Político,
programador de espetáculos, autor, jornalista, historiador, produtor
musical, intelectual, comissário de muitas exposições, musicólogo, … São
tantas as facetas do histórico dirigente do PCP Ruben de Carvalho,
falecido nesta terça-feira. Até ao fim da vida esteve sempre ao lado da
direção do partido. Nisso, foi um ortodoxo. Mas com a sua vasta e sólida
cultura (como por exemplo a musical, em especial no jazz e no blues, ou
o amor ao fado) transportou para a vida política uma visão das coisas e
do mundo que ultrapassa em muito as habituais fronteiras do universo
comunista. Nisso, foi um heterodoxo, um ‘globetrotter’ das ideias
Texto Paulo Paixão
Há
cerca de uma década, uma jovem estudante do antigo Liceu Camões, em
Lisboa, precisava de fazer um trabalho escolar. Tinha de falar com
alguém que tivesse vivido antes do 25 de abril de 1974. Inês, com 15
anos, aproveitou uma sessão pública da Câmara de Lisboa (na qual os
munícipes têm acesso aos membros do Executivo) para chegar à fala com
Ruben de Carvalho, então vereador da CDU. O dirigente comunista recebeu a
jovem e ouviu as suas razões. Depois, para que a estudante pudesse
descobrir e consultar outras fontes, convidou-a a ir a sua casa. Lá,
numa enorme cave na Amadora, Inês viu-se de repente rodeada de revistas,
livros e discos (do vinil ao CD), prateleiras sem fim que forravam
todas as paredes.
Nos anos seguintes, Ruben de
Carvalho ligava a Inês, para saber como iam os estudos. E dava à jovem
recomendações de leitura (sem qualquer intuito de catequese política,
diga-se). Os episódios – relatados agora com emoção pela mãe de Inês,
que realça a “generosidade” de um “homem bom” – são uma excelente porta
de entrada para o percurso de vida, a militância cívica e política, o
empenhamento cultural e a personalidade do histórico militante e
dirigente do PCP, falecido na madrugada desta terça-feira, com 74 anos.
Quando
foi derrubada a ditadura, já Ruben de Carvalho passara seis vezes pelas
prisões fascistas. Agora, na data da sua morte, era o único membro do
Comité Central (CC) do PCP que havia conhecido os calabouços da PIDE.
Foi em 1961, 1962, 1963, 1964, 1965/66 e, por fim, em 1974, poucos dias
antes da Revolução. Numa das vezes, com a “tortura do sono”, as
condições foram particularmente duras. “Cheguei a estar seis meses em
Caxias isolado. Preso sozinho, numa cela, sem falar com ninguém, sem
jornais, sem livros rigorosamente sozinho”, contou numa entrevista ao
“Observador”, a 3 de setembro de 2016, dada a Miguel Santos Carrapatoso.
Entre
a quinta e a sexta prisões, o já então então jornalista (em 1963
começara a trabalhar no diário “O Século”) esteve cinco anos na guerra
colonial, em Angola. Regressou à metrópole quando uma mina de fabrico
soviético lhe despedaçou uma perna.
Ruben
de Carvalho aderiu ao PCP em 1970. Antes, já tinha um exemplar cadastro
de resistente antifascista (que lhe deu as primeiras prisões), forjado
nas lutas associativa e estudantis. Mas antes disso ainda, os primeiros
ensinamentos políticos vieram quase do berço. A mãe, professora
primária, era do PCP; e no pai, médico, os mesmos ideais andavam lá
perto. Vultos grandes do neorrealismo eram visita assídua da família – e
com eles o filho único do casal desde muito cedo privou.
Em
1979, quando já era chefe de redação do "Avante!" (o jornal oficial do
PCP), Ruben de Carvalho subiu ao Comité Central. A sua morte significa
um corte na História. Pela primeira vez, deixa de haver no CC alguém que
conheceu as prisões da ditadura.
Programador musical
Na
cave do prédio da Amadora, bem junto às portas de Benfica, onde Inês se
terá perdido a observar as estantes a abarrotar de milhares de livros e
de discos, está um espólio que espelha bem a vida de Ruben de Carvalho.
