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sábado, 8 de junho de 2019

Claro, conciso e rigoroso

Marx e a ciência política

Toda a ciência social digna de seu nome toma por base alguma concepção materialista da história e, assim, é tributária do pensamento de Marx.


Por Luis Felipe Miguel.

A obra de Karl Marx deixou sua marca em uma grande quantidade de campos do saber. Ele foi um filósofo, mas se tornou um economista. É um dos pais fundadores da sociologia. No caminho, revolucionou a ciência da história. O marxismo – um rótulo que não o agradava – evoluiu na forma de uma quase infinidade de correntes e leituras divergentes, contribuindo de diferentes maneiras para essas e outras disciplinas científicas (direito, antropologia, geografia, linguística). E não são apenas os marxistas que se alimentam das ideias de Marx. Elas assentaram muitas das bases do fazer científico nas humanidades. Thomas Kuhn dizia que as chamadas “ciências sociais” permanecem no estágio pré-científico, uma vez que nelas não vigora qualquer paradigma que seja compartilhado por todos os praticantes; a cada vez, temos que justificar nossas escolhas teóricas de fundo. Sem discutir aqui os limites da compreensão de Kuhn sobre o trabalho científico, é conveniente anotar que tal cizânia se liga às implicações políticas mais imediatas da ciência social, que sofre, assim, uma pressão maior para cumprir um papel de legitimação ideológica. Mas se pode dizer, sem medo de errar e contra o próprio Kuhn, que toda a ciência social digna de seu nome toma por base alguma concepção materialista da história e, assim, é tributária do pensamento de Marx.

A ciência política diante do marxismo

Delineado esse quadro, qual é a posição da ciência política? Trata-se certamente da disciplina das humanidades em que a penetração das ideias marxistas foi (e ainda é) mais difícil, por motivos que se ligam à sua própria formação. A ciência política nasceu nos Estados Unidos e se expandiu pelo mundo reproduzindo essa matriz. Desde o começo, privilegiou um foco estrito nas instituições formais, desconectadas do ambiente social em que se encontram. Foi marcada também por um apreço desmedido por modelos formais e extraiu-os em geral da economia neoclássica. Muitos de seus modelos mais influentes retiram dos agentes seu caráter de produtos históricos e patrocinam o fetichismo da empiria. Como resultado, em grande parte da ciência política sobrevive uma epistemologia ingênua, marcada pelo positivismo, o que explica o destaque de percepções bizarras, como a “teoria da escolha racional”, que projeta agentes políticos num vácuo histórico e social. Nesse registro, as abordagens comprometidas com a transformação do mundo são descartadas como “parciais”, mas são admitidas como “neutras” aquelas que aceitam o mundo tal como está e projetam sua permanência inconteste. Nada mais longe da tradição inaugurada por Marx.
