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segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Cada fase do capitalismo tem o seu marxismo

 « (...) Fredric Jameson é bastante consciente desse impasse, algo que é explicado por ele jus-
tamente pelo fato de cada forma de dialética estar relacionada à situação específica
na qual foi desenhada. Hegel, Marx e o próprio Lukács, por exemplo, a pensaram
em períodos históricos de revolução social (Revolução Francesa; Revolução de
1848, Comuna de Paris, Primeira Internacional; Revolução Russa), em que “a
janela em direção a um futuro radicalmente diferente foi, por mais que levemente,
aberta” (Jameson, 2009c, p.280). Na ocasião em que escreve (que oscila entre o
ambiente da Guerra Fria, a efervescência dos anos 1960, a crise do capitalismo
nos anos 1970, a derrocada do socialismo real e a virada neoliberal em 1980 e
1990), tais “condições de possibilidade” teriam mudado consideravelmente, de
forma que estaria posto o desafio de se pensar uma concepção dialética adequada
às características desse momento particular.
Nesse sentido, Jameson de certa forma aplica os princípios de reflexividade
e historicidade das operações dialéticas ao seu próprio pensamento, avaliando o
marxismo com sua própria lupa, ou seja, entendendo-o como mais um fenômeno
cultural que, como qualquer outro, varia historicamente, de acordo com situações
sociais concretas. É nessa perspectiva, inclusive, que defende a existência de “dife-
rentes marxismos no mundo de hoje, cada um deles respondendo às necessidades
e problemas específicos de seu próprio sistema socioeconômico” (Jameson, 1996,
p.8). Assim, cada marxismo seria específico de uma situação: “são as ideologias
locais de uma ciência marxiana na história e em situações concretas, que estabe-
lecem não só suas prioridades, mas também seus limites”, de forma que cada um
abrange “as determinações de classe e os horizontes cultural e nacional de seus
proponentes (horizontes que incluem, entre outras coisas, o desenvolvimento de
uma classe trabalhadora política no período em questão)” (ibid., p.19). (...)

GIOVANNA MARCELINO , O marxismo de Fredric Jameson, in Academia. edu

domingo, 29 de setembro de 2024

Fredric Jameson por Terry Eagleton

 


Fredric Jameson

Paul Klee, Templo rochoso com abetos, 1926.

Por TERRY EAGLETON*

Fredric Jameson foi sem dúvida o maior crítico cultural de sua época

Conheci Fred Jameson em 1976, quando ele me convidou a lecionar para seus alunos de pós-graduação na Universidade de Califórnia, San Diego. Antes disso, só sabia da sua existência por conta do espantoso Marxismo e forma,[i] publicado cinco anos antes, um conjunto de ensaios reluzentes sobre pensadores como György Lukács, Walter Benjamin, Theodor Adorno e Ernst Bloch, entre outros.

O próprio título do livro já desafiava frontalmente uma embotada linhagem de crítica marxista vulgar. Também lidava com uma série de obras alemãs, algumas delas eriçadas de dificuldades, que ainda não haviam sido traduzidas para o inglês.

Na época, fiquei convencido de que o nome Fredric Jameson era provavelmente pseudônimo de Hans-Georg Kaufmann ou Karl Gluckstein, algum refugiado de Mittleuropa encafuado no sul da Califórnia. O homem que encontrei, no entanto, e que me cumprimentou com uma brusquidez que depois entendi ser timidez, era tão estadunidense quanto Tim Walz – embora suspeite que Walz não tenha o costume de se esgueirar para ler a mais recente ficção tcheca acompanhado de uma taça de vinho.

Ele usava expressões como look it e holy shit, vestia jeans denim, gostava de comer surf n’ turf e ficava claramente desconfortável na presença de intelectuais franceses patrícios, preferindo muito mais a companhia do cordial, extrovertido Umberto Eco.

Tudo isso já era autêntico o bastante; mas ele também foi um intelectual em uma civilização na qual tais criaturas são aconselhadas a aparecer disfarçadas. Algo semelhante poderia ser dito da retórica eivada de frases longas e sonoras própria de seu estilo literário, que opera tanto como uma máscara quanto como um modo de comunicação.

Fredric Jameson era em alguns sentidos um homem privado lançado na esfera pública, viajando pelo mundo (nos cruzamos depois na China e na Austrália) ao mesmo tempo em que vivia numa remota casa de campo na zona rural da Carolina do Norte cercada de cabras e galinhas e cheia do som das crianças. As crianças eram particularmente preciosas para ele, e ele deixou um verdadeiro batalhão de netos e netas.

Fredric Jameson foi sem dúvida o maior crítico cultural de sua época – embora o termo “crítico cultural” designe aqui um tipo de trabalho intelectual que engloba estética, filosofia, sociologia, antropologia, psicanálise, teoria política e afins, para o qual ainda não temos nome adequado. Não havia nada no campo das humanidades que não chamasse sua atenção – do cinema à arquitetura, passando pela pintura e a ficção científica – e ele parecia ter lido mais livros do que qualquer outra pessoa no planeta.

Ele era capaz de falar tanto sobre Parmênides quanto sobre pós-modernismo, e quando estreou Barry Lyndon (1975), filme de Stanley Kubrick baseado em um romance obscuro de Thackeray do qual ninguém havia ouvido falar, um de seus alunos comentou, confiante: “Fred deve ter lido” (e provavelmente estava certo). Ele tinha uma energia americana voraz combinada com uma alta sensibilidade europeia.

Sustentava que nenhuma crítica marxista tinha muito valor se não conseguisse dar conta da forma das frases; e era capaz detectar toda uma estratégia ideológica em uma guinada narrativa ou uma mudança de tom poético. Ao mesmo tempo, também media o pulso de uma civilização inteira, como em seu ensaio clássico sobre cultura pós-moderna.[ii]

Críticos literários não têm muita função social hoje em dia. Parte do feito de Fredric Jameson foi ter mostrado para o resto de nós como tais modestas figuras acadêmicas podem novamente se tornar intelectuais públicos, homens e mulheres cuja influência se espraia para muito além dos limites convencionais dos estudos literários. É isso que a palavra amorfa “teoria” passou a significar, e Fredric Jameson foi o mais fino teórico de todos.

*Terry Eagleton, filósofo e crítico literário, é professor emérito de literatura inglesa na Universidade de Oxford. Autor, entre outros livros, de O acontecimento da literatura (Unesp).

Tradução: Artur Renzo.

Publicado originalmente no blog da Editora Verso.

Notas do tradutor


[i] Fredric Jameson, Marxismo e forma: teorias dialéticas da literatura no século XX. Tradução: Iumna Maria Simon, Ismail Xavier e Fernando Oliboni. São Paulo, Editora Hucitec, 1985.

[ii] Fredric Jameson, Pós-modernismo, ou, a lógica cultural do capitalismo tardio.Tradução: Maria Elisa Cevasco. São Paulo, Ática, 1996.

FREDRIC JAMESON---- Um dos mais inovadores filósofos marxistas conremporâneos. Já há muito que não pode elaborar análises críticas sobre artes (eruditas e populares) e Cultura, desconhecendo-o.

 

Vento nas velas. 

Vento nas velas. Fredric Jameson (1934-2024)

Com Jameson, aprendi que mais do que saber repetir direitinho tudo que estava presente na obra de Adorno e da Teoria Crítica, o esforço que valia era tentar refletir sobre como essa teoria ilumina o presente. Essa era a graça da coisa toda, dizia ele. Nenhum exercício de conformação, mas liberdade, liberdade radical diante dos textos (dentro do que sua matéria, permite, evidentemente) e disposição para levar determinados autores aonde esses mesmos não quiseram ir.

Foto: Fronteiras do Pensamento (Wikimedia Commons)

Por Bruna Della Torre

Ser dialético significa ter o vento da história mundial em suas velas. As velas são os conceitos. Mas não basta dispor das velas. O que é decisivo é a arte de poder içá-las.
Walter Benjamin, Das Passagen-Werk

Fredric Jameson morreu em 22 de setembro de 2024. O marxismo perdeu um de seus maiores e mais importantes intelectuais. Alguém que, apesar de todas as derrotas da esquerda desde a queda do Muro de Berlim, permanecia um socialista convicto, sem nenhum traço de melancolia e que colocou a sua mente um tanto quanto privilegiada a serviço dessa causa, pela via da crítica. Jameson foi um dos maiores militantes teóricos do marxismo e sua obra é a prova da relevância dessa teoria, método e posição política para o século XXI.

