O avanço da direita e a causa oculta -- Boaventura Boaventura de Sousa Santos
Para
impor “verdades” repetidamente desmentidas, as elites globais suprimiram
o debate público e instalaram, em seu lugar, um mercado frenético e
vazio de opiniões. Daí às “fake news” foi um passo
A verdade de um sistema errado é o erro.
Para ser politicamente eficaz, este erro tem de ser incessantemente
repetido, amplamente difundido e aceito pela população como a única
verdade possível e credível. Não se trata de uma qualquer repetição. É
necessário que cada vez que o erro é posto em prática,
o seja como um ato inaugural – a verdade finalmente encontrada para
resolver os problemas da sociedade. Não se trata de uma qualquer
difusão. É necessário que o que se difunde seja percebido como algo com
que naturalmente temos de estar de acordo. Não se trata,
enfim, de uma qualquer aceitação. É necessário que o que se aceita seja
aceito para o bem de todos e que, se envolver algum sacrifício, ele seja
o preço a pagar por um bem maior no futuro.
O
avanço das forças políticas de direita e extrema-direita um pouco por
todo o mundo assenta nesses pressupostos. É difícil
imaginar a sobrevivência da democracia numa sociedade em que tais
pressupostos se concretizem plenamente, mas os sinais de que tal
concretização pode estar mais próxima do que se pensa são muitos e
merecem uma reflexão antes que seja demasiado tarde. Abordarei
os seguintes sinais: a reiteração do erro e a crise permanente; a orgia
da opinião e a fabricação massiva de ignorância; da sociedade
internética à sociedade métrica.
A
reiteração do erro é hoje patente. Desde há décadas, os países
capitalistas centrais, mais desenvolvidos, têm assumido a
responsabilidade
de dedicar parte de seu orçamento à “ajuda ao desenvolvimento”. O
objetivo é, como o nome indica, ajudar os países periféricos,
subdesenvolvidos, a seguir a trilha do desenvolvimento e, idealmente,
convergir com estes em níveis de bem-estar num futuro mais
ou menos próximo. É hoje patente que o fosso que separa os países
centrais dos países periféricos é cada vez maior. A chamada “crise dos
refugiados” e o aumento alarmante do movimento de populações migrantes
indesejadas são os sinais mais evidentes de que
as condições de vida nos países periféricos são cada vez mais
intoleráveis. O mesmo se diga das políticas de redução da pobreza
levadas a cabo pelo Banco Mundial há décadas. O balanço é negativo se
por redução da pobreza entendermos a diminuição do fosso entre
ricos e pobres dentro de cada país e entre países. O fosso não tem
cessado de aumentar. Do mesmo modo, as políticas de “austeridade” ou de
ajustamento estrutural impostas aos países com dificuldades financeiras,
têm falhado em seus objetivos e o próprio FMI
tem-no reconhecido, de forma mais ou menos velada (“excesso de
austeridade”, “deficiente calibração” etc).
Apesar
disso, uma e outra vez as mesmas políticas vão sendo impostas como se
no momento fossem a melhor ou a única solução.
O mesmo se pode dizer da privatização da segurança social e, portanto,
do sistema público de aposentadorias. O alvo mais recente é a
Previdência Social do Brasil. Segundo os estudos disponíveis, em cerca
de 70% dos casos em que a privatização foi realizada,
o sistema falhou e o Estado teve de resgatar o sistema para evitar uma
profunda crise social. Apesar disso, a receita continua a ser imposta e a
ser vendida como a salvação do país. Por que se insiste no erro de
impor medidas cujo fracasso é antecipadamente
reconhecido? São muitas as razões, mas todas convergem no que considero
ser a mais importante: o objetivo de criar uma situação de crise
permanente, que force as decisões políticas a concentrarem-se em medidas
de emergência e de curto prazo. Estas medidas,
apesar de envolverem sempre a transferência de riqueza dos mais pobres
para os mais ricos e imporem sacrifícios aos que menos podem
suportá-los, são aceitas como necessárias e inviabilizam qualquer
discussão sobre o futuro e as alternativas de médio e longo
prazo.
A
orgia da opinião. O erro reiterado e sua repetição não seriam possíveis
sem uma mudança tectônica na opinião pública. Os últimos
cem anos foram o século da expansão do direito a ter opinião. O que
antes era um privilégio das classes burguesas transformou-se num direito
exercido por vastas camadas da população, sobretudo nos países mais
desenvolvidos. Essa expansão foi muito desigual,
mas permitiu enriquecer o debate democrático com a discussão de
alternativas políticas significativamente divergentes. O conceito da
razão comunicativa, proposto por Jürgen Habermas, assentava na ideia de
que a formulação da discussão livre de argumentos prós
e contra em qualquer área de deliberação política transformava a
democracia no regime político mais legítimo porque garantia a
participação efetiva de todos. Acontece que nos últimos 30 anos a
sociedade midiática, primeiro, e a sociedade internética, depois,
produziram uma cisão insidiosa entre ter opinião e ser proprietário da
opinião que se tem. Fomos expropriados da propriedade da nossa opinião e
passamos a ser arrendatários ou inquilinos dela. Como não nos damos
conta desta transformação, podemos continuar
a pensar que tínhamos opinião e imaginar que ela era nossa. Empresários
de opinião de todo tipo entraram em cena para simultaneamente reduzir o
leque de opiniões possíveis e intensificar a divulgação de opiniões
promovidas. Os agentes principais desta transformação
foram os partidos políticos do “arco da governação”, os meios de
comunicação oligopólicos e os sistemas de publicidade, inicialmente
vocacionados para o consumo de massa de mercadorias, os quais foram
sendo direcionados para o consumo de massa do mercado das
ideias políticas. Assim surgiu a sociedade mediática e a
política-espetáculo, onde as diferenças substantivas entre as posições
em que se diverge são mínimas, mas apresentadas como se fossem máximas.