Outro traço de origem da ciência política é seu caráter de disciplina auxiliar do Estado, voltada a ampliar a eficiência dos mecanismos de dominação. Como muitos de seus modelos têm caráter anistórico, as estruturas vigentes podem ser tomadas como simples “dados” e a pretensa neutralidade axiológica mascara o caráter conservador de sua análise. A ciência política passa longe, portanto, do caráter emancipatório que Marx quis dar à sua própria construção teórica. Quando Antonio Gramsci, nos Cadernos do cárcere, condenou a sociologia como uma ciência positivista burguesa e louvou a ciência política como verdadeiro caminho para a compreensão do mundo social, ele estava falando de uma fase anterior do pensamento sociológico. E também de uma ciência política completamente diferente; ele usa a expressão para designar a tradição de compreensão realista dos processos de poder, inaugurada por Maquiavel, não de uma nascente disciplina estadunidense. Na ciência política disciplinar, a abordagem crítica e antipositivista permanece na contracorrente.
As tradições de que a ciência política é herdeira a tornaram pouco receptiva às contribuições do marxismo. Mas há uma leitura alternativa que também merece consideração, segundo a qual foi o próprio marxismo que demonstrou pouca atenção pela política. Um texto provocativo de Norberto Bobbio respondia negativamente à questão que lhe servia de título: “Existe uma doutrina marxista do Estado?” A visão de que a política é apenas uma parte da “superestrutura” que reflete uma determinada base social, ou seja, de que não passa de um epifenômeno de conflitos mais profundos, teria levado a um subdesenvolvimento do pensamento marxista neste campo. Soma-se a isso a tendência, presente em boa parte do marxismo (sobretudo, mas não só, até as últimas décadas do século XX), de insulamento teórico, impedindo sua fecundação por outras correntes – no texto, Bobbio ironiza Umberto Cerroni, que, em livro de 1968, qualificou Wright Mills como “grande sociólogo” e concedeu a Max Weber o estatuto modesto de “observador atento. Sendo assim, a reflexão dos marxistas sobre o Estado e sobre a política em geral acaba condenada a, muitas vezes, simplesmente redescobrir o que muitos outros já haviam dito antes.
A leitura de Bobbio foi contestada por autores marxistas, que a apontaram como enviesada e seletiva. Mas não é possível negar que as obras fundadoras do marxismo concedem à política um papel limitado e, de fato, nela veem sobretudo o reflexo de estruturas mais profundas. Há um contraste entre a sensibilidade para a especificidade do político, presente nas obras em que Marx discute processos históricos concretos, e a teorização insuficiente quando ele trabalha em maior nível de abstração. Embora se possam indicar autores que, de dentro do marxismo da primeira metade do século XX, apresentaram uma discussão mais robusta sobre a política (como é o caso, por caminhos diversos, seja de Lênin, seja de Rosa Luxemburgo, seja de Eduard Bernstein), é no pós-guerras, com a divulgação da obra de Gramsci, que há um salto significativo na reflexão marxista sobre a política.

