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quarta-feira, 12 de junho de 2019


Ruben de Carvalho (1944 - 2019)
Um comunista de sete instrumentos
Ruben de Carvalho, numa Festa do Avante: pronto para o que der e vier <span class="creditofoto">Foto Rui Ochôa</span>
Ruben de Carvalho, numa Festa do Avante: pronto para o que der e vier Foto Rui Ochôa
Político, programador de espetáculos, autor, jornalista, historiador, produtor musical, intelectual, comissário de muitas exposições, musicólogo, … São tantas as facetas do histórico dirigente do PCP Ruben de Carvalho, falecido nesta terça-feira. Até ao fim da vida esteve sempre ao lado da direção do partido. Nisso, foi um ortodoxo. Mas com a sua vasta e sólida cultura (como por exemplo a musical, em especial no jazz e no blues, ou o amor ao fado) transportou para a vida política uma visão das coisas e do mundo que ultrapassa em muito as habituais fronteiras do universo comunista. Nisso, foi um heterodoxo, um ‘globetrotter’ das ideias
Texto Paulo Paixão
Há cerca de uma década, uma jovem estudante do antigo Liceu Camões, em Lisboa, precisava de fazer um trabalho escolar. Tinha de falar com alguém que tivesse vivido antes do 25 de abril de 1974. Inês, com 15 anos, aproveitou uma sessão pública da Câmara de Lisboa (na qual os munícipes têm acesso aos membros do Executivo) para chegar à fala com Ruben de Carvalho, então vereador da CDU. O dirigente comunista recebeu a jovem e ouviu as suas razões. Depois, para que a estudante pudesse descobrir e consultar outras fontes, convidou-a a ir a sua casa. Lá, numa enorme cave na Amadora, Inês viu-se de repente rodeada de revistas, livros e discos (do vinil ao CD), prateleiras sem fim que forravam todas as paredes.
Nos anos seguintes, Ruben de Carvalho ligava a Inês, para saber como iam os estudos. E dava à jovem recomendações de leitura (sem qualquer intuito de catequese política, diga-se). Os episódios – relatados agora com emoção pela mãe de Inês, que realça a “generosidade” de um “homem bom” – são uma excelente porta de entrada para o percurso de vida, a militância cívica e política, o empenhamento cultural e a personalidade do histórico militante e dirigente do PCP, falecido na madrugada desta terça-feira, com 74 anos.
Quando foi derrubada a ditadura, já Ruben de Carvalho passara seis vezes pelas prisões fascistas. Agora, na data da sua morte, era o único membro do Comité Central (CC) do PCP que havia conhecido os calabouços da PIDE. Foi em 1961, 1962, 1963, 1964, 1965/66 e, por fim, em 1974, poucos dias antes da Revolução. Numa das vezes, com a “tortura do sono”, as condições foram particularmente duras. “Cheguei a estar seis meses em Caxias isolado. Preso sozinho, numa cela, sem falar com ninguém, sem jornais, sem livros rigorosamente sozinho”, contou numa entrevista ao “Observador”, a 3 de setembro de 2016, dada a Miguel Santos Carrapatoso.
Entre a quinta e a sexta prisões, o já então então jornalista (em 1963 começara a trabalhar no diário “O Século”) esteve cinco anos na guerra colonial, em Angola. Regressou à metrópole quando uma mina de fabrico soviético lhe despedaçou uma perna.
Ruben de Carvalho num congresso do PCP, com Carlos Carvalhas e a assessora do grupo parlamentar, Paula Barata <span class="creditofoto">FOTO ANA BAIÃO</span>
Ruben de Carvalho num congresso do PCP, com Carlos Carvalhas e a assessora do grupo parlamentar, Paula Barata FOTO ANA BAIÃO
Ruben de Carvalho aderiu ao PCP em 1970. Antes, já tinha um exemplar cadastro de resistente antifascista (que lhe deu as primeiras prisões), forjado nas lutas associativa e estudantis. Mas antes disso ainda, os primeiros ensinamentos políticos vieram quase do berço. A mãe, professora primária, era do PCP; e no pai, médico, os mesmos ideais andavam lá perto. Vultos grandes do neorrealismo eram visita assídua da família – e com eles o filho único do casal desde muito cedo privou.
Em 1979, quando já era chefe de redação do "Avante!" (o jornal oficial do PCP), Ruben de Carvalho subiu ao Comité Central. A sua morte significa um corte na História. Pela primeira vez, deixa de haver no CC alguém que conheceu as prisões da ditadura.
