Karl Marx, nosso contemporâneo
J.Paulo Netto
Da mesma forma que não se pode equalizar toda a elaboração própria à Se-gunda Internacional aos materiais em que as ideias de Marx eram rasamente inter-pretadas segundo um padrão mecanicista e/ou de cariz positivista – basta pensar, por exemplo, em Rosa Luxemburgo –, também não se pode reduzir o acúmulo in-telectual marxista, entre os anos 1930 e 1960, ao marxismo-leninismo stalinizado9 (que, de fato, não rompeu com o marxismo dominante na Segunda Internacional 10). Mas foi exatamente este complexo ídeo-político – perfeitamente qualificável como “marxismo vulgar” (Lukács) – que tanto o movimento comunista stalinizado e os seus antagonistas consagraram como a herança marxiana e o patrimônio marxista. Para o movimento comunista stalinizado, em especial para o seu centro (leia--se: a URSS), o marxismo-leninismo era vital como componente “teórico” para o funcionamento do seu sistema: de uma parte, diante deste, o nulo potencial crítico do marxismo-leninismo reduzia ao extremo quaisquer incidências retoras ou cor-retoras sobre as práticas sociais que se lhe tornaram peculiares; de outra, amarran-do a “teoria” às decisões econômicas e políticas tático-conjunturais, engendrava uma unidade “teoria-prática” inteiramente pragmática (quando não puramente oportunista). E ainda oferecia a legitimação para exemplarizar as divergências e o dissenso teórico e político: posto o marxismo-leninismo como verdadeiro e justo, qualquer “desvio” configurava um atentado à inteireza, verdadeira e justa, da “dou-trina” – pois era como “doutrina” que se perfilava o marxismo-leninismo.Evidentemente, para se apresentar assim a herança teórica de Marx, ade-mais de expedientes burocrático-administrativos e políticos da mais variada or-dem, foram necessárias adulterações de extrema magnitude e procedimentos metodológicos que nada tinham a ver com a textualidade e/ou o expresso sen-tido da obra marxiana – do abastardamento ou ocultação de categorias teóricas 9 Isto vale especialmente para o marxismo diferencialmente processado fora das fronteiras do “campo socialista” (pense-se, para citar uns poucos entre muitos, em H. Vallon, H. Lefebvre, L. Gol-
dmann, V. G. Childe, C. Hill, M. Dobb, G. Thomson, R. Williams, L. Kofler, I. Deustcher, R. Rosdolsky, A. Hauser, C. L. R. James, H. Marcuse, P. M. Sweezy, S. Kuruma, K. Uno) ou por intelectuais cuja vida decorreu apenas parcialmente dentro de tais fronteiras (por exempo, E. Bloch e, noutra medida, O. Lange); a situação peculiar do marxismo italiano e alemão no período em tela (1930-1960) não pode ser considerada aqui. No caso dos marxistas do “campo socialista”, o monopólio oficial (mes-mo exercido em nível diverso – v.g., a experiência iugoslava) do marxismo-leninismo mostrou-se eficaz, por razões óbvias, para travar as tendências diferenciadoras e amesquinhar a criatividade intelectual (ainda que excepcionalmente não tenha impedido elaborações de grande valia – v.g., G. Lukács); somente após 1956 aquele monopólio foi rompido. É larga a bibliografia sobre as questões implicadas aqui, mas duas referências são básicas: H. Mar-cuse. O marxismo soviético: Uma análise crítica (1969) e P. Anderson, Considerações sobre o mar-xismo ocidental: Nas trilhas do materialismo histórico (2004); para análises de outro cariz, porém ricas, vale recorrer a G. Stedman Jones et alii, Western Marxism: A Critical Reader (1978).10 A ruptura política entre a Segunda e a Terceira Internacionais não significou, de fato, uma ruptura teórica – sabe-se como as primeiras expressões que apontavam decisivamente para esta última (objetivadas, em 1923, em História e consciência de classe, de G. Lukács, e em Marxismo e filosofia, de K. Korsch) foram logo asfixiadas. As reflexões de A. Gramsci também se orientavam no sentido dessa ruptura teórica, mas só foram desenvolvidas depois e, dadas as condições de trabalho a que ele esteve submetido e o destino da sua obra, não incidiram nos debates da época.
e heurísticas (v.g., a mediação e o modo de produção asiático) ao aberto mecani-cismo (recorde-se o peso conferido ao “fator econômico” e o uso/abuso instru-mental da relação “base-superestrutura”), chegando ao mais franco determinis-mo (lembre-se a “inevitabilidade” do socialismo) 11. E, também evidentemente, esse marxismo-leninismo operou como efetivo vetor de banalização e travagem do evolver da pesquisa marxista. Trata-se de um “marxismo” em face do qual, se-guramente, Marx repetiria a frase que, segundo Engels, teria dito a propósito da vulgarização de suas ideias na França: Certo é que não sou marxista 12.(...)»
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