre
liberdade e moralidade. Não é a lei moral que depende da nossa
liberdade, mas a nossa liberdade que depende da existência da lei moral.
Como Henry Allison coloca, “a liberdade é real, ou melhor, é
atualizada, conforme o interesse que temos na lei moral. Henry E.
Allison, Kant’s Theory of Freedom (Cambridge: Cambridge
University Press, 1990), 248. Sem a existência da lei moral, a questão
de nossa liberdade simplesmente permaneceria como uma questão em aberto,
como acontece com todos os filósofos que não dão conta da ruptura
radical que a própria existência da lei moral introduz.
[9] Para um argumento mais completo de Kant como o inventor da liberdade moderna, veja Paul Eisenstein and Todd McGowan, Rupture: On the Emergence of the Political (Evanston, IL: Northwestern University Press, 2012).
[10] Ludwig von Mises, Human Action: A Treatise on Economics (New Haven: Yale University Press,1949), 280.
[11] Os defensores do capitalismo, quase sem exceção, enquadram sua defesa em termos do trade-off
entre liberdade e igualdade. Eles sacrificam alguma igualdade em prol
da liberdade total. Mas esse mesmo modo de conceber o problema esconde a
ausência de liberdade no livre mercado.
[12] Von Mises, Human Action, 259.
[13]
Em sua discussão sobre a relação entre capitalismo e crença religiosa,
Kiarina Kordela aponta que a crença que o capitalismo exige é muito mais
opressiva do que formas anteriores de crença, porque é totalmente
inconsciente e irracional, embora exista dentro de um sistema racional.
Ela diz, “o fato epistemológico de que o Outro de uma sociedade secular
não estar logicamente fundamentado não sugere nenhuma liberação do
sujeito a este Outro. Pelo contrário, é uma indicação do caráter não
representável, subliminar e inconsciente da contenção do sujeito dentro
do Outro social. Quando a razão e a representação falham, a crença se
torna crença em algo irracional, não alcançável por meio da razão e,
como tal, absoluta”. A. Kiarina Kordela, “Political Metaphysics: God in
Global Capitalism (the Slave, the Masters, Lacan, and the Surplus),” Political Theory 27, no. 6 (1999): 790.
[14]
Até mesmo o maior herege capitalista, Karl Marx, aceita a premissa
fundamental do sistema capitalista. Marx vê a sociedade comunista como
uma sociedade de produtividade ilimitada, que é uma reformulação do
próprio ideal capitalista e não uma rejeição do mesmo. Embora Marx
rejeite o livre mercado, ele permanece dentro da lógica do capitalismo
no ponto central de sua concepção econômica alternativa. Ele não é
suficientemente herético.
[15] F. A. Hayek, The Road to Serfdom
(Chicago: University of Chicago Press, 2007), 151. Além de desmentir as
convicções de Hayek de absoluta devoção à liberdade, sua declaração tem
a virtude adicional de ilustrar o trabalho pesado que faz a utilidade, a
enorme importância dela para os grandes defensores do capitalismo.
[16]
Hayek escreve: “‘liberdade’ refere-se apenas a uma relação de homens
para outros homens, e a única violação é a coerção por parte dos
homens”. F. A. Hayek, The Constitution of Liberty (Chicago: University of Chicago Press, 2011), 60.
[17] Quando Nietzsche proclama a morte de Deus em A gaia ciência,
ele está simplesmente descrevendo o processo que a modernidade
capitalista desencadeou, não defendendo a descrença em Deus. Nós não
reconhecemos o evento e continuamos distantes dele porque nos movemos
rápido demais em direção à nova manifestação de Deus, o que Nietzsche
consideraria o “Último Homem”, uma autoridade social que se recusa a
declarar sua autoridade.
[18] Baruch Spinoza, The Ethics, trans. Samuel Shirley (Indianapolis: Hackett, 1992), 59.
[19]* Clydesdale
é uma raça de cavalo de tração originária da Escócia. Semelhante ao
cavalo Shire, porém com pernas mais longas, foi criado no sudeste da
Escócia, na metade do século XVIII, especialmente para transportar todo e
qualquer tipo de carga pesada. É um animal ativo e forte, de
temperamento disposto e equilibrado. [N.T., Wikipedia]
[20]** Budweiser Clydesdales é um grupo de cavalos Clydesdale usado para promoções e comerciais pela Anheuser-Busch Brewing Company. Clydesdales variados também são usados como atores animais em comerciais de televisão para a cerveja Budweiser, particularmente em anúncios do Super Bowl. [N.T., Wikipedia].
[21]*
«Os olhos do doutor TJ Eckleburg são azuis e gigantescos – suas retinas
têm um metro de altura. Eles olham sem rosto através de um par de
enormes óculos amarelos que passam por um nariz inexistente.
Evidentemente, algum louco oculista os colocou ali para engordar sua
prática no bairro de Queens, e então se afundou em cegueira eterna, ou
esqueceu-os e se afastou. Mas seus olhos, ofuscados um pouco por muitos
dias sem pintura, sob o sol e a chuva, pairavam sobre o solene lixão.»
Trecho de O grande Gatsby disponível em https://hekint.org/2017/01/27/the-eyes-of-doctor-t-j-eckleburg-and-the-diagnostic-gaze-as-moral-authority-in-the-great-gatsby/. [N.T.]
[22] F. Scott Fitzgerald, The Great Gatsby (New York: Scribner, 2004), 167.