Programador musical
Na cave do prédio da Amadora, bem junto às portas de Benfica, onde Inês se terá perdido a observar as estantes a abarrotar de milhares de livros e de discos, está um espólio que espelha bem a vida de Ruben de Carvalho.
Desde a primeira edição da Festa do Avante, em 1976 (na antiga FIL, em Lisboa), ele foi o principal organizador da grande romaria habitual dos comunistas portugueses. Como programador musical, Ruben foi o responsável por trazer a Portugal grupos que de outra forma nunca cá teriam vindo. E isso aconteceu num tempo, difícil de entender para as novas gerações, em que não havia festivais de verão. Nessas alturas, sem barreiras ideológicas pelo meio e muitas vezes com o programa das festas a transpor o que alguns julgariam ser as baias do fechamento do PCP, a Festa do Avante foi um verdadeiro oásis no panorama musical e artístico português.
A par da organização da Festa, Ruben de Carvalho deixou outra marca impressiva na música portuguesa. Num tempo em que o fado ainda era associado à direita e aos sectores mais conservadores da sociedade, ele foi uma das personalidades que à esquerda combateu e desmistificou essa ideia. Com outros, esteve na génese do movimento que culminaria na elevação do Fado a Património da Humanidade.
Ruben era um homem de gostos musicais muito ecléticos. Para lá do papel de programador da Festa do Avante, onde fez representar obras eruditas em grandes palcos talhados para artistas pop, foi produtor de vários discos e espetáculos, como o “Pete Seeger em Lisboa”. Profundo conhecedor da cultura e da música norte-americanas, em especial do jazz e do blues, estendia esse domínio a melodias de outras latitudes.
Repositório do imenso saber musical de Ruben de Carvalho, e da descodificação dessas várias expressões artísticas nos diferentes contextos histórico, políticos e sociais onde emergiram, é o programa “Crónicas da Idade Mídia”, realizado já nesta década, na Antena 1, em que o jornalista dividia a apresentação com Iolanda Ferreira.
Já nesta terça-feira, a Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) considerou Ruben de Carvalho "um dos mais influentes musicólogos portugueses, com uma carreira e um grau de influência que muitos autores reconheceram ao longo de décadas".
No início da década de 90, com o primeiro acordo de expressão nacional entre PS e PCP, que levou Jorge Sampaio à presidência da Câmara de Lisboa, Ruben de Carvalho andou na órbita da autarquia. Aí desempenhou papel importante na Lisboa 94, Capital Europeia da Cultura. Na sequência desse trabalho, desenvolveria várias atividades de comissariado, em festivais musicais ou nas festas da cidade.
Finalmente, o palco da política
Foi em meados da década de 90 do século passado que Ruben de Carvalho entrou na primeira linha da cena política. Foi eleito deputado pelo círculo de Setúbal. Em 1997, torna-se vereador na mesma cidade. A chegada à Câmara de Lisboa dá-se em 2005, ainda governava a direita. A queda de Carmona Rodrigues levou a eleições intercalares, em 2007, ganhas por António Costa, novamente com Ruben na vereação, onde se manteve até 2013.
Numa campanha eleitoral para a Câmara de Lisboa, com Jerónimo de Sousa <span class="creditofoto">FOTO ANTÓNIO PEDRO FERREIRA</span>
Numa campanha eleitoral para a Câmara de Lisboa, com Jerónimo de Sousa FOTO ANTÓNIO PEDRO FERREIRA
Nos últimos anos, já sem intervenção político-partidária no espaço público (manteve-se apenas no Comité Central do PCP), Ruben de Carvalho manteve em coautoria dois programas de rádio, na Antena 1. O já referido "Crónicas da Idade Mídia" e o mais recente "Radicais Livres", em que debate a atualidade internacional com Jaime Nogueira Pinto.
Era um confronto de ideias periódico como não havia outro no panorama mediático português. A começar pela envergadura dos contendores, ímpar para os padrões do burgo; a seguir, pela urbanidade do trato que ambos mantinham, mesmo nas situações mais tensas. Luís Marinho, que foi o primeiro moderador do programa, admite que no início chegou a ter "receio", mas ele rapidamente se esvaneceu. "Foram poucos os momentos de tensão, pois também os houve, mas sempre resolvidos com elevação".
Quais? "Sempre que se abordaram questões relacionadas com o 25 de Abril", responde Luís Marinho. O jornalista destaca um traço de Ruben: "Sempre teve essa capacidade de fazer pontes com áreas ideológicas opostas".
Com António Costa ao colo
Ruben Luís Tristão de Carvalho e Silva faleceu na madrugada desta terça-feira. Em comunicado, o PCP não especificou as causas da morte, dizendo ter sido “em consequência de problemas de saúde que exigiram internamento hospitalar”
Na nota à imprensa do Secretariado do Comité Central, o PCP lembra o “intelectual comunista, [que] assumiu uma intervenção destacada na atividade do Partido, tendo desempenhado importantes tarefas, cargos e responsabilidades. Ruben de Carvalho teve uma vida de intervenção e de luta na resistência antifascista, no movimento associativo estudantil, abraçou com intensidade a Revolução de Abril e defendeu os seus valores e conquistas”.
Em declarações aos jornalistas, Jerónimo de Sousa definiu-o como "um homem de combate e de confronto de ideias", mas também um cidadão "de projeto", que lutou pela liberdade e pela democracia.
Já António Costa definiu Ruben de Carvalho como "homem de cultura e inteligência política invulgares, sentido de humor e extraordinária exigência de caráter".
Numa nota publicada na rede social Twitter, o primeiro-ministro diz, sobre Ruben: “era antes do mais um amigo, numa amizade que construímos nos seis anos de intenso convívio na Câmara Municipal de Lisboa”.
Tal aconteceu entre 2007 e 2013, quando o socialista presidiu à autarquia e o comunista era um dos vereadores, num Executivo (nos primeiros dois anos) em que Costa não tinha maioria absoluta.
Ruben de Carvalho com José Sá Fernandes, quando ambos eram vereadores em Lisboa, pelos santos populares <span class="creditofoto">FOTO ANA BAIÃO</span>
Ruben de Carvalho com José Sá Fernandes, quando ambos eram vereadores em Lisboa, pelos santos populares FOTO ANA BAIÃO
Helena Roseta, que também integrou esse governo de Lisboa, lembra ao Expresso como foram esses tempos. Recorda o dirigente comunista agora desaparecido como alguém de “grande capacidade intelectual e cultural” e uma pessoa de “enorme afabilidade”.
Sobre o clima político de então, fala da “relação especial” entre Costa e Ruben, que foi “muito importante para o primeiro mandato [de Costa]”, pois “Ruben deu-lhe muita ajuda”.
A química havia começado umas décadas antes, como o admitiu Ruben de Carvalho na referida entrevista ao “Observador”: “O meu pai e o do António Costa eram amigos. Quando eu tinha 18 anos, o António Costa tinha dois ou três”, conta. “Quando digo que andei com o António Costa ao colo não é uma figura de retórica”, acrescenta.
A evocação deste episódio deixa à tona outros traços da personalidade de Ruben de Carvalho (humor e ironia por vezes cortantes), algo que todos os que com ele alguma vez privaram, como os jornalistas, certamente irão recordar. Disse Ruben da opção política de Costa: “Apesar de o pai [dele] ser militante [do PCP] ele lá acabou por ir para o PS por causa de uma brotoeja qualquer”.
Testamento político
Na última entrevista dada ao Expresso, em agosto de 2014, pouco depois de celebrar 70 anos, Ruben de Carvalho assume que tem "muitos companheiros improváveis".
A entrevistadora, a jornalista Ana Soromenho, pergunta-lhe à queima-roupa:
"Quem teve mais pena de ver deixar o PCP?"
Responde: "Tanta gente".
Antes já explicara: "Sou uma pessoa com quem não é difícil lidar. Praticamente não deixei de falar com ninguém que saiu do partido. Conhecia-os a todos, era a minha geração". E acrescenta:"Quando é preciso falar com alguém com que mais ninguém fala, lá vou eu. Mas isto tanto se aplica a alguém que saiu como a alguém do CDS ou de outro partido".
Este mundo de pontes onde Ruben de Carvalho viveu, e que ajudou a erguer, é como se já fosse de outro tempo. Disse o militante comunista hoje desaparecido na referida entrevista: "Pertenço a uma geração que, além do partido, tinha vida social. A minha vida não foi só política, e continua a não ser. O que acontece hoje com a malta mais nova é que funciona em tribo".

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