AOS SUPER RICOS, OS SUPER GENES? Walter Isaacson
QUEBEC
Biologia é a nova tecnologia.
Fui a uma conferência na cidade de Quebec sobre CRISPR [sigla
em inglês para “Conjunto de Repetições Palindrómicas Curtas
Regularmente Espaçadas”], a ferramenta molecular projetada para editar
genes, e senti
a mesma energia das reuniões que o Homebrew Computer Club [grupo
de entusiastas de computadores que se reunia nos EUA nos anos 1970 e
80] fazia na Feira de Computadores nos anos 1970. Exceto
que os jovens inovadores agora estão programando com código… genético.
Agora que as escolas estão finalmente percebendo que toda criança
deveria aprender a programar, elas terão que passar a ensinar, no lugar
do 0101, o AGCT, as quatro bases do DNA.
Muitos
dos cientistas pioneiros estavam lá, incluindo Jennifer Doudna, da
universidade de Berkley, EUA, uma das pessoas que
descobriu, em 2012, como combinar dois trechos de RNA com uma enzima
para fazer uma tesoura que poderia cortar o DNA em uma localização
precisa; e Feng Zhang, do Broad Institute, EUA, que concorreu com ela
para mostrar como a ferramenta poderia editar genes
em seres humanos, e está agora em uma batalha com ela pelas patentes da
tecnologia.
A atmosfera é carregada com a combinação catalisadora de competição e cooperação remanescente de quando Bill Gates e Steve Jobs
frequentaram os primeiro encontros de computadores pessoais. As grandes notícias envolvem transposões, conhecidos como “genes que saltam”, que na natureza podem pular de um lugar para outro em cromossomos.
Sam Sternberg, um jovem bioquímico brilhante que estudou para Doudna,
acabara de publicar seu primeiro paper inovador, que descreve como
criar um sistema parecido com o CRISPR que insere um gene de salto
personalizado no
local desejado no DNA. Mas, para a surpresa de Sternberg, Feng Zhang
conseguiu escrever um paper similar de sua autoria em uma publicação,
alguns dias antes. “Existe algum campo tão degolador e competitivo
quanto a pesquisa biológica?”, me pergunta Sternberg.
O gene que salta
Bem,
sim: eu penso que na verdade qualquer área pode ser assim, desde
negócios, passando por jornalismo, até o campeonato de
basebol. O que realmente distingue as pesquisas sobre biologia é a
colaboração que a entrelaça. A camaradagem de serem guerreiros rivais em
uma busca comum enche a conferência. O desejo de ganhar prêmios e
patentes tende a criar competição — o que estimula
o ritmo das descobertas — mas é igualmente motivante. Acredito que é a
paixão de descobrir o que Leonardo da Vinci chamou de “trabalho infinito
da natureza”, especialmente quando diz respeito a algo que é tão
absurdamente lindo quanto os mecanismos internos
de uma célula viva. “As descobertas sobre o gene que salta mostram o
quanto a biologia é divertida”, diz Doudna.
Alguns
de nós jantamos em um restaurante inventivo chamado Chez Boulay, que
servia bolinhos crocantes de foca, enormes vieiras
cruas, salmão do Ártico, bisão grelhado, gin e vinho produzidos no
Quebec. O papo ia de ciência a questões éticas que pairam sobre o
CRISPR. Feng Zhang e outro dos cientistas pioneiros, Erik Sonthemeier,
falam sobre a necessidade de uma moratória para interromper
edições que podem ser herdadas. Mas os genes já podem estar fora da
garrafa. Em novembro, um médico chinês fez o anúncio explosivo de que
havia editado dois embriões para tentar fazê-los imunes ao HIV, e um
médico russo está divulgando seus planos de editar
embriões para tentar curar a surdez congênita.
Há
uma concordância geral entre os cientistas no jantar que, quando for
seguro e prático, edições genéticas deveriam ser usadas
para curar mutações malignas de um único gene, como a doença de
Huntington e anemia falciforme. Mas ficam com o pé atrás com a ideia de
usar edição de genes para aprimoramentos humanos, como tentar dar aos
filhos mais massa muscular ou altura, ou quem sabe
um QI mais alto e habilidades cognitivas. O problema é que a distinção é
difícil de ser definida — prevenir a obesidade é uma cura ou um
aprimoramento? — e ainda mais difícil de ser aplicada. “Veja o que os
pais são capazes de fazer para pôr seus filhos na
faculdade”, diz Feng Zhang. “Algumas pessoas certamente pagarão para
aprimoramento genético.”
“Um
grande problema com o aprimoramento é o acesso igualitário”,
complementa Sonthemeier. “Será que pessoas ricas devem poder
comprar os melhores genes que conseguirem pagar?” Isso levaria à
distopia descrita por Aldous Huxley em seu romance de 1932 Admirável
Mundo Novo, em que a modificação de embriões produz um sistema de castas
que divide líderes de inteligência aprimorada e trabalhadores
braçais atrofiados. Nosso mundo já sofre demais com a diferença cada vez
maior de riqueza e oportunidade, e um livre mercado para melhorias
genéticas pode produzir um salto quântico nessas desigualdades. E também
codificá-las permanentemente. “Em um mundo
no qual há pessoas que não têm acesso a óculos”, diz Feng Zhang, “é
difícil imaginar como encontraremos uma maneira de oferecer acesso
igualitário ao aprimoramento genético. Pense no que isso fará à nossa
espécie.”