Jameson ainda escrevia – acabou de lançar Inventions of a Present: The Novel in its Crisis of Globalization – e permanecia um professor ativo no Departamento de Literatura da Universidade de Duke, em Durham, Carolina do Norte, onde lecionava desde 1985. Graduado pelo Haverford College e com doutorado em Yale, lecionou nesta, em Harvard e na University of California (campi de San Diego e Santa Cruz). Além de ensinar no Programa de Literatura de Duke, Jameson atuava no âmbito da literatura comparada, com ênfase na teoria crítica e tratava de temas filosóficos relacionados à cultura e à literatura. O departamento, que ele ajudou a construir, era único e um dos mais abertos em termos de temas e disciplinas dos Estados Unidos.

Nem todo acadêmico é um intelectual. Jameson era ambos. Como a de Walter Benjamin, sua extensa obra é inclassificável. Ensaísta, Jameson interveio em muitos campos e abordou inúmeros assuntos: teoria do romance, filosofia, marxismo, crítica literária, arquitetura, artes plásticas, estudos de mídia, estudos culturais, teoria da globalização, modernismo, ficção científica, cultura de massas etc. Ele dizia que a mente não era como um computador, em que a memória é restrita, mas ilimitada – no caso dele, talvez isso seja verdade. E cada área tocada por sua pena se transformou, fazendo dele uma referência incontornável para a teoria crítica contemporânea. Cada intervenção teórica sua produzia uma transformação completa em seus muitos campos de estudos. A ficção científica é um gênero debatido pelo marxismo hoje, em grande medida, graças a ele. A crítica literária marxista que conjuga o pós-estruturalismo e a teoria crítica também é tributária de seus escritos. O debate sobre as tensões entre modernismo e realismo é outro depois de suas leituras. Bertolt Brecht, Walter Benjamin e Theodor W. Adorno saíram renovados de seus livros. Como com Karl Marx e Friedrich Hegel, Jameson era capaz de superar as querelas da fortuna crítica e sempre dizer algo novo sobre o que comentava.

Ele é o grande teórico da cultura sob o neoliberalismo e sua teoria sobre o pós-modernismo (como estilo tardio) e a pós-modernidade é certamente o maior desdobramento da teoria da indústria cultural de Theodor W. Adorno até hoje. Infelizmente esses aspectos de sua obra foram quase completamente ignorados pela filosofia e pelas ciências sociais brasileiras (salvo poucas e raras exceções), que ainda desprezam sua obra devido ao fato de ela vir da crítica literária ou talvez por ela desrespeitar todas as fronteiras disciplinares – um tabu para uma academia que ainda funciona na lógica das capitanias hereditárias (cada um no seu latifúndio, com a sua devida especialidade e ai de quem disser a palavra “crítica”). Apesar da trajetória estupenda de Jameson, quantas vezes não ouvi que sua obra era interessante, mas que lhe faltava substância e sistematicidade. Vale para ele o que Adorno escreveu sobre Marcel Proust em Minima Moralia; aquele que trai a sua classe para se dedicar às coisas do espírito “não é um profissional e, por melhor que seja, figura como um diletante na hierarquia dos concorrentes”. A tradução de suas obras completas, nesse sentido, é uma tarefa urgente para superar não só essa abordagem da obra de Jameson, mas a própria noção do que é a teoria crítica e de sua importância.

Além de um intelectual extraordinário, Jameson era um professor diligente, humilde e dedicado. Era respeitoso e sério e a prova de que um autor estupendo tem tempo para ser bom professor e orientador – nada nele dava a impressão de superstar. Ele dava aula duas vezes por semana, chegava cheio de livros e cadernos rabiscados e dava cursos sobre literatura, crítica literária e filosofia. Suas salas de aula eram lotadas de estrangeiros – os estadunidenses não davam muita bola para ele, pois diziam que os cursos de Jameson eram uma igrejinha, pois ao invés de dar seminários nos quais os alunos falam, Jameson dava palestras que duravam normalmente uma hora e quinze – talvez algo um pouco demasiado para a atenção já estilhaçada pelas redes sociais dos jovens dos EUA. Mas a cada aula, Jameson pedia que entregássemos antes uma “reação” ao texto do dia. Ele lia com atenção as respostas e sempre fazia questão de comentá-las de maneira discreta e sem personalizar. Ele tinha 83 anos quando me recebeu em Duke para um doutorado sanduíche e a paixão dele pela docência é algo que nunca havia visto. Sua família já havia se mudado para outra cidade, mas Jameson ficava em Durham – um lugar minúsculo e monótono – para lecionar. E lá ficou até o fim, evidenciando como o amor pelo que fazia sequer cedia às barreiras físicas que foram se impondo ao longo dos anos. Sua assistente me disse certa vez que ele comprava e lia um livro por dia e sua erudição era de fato impressionante. Quando deu uma aula sobre Bertolt Brecht, mencionou a Ópera do Malandro de Chico Buarque e em seu curso sobre modernismo incluiu Mário e Oswald de Andrade na bibliografia. Também recomendava fortemente a obra de Roberto Schwarz aos estudantes. Ele nunca falava de si, nem nas aulas, nem nas interações de orientação. Apesar de tudo que tinha escrito, nunca se indicava como referência bibliográfica e jamais escutei-o dizer: “eu escrevi um livro sobre isso”.

Jameson falava e lia em inúmeras línguas. Ele dizia que conhecer a teoria de um autor ou a obra de um artista era um pouco como saber falar uma língua estrangeira, pois também exige saber um vocabulário específico e uma forma de organizar o pensamento e a experiência. Ele era o marxista mais ortodoxo e heterodoxo que já vi na vida. Era um adorniano althusseriano e brechtiano, um sartreano luckásciano e, talvez, por isso, um benjaminiano. Jameson parecia ter um espírito antropológico com relação tanto ao marxismo, quanto à literatura. Tudo interessava e gerava curiosidade. Tudo se aproveitava, mas sem relativismo. O maior ensinamento de sua obra é esse: ler todos os autores do marxismo, ler toda a literatura – com as preferências inevitáveis que sempre temos – de coração e mente aberta, sem tomar partido por uma coisa ou outra antes de conhecê-la bem. Além disso, e acho que essa é a principal marca de sua obra, Jameson fazia questão de dizer e mostrar que o medo de errar não pode paralisar o pensamento. Ele experimentava com conceitos, análises, interpretações. Sabia que para dizer algo novo era preciso um impulso para ir além do estabelecido na fortuna crítica de uma obra. E para isso é preciso mais coragem do que pensamos. Tenho para mim que foi a superação dessa barreira psicológica e social que tornou sua obra tão vibrante. Não precisamos concordar com o que está escrito ali, mas é visível que se trata de um esforço da inteligência que funciona como motor para o marxismo contemporâneo. Com ele, aprendi que mais do que saber repetir direitinho tudo que estava presente na obra de Adorno e da Teoria Crítica, o esforço que valia era tentar refletir sobre como essa teoria ilumina o presente. Essa era a graça da coisa toda, dizia ele. Nenhum exercício de conformação, mas liberdade, liberdade radical diante dos textos (dentro do que sua matéria, permite, evidentemente) e disposição para levar determinados autores aonde esses mesmos não quiseram ir.

Mesmo aos 83 anos, Jameson separava uma hora e meia por semana para atender os alunos depois da aula. Essas horas serviam para conversar, pedir bibliografia, orientar os trabalhos. Muitas vezes, ele permanecia sentado, ao lado do quadro de Marx que tinha em seu escritório, esperando por estudantes. Mesmo quando ninguém aparecia, ele ficava lá. Essa sua imagem foi a que ficou em mim. Em Prismas – Crítica Cultural e Sociedade, Adorno diz que no seguinte conto de Kafka encontramos a figura da revolução:

Em nossa casa, essa imensa casa de subúrbio, uma caserna de aluguel rodeada por ruínas medievais indestrutíveis, foi hoje proclamado, nessa manhã fria e nebulosa de inverno, o seguinte manifesto:

A todos os meus co-locatários,

Eu possuo cinco espingardas de brinquedo. Elas estão penduradas na minha caixa, uma em cada gancho. A primeira me pertence. Quem quiser pode se candidatar às outras. Caso se apresentem mais do que quatro, os restantes devem trazer as suas próprias espingardas, e depositá-las na minha caixa. Pois deve haver unidade, sem unidade não iremos para frente. Aliás, possuo apenas espingardas que são inúteis para qualquer outra utilização: o mecanismo está arruinado, a rolha estragada, somente os gatilhos ainda funcionam. Portanto não será difícil conseguir outras espingardas nesse estado. Na verdade, por agora ficarei contente também com pessoas sem espingardas. Nós, que temos espingardas, colocaremos no momento oportuno os sem espingardas no meio do combate. É uma tática que teve êxito nas primeiras lutas dos fazendeiros norte-americanos contra os índios. Por que não deve funcionar também aqui, já que as condições são semelhantes? A longo prazo, portanto, podemos prescindir de espingardas, e mesmo estas cinco não são absolutamente imprescindíveis. Mas já que elas estão disponíveis, também devem ser utilizadas. Se não quiserem utilizar as quatro restantes, podem deixá-las lá. Neste caso, somente eu, como líder, levarei uma espingarda. Mas como não deveríamos ter um líder, também vou quebrar minha espingarda ou deixá-la de lado. Este foi o primeiro chamado. Na nossa casa ninguém tem tempo nem vontade de ler manifestos ou de refletir sobre eles. Os pequenos papéis logo nadavam na água do esgoto que se inicia no sótão, é alimentada por todos os corredores, desce pelas escadas e luta com a contracorrente de água que jorra do andar de baixo. Mas depois de uma semana chegou um segundo chamado:

Inquilinos,

Até agora ninguém se apresentou. Estive sempre em casa, a não ser no tempo em que tinha que cuidar do meu sustento, e mesmo durante a minha ausência a porta do meu quarto ficou sempre aberta, com uma folha em cima de minha mesa, na qual quem quisesse poderia se inscrever. Ninguém o fez.