Desde
a primeira edição da Festa do Avante, em 1976 (na antiga FIL, em
Lisboa), ele foi o principal organizador da grande romaria habitual dos
comunistas portugueses. Como programador musical, Ruben foi o
responsável por trazer a Portugal grupos que de outra forma nunca cá
teriam vindo. E isso aconteceu num tempo, difícil de entender para as
novas gerações, em que não havia festivais de verão. Nessas alturas, sem
barreiras ideológicas pelo meio e muitas vezes com o programa das
festas a transpor o que alguns julgariam ser as baias do fechamento do
PCP, a Festa do Avante foi um verdadeiro oásis no panorama musical e
artístico português.
A par da organização da Festa,
Ruben de Carvalho deixou outra marca impressiva na música portuguesa.
Num tempo em que o fado ainda era associado à direita e aos sectores
mais conservadores da sociedade, ele foi uma das personalidades que à
esquerda combateu e desmistificou essa ideia. Com outros, esteve na
génese do movimento que culminaria na elevação do Fado a Património da
Humanidade.
Ruben era um homem de gostos musicais
muito ecléticos. Para lá do papel de programador da Festa do Avante,
onde fez representar obras eruditas em grandes palcos talhados para
artistas pop, foi produtor de vários discos e espetáculos, como o “Pete
Seeger em Lisboa”. Profundo conhecedor da cultura e da música
norte-americanas, em especial do jazz e do blues, estendia esse domínio a
melodias de outras latitudes.
Repositório do
imenso saber musical de Ruben de Carvalho, e da descodificação dessas
várias expressões artísticas nos diferentes contextos histórico,
políticos e sociais onde emergiram, é o programa “Crónicas da Idade
Mídia”, realizado já nesta década, na Antena 1, em que o jornalista
dividia a apresentação com Iolanda Ferreira.
Já
nesta terça-feira, a Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) considerou
Ruben de Carvalho "um dos mais influentes musicólogos portugueses, com
uma carreira e um grau de influência que muitos autores reconheceram ao
longo de décadas".
No início da década de 90, com o
primeiro acordo de expressão nacional entre PS e PCP, que levou Jorge
Sampaio à presidência da Câmara de Lisboa, Ruben de Carvalho andou na
órbita da autarquia. Aí desempenhou papel importante na Lisboa 94,
Capital Europeia da Cultura. Na sequência desse trabalho, desenvolveria
várias atividades de comissariado, em festivais musicais ou nas festas
da cidade.
Finalmente, o palco da política
Foi
em meados da década de 90 do século passado que Ruben de Carvalho
entrou na primeira linha da cena política. Foi eleito deputado pelo
círculo de Setúbal. Em 1997, torna-se vereador na mesma cidade. A
chegada à Câmara de Lisboa dá-se em 2005, ainda governava a direita. A
queda de Carmona Rodrigues levou a eleições intercalares, em 2007,
ganhas por António Costa, novamente com Ruben na vereação, onde se
manteve até 2013.
Nos
últimos anos, já sem intervenção político-partidária no espaço público
(manteve-se apenas no Comité Central do PCP), Ruben de Carvalho manteve
em coautoria dois programas de rádio, na Antena 1. O já referido
"Crónicas da Idade Mídia" e o mais recente "Radicais Livres", em que
debate a atualidade internacional com Jaime Nogueira Pinto.
Era
um confronto de ideias periódico como não havia outro no panorama
mediático português. A começar pela envergadura dos contendores, ímpar
para os padrões do burgo; a seguir, pela urbanidade do trato que ambos
mantinham, mesmo nas situações mais tensas. Luís Marinho, que foi o
primeiro moderador do programa, admite que no início chegou a ter
"receio", mas ele rapidamente se esvaneceu. "Foram poucos os momentos de
tensão, pois também os houve, mas sempre resolvidos com elevação".
Quais?
"Sempre que se abordaram questões relacionadas com o 25 de Abril",
responde Luís Marinho. O jornalista destaca um traço de Ruben: "Sempre
teve essa capacidade de fazer pontes com áreas ideológicas opostas".