[23]
Não só os anúncios nos oferecem alívio para a liberdade, erigindo uma
nova figura do Outro, mas também, simultaneamente, transformam a
liberdade em escolha. Essa transformação desloca a liberdade do nível
ontológico e a transforma em uma questão empírica sobre determinadas
mercadorias. A questão da liberdade é uma questão, como os
existencialistas como Søren Kierkegaard e Jean-Paul Sartre entendem, do
projeto que define minha existência. Eu sou livre para decidir que
projeto irá me definir, mesmo que forças externas conspirem para limitar
minhas possibilidades de realizar este projeto. Essa liberdade
ontológica representa um fardo pesado para o sujeito, porque nenhum
Outro pode definir meu projeto para mim. O capitalismo fornece um Outro
que poderia fazê-lo e desvia o terreno dessa liberdade para o da escolha
empírica. O sujeito capitalista não precisa enfrentar a questão de qual
projeto definirá sua existência. Em vez disso, deve decidir qual marca
de remédio para tosse comprar. Qualquer pessoa que tenha tentado comprar
remédios para tosse saberá que essa decisão é tão irritante quanto a do
projeto existencial, mas a pessoa tem o apoio do Outro ao fazer isso,
um suporte que não existe para o projeto existencial da pessoa.
[24] David Wilson and William Dixon, “Das Adam Smith Problem: A Critical Realist Perspective”, Journal of Critical Realism 5, no. 2 (2006): 251.
[25] Adam Smith, The Theory of Moral Sentiments (New York: Penguin, 2009), 13.
[26] Samuel Fleischacker, On Adam Smith’s “Wealth of Nations”: A Philosophical Companion (Princeton: Princeton University Press, 2004), 57.
[27]
Embora Smith não pudesse ler Kant, o inverso não é verdadeiro. Kant
estava familiarizado e apreciava a filosofia moral de Smith, embora a
ênfase de Kant na lei moral se afaste significativamente da confiança de
Smith no sentimento. A moralidade kantiana é completamente não
sentimental, e é por isso que foi possível surgir a questão de Adolf
Eichmann como uma figura representativa do dever moral kantiano. É claro
que Eichmann falha diante dos padrões da moralidade da compaixão de
Smith, mas essa falha é menos clara (embora em última análise seja o
caso) a partir de uma perspectiva moral kantiana.
[28] Em A filosofia da história,
Hegel afirma: “Isso pode ser chamado de astúcia da razão – o que põe as
paixões para trabalhar por si mesmas, enquanto aquilo que desenvolve
sua existência através de tal impulso paga a penalidade, e sofre perda.”
G. W. F. Hegel, The Philosophy of History, trans. J. Sibree
(New York: Dover, 1956), 33. Para Smith, a busca pela riqueza cria
sofrimento, em vez de alegria, para aqueles que estão envolvidos nela,
mas essa atividade acaba suprindo as necessidades materiais da
sociedade. Smith argumenta que é o particular que “paga a penalidade” em
prol do interesse geral, o que o coloca em desacordo com a ênfase do
capitalismo no indivíduo.
[29] Smith, The Theory of Moral Sentiments, 215.
[30] Adam Smith, An Inquiry Into the Nature and Causes of the Wealth of Nations (Hamburg: Management Laboratory Press, 2008), 345.
[31] No apêndice de O reino e a glória,
Giorgio Agamben aponta a “origem bíblica” indubitável da metáfora da
mão invisível de Smith. Ele então observa como a modernidade capitalista
permanece dentro das restrições de uma autoridade divina. Agamben
escreve: “quando a modernidade abole o polo divino, a economia que é
derivada dele não terá se emancipado de seu paradigma providencial”.
Giorgio Agamben, The Kingdom and the Glory, trans Lorenzo Chiesa (Stanford: Stanford University Press, 2011), 285.
[32] Em uma passagem reveladora do Seminário VI, afirma Lacan, “o desejo do neurótico, devo dizer, é aquele que nasce quando não há Deus”. Jacques Lacan, Le Séminaire, livre VI: Le désir et son interprétation,
1958 –1959, ed. Jacques-Alain Miller (Paris: Martinière, 2013), 541.
Lacan identifica o surgimento da neurose com a morte de Deus porque a
neurose depende de um investimento psíquico na existência de um Outro
que evidentemente não existe. Antes da morte de Deus, o Outro realmente
parecia existir, o que afastava a possibilidade de neurose. É por isso
que a psicanálise só se formou após o desenvolvimento do capitalismo e
sua instalação de uma nova forma do Outro.
[33] Karen Horney, The Neurotic Personality of Our Time (New York: Norton, 1937), 188.
[34]
A ideia de um Outro desconhecido torna-se pensável pela primeira vez na
época capitalista, mas isso proporciona a possibilidade de repensar o
próprio conceito de Deus nesses termos. Em vez de um Deus onisciente,
devemos postular um Deus desconhecedor. Esta é a concepção de Deus
desenvolvida por Richard Boothby (Loyola University, Maryland). De
acordo com Boothby, é apenas por reconceber Deus como ignorante, e não
por rejeitar totalmente a hipótese de Deus, que podemos ver a
possibilidade da liberdade humana. Boothby faz isso através de uma
interpretação surpreendente da filosofia de Hegel, onde ele identifica a
primeira formulação filosófica da figura do Deus desconhecido. Veja
Richard Boothby, “Hegel with Lacan: On the Other in Question,” não
publicado.
[35]
Jacques Lacan, Le Séminaire XII: Problèmes cruciaux pour la
psychanalyse, 1964–1965, unpublished seminar, session of June 16, 1965.
in LavraPalavra.com
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