Certamente muita gente atendeu ao chamado de Jameson, ele orientou e ensinou muitas pessoas que hoje buscam continuar seu projeto. Mas o convite permanece aberto, mesmo depois de sua morte. Nossa sociedade costuma homenagear os mortos, baixando suas bandeiras em sinal de luto. A morte de Jameson exige outro gesto. Que se icem as velas.

Adeus, Fredric Jameson.

Abaixo, uma lista de algumas de suas obras para quem quiser conhecer mais sobre o autor:

  • Sartre: The Origins of a Style
  • Marxism and Form: Twentieth-Century Dialectical Theories of Literature
  •  The Prison-House of Language: A Critical Account of Structuralism and Russian Formalism (originalmente a segunda parte de Marxismo e Forma, desmembrada por razões editoriais)
  •  O marxismo tardio
  •  Fables of Aggression: Wyndham Lewis, the Modernist as Fascist
  •  The Political Unconscious: Narrative as a Socially Symbolic Act
  •  Ideologies of Theory: Essays
  •  Postmodernism, or The Cultural Logic of Late Capitalism
  •  Signatures of the Visible; The Geopolitical Aesthetic: Cinema and Space in the World System
  •  The Seeds of Time
  • Brecht and Method
  •  The Cultural Turn: Selected Writings on the Postmodern, 1983–1998
  •  A Singular Modernity: Essay on the Ontology of the Present
  •  Archaeologies of the Future: The Desire Called Utopia and Other Science Fictions
  •  The Modernist Papers
  •  Valences of the Dialectic
  • The Hegel Variations: On the Phenomenology of Spirit
  •  Representing Capital: A Reading of Volume One
  •  The Antinomies of Realism
  • An American Utopia: Dual Power and the Universal Army
  •  Raymond Chandler: The Detections of Totality
  •  Allegory and Ideology
  •  The Benjamin Files
  •  The Inventions of a Present: The Novel in its Crisis of Globalization
  • The Years of Theory: Postwar French Thought to the Present
  •  Mimesis, Expression, Construction

 (1934-2024)

Com Jameson, aprendi que mais do que saber repetir direitinho tudo que estava presente na obra de Adorno e da Teoria Crítica, o esforço que valia era tentar refletir sobre como essa teoria ilumina o presente. Essa era a graça da coisa toda, dizia ele. Nenhum exercício de conformação, mas liberdade, liberdade radical diante dos textos (dentro do que sua matéria, permite, evidentemente) e disposição para levar determinados autores aonde esses mesmos não quiseram ir.

Foto: Fronteiras do Pensamento (Wikimedia Commons)

Por Bruna Della Torre

Ser dialético significa ter o vento da história mundial em suas velas. As velas são os conceitos. Mas não basta dispor das velas. O que é decisivo é a arte de poder içá-las.
Walter Benjamin, Das Passagen-Werk

Fredric Jameson morreu em 22 de setembro de 2024. O marxismo perdeu um de seus maiores e mais importantes intelectuais. Alguém que, apesar de todas as derrotas da esquerda desde a queda do Muro de Berlim, permanecia um socialista convicto, sem nenhum traço de melancolia e que colocou a sua mente um tanto quanto privilegiada a serviço dessa causa, pela via da crítica. Jameson foi um dos maiores militantes teóricos do marxismo e sua obra é a prova da relevância dessa teoria, método e posição política para o século XXI.

Jameson ainda escrevia – acabou de lançar Inventions of a Present: The Novel in its Crisis of Globalization – e permanecia um professor ativo no Departamento de Literatura da Universidade de Duke, em Durham, Carolina do Norte, onde lecionava desde 1985. Graduado pelo Haverford College e com doutorado em Yale, lecionou nesta, em Harvard e na University of California (campi de San Diego e Santa Cruz). Além de ensinar no Programa de Literatura de Duke, Jameson atuava no âmbito da literatura comparada, com ênfase na teoria crítica e tratava de temas filosóficos relacionados à cultura e à literatura. O departamento, que ele ajudou a construir, era único e um dos mais abertos em termos de temas e disciplinas dos Estados Unidos.

Nem todo acadêmico é um intelectual. Jameson era ambos. Como a de Walter Benjamin, sua extensa obra é inclassificável. Ensaísta, Jameson interveio em muitos campos e abordou inúmeros assuntos: teoria do romance, filosofia, marxismo, crítica literária, arquitetura, artes plásticas, estudos de mídia, estudos culturais, teoria da globalização, modernismo, ficção científica, cultura de massas etc. Ele dizia que a mente não era como um computador, em que a memória é restrita, mas ilimitada – no caso dele, talvez isso seja verdade. E cada área tocada por sua pena se transformou, fazendo dele uma referência incontornável para a teoria crítica contemporânea. Cada intervenção teórica sua produzia uma transformação completa em seus muitos campos de estudos. A ficção científica é um gênero debatido pelo marxismo hoje, em grande medida, graças a ele. A crítica literária marxista que conjuga o pós-estruturalismo e a teoria crítica também é tributária de seus escritos. O debate sobre as tensões entre modernismo e realismo é outro depois de suas leituras. Bertolt Brecht, Walter Benjamin e Theodor W. Adorno saíram renovados de seus livros. Como com Karl Marx e Friedrich Hegel, Jameson era capaz de superar as querelas da fortuna crítica e sempre dizer algo novo sobre o que comentava.

Ele é o grande teórico da cultura sob o neoliberalismo e sua teoria sobre o pós-modernismo (como estilo tardio) e a pós-modernidade é certamente o maior desdobramento da teoria da indústria cultural de Theodor W. Adorno até hoje. Infelizmente esses aspectos de sua obra foram quase completamente ignorados pela filosofia e pelas ciências sociais brasileiras (salvo poucas e raras exceções), que ainda desprezam sua obra devido ao fato de ela vir da crítica literária ou talvez por ela desrespeitar todas as fronteiras disciplinares – um tabu para uma academia que ainda funciona na lógica das capitanias hereditárias (cada um no seu latifúndio, com a sua devida especialidade e ai de quem disser a palavra “crítica”). Apesar da trajetória estupenda de Jameson, quantas vezes não ouvi que sua obra era interessante, mas que lhe faltava substância e sistematicidade. Vale para ele o que Adorno escreveu sobre Marcel Proust em Minima Moralia; aquele que trai a sua classe para se dedicar às coisas do espírito “não é um profissional e, por melhor que seja, figura como um diletante na hierarquia dos concorrentes”. A tradução de suas obras completas, nesse sentido, é uma tarefa urgente para superar não só essa abordagem da obra de Jameson, mas a própria noção do que é a teoria crítica e de sua importância.