Com António Costa ao colo
Ruben
Luís Tristão de Carvalho e Silva faleceu na madrugada desta
terça-feira. Em comunicado, o PCP não especificou as causas da morte,
dizendo ter sido “em consequência de problemas de saúde que exigiram
internamento hospitalar”
Na nota à imprensa do
Secretariado do Comité Central, o PCP lembra o “intelectual comunista,
[que] assumiu uma intervenção destacada na atividade do Partido, tendo
desempenhado importantes tarefas, cargos e responsabilidades. Ruben de
Carvalho teve uma vida de intervenção e de luta na resistência
antifascista, no movimento associativo estudantil, abraçou com
intensidade a Revolução de Abril e defendeu os seus valores e
conquistas”.
Em declarações aos jornalistas,
Jerónimo de Sousa definiu-o como "um homem de combate e de confronto de
ideias", mas também um cidadão "de projeto", que lutou pela liberdade e
pela democracia.
Já António Costa definiu Ruben de
Carvalho como "homem de cultura e inteligência política invulgares,
sentido de humor e extraordinária exigência de caráter".
Numa
nota publicada na rede social Twitter, o primeiro-ministro diz, sobre
Ruben: “era antes do mais um amigo, numa amizade que construímos nos
seis anos de intenso convívio na Câmara Municipal de Lisboa”.
Tal
aconteceu entre 2007 e 2013, quando o socialista presidiu à autarquia e
o comunista era um dos vereadores, num Executivo (nos primeiros dois
anos) em que Costa não tinha maioria absoluta.
Helena
Roseta, que também integrou esse governo de Lisboa, lembra ao Expresso
como foram esses tempos. Recorda o dirigente comunista agora
desaparecido como alguém de “grande capacidade intelectual e cultural” e
uma pessoa de “enorme afabilidade”.
Sobre o clima
político de então, fala da “relação especial” entre Costa e Ruben, que
foi “muito importante para o primeiro mandato [de Costa]”, pois “Ruben
deu-lhe muita ajuda”.
A química havia começado umas
décadas antes, como o admitiu Ruben de Carvalho na referida entrevista
ao “Observador”: “O meu pai e o do António Costa eram amigos. Quando eu
tinha 18 anos, o António Costa tinha dois ou três”, conta. “Quando digo
que andei com o António Costa ao colo não é uma figura de retórica”,
acrescenta.
A evocação deste episódio deixa à tona
outros traços da personalidade de Ruben de Carvalho (humor e ironia por
vezes cortantes), algo que todos os que com ele alguma vez privaram,
como os jornalistas, certamente irão recordar. Disse Ruben da opção
política de Costa: “Apesar de o pai [dele] ser militante [do PCP] ele lá
acabou por ir para o PS por causa de uma brotoeja qualquer”.
Testamento político
Na
última entrevista dada ao Expresso, em agosto de 2014, pouco depois de
celebrar 70 anos, Ruben de Carvalho assume que tem "muitos companheiros
improváveis".
A entrevistadora, a jornalista Ana Soromenho, pergunta-lhe à queima-roupa:
"Quem teve mais pena de ver deixar o PCP?"
Responde: "Tanta gente".
Antes
já explicara: "Sou uma pessoa com quem não é difícil lidar.
Praticamente não deixei de falar com ninguém que saiu do partido.
Conhecia-os a todos, era a minha geração". E acrescenta:"Quando é
preciso falar com alguém com que mais ninguém fala, lá vou eu. Mas isto
tanto se aplica a alguém que saiu como a alguém do CDS ou de outro
partido".
Este
mundo de pontes onde Ruben de Carvalho viveu, e que ajudou a erguer, é
como se já fosse de outro tempo. Disse o militante comunista hoje
desaparecido na referida entrevista: "Pertenço a uma geração que, além
do partido, tinha vida social. A minha vida não foi só política, e
continua a não ser. O que acontece hoje com a malta mais nova é que
funciona em tribo".
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