Foi o primeiro passo.
O
passo seguinte ocorreu quando da sociedade midiática passamos à
sociedade internética. Nesse passo, o direito a ter opinião
expandiu-se sem precedente e a expropriação da opinião de que somos
usuários (mais que titulares) atingiu novos patamares. Surgiram os
empresários, tanto legais quanto ilegais, da manipulação da opinião
pública, de que são exemplos paradigmáticos as redes
e as páginas de facebook e de whatsapp que produzem “táticas de
desinformação” particularmente ativas em períodos eleitorais, como
sucedeu nas eleições para o Parlamento Europeu. A conhecida organização
Avaaz identificou 500 páginas suspeitas, seguidas por
32 milhões de pessoas, que geraram 67 milhões de interações
(comentários, links, compartilhamentos). A empresa Facebook fechou 77
destas páginas, que eram responsáveis por 20% do fluxo de informações
nas redes identificadas. Esta extraordinária manipulação
da opinião teve três consequências que, apesar de passarem
despercebidas, constituíram uma mudança de paradigma na comunicação
social.
A
primeira consequência é que este policiamento das redes legitimou-se
apesar de ter controlado apenas a ponta do iceberg. O
recurso cada vez mais intenso aos big data e aos algoritmos para tocar
cada indivíduo nos seus gostos e preferências, e de o fazer
simultaneamente para milhões de pessoas, tornou possível mostrar que os
verdadeiros proprietários da nossa opinião são Bill Gates
e Mark Zuckerberg. Como tudo é feito para não nos darmos conta disso,
consideramo-nos devedores gratos do Eldorado de informações que nos
proporcionaram e não credores de um desastre democrático de
consequências imprevisíveis, pelas quais deviam ser eles
responsabilizados.
A
segunda é que a informação que passamos a usar, apesar de tão
superficial, não pode ser contestada com argumentos. Ou é aceita,
ou recusada, e os critérios para decidir são critérios de autoridade e
não de verdade. Se servir os interesses do líder político de turno, o
povo é exaltado como tendo finalmente opinião própria e capaz de
contradizer a das elites tradicionais. Se não servir,
o povo é facilmente considerado como “ignorante e incapaz de ser
governado democraticamente”. Quando o povo segue a opinião do líder, é o
líder que segue a opinião do povo. Quando o povo diverge da opinião do
líder, deve, como povo ignorante, confiar na opinião
do líder. Conforme lhe convenha, o líder “populista” pode aparecer ora
como seguidor do povo, ora como seu tutor. Aqui reside a razão última de
reemergência do “populismo”. Este capital de confiança cria-se
facilmente na medida em que tudo se passa na intimidade
do indivíduo e da sua família. Enquanto a sociedade midiática
transformou a política num espetáculo, a sociedade cibernética
transforma-a num show íntimo, um verdadeiro peep show em que toda a
interação afetiva ocorre entre o líder e o cidadão, sem argumentos
nem mediação.
A
terceira consequência da sociedade internética é que as redes sociais
criam dois ou mais fluxos de opinião unânime, que correm
em paralelo e por isso nunca se encontram. Ou seja, em nenhum caso podem
ser contraditados ou contra-argumentados numa discussão democrática. A
política errada pode assim ser amplamente aceita se cavalgar um dos
fluxos de unanimidade. Este é o caldo comunicacional
da radicalização política, o ambiente ideal para o clima de polarização,
de ódio ou de demonização do inimigo político, sem que seja necessário
usar argumentos discutíveis e apenas recorrendo a frases apocalípticas.
Da
sociedade internética à sociedade métrica. Vivemos uma outra orgia, a
orgia da quantificação da vida individual e coletiva.
Nunca as nossas vidas coletivas estiveram tão dependentes dos números
dos seguidores do facebook, dos likes nas interações nas redes,
dosscores nos concursos, dos rankings nas universidades, na
quantificação da produção científica. Sabemos que a lógica da
quantificação é extremamente seletiva e muito enviesada pelos critérios
que usa e pelos campos que seleciona pra quantificar. Deixa de fora tudo
o que é mais essencial à vida individual e coletiva. Deixa de fora
setores sociais que, pela sua inserção social,
não podem ser adequadamente contados. Os sem-teto são contados pelo fato
de serem sem-teto e não pelo que fazem durante o dia; a agricultura
familiar, informal, apesar de em muitos países alimentar ainda hoje a
população, bem como o trabalho não pago da economia
do cuidado em casa, não conta para o PIB. O que está dominantemente a
cargo das mulheres não entra nas estatísticas do trabalho, apesar de
crucial para reproduzir a força de trabalho. Se não for sufragada
quantitativamente, a qualidade da produção científica
não conta para a carreira dos pesquisadores. E o grande problema do
nosso tempo é que o que não é contado não conta.
Estas são algumas das dinâmicas subterrâneas que vão minando a democracia e criando uma cultura pública e privada indefesa ante
os erros, de que a direita e a extrema-direita se vão alimentando.
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