Além de um intelectual extraordinário, Jameson era um professor diligente, humilde e dedicado. Era respeitoso e sério e a prova de que um autor estupendo tem tempo para ser bom professor e orientador – nada nele dava a impressão de superstar. Ele dava aula duas vezes por semana, chegava cheio de livros e cadernos rabiscados e dava cursos sobre literatura, crítica literária e filosofia. Suas salas de aula eram lotadas de estrangeiros – os estadunidenses não davam muita bola para ele, pois diziam que os cursos de Jameson eram uma igrejinha, pois ao invés de dar seminários nos quais os alunos falam, Jameson dava palestras que duravam normalmente uma hora e quinze – talvez algo um pouco demasiado para a atenção já estilhaçada pelas redes sociais dos jovens dos EUA. Mas a cada aula, Jameson pedia que entregássemos antes uma “reação” ao texto do dia. Ele lia com atenção as respostas e sempre fazia questão de comentá-las de maneira discreta e sem personalizar. Ele tinha 83 anos quando me recebeu em Duke para um doutorado sanduíche e a paixão dele pela docência é algo que nunca havia visto. Sua família já havia se mudado para outra cidade, mas Jameson ficava em Durham – um lugar minúsculo e monótono – para lecionar. E lá ficou até o fim, evidenciando como o amor pelo que fazia sequer cedia às barreiras físicas que foram se impondo ao longo dos anos. Sua assistente me disse certa vez que ele comprava e lia um livro por dia e sua erudição era de fato impressionante. Quando deu uma aula sobre Bertolt Brecht, mencionou a Ópera do Malandro de Chico Buarque e em seu curso sobre modernismo incluiu Mário e Oswald de Andrade na bibliografia. Também recomendava fortemente a obra de Roberto Schwarz aos estudantes. Ele nunca falava de si, nem nas aulas, nem nas interações de orientação. Apesar de tudo que tinha escrito, nunca se indicava como referência bibliográfica e jamais escutei-o dizer: “eu escrevi um livro sobre isso”.

Jameson falava e lia em inúmeras línguas. Ele dizia que conhecer a teoria de um autor ou a obra de um artista era um pouco como saber falar uma língua estrangeira, pois também exige saber um vocabulário específico e uma forma de organizar o pensamento e a experiência. Ele era o marxista mais ortodoxo e heterodoxo que já vi na vida. Era um adorniano althusseriano e brechtiano, um sartreano luckásciano e, talvez, por isso, um benjaminiano. Jameson parecia ter um espírito antropológico com relação tanto ao marxismo, quanto à literatura. Tudo interessava e gerava curiosidade. Tudo se aproveitava, mas sem relativismo. O maior ensinamento de sua obra é esse: ler todos os autores do marxismo, ler toda a literatura – com as preferências inevitáveis que sempre temos – de coração e mente aberta, sem tomar partido por uma coisa ou outra antes de conhecê-la bem. Além disso, e acho que essa é a principal marca de sua obra, Jameson fazia questão de dizer e mostrar que o medo de errar não pode paralisar o pensamento. Ele experimentava com conceitos, análises, interpretações. Sabia que para dizer algo novo era preciso um impulso para ir além do estabelecido na fortuna crítica de uma obra. E para isso é preciso mais coragem do que pensamos. Tenho para mim que foi a superação dessa barreira psicológica e social que tornou sua obra tão vibrante. Não precisamos concordar com o que está escrito ali, mas é visível que se trata de um esforço da inteligência que funciona como motor para o marxismo contemporâneo. Com ele, aprendi que mais do que saber repetir direitinho tudo que estava presente na obra de Adorno e da Teoria Crítica, o esforço que valia era tentar refletir sobre como essa teoria ilumina o presente. Essa era a graça da coisa toda, dizia ele. Nenhum exercício de conformação, mas liberdade, liberdade radical diante dos textos (dentro do que sua matéria, permite, evidentemente) e disposição para levar determinados autores aonde esses mesmos não quiseram ir.

Mesmo aos 83 anos, Jameson separava uma hora e meia por semana para atender os alunos depois da aula. Essas horas serviam para conversar, pedir bibliografia, orientar os trabalhos. Muitas vezes, ele permanecia sentado, ao lado do quadro de Marx que tinha em seu escritório, esperando por estudantes. Mesmo quando ninguém aparecia, ele ficava lá. Essa sua imagem foi a que ficou em mim. Em Prismas – Crítica Cultural e Sociedade, Adorno diz que no seguinte conto de Kafka encontramos a figura da revolução:

Em nossa casa, essa imensa casa de subúrbio, uma caserna de aluguel rodeada por ruínas medievais indestrutíveis, foi hoje proclamado, nessa manhã fria e nebulosa de inverno, o seguinte manifesto:

A todos os meus co-locatários,

Eu possuo cinco espingardas de brinquedo. Elas estão penduradas na minha caixa, uma em cada gancho. A primeira me pertence. Quem quiser pode se candidatar às outras. Caso se apresentem mais do que quatro, os restantes devem trazer as suas próprias espingardas, e depositá-las na minha caixa. Pois deve haver unidade, sem unidade não iremos para frente. Aliás, possuo apenas espingardas que são inúteis para qualquer outra utilização: o mecanismo está arruinado, a rolha estragada, somente os gatilhos ainda funcionam. Portanto não será difícil conseguir outras espingardas nesse estado. Na verdade, por agora ficarei contente também com pessoas sem espingardas. Nós, que temos espingardas, colocaremos no momento oportuno os sem espingardas no meio do combate. É uma tática que teve êxito nas primeiras lutas dos fazendeiros norte-americanos contra os índios. Por que não deve funcionar também aqui, já que as condições são semelhantes? A longo prazo, portanto, podemos prescindir de espingardas, e mesmo estas cinco não são absolutamente imprescindíveis. Mas já que elas estão disponíveis, também devem ser utilizadas. Se não quiserem utilizar as quatro restantes, podem deixá-las lá. Neste caso, somente eu, como líder, levarei uma espingarda. Mas como não deveríamos ter um líder, também vou quebrar minha espingarda ou deixá-la de lado. Este foi o primeiro chamado. Na nossa casa ninguém tem tempo nem vontade de ler manifestos ou de refletir sobre eles. Os pequenos papéis logo nadavam na água do esgoto que se inicia no sótão, é alimentada por todos os corredores, desce pelas escadas e luta com a contracorrente de água que jorra do andar de baixo. Mas depois de uma semana chegou um segundo chamado:

Inquilinos,

Até agora ninguém se apresentou. Estive sempre em casa, a não ser no tempo em que tinha que cuidar do meu sustento, e mesmo durante a minha ausência a porta do meu quarto ficou sempre aberta, com uma folha em cima de minha mesa, na qual quem quisesse poderia se inscrever. Ninguém o fez.

Certamente muita gente atendeu ao chamado de Jameson, ele orientou e ensinou muitas pessoas que hoje buscam continuar seu projeto. Mas o convite permanece aberto, mesmo depois de sua morte. Nossa sociedade costuma homenagear os mortos, baixando suas bandeiras em sinal de luto. A morte de Jameson exige outro gesto. Que se icem as velas.

Adeus, Fredric Jameson.

Abaixo, uma lista de algumas de suas obras para quem quiser conhecer mais sobre o autor:

  • Sartre: The Origins of a Style
  • Marxism and Form: Twentieth-Century Dialectical Theories of Literature
  •  The Prison-House of Language: A Critical Account of Structuralism and Russian Formalism (originalmente a segunda parte de Marxismo e Forma, desmembrada por razões editoriais)
  •  O marxismo tardio
  •  Fables of Aggression: Wyndham Lewis, the Modernist as Fascist
  •  The Political Unconscious: Narrative as a Socially Symbolic Act
  •  Ideologies of Theory: Essays
  •  Postmodernism, or The Cultural Logic of Late Capitalism
  •  Signatures of the Visible; The Geopolitical Aesthetic: Cinema and Space in the World System
  •  The Seeds of Time
  • Brecht and Method
  •  The Cultural Turn: Selected Writings on the Postmodern, 1983–1998
  •  A Singular Modernity: Essay on the Ontology of the Present
  •  Archaeologies of the Future: The Desire Called Utopia and Other Science Fictions
  •  The Modernist Papers
  •  Valences of the Dialectic
  • The Hegel Variations: On the Phenomenology of Spirit
  •  Representing Capital: A Reading of Volume One
  •  The Antinomies of Realism
  • An American Utopia: Dual Power and the Universal Army
  •  Raymond Chandler: The Detections of Totality
  •  Allegory and Ideology
  •  The Benjamin Files
  •  The Inventions of a Present: The Novel in its Crisis of Globalization
  • The Years of Theory: Postwar French Thought to the Present
  •  Mimesis, Expression, Construction

terça-feira, 24 de setembro de 2024

HEZBOLLAH PODE VENCER ISRAEL? - ANÁLISE DE BRENO ALTMAN

 

Como Fredric Jameson reinventou a crítica literária

Tradução
Fabio Fernandes

O principal crítico literário e cultural marxista do mundo, Fredric Jameson, nos deixou esse final de semana. Ao longo da sua carreira, ele se opôs às abordagens reducionistas da cultura e a uma tradição de leitura atenta à política. Seu último livro mostra-o no auge de seus poderes, esculpindo uma nova alternativa.