As contribuições do instrumental marxiano

A despeito de todas essas ressalvas, é possível e necessário destacar a utilidade do pensamento marxiano, ou do pensamento fecundado pela tradição marxista, para a produção de uma ciência política que seja mais capaz de entender o mundo social – e, quiçá, também de orientar a ação nele. Estou, portanto, alinhado à posição de Gramsci: trata-se de buscar uma disciplina que reflita mais sua inspiração primitiva, na obra de Maquiavel, e menos sua institucionalização, a partir dos últimos anos do século XIX, no ambiente acadêmico estadunidense. O caminho que proponho não é apenas encarar o “marxismo como ciência social”, para evocar o título do belo livro de Adriano Codato e Renato Perissinotto, o que sugere algo como sua normalização e incorporação nas vertentes teórico-metodológicas dominantes, mas de mantê-lo como tensionador da disciplina. O acréscimo fornecido pelo marxismo, assim como por outras correntes com projeto emancipatório (feminismo, estudos decoloniais), é o de uma teoria focada nos padrões vigentes de dominação que tem como horizonte a produção de uma sociedade nova. Um marxismo mutilado da décima-primeira tese sobre Feuerbach – aquela que diz que a questão não é interpretar o mundo, mas transformá-lo – perde seu diferencial.
Há muito no instrumental teórico e conceitual do marxismo que pode – e deve – ser apropriado pela ciência política, se ela deseja construir um entendimento mais aprofundado de seu objeto. Há as questões de método e é possível indicar também muitos outros elementos: a centralidade das classes sociais para o deciframento do conflito político; o entendimento do Estado como vinculado às disputas na sociedade; o conturbado conceito de “ideologia” e a atenção concedida aos circuitos socialmente estruturados de produção das preferências; a busca por padrões mais exigentes, atentos às formas de dominação e opressão incrustadas no cotidiano, de justiça e de liberdade. Mas creio que a primeira contribuição essencial do marxismo remete à compreensão do que é a própria política.
“Política” é um conceito complexo, sobre o qual o único consenso existente é que deve incluir, de alguma maneira, a ideia de disputa pelo poder. Se o conceito é reduzido ao mínimo, a política se torna desprovida de especificidade e coextensiva a todo o social, pois se sabe que as relações de poder perpassam toda a teia de relações humanas. No caminho inverso, a maior parte da ciência política busca estreitar a abrangência do conceito, limitando-o às dimensões estritas da política institucional (partidos, governos, parlamentos, eleições; também a diplomacia, como política externa). Com isso, porém, não apreende os conflitos relativos à politização de fenômenos sociais que escapam da política institucional ou do campo político propriamente dito. Não é capaz, portanto, de analisar fenômenos da dominação social que passam pelo impedimento à expressão de determinadas reivindicações ou reclamos nas arenas aceitas como políticas.
É mais frutífero compreender a política como um conjunto de práticas sociais, historicamente determinadas, cuja abrangência é fruto também das lutas sociais. Dito de outra maneira, ela é o processo pelo qual se obtém acesso ao exercício do poder e, por meio dele, à organização da vida coletiva numa determinada sociedade. O essencial é defini-la como “processo”, não como um espaço social predefinido. Com isso, entende-se que seus limites não são fixos e que inserir – ou não – um campo de questões no âmbito da política já é a primeira grande disputa política. O insulamento da política nas suas manifestações institucionais hoje reconhecidas, tal como produzido pela maior parte da ciência política, é uma forma de reificação de um processo histórico, que o despe de sua dinâmica e reduz nossa capacidade de interpretá-lo.
Todo o método científico de Marx se funda na compreensão de que qualquer fenômeno humano é dotado de sentido apenas à luz de seu percurso histórico e das relações sociais em que se introduz. São estas relações que produzem sua especificidade e o destacam de uma universalidade que também pode ser apreendida pelo pensamento – mas que, abandonada a si mesma, pouco nos diz sobre o mundo. Discutindo, nos Grundrisse, o conceito de “capital”, em oposição aos economistas burgueses que fazem dele uma permanência transistórica, ele observa que “as determinações que valem para a produção em geral têm de ser corretamente isoladas de maneira que, além da unidade – decorrente do fato de que o sujeito, a humanidade, e o objeto, a natureza, são os mesmos –, não seja esquecida a diferença essencial”. Se a produção humana da riqueza depende de um instrumento e de trabalho acumulado, mesmo que eles estejam apenas na “destreza acumulada na mão do selvagem pelo exercício repetido”, então sempre há capital. Entretanto, essa conclusão pelos economistas burgueses deixa de fora “justamente o específico, o que faz do ‘instrumento de produção’, do ‘trabalho acumulado’, capital”. Ou seja: o capital como abstração é condição para o trabalho humano. O capital como relação social que submete o trabalho nasce em determinadas circunstâncias históricas. É essa segunda percepção, muito mais do que a primeira, é que abre caminho para a compreensão da sociedade capitalista.
O mesmo pode ser dito, mutatis mutandis, para a política. Resumida à ideia de que mulheres e homens devem encontrar maneiras de organizar sua vida coletiva, ela é uma prática presente em qualquer sociedade humana. Mas a feição concreta dessa política muda, ao ponto de que sobra bem pouco em comum entre a política de uma sociedade de caçadores-coletores e a de um Estado-nação moderno. Em particular, a determinação histórica das práticas políticas implica uma definição do que é sua matéria, isto é, do que pode e deve estar submetido aos processos que aquela sociedade reconhece como políticos. A fórmula retórica “tudo é política”, com que às vezes se tenta sacudir o marasmo e apontar o significado das mais diferentes práticas sociais para a reprodução da ordem de dominação vigente, acaba por ignorar o esforço de circunscrição da política a determinado espaço, que é parte integrante desta mesma ordem de dominação: mesmo que “tudo” seja política, nem tudo conta como política numa determinada sociedade.
A ordem vigente de dominação, no entanto, é desafiada por movimentos que nascem no próprio tecido social; é nesse sentido que a definição do que é política consiste na disputa política elementar. Pelo menos grandes três ondas de ampliação das fronteiras da política ocorreram nos últimos dois séculos. O movimento operário politizou as relações de trabalho, que a burguesia desejava manter na condição de contratos privados entre empregados e patrões. O movimento feminista politizou a esfera doméstica, percebida tradicionalmente como respondendo a uma ordem natural e, portanto, inquestionável. O movimento ambientalista politizou a relação da humanidade com o meio natural que a cerca. Esses processos de politização são, em si mesmos, batalhas políticas essenciais, em que se defrontam projetos emancipatórios e seus adversários.
A última frase está no presente porque nenhuma destas batalhas pode ser considerada ganha, nem na sociedade, nem na teoria. A compreensão de que as relações de trabalho, a família e a exploração da natureza são questões políticas continua a ter que ser sustentada todos os dias. Contra ela opera um discurso de senso comum, que reduz a política aos espaços institucionais e que é refletido e reforçado pelo jornalismo, que setoriza as ações no mundo segundo sua lógica produtiva e reserva o noticiário político aos poderes constitucionais e aos partidos, relegando o conflito entre capital e trabalho às páginas de economia, as lutas pelos direitos de mulheres aos cadernos de “cotidiano” e o ambientalismo a umas ou outros, conforme o caso. A maior parte da ciência política, com seu institucionalismo estreito, funciona no mesmo diapasão.

Política e economia: para além da compartimentação e do determinismo

Há um reforço permanente da separação entre a política e a economia; somos levados a crer que se tratam de duas esferas naturalmente diversas, cujas fronteiras são apenas identificadas, não produzidas por nosso sistema de pensamento. Os discursos dominantes observam que a política não deve atrapalhar a economia. Mesmo em muito da tradição marxista se aceita, sem maior preocupação, a distinção entre luta econômica e luta política.
Mas Marx já indicava que há sempre um caráter político nas relações econômicas, não apenas porque a relação entre proprietários e trabalhadores é uma relação de autoridade, mas porque a subordinação se manifesta na própria operação da indústria capitalista, na qual o operário passa a ser “peça de uma máquina”. As reivindicações trabalhistas mais chãs, aceitas em geral como sendo apenas econômicas, como aquelas por melhoria no salário ou nas condições de trabalho, implicam uma contestação política, pondo em cheque a ideologia do contrato (que legitima o poder do patrão sobre o empregado) e também o direito do proprietário à extração de mais-valor e ao controle sobre o processo de produção, conforme certa vez observou André Gorz.
A separação entre economia e política é entendida melhor como sendo fruto de um trabalho ideológico primário, cujo resultado principal é fazer com que os problemas da exploração e da dominação deixem de ser entendidos como políticos e se tornem “econômicos”. Como demonstrou Ellen Meiksins Wood, essa divisão, da maneira como é aceita hoje, nasce com o próprio capitalismo. Nos modos de produção anteriores, as funções sociais vinculadas à produção, extração de mais-valor e apropriações e as funções vinculadas à repressão política costumavam ser exercidas pelos mesmos agentes, o que sublinhava sua indissociabilidade. O senhor feudal, por exemplo, era responsável por ambas. O capitalismo gera esferas diferenciadas ao alocar as funções “econômicas” aos proprietários privados e as funções “políticas” ao Estado. Com isso, despolitiza disputas essenciais, vinculadas à exploração e à dominação, que são relegadas à economia. Em síntese, diz ela, o que o capitalismo produz é uma diferenciação de tipos de atividades políticas, alocadas separadamente na esfera econômica privada e na esfera pública do Estado.
Essa separação é fundamental para perpetuar o império do capital, na medida em que a regulação promovida pelo mercado fica imune ao controle político. É o estratagema que permite driblar a tensão que é congenial ao casamento conflituoso entre capitalismo e democracia. A ordem democrática é baseada num credo igualitário, pelo qual a vontade expressa de cada cidadã ou cidadão deve pesar tanto quanto a de qualquer outro. Já no mercado capitalista a influência é determinada pela posse desigual dos recursos. Como escreveu Adam Przeworski, “só por mágica os dois mecanismos podem levar ao mesmo resultado”. A fixação da economia como um mundo à parte permite restringir o âmbito da democracia. Graças a isso, sociedades que aceitamos como democráticas convivem com hierarquias altamente autoritárias no âmbito das relações de produção (ou da esfera doméstica).
O pensamento de Marx busca, ao contrário, indicar a interrelação profunda entre as diferentes esferas da ação no mundo social. A formulação “canônica” aparece no célebre prefácio à Contribuição à crítica da economia política, de uma maneira, porém, que talvez tenha causado mais dano do que benefício. Lá está escrito que
“na produção social da própria existência, os homens [usado no sentido de “a humanidade”] entram em relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade; essas relações de produção que correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual.” (As armas da crítica, p. 106)
A metáfora base-superestrutura indica de forma gráfica o que Marx quer dizer, isto é, o impacto da organização das relações de produção em todos os aspectos da vida social, mas também cobra um preço. Ela encaminha para uma compreensão muito unidirecional e mesmo mecânica das influências entre as diferentes esferas do mundo humano. Marx fala em termos de correspondências e condicionantes. A um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas correspondem certas relações de produção; a elas corresponde uma superestrutura jurídica e política, à qual corresponde por sua vez uma forma de consciência; o modo de produção condiciona o desenvolvimento de toda a vida social. É possível ler condicionantes e correspondências de uma maneira mais lassa, indicando sobretudo limites ou tendências. Mas é mais corrente interpretá-los de forma determinista, como se um estado levasse de forma obrigatória a outro. Assim, em última análise, do estágio de desenvolvimento das forças produtivas materiais nós poderíamos derivar, de forma inexorável, um conjunto de relações de produção, as quais, por sua vez, estabelecem também de maneira inelutável uma dada superestrutura.
É o tipo de leitura que faz com que Marx seja entendido – e não só por antimarxistas – como sendo um “determinista econômico”. Trechos dele próprio ajudam a sustentar essa posição. Por exemplo: ele está certamente correto quando escreve, em A miséria da filosofia, que ao adquirir novas forças produtivas, a humanidade acaba por alterar a maneira de ganhar a vida e, com isso, também todas as relações sociais. Mas arremata dizendo que “o moinho movido pelo braço humano nos dá a sociedade com o suserano; o moinho a vapor dá-nos a sociedade com o capitalista industrial” (p. 102). A sugestão de que há uma causalidade mecânica é inegável.
Essa não é a melhor maneira de interpretar a visão marxiana de fundo em relação à sociedade e à história. É necessário, em primeiro lugar, situá-la diante das interpretações então dominantes sobre o processo histórico. Na segunda metade do século XIX, grassavam, por exemplo, visões baseadas no britânico Thomas Carlyle, para quem “a história do mundo é apenas a biografia de grandes homens”. Para Marx trata-se, ao contrário, de inserir as ações individuais nas linhas de força dos grandes conflitos coletivos e das estruturas sociais. Mais importante ainda para a compreensão de sua obra, a filosofia de Hegel via a história como sendo o progresso da Razão, cujo núcleo dinâmico estava, portanto, no âmbito da consciência e das ideias. Marx chegou a descrever sua ambição intelectual como sendo colocar o hegelianismo com os pés no chão, Nele, a dialética “se encontra de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la, a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico”. Essa inversão é o materialismo histórico, que não nega o papel do pensamento no mundo, mas compreende que sua verdade depende de seu “caráter terreno”, da práxis que ele é capaz de engendrar.
Não se trata, portanto, de julgar que o mundo social deriva de forma mecânica das relações econômicas e que todo o resto – cultura, instituições, política – é epifenômeno da economia. Trata-se de entender que o mundo material condiciona a possibilidade e a efetividade do pensamento e que, justamente por ser assim, as disputas relativas à organização desse mundo material são as disputas centrais na sociedade. Essa compreensão mais sofisticada permite um entendimento mais preciso do mundo social, mas exige também maior esforço de operacionalização do que o mero determinismo econômico.
Muitos autores, partindo de Marx, buscaram estabelecer modelos capazes de apreender, de forma simultânea, as múltiplas determinações cruzadas entre as diferentes esferas da prática humana e a primazia da estrutura material na explicação histórica. Por exemplo, Louis Althusser apontava um padrão complexo de sobredeterminação entre as diferentes práticas humanas, incidindo umas sobre as outras, com a economia sendo “determinante em última instância”. Isto é, a economia é determinante a longo prazo e, concretamente, define que esfera da sociedade concentrará a tarefa de reprodução da ordem estabelecida. Na Idade Média, marcada pela naturalização de uma ordem que se assume como hierárquica, este papel cabia à religião. No capitalismo, em que a desigualdade é apresentada como fruto das trocas mercantis livres e voluntárias, a economia determina que ela própria é a instância dominante, para o que, aliás, contribui de forma central a própria separação entre economia e política, como visto antes.
Não invoquei Althusser para endossar sua teoria, mas para apontar como o materialismo histórico não significa determinismo econômico, nem indiferença a outras motivações para a ação humana. Significa, isso sim, que a atenção às circunstâncias materiais é importante para a explicação de qualquer movimento na sociedade humana, mesmo aqueles que parecem à primeira vista guardar pouca relação com elas. Uma mudança na doutrina católica – a invenção do purgatório – é melhor entendida quando conectada à emergência, na Baixa Idade Média, de uma camada urbana com recursos suficientes para comprar da Igreja a celebração de missas em prol de almas que permaneciam a meio do caminho entre o céu e o inferno. A revolução impressionista nas artes plásticas dependeu da disseminação da pintura ao ar livre, que gera quadros de menor dimensão, apropriados ao novo público consumidor burguês, ao passo que antes a produção voltada à nobreza e à Igreja privilegiava obras murais ou em grandes formatos. Os paradigmas estéticos que exaltam maior gordura corporal estão associados a sociedades com baixa oferta de calorias. E assim por diante. Não é determinismo: o surgimento das camadas médias urbanas na Europa medieval não engendra o purgatório, nem a ascensão da burguesia exige a pintura de cavalete. Mas as condições de êxito de inovações se ligam à situação material.

Por uma ciência política aberta às contribuições do marxismo

Se é assim para a teologia, a arte ou os padrões de beleza, certamente também é para a política. Aquilo que é aceito em geral como sendo os conflitos políticos correntes, que estão nas páginas de política dos jornais, que ocupam os “comentaristas políticos”, consiste nas brigas partidárias, nas lutas pelos cargos no Estado, nos esforços para a obtenção de maiorias eleitorais. São homens e mulheres – dada a estrutura sexista da sociedade, em geral mais homens do que mulheres – competindo pelo poder. É a “pequena política”, definida por Gramsci como compreendendo “as questões parciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já estabelecida em decorrência de lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma classe política”. Ou seja, a pequena política põe em disputa a ocupação das posições de direção dentro de uma determinada ordem de dominação, mas não a própria ordem. “Portanto”, prossegue o revolucionário sardo, “é grande política tentar excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo a pequena política”. Ao participar do fechamento de seu foco às questões da pequena política, elegendo como preocupação central os processos institucionalizados de disputa pelos cargos de comando do Estado, a ciência política corrobora o trabalho de naturalização da ordem de dominação vigente e de estreitamente das potencialidades emancipatórias da ação política.
Assim, a compreensão aprofundada da política exige tanto superar a marola das disputas do momento, conectando-as com os conflitos sociais mais profundos, quanto entender sua relação com os interesses materiais – a divisão do trabalho, o controle da riqueza, a distribuição dos frutos da cooperação social, o acesso aos diferentes espaços sociais. Foi o que o próprio Marx procurou fazer em seus escritos de conjuntura, como O 18 de brumário de Luís Bonaparte. A complexidade dessas obras mostra como não é um programa fácil de ser seguido, demandando uma grande clareza teórica em relação às contradições sociais fundamentais e, ao mesmo tempo, um olhar aguçado para as personagens do drama e as tramas em desenvolvimento.
A perspectiva marxiana, que ancora a disputa política nos conflitos sociais de base, serve de antídoto para as visões predominantes, que não veem mais do que a competição superficial, e também para as interpretações idealistas, que julgam que é possível transcender os interesses e fazer da política um exercício de uso puro da razão. Serve também para enfatizar que os conflitos não podem ser compreendidos sem relação com sua base material, ao contrário das vertentes que dão primazia absoluta ao simbólico, como as leituras conservadoras do “pós-materialismo” e aquelas, que se apresentam como mais progressistas, da “teoria do reconhecimento”. A aceitação da prioridade do reconhecimento tornou-se tão disseminada e influente que mesmo no interior do marxismo mais ortodoxo há quem entenda que o caminho não é questioná-la mas, ao contrário, atribuí-la pioneiramente ao próprio Marx – como fez, por exemplo, Domenico Losurdo.
A dimensão do reconhecimento permite apreender um aspecto da complexidade das motivações para o engajamento político, mas, tornada a explicação universal, é no mínimo tão limitada quanto o reducionismo econômico. Como enquadramento teórico geral, ainda é superior leitura do materialismo histórico que o vê não como determinação econômica, mas como sobredeterminação das diferentes práticas sociais. Ela permite entender que o que está em jogo, em última análise, é a maneira pelo qual mulheres e homens reproduzem a vida. Com isso, simultaneamente recusa a autonomia da política, que não é compreensível quando desconectada das relações e conflitos sociais mais amplos, e preserva a efetividade do momento político, que seria comprometida caso se aceitasse que as instituições e a cultura eram simplesmente derivadas do estágio de desenvolvimento das relações de produção.
Embora subteorizada pelo próprio Marx, essa efetividade transparece em seus escritos históricos e é desenvolvida pelos grandes pensadores marxistas da política, como Lênin, Gramsci, Althusser ou Poulantzas. A política é percebida como a prática que expressa as contradições presentes na sociedade e a arena em que se encontram as soluções, sempre provisórias, para elas. A fórmula gramsciana sintetiza com clareza: o “político em ato é um criador, um suscitador, mas não cria a partir do nada nem se move na vazia agitação de seus desejos e sonhos. Toma como base a realidade efetiva”. Trata-se de mais do que a frase surrada, atribuída a Bismarck, de que “a política é a arte do possível”, pois entende que a ação política incide também sobre o universo das possibilidades em aberto. Por isso – e essa é uma lição que Gramsci extrai de Maquiavel – a análise realista do mundo social não pode ser desatenta aos elementos, presentes na própria realidade, que a empurram para além de sua configuração atual. A ciência política, com frequência presa de uma miopia profunda, que a leva a trabalhar com o momento presente como se estive congelado, tem muito a ganhar com esse entendimento.
Trata-se de alcançar não uma “ciência política marxista”, que afirme uma filiação doutrinária a priori, mas uma ciência política aberta às contribuições do marxismo, seja em suas ferramentas analíticas, seja nos problemas que discute.
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Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. Autor, entre outros, de Democracia e representação: territórias em disputa (Editora Unesp, 2014), e, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). É um dos autores do livro de intervenção Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. Seu livro mais recente é Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às sextas.

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