CIDADE DE ASPEN
Falando
de desigualdade financeira, viajei de Quebec a Aspen, no estado
norte-americano do Colorado, para entrevistar alguns
dos principais formuladores de políticas do mundo, que estão lutando com
o desafio de regular o uso de CRISPR: Duanqing Pei, um charmoso biólogo
celular chinês que dirige o Instituto de Biomedicina de Cantão; Victor
Dzau, um refugiado chinês que é presidente
da Academia Nacional de Medicina dos EUA; e minha amiga Peggy Hamburg,
presidente da Associação Americana para o Avanço da Ciência e
ex-comissária da Administração de Alimentos e Medicamentos, que foi
nomeada copresidente do comitê consultivo da Organização
Mundial da Saúde (OMS) sobre edição genética.
Pei
e Dzau estavam em Hong Kong em novembro do ano passado, quando o
cientista chinês Jiankui He fez sua revelação espantosa
de que tinha editado o DNA de duas gêmeas recém-nascidas quando ainda
eram embriões em estágio inicial. Pei soube do anúncio iminente a partir
de Jennifer Doudna, quando chegou ao saguão do hotel de Hong Kong. “Foi
difícil acreditar”, ele diz. “Estávamos todos
parados lá tentando entender o que isso poderia significar.” Ficou
horrorizado, disse, porque há uma restrição na China a tais
experimentos, e ele assegurou a pesquisadores globais que isso não
aconteceria. Então, como Hamburg e Dzau, ele agora percebe que
será quase impossível para a OMS, ou quem quer que seja, trazer uma
política global que possa se fazer cumprir em qualquer lugar.
“Não
existe uma estrutura única que vai servir para todos os países”, diz
Hamburg. “Cada um tem uma atitude diferente e seus
padrões regulatórios, como já acontece com a modificação de alimentos.”
Portanto, a OMS provavelmente criará um menu de opções para os países
considerarem. Isso poderia, infelizmente, levar ao turismo genético.
Pessoas privilegiadas que queiram aprimoramentos
vão viajar para países que possam oferecê-los. “É muito difícil forçar
práticas e padrões”, diz Hamburg. “Não é a mesma coisa que armas
nucleares, que podem ser guardadas por seguranças e cadeados para impor
um regime de segurança.”
COLD SPRING HARBOR
De
Aspen, parti para o Laboratório de Cold Spring Harbor, na costa norte
de Long Island, também nos EUA, onde o prêmio Nobel
James Watson, de 91 anos de idade, vive com sua esposa em um exílio
esplêndido e torturado em uma mansão imponente e pálida, com vista para a
Baía de Oyster e os prédios dos seminários para os quais ele não é mais
convidado. Watson ajudou a iniciar a marcha
da biologia molecular em direção à edição genética, quando ele e seu
colega Francis Crick descobriram, em 1953, parcialmente baseados em
imagens de difusão de raios-X produzidas por Rosalind Franklin e Maurice
Wilkins, a estrutura de dupla hélice e o esquema
de codificação de quatro bases do DNA.
Há
uma década, Watson falou, para um repórter de um jornal britânico, que
sabia, de maneira contundente e não filtrada, sobre
sua crença de que há diferenças no QI médio de vários grupos étnicos,
sendo o dos africanos mais baixo, e que essas diferenças são amplamente
genéticas. Logo pediu desculpas, dizendo que “não há base científica
para tal crença”, e foi forçado a se aposentar
de sua posição de chanceler do Laboratório de Cold Spring Harbor, que
liderou, junto a outros, por 40 anos. Mas, há um ano, quando foi
entrevistado para um documentário de televisão, confirmou suas opiniões.
O conselho de Cold Spring Harbor emitiu uma nota
chamando suas opiniões de “infundadas … imprudentes … repreensíveis, sem
o apoio da ciência”, e retirou seus títulos honorários.
O Dilema de Jefferson
Watson, pronto, apresenta aos historiadores o que poderia ser chamado de O Dilema
de Jefferson; até que ponto você pode respeitar alguém por suas
grandes realizações (“nós mantemos essas verdades”), quando estão
acompanhadas por falhas repreensíveis (“todos nascemos iguais”)? Uma
pergunta, levantada pelo Dilema de Jefferson, se relaciona,
pelo menos metaforicamente, com a edição genética. Excluir um gene
relacionado a uma característica indesejada (anemia falciforme ou
receptividade do HIV) pode afetar algumas características desejáveis
existentes (resistência à malária ou ao vírus do Nilo
Ocidental).
Pelo
que vale a pena, eu pessoalmente acredito que é igualmente verdadeiro,
moral e útil acreditar que as falhas das pessoas
não podem ser perdoadas por dizer que elas estão entrelaçadas com sua
grandeza. Mas acredito, ainda assim, que podemos aprender com pessoas
que fizeram grandes conquistas, mesmo quando nos afastamos de suas
falhas.
Então,
pergunto a Watson o que ele pensa sobre o CRISPR. “O que Jennifer fez
foi o maior avanço na ciência desde a descoberta
da dupla hélice”, diz. “Mas é importante usar a descoberta para que seja
equitativa. Se só for usada para resolver problemas e desejos dos 10%
mais ricos, vai ser terrível. Nas últimas décadas, evoluímos cada vez
mais para uma sociedade desigual, e isso a
pioraria muito.”
Um
passo que pode ajudar um pouco, ele sugere, é não permitir ou reforçar
patentes para técnicas de engenharia genética. Ainda
haveria muito financiamento para encontrar maneiras seguras de corrigir
doenças claramente devastadoras, como a anemia de Huntington e as
células falciformes. Mas, se não houvesse patentes, provavelmente
haveria menos recompensa para as corridas para ser o
primeiro a criar métodos de aprimoramentos. E os aprimoramentos que
eventualmente forem inventados poderão ser mais baratos, e mais
amplamente disponíveis, se alguém puder copiá-los. “Eu aceitaria uma
certa desaceleração na ciência, se, em contrapartida, isso
a tornasse mais acessível”, ele diz. “Mesmo que não patenteemos esses
produtos, alguns pesquisadores ainda ficariam ansiosos para não
abandonar a ciência e fazer descobertas. É isso que motiva a vida dos
pesquisadores.”
Voltando
para casa, em Nova Orleans, fui ao funeral da amada grande dama da
cidade, Leah Chase, que morreu aos 96 anos após
tocar por quase sete décadas um restaurante no bairro do Tremé. Com sua
colher de pau, mexia o roux [molho espesso, de origem francesa, feito
com farinha de trigo e manteiga] para sua sopa Gumbo de camarão e
linguiça (uma xícara de óleo de óleo de amendoim
e oito colheres de sopa de farinha) até que ficasse da cor de café com
leite, e conseguia unir os mais diversos ingredientes. Chase era uma
negra Creole, e seu restaurante, assim como sua vida, uniam os muitos
sabores da vida de Nova Orleans, preta, branca
e crioula. A pequena nobreza da cidade alta encontrava com líderes
políticos e ativistas pelos direitos civis em sua sala de jantar no
final dos anos 1960, para tentar manter a cidade unida.
Pessoas como Leah Chase me lembram as ligases, enzimas que podem ligar e
costurar fios de DNA. Hoje, as células de nossa sociedade possuem muito poucas ligases, e há gente demais que age como nucleases, as enzimas que cortam, clivam e dividem nosso DNA.
O Bairro Francês, onde vivemos, está saltitante nesse final de semana. Há uma bicicletada pelada que se destina (curiosamente)
a reivindicar a segurança do trânsito. Também acontece um dos muitos desfiles e second lines [um
tipo de desfile tradicional de Nova Orleans] para celebrar a vida de
Mac Rebennack Jr., o músico
de funk norte-americano conhecido por Dr. John. Também há uma parada do
orgulho gay e blocos de festas relacionadas a essa cultura. Coexistindo
alegremente, acontece o Festival do Mercado Francês de Tomate Creole,
com seus caminhões trazidos por fazendeiros
e cozinheiros que mostram as muitas variedades de suculentos tomates
locais não geneticamente modificados.
De
minha varanda, fico maravilhado com a diversidade da humanidade que
passa. Há pessoas baixas e altas; homo, hétero e transexuais;
gordas e magras, brancas e negras; e até algumas vestindo camisetas da
Universidade de Gallaudet animadamente usando a linguagem de sinais. A
suposta promessa do CRISPR é de que nós, um dia, conseguiremos escolher
quais dessas características queremos em todos
os nossos descendentes. Poderíamos escolher que sejam altos e
musculosos, loiros e de olhos azuis, não surdas e não… bem, selecione
suas preferências.
Enquanto
examino o delicioso espetáculo público com toda sua variedade natural,
pondero como a promessa do CRISPR pode também
ser seu perigo, em sua superioridade, com a codificação de oportunidades
desiguais. Levou mais de 3,2 bilhões de anos para que as leis e o deis
da natureza tecessem três bilhões de bases de DNA, de uma maneira
complexa e ocasionalmente imperfeita, para permitir
toda a maravilhosa diversidade de nossa espécie. Estamos certos de
pensar que podemos agora chegar e, em algumas décadas, editar todo o
genoma para eliminar o que vemos como imperfeições? Será que perderemos
nossa diversidade? Será que nos tornaremos menos
saborosos, como nossos tomates? Será bom para nossa espécie?
*Walter Isaacson is a professor of history at Tulane and the author of biographies of Benjamin Franklin, Albert Einstein, Steve
Jobs, and Leonardo da Vinci.
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