Resenha do livro Inventions of a Present: The Novel in Its Crisis of Globalization, de de Fredric Jameson (Verso, 2024)


Por mais de cinco décadas, Fredric Jameson tem sido o principal crítico literário e cultural marxista nos Estados Unidos, se não no mundo. Aos noventa anos, ele continua produzindo. Seu último livro, Inventions of a Present: The Novel in Its Crisis of Globalization, foi lançado em maio, e The Years of Theory: Postwar French Thought to the Present está programado para ser publicado ainda este ano. Jameson também está em processo de conclusão do que será o último volume de seu projeto de seis partes, The Poetics of Social Forms – de uma forma verdadeiramente dialética, o livro final da série é o volume 1.

Nascido em Cleveland em 1934, Fredric Jameson frequentou o Haverford College, onde estudou com o lendário teórico retórico Wayne Booth, que cunhou o termo “narrador não confiável”. Depois de se formar em francês, Jameson concluiria seus estudos em Yale, onde obteria o doutorado em 1959. Passou sua carreira profissional e acadêmica em francês, estudos românicos ou programas de literatura comparada (não em inglês, por acaso), primeiro em Harvard, depois Universidade da Califórnia, San Diego; Yale; UC Santa Cruz; e desde 1985, Duke University. Assim, a sua perspectiva sempre abrangeu ambas as costas: olhando para o continente a partir dos Estados Unidos em busca de insights. A vasta experiência de ensino de Jameson, sem dúvida, informa a ampla gama de assuntos, línguas, literaturas e teorias que compõem o seu corpo de trabalho.

Tornar a crítica literária marxista novamente

Apesar de toda a sua produtividade literária, Jameson sempre foi e continua sendo um professor, e muito do seu trabalho – tanto na sala de aula (onde o encontrei pela primeira vez como estudante em 1989) quanto em seus escritos – tem um aspecto profundamente pedagógico. Em Marxism and Form: Twentieth-Century Dialectical Theories of Literature (1971), ele apresentou aos leitores de língua inglesa a rica tradição da teoria marxista ocidental, examinando o trabalho de Georg Lukács, Walter Benjamin, a Escola de Frankfurt e Jean-Paul Sartre.

Jameson organizou esses pensadores a serviço de uma sofisticada teoria de crítica dialética. Naquela época, esses pensadores não apenas eram pouco conhecidos, mas a própria crítica marxista ou de orientação social era pouco praticada nos Estados Unidos. Quando Jameson iniciou sua carreira, a crítica acadêmica era dominada por abordagens estritamente formalistas. Estes centraram-se em “leituras atentas” do texto, mas excluíram em grande parte qualquer discussão do contexto social ou histórico. Alguns críticos endossaram mais modelos históricos, mas estes foram frequentemente longe demais na outra direção, ignorando inteiramente as características linguísticas ou formais da literatura, em favor de ver a literatura como um mero “reflexo” do seu momento histórico.

“Jameson nunca simpatizou com as rejeições esquerdistas de práticas críticas supostamente misteriosas como a “desconstrução” pela sua falta de relevância social.”

Para Jameson, nenhuma destas abordagens era satisfatória. Cada um impôs limites à forma ou ao conteúdo, enquanto Jameson mostrou como forma e conteúdo, o exame cuidadoso do texto e as investigações do conteúdo sócio-histórico, leituras estritamente linguísticas e expansivamente políticas também poderiam ser relacionadas numa abordagem marxista abrangente. Jameson defendeu de forma persuasiva uma abordagem social, política e histórica; ele também permaneceu profundamente comprometido com a análise formal. Avançando nestas duas posições – uma obsessão anglófona pela forma, uma preocupação de influência continental pelo social – Jameson lançou as bases para a sua participação nos debates sobre estudos literários e teoria crítica nos próximos anos.

Nas décadas de 1970 e 1980, a “teoria” estava na moda. Influenciados em grande parte pelo trabalho dos filósofos franceses do pós-guerra, os críticos literários procuraram aplicar ideias psicanalíticas, bem como noções desenvolvidas na linguística, ao estudo da cultura. Jameson, no entanto, insistiu na relevância do marxismo como quadro indispensável.

Jameson nunca simpatizou com as rejeições esquerdistas de práticas críticas supostamente misteriosas como a “desconstrução” pela sua falta de relevância social. O marxismo, afirmou consistentemente, é capaz de abraçar estas outras práticas mais limitadas, atribuindo-lhes a sua “validade setorial” como meio de analisar certos aspectos linguísticos, psicológicos, éticos ou históricos da nossa existência, mantendo ao mesmo tempo um compromisso com a totalidade. Com isto, ele quis dizer uma visão da nossa subjetividade individual e coletiva como parte de um sistema social, político e histórico mais vasto – o modo de produção capitalista.

O marxismo é, na opinião de Jameson, a única abordagem crítica capaz de dar sentido à experiência humana como um fenómeno histórico. Tomando emprestada uma frase de Sartre, Jameson afirmou o marxismo como o “horizonte intransponível”. Ela, mais do que qualquer outra perspectiva, é capaz de detectar os múltiplos significados, termo que Jameson usa num sentido amplo e flexível, de um determinado texto.

Este é o argumento apresentado em O inconsciente político: a narrativa como ato socialmente simbólico (1981), sem dúvida o trabalho mais famoso e influente de Jameson. Aqui, Jameson conecta toda a história das formas narrativas – desde o épico homérico e o romance medieval, até a história do romance, passando pelos grandes estágios do realismo, modernismo, pós-modernismo e além (ou seja, arqueologias do futuro) – até as mudanças modos de produção na história do capitalismo.

Seguindo uma tradição marxista hegeliana, Jameson vê a história humana como uma narrativa única, embora por vezes descontínua, que liga vários modos de produção. Tanto as sociedades de caçadores-coletores como o feudalismo moldaram a nossa imaginação cultural, produzindo contos míticos relatados através de narrativas épicas, a ascensão do romance alegórico e o desenvolvimento do romance moderno. Tais formas narrativas em si mesmas, como gêneros ou através das suas figuras e tropos distintivos, revelam o “inconsciente político” da sociedade em que são produzidas.

Os dramatis personae de sua narrativa são Honoré de Balzac, George Gissing e Joseph Conrad. Emergindo em pontos altos do capitalismo e do imperialismo, os seus romances deveriam, argumenta Jameson, ser entendidos como compromissos com as mudanças sísmicas que foram o seu pano de fundo.

Entre outras coisas, a leitura de Jameson revela as “estratégias de contenção” ideológicas que tendem a isolar a experiência individual e, assim, minimizar o conteúdo social e político, que se torna cada vez mais relegado a uma dimensão invisível (ou “inconsciente”).

Dispersando nuvens

Notoriamente complexa, a escrita de Jameson é produto de sua vasta e eclética gama de referências culturais e tradições teóricas envolvidas em seu pensamento. Suas frases, que ele chamou de “dialéticas”, tendem a ser longas, e o que muitas vezes parecem tangentes ou digressões são traços característicos de seus ensaios, que funcionam reunindo uma nuvem de ideias que se aguçam repentinamente em um momento de insight como um relâmpago em uma tempestade.

O pensamento dialético, disse Jameson, “exige que você diga tudo simultaneamente, quer você pense que pode ou não”, e há um forte sentido disso em sua prosa. “Voltaremos a isso mais tarde”, “enquanto isso”, “como vimos” são refrões comuns. Comentando sobre esse elemento do estilo de Jameson em sua resenha de Valences of the Dialectic (2009), Benjamin Kunkel observou que é “como se tudo estivesse presente em sua mente ao mesmo tempo, e fosse apenas a natureza infelizmente sequencial da linguagem que o forçou explicitar frase por frase e ensaio por ensaio uma apreensão do mundo contemporâneo que fosse simultânea e total.”

Talvez isto esteja relacionado com a visão de Jameson de que a totalidade social, irrepresentável em si mesma, pode de alguma forma ser delimitada através da interpretação dialética de várias formas ou textos distintos. Dessa forma, a leitura de um determinado filme, romance ou estrutura arquitetônica pode nos ajudar a compreender melhor o sistema do qual ele e nós fazemos parte. Este sistema é, em última análise, o próprio modo de produção, o capitalismo, e as várias formas culturais ou obras de arte produzidas no seu todo estrutural representam, de várias maneiras, esse sistema, ao mesmo tempo que potencialmente criam alternativas.

A última oferta de Jameson, Inventions of a Present: The Novel in Its Crisis of Globalization, é uma coleção de artigos publicados anteriormente, exibindo uma gama eclética de seu trabalho ao longo de muitos anos, ao mesmo tempo que fornece uma espécie de visão geral deste vasto corpo de pensar. Como o subtítulo indica, Jameson está aqui interessado no romance em si e, de fato, muitos dos capítulos foram publicados originalmente como resenhas de livros ou ensaios de resenhas, e quase todos os capítulos se concentram em um único romance. Assim, embora possa não ser exatamente representativo da obra de Jameson como um todo, Invenções de um Presente seria um bom ponto de partida para um novo leitor, pois proporciona uma oportunidade de ver o teórico e o crítico em ação — Jameson, o leitor, por assim dizer, em uma ampla gama de romances.

Suas linhas iniciais são caracteristicamente marcantes:

O estudioso anseia pelo salto de um tigre para o passado; o revisor de livros em busca de vislumbres do presente. O romance, por sua vez, é o mapa em relevo do tempo, com seus sulcos e esporas marcando a intrusão da história nas vidas individuais ou então seus silêncios reveladores.

Desta forma, conclui Jameson, “[todos] os romances são, portanto, históricos”, mesmo que o que costumava ser pensado como “o romance histórico” em si pareça ser uma coisa do passado.

“Os romances são um meio pelo qual podemos empreender o impossível projeto de historicizar o momento atual.”

O resenhista, portanto, localiza cada romance em seu e no nosso momento presente, ao mesmo tempo que o situa dentro dos contextos sociais, políticos e históricos mais amplos de sua produção e recepção, juntamente com as histórias literárias e sociais muito mais vastas das quais os textos e o os leitores fazem parte. Como sempre, Jameson permanece hostil à falsa escolha entre formalismo e historicismo. “Ler estes registros e estes sintomas com alguma precisão exige uma espécie de formalismo, desde que seja um formalismo social ou, melhor ainda, materialista, capaz de detectar a profunda historicidade da qual estas obras são uma transcrição arqueológica.” As resenhas e ensaios de Jameson em Inventions of a Present enquadram assim o círculo da leitura atenta e da crítica de orientação social ou política, a fim de mostrar como o romance hoje registra a nossa situação histórica numa era de globalização.

Em The Autonomous Work of Art: Utopian Plot-Formation in The Wire, ele se volta para a célebre série de televisão baseada em Baltimore, que confunde o gênero, produzida por David Simon. Este é o único capítulo de Invenções do Presente que não se concentra em romances ou romancistas, mas a sua inclusão nesta coleção mostra até que ponto The Wire, como muitos críticos observaram na época, é um triunfo do realismo romanesco, mais dickensiano do que a maioria dos dramas de seu gênero.

Na sua leitura de The Wire, a meticulosa construção do enredo do realismo da série, com as suas múltiplas perspectivas e coletividades, contribui para uma visão de uma reestruturação potencialmente revolucionária ou transformadora da sociedade. As múltiplas perspectivas e enredos dinâmicos, traçando fluxos e energias sociais ao longo deste sistema complexo, formam assim uma espécie de mapa, não apenas dos espaços literais da cidade, mas do sistema social como um todo, que por sua vez pode ser usado como um meio para imaginar formas alternativas. The Wire apresenta, portanto, “um enredo em que elementos utópicos são introduzidos, sem fantasia ou realização de desejo, na construção de eventos fictícios, mas totalmente realistas”.

O curioso título merece uma palavra. Tal como acontece com os títulos de muitos dos livros de Jameson, que o crítico Phillip E. Wegner chamou, com razão, de “romances teóricos”. Invenções de um Presente é uma alusão a uma frase de Stéphane Mallarmé: “Não existe presente[…] Não – um presente não existe”, e que “aqueles que se declaram seus contemporâneos” estão mal-informados. É nesta tarefa de inventar o presente que o romance é mais indispensável. Os romances são um meio pelo qual podemos empreender o impossível projeto de historicizar o momento atual. Independentemente da perspectiva política do seu autor, eles sintetizam o mundo, e uma crítica dialética marxista do tipo à qual Jameson dedicou toda a sua carreira pode ajudar a dar sentido à forma como os artistas dão sentido ao mundo. “Nestes romances”, como diz Jameson, refletindo sobre a citação de Mallarmé, “podemos começar a ouvir, ainda que fracamente, as vozes dos contemporâneos”.

Sobre os autores

é professor de inglês na Texas State University. Seus livros recentes incluem The Fiction of Dread: Dystopia, Monstrosity, and Apocalypse, The Critical Situation: Vexed Perspectives in Postmodern Literary Studies e For a Ruthless Critique of All That Exists: Literature in an Age of Capitalist Realism.

 

Morreu Fredric R. Jameson, proeminente filósofo e crítico cultural (1934-2024)

Jameson no Salão de São Paulo em 2000.

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

 in JACOBINACabral foi não apenas um militante agrônomo, estrategista militar e político, mas um teórico inovador que soube adaptar o marxismo à realidade das colônias africanas. (Reprodução)

12/09/2024

Um dos maiores revolucionários anticoloniais do mundo

Neste dia, em 1924, nascia Amilcar Cabral, o revolucionário africano responsável por liderar a libertação de Guiné-Bissau e Cabo Verde da colonização portuguesa. Seu legado teórico e prático continua sendo uma referência central para as lutas contra o imperialismo, o racismo e a crise climática.

Era 1964, quando, em pleno curso da guerra de independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, Amílcar Cabral tomou uma decisão que encapsulava sua visão revolucionária em toda a sua profundidade: começou a assinar o seu nome como Abel Djassi. Mais do que um simples pseudônimo, essa escolha carregava um simbolismo significativo. Líder incontestável do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), Cabral optou por afastar sua identidade individual em prol da coletividade da luta, esvaziando o protagonismo pessoal para reforçar a natureza coletiva da revolução.

Hoje, em 2024, 60 anos depois desse acontecimento, celebramos o centenário de nascimento deste grande marxista e uma das figuras mais importantes da luta anticolonial e do pensamento revolucionário no século XX. Nascido em 12 de setembro de 1924, Cabral foi não apenas um estrategista militar e político, mas um teórico inovador que soube adaptar o marxismo à realidade das colônias africanas, especialmente na Guiné-Bissau e em Cabo Verde. Seu legado continua a ser uma referência central para as lutas contemporâneas contra o imperialismo, o racismo e o neocolonialismo.

“O nome escolhido evocava a ideia de que cada combatente era um fio indispensável do tecido revolucionário e que a vitória só seria alcançada por meio do esforço coletivo e da mobilização das massas.”

A adoção do nome Abel Djassi por Cabral refletia também sua profunda compreensão da natureza dialética da luta anticolonial. Para ele, a identidade revolucionária não poderia se limitar à figura de um único líder ou à centralidade de uma personalidade carismática. Era necessário criar uma unidade de propósito entre todos os envolvidos, desde os guerrilheiros nas florestas da Guiné até os trabalhadores em Cabo Verde, todos igualmente responsáveis pelo futuro de suas nações. O nome escolhido evocava a ideia de que, no campo de batalha e nas arenas políticas, cada combatente era um fio indispensável do tecido revolucionário, e que a vitória só seria alcançada por meio do esforço coletivo e da mobilização das massas. Essa era a essência da visão de Cabral: construir um movimento de libertação que fosse orgânico, inclusivo e enraizado nas necessidades e sonhos do povo. A luta não era de um único homem, mas de todo um povo. 

O pseudônimo Abel Djassi simbolizava o desejo de Amílcar Cabral de se integrar profundamente aos combatentes, não como um líder distante ou um teórico isolado, mas como um igual — alguém que, tal como os camponeses e guerrilheiros ao seu lado, empunhava não apenas armas, mas o sonho coletivo da libertação. Cabral sempre entendeu que a revolução não se construía por meio de ações individuais, mas pela força organizada das massas. A sua liderança se fundia com o destino coletivo da nação em formação, demonstrando que a verdadeira libertação não se baseava no protagonismo individual, mas sim no esforço conjunto de todos.

A arte da palavra

Cabral destacou-se não apenas por sua perspicácia teórica e liderança militar, mas também por sua extraordinária habilidade de ajustar seu discurso conforme o público. Além de ser um grande poeta, com maestria, ele conseguia comunicar suas ideias de maneira eficaz tanto a camponeses de pouca ou nenhuma escolaridade quanto a líderes revolucionários internacionais e figuras de alta autoridade política e religiosa. Essa adaptabilidade revelava sua notável capacidade política e pragmática, permitindo que ele alcançasse diferentes audiências sem comprometer seus princípios. Momentos cruciais, como seus discursos na ONU, sua participação nas comemorações do centenário de Lenin, em Moscou, e seu encontro com o Papa Paulo VI, no Vaticano, revelam essa versatilidade discursiva, na qual transitava facilmente entre diferentes interlocutores, sempre mantendo como caminho central a luta pela libertação nacional e a justiça social. 

Em cada cenário, Cabral demonstrava sua habilidade única de adaptar o discurso conforme o contexto e o público. Nos palcos internacionais, ele soube alinhar seu discurso às expectativas diplomáticas e políticas, ao mesmo tempo em que reafirmava os valores centrais da luta de libertação. Para Cabral, não se tratava apenas de obter apoio ou reconhecimento externo, mas de deixar claro que a batalha pela independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde era parte de uma luta global contra o imperialismo e pela autodeterminação. Essa capacidade de transitar entre diferentes arenas, mantendo a coerência de sua mensagem, era uma de suas grandes forças, permitindo que construísse pontes tanto com o movimento socialista internacional quanto com instituições e lideranças que, a princípio, poderiam parecer distantes de sua causa.

Em dezembro de 1972, por exemplo, Amílcar Cabral discursou na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), onde apresentou a causa da independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde diante da comunidade internacional. Nessa ocasião histórica, Cabral utilizou um tom diplomático, mas firme, para denunciar o colonialismo português e expor ao mundo as atrocidades cometidas pelo regime de Salazar. Ele argumentou que a luta de libertação liderada pelo PAIGC era legítima e inevitável, sendo uma resposta necessária à exploração e à repressão colonial.

“Cabral dialogou diretamente com a tradição revolucionária do socialismo científico, referindo-se às ideias de Lenin sobre o imperialismo.”

Cabral conciliou, de forma exemplar, um apelo ao direito internacional, invocando o princípio da autodeterminação dos povos, com uma análise marxista do imperialismo. Com esse discurso, soube adaptar-se ao cenário diplomático, mantendo uma crítica contundente ao colonialismo em um formato que dialogava com o movimento socialista internacional.

Dois anos antes, em abril de 1970, Cabral havia participado das comemorações do centenário de nascimento de Lenin, em Moscou, onde discursou para líderes revolucionários e autoridades da União Soviética. Utilizando uma linguagem profundamente enraizada no marxismo, Cabral dialogou diretamente com a tradição revolucionária do socialismo científico, referindo-se às ideias de Lenin sobre o imperialismo. O discurso foi um marco importante para reafirmar os vínculos entre as lutas de libertação africanas e o legado do marxismo-leninismo contra o colonialismo português na Guiné-Bissau e Cabo Verde:

“Como estamos nos esforçando para libertar nosso país de um jugo estrangeiro, estamos aqui para representar não apenas nosso Partido. Somos os representantes legais do povo africano da Guiné e das Ilhas de Cabo Verde, as mais antigas colônias portuguesas na África — um povo que foi compelido a pegar em armas para sua libertação diante da violência criminosa por parte dos colonialistas fascistas portugueses, que estão pisoteando o direito internacional e os direitos humanos elementares.”

Para Cabral, era essencial adaptar o marxismo-leninismo ao contexto específico das lutas de libertação na África. Embora as ideias de Lenin fossem fundamentais, era imprescindível que cada movimento revolucionário se adaptasse às condições materiais e culturais de seu próprio país. Cabral argumentava que o marxismo, assim como qualquer teoria revolucionária, não deveria ser aplicado de forma dogmática, mas sim moldado pelas realidades locais.

No ano seguinte, em 1971, Amílcar Cabral teve uma reunião de grande importância com o Papa Paulo VI, no Vaticano. Este momento representou uma significativa derrota simbólica para o regime de Salazar. O governo português, que se autoproclamava defensor do cristianismo contra o “perigo comunista” nas colônias, via-se confrontado com o fato de que o líder de um movimento marxista estava sendo recebido pelo maior chefe da Igreja Católica.

“Frequentemente utilizava metáforas agrícolas e exemplos do dia a dia para explicar a complexidade da luta contra o colonialismo, conectando a teoria revolucionária com as experiências cotidianas das massas.”

Durante o encontro, Cabral soube evitar a retórica revolucionária que poderia criar atritos com o Vaticano. Em vez disso, apresentou a luta de libertação como uma questão de direitos humanos e justiça moral, apelando diretamente aos valores da doutrina social da Igreja Católica, destacando que o povo guineense lutava por dignidade, paz e liberdade, conectando a luta anticolonial com “valores mais universais”. Com essa abordagem, Cabral teria mostrado sua habilidade de dialogar com esferas de poder fora do campo socialista, conquistando a simpatia de novos aliados.

Nos campos de batalha, Cabral se comunicava de maneira simples e direta, usando uma linguagem acessível, ao mesmo tempo em que mobilizava suas palavras para a ação política e militar. Frequentemente utilizava metáforas agrícolas e exemplos do dia a dia para explicar a complexidade da luta contra o colonialismo, conectando a teoria revolucionária com as experiências cotidianas das massas. Isso não apenas facilitava a compreensão do movimento, mas reforçava a relevância da luta para o povo comum, ao mostrar como o colonialismo impactava diretamente suas vidas.

Um exemplo clássico pode ser encontrado nos seus discursos sobre os tipos de resistência. Cabral falava de diferentes formas de resistência – armada, política, cultural e econômica – de maneira que o povo pudesse entender a luta como algo que transcende o campo de batalha. Ao explicar a resistência econômica, ele fazia paralelos com o trabalho agrícola: “Assim como a terra deve ser cultivada de forma independente para gerar frutos, a economia de um país livre deve ser construída pelos próprios camponeses, sem o domínio de estrangeiros.” Dessa forma, ele conectava o conceito abstrato de independência econômica à prática concreta do cultivo da terra.

Nos seus discursos sobre a resistência política, Cabral era igualmente pedagógico, utilizando exemplos da vida comunitária para explicar a importância da organização política. Ele comparava a resistência organizada com o plantio em cooperativas, onde “cada trabalhador contribui para a colheita final”, ilustrando que a libertação nacional só seria possível com a participação de todos. Assim, ele mobilizava as massas para a ação política, mostrando que a luta era um esforço coletivo, como o trabalho no campo.

“A educação política das massas era central, pois sem a conscientização dos oprimidos, a luta armada poderia ser cooptada por interesses elitistas ou degenerar em simples troca de opressores.”

A descolonização das mentes e a resistência cultural

Antes que o primeiro tiro fosse disparado, Cabral entendia que era necessário preparar a base ideológica da revolução. A luta contra o colonialismo começava na mente e no espírito dos colonizados. Ele diagnosticava o colonialismo não apenas como um sistema de opressão material, mas como um mecanismo que alienava os povos de suas próprias identidades, culturas e histórias. Contra isso, ele propunha uma resistência ideológica radical: a descolonização das mentes:

“Devemos trabalhar muito para liquidar a cultura dos colonialistas das nossas cabeças, camaradas. É que, queiramos ou não, na cidade ou no mato, o colonialismo meteu-nos muitas coisas nas nossas cabeças.”

A educação política das massas era central, pois sem a conscientização dos oprimidos, a luta armada poderia ser cooptada por interesses elitistas ou degenerar em simples troca de opressores. Cabral trazia uma adaptação crítica do marxismo às realidades africanas, rejeitando uma imposição dogmática e europeia. Ele via a necessidade de um marxismo enraizado nas condições históricas e culturais específicas da África, que pudesse não apenas guiar a luta, mas também forjar uma nova consciência coletiva.

Assim, a cultura era considerada como trincheira contra a dominação. Era um campo de batalha tão importante quanto o campo de combate físico. O colonialismo não só pilhava riquezas e terras. Ele também buscava sufocar e apagar as culturas nativas, impondo valores e práticas europeias: um povo alienado de sua própria história é um povo mais fácil de subjugar. Desse modo, resistir culturalmente não era um ato simbólico, mas um ato profundamente político. Era através da valorização das línguas, costumes e tradições que os colonizados combatiam o roubo de sua humanidade e seu direito à autodeterminação. Cabral denunciava que a destruição cultural era uma forma de “genocídio espiritual”, e por isso, a preservação e revitalização das tradições locais eram armas poderosas contra a desumanização promovida pelo colonialismo.

“Essa visão pragmática aproximava Cabral do pensamento de Frantz Fanon, que também argumentava que os colonizados precisavam transcender a mera defesa das tradições para forjar novas táticas.”

Entretanto, é importante ressaltar que, além de ver a cultura como trincheira contra a dominação, Amílcar Cabral também defendia uma assimilação crítica das influências externas, como lembram Inês Galvão, José Neves e Rui Lopes na edição revista e comentada do livro Amílcar Cabral: análise de alguns tipos de resistência. Embora o líder do PAIGC valorizasse profundamente a preservação das tradições locais como forma de resistência ao colonialismo, Cabral não adotava uma postura purista ou essencialista em relação à cultura. Ele reconhecia que as culturas, inclusive as africanas, estavam em constante transformação e que a assimilação de certos aspectos do mundo exterior, inclusive colonial, poderia ser estratégica para o desenvolvimento e a libertação dos povos colonizados. Essa visão pragmática aproximava Cabral do pensamento de Frantz Fanon, que também argumentava que os colonizados precisavam transcender a mera defesa das tradições para forjar novas táticas no processo de luta pela libertação.

Cabral acreditava que a resistência cultural não significava rejeitar automaticamente todas as influências coloniais, mas sim saber diferenciá-las e adotá-las de maneira crítica, quando pudessem servir ao processo revolucionário. Para ele, o importante era que a assimilação fosse realizada de forma consciente, sempre em benefício da emancipação. Essa postura flexível permitia que os povos colonizados incorporassem tecnologias, ideias políticas e até certos aspectos para além da cultura africana, desde que isso contribuísse para a sua autonomia e não reforçasse a dominação. 

Ou seja, Cabral não adotava uma postura de rechaço completo ao que os portugueses haviam trazido para as colônias. Sua perspectiva era pragmática, crítica e antropofágica, pois ele compreendia que, embora o colonialismo tivesse sido e fosse uma força devastadora e desumanizadora, não se podia negar que certos elementos trazidos pelo colonizador — como conhecimentos técnicos — poderiam ser apropriados e utilizados em benefício dos povos colonizados: “O nosso trabalho deve ser tirar da cabeça aquilo que não presta e deixar aquilo que é bom. Devemos ser capazes de combater a cultura colonialista, mas deixar na nossa cabeça os aspectos da cultura humana, científica que os portugueses deixaram na nossa terra”, afirma Cabral no seu discurso sobre “Resistência cultural”.

Cabral acreditava que a independência não deveria significar a rejeição completa do conhecimento europeu, mas sim a sua reapropriação de forma crítica, moldada para os interesses das nações africanas. A revolução não era apenas militar, mas também um processo de aprendizado e incorporação seletiva.

“Cabral reconhecia a importância de estabelecer alianças com os portugueses anticolonialistas, compreendendo que a libertação nacional não seria apenas uma vitória contra o colonialismo, mas também uma derrota para o fascismo português.”

Nesse contexto, é interessante pensar como a relação entre Amílcar Cabral e o Partido Comunista Português (PCP) foi significativa. O PCP, um dos principais oponentes do regime fascista de Salazar, desempenhou um papel importante na conscientização de setores da esquerda portuguesa sobre a necessidade de apoiar as lutas de libertação nas colônias. Nos anos 1960 e 1970, o colonialismo português enfrentava resistência armada em várias frentes, incluindo Guiné-Bissau, Angola e Moçambique. Cabral, como líder do PAIGC, articulava uma estratégia de resistência armada e mobilização popular contra o domínio colonial. Ao mesmo tempo, o PCP, que já havia passado décadas na clandestinidade, liderava a oposição interna ao Estado Novo, o regime autoritário de Salazar (e depois de Marcello Caetano). Cabral reconhecia a importância de estabelecer alianças com os portugueses anticolonialistas, compreendendo que a libertação de Guiné-Bissau e Cabo Verde não seria apenas uma vitória contra o colonialismo, mas também uma derrota para o fascismo português.

Pensando nisso, Cabral manteve ligações com militantes do PCP, partilhando ideias e estratégias para a luta comum contra o imperialismo e o colonialismo, compreendendo que a resistência nas colônias estava diretamente ligada à luta contra a opressão fascista em Portugal. Esse intercâmbio com setores progressistas portugueses, especialmente o PCP, reforçava sua visão de que o colonialismo e o fascismo eram duas faces de um mesmo sistema de dominação. Essas conexões possibilitaram um apoio mútuo, tanto no campo ideológico quanto no prático, fortalecendo a resistência nas colônias africanas e no próprio território português.

Para o PCP, a luta contra o regime fascista português tinha um caráter tanto de luta de classes quanto de resistência ao imperialismo. A dominação das colônias africanas era uma parte essencial da política imperialista de Salazar. As guerras coloniais consumiam vastos recursos financeiros e humanos, exacerbando a crise política e social dentro de Portugal. O PCP, como um partido marxista-leninista comprometido com o internacionalismo, reconhecia a importância da luta anticolonial e via também a derrota do colonialismo como parte integrante da luta contra o fascismo e o capitalismo em Portugal, como podemos comprovar no dossiê sobre Amílcar Cabral da revista O militante, publicada pelo PCP.

A importância do protagonismo das mulheres 

Como já dissemos, Amílcar Cabral não era apenas um líder prático, mas também um teórico profundamente comprometido com a ideia de que a teoria revolucionária precisa ser adaptada às condições locais. Ele defendia o que chamava de “arma da teoria”, ou seja, a importância de uma análise profunda da realidade concreta antes de iniciar qualquer luta revolucionária. 

Cabral combinava a luta armada com a educação política das massas. Nas zonas libertadas da Guiné-Bissau, o PAIGC organizava escolas, serviços de saúde e cooperativas agrícolas, mostrando que a revolução não era apenas um momento de ruptura, mas um processo contínuo de transformação social. Esse compromisso com a construção de estruturas de autossuficiência e educação popular continua sendo um dos legados mais importantes de Cabral.

“Crispina Gomes destaca que Cabral não apenas defendia a participação das mulheres na luta armada, mas também nas estruturas de poder local.”

Crispina Gomes, socióloga cabo-verdiana membro da fundação Amílcar Cabral, destaca o papel central das mulheres na luta de libertação liderada por Cabral, ressaltando como ele reconheceu e promoveu a participação feminina tanto no contexto militar quanto no político e social. Para a socióloga, Cabral tinha uma visão clara da importância das mulheres na luta de libertação, tendo incorporado isso nas práticas e políticas do PAIGC. Ela aponta que Cabral compreendia que a libertação nacional não poderia ser alcançada plenamente sem que houvesse também a libertação das mulheres de estruturas patriarcais tradicionais e da opressão imposta pelo colonialismo.

Crispina Gomes destaca que Cabral não apenas defendia a participação das mulheres na luta armada, mas também nas estruturas de poder local. Esse aspecto é particularmente relevante nas tabancas (aldeias) das zonas libertadas da Guiné-Bissau, onde as mulheres eram incorporadas nos conselhos de administração e outras formas de liderança comunitária, promovendo cotas: a cada 5 pessoas na liderança, no mínimo 2 deveriam ser mulheres. Para Cabral, garantir a presença feminina nas lideranças das tabancas era uma forma de assegurar que as mulheres tivessem voz e participação ativa na organização da vida comunitária.

Outro ponto importante que Crispina Gomes levanta é a importância que Cabral atribuía à educação e à conscientização política das mulheres. Ele defendia que, além de participarem diretamente nas frentes de batalha, as mulheres precisavam ser politicamente educadas para compreenderem seu papel na transformação social. A formação das mulheres como líderes políticas era essencial para o sucesso da revolução e para a construção da sociedade pós-colonial desejada.

Gomes também ressalta que Cabral tinha plena consciência das estruturas patriarcais que existiam nas sociedades africanas antes da colonização e que foram reforçadas pelo colonialismo. Ele acreditava que a revolução deveria não apenas libertar o povo do domínio colonial, mas também transformar as relações sociais internas, incluindo as relações de gênero.

Um legado para além da vida e da morte

No centenário de Amílcar Cabral, seu legado permanece vivo e altamente relevante para as nações africanas e para os movimentos progressistas em todo o mundo. Cabral antecipou que a verdadeira libertação de África não viria apenas com a independência política, mas com a independência econômica e cultural. Insistia na necessidade de romper com a dependência de economias coloniais voltadas para o exterior e de construir um modelo de desenvolvimento que fosse autossuficiente e voltado para as necessidades do povo. 

Essa visão é especialmente relevante hoje, quando muitas nações africanas ainda sofrem com a exploração de suas riquezas naturais por corporações multinacionais, perpetuando uma nova forma de colonialismo econômico. Cabral também destacava a importância de integrar o povo no processo de desenvolvimento, alertando contra a criação de elites pós-coloniais que se descolariam das massas, algo que vemos se repetir em muitos países africanos.

“Em um mundo onde o capitalismo global continua a expandir-se, explorando trabalhadores e devastando o meio ambiente, o pensamento de Cabral é mais importantes do que nunca.”

Seu pensamento, portanto, vai além da luta anticolonial, oferecendo um projeto de transformação interna que se alinha às demandas contemporâneas anticapitalistas. Cabral defendia que o sucesso de qualquer revolução dependia da capacidade de envolver diretamente o povo na construção da nova sociedade, uma lição que continua ecoando para movimentos progressistas no mundo todo​.

Em um mundo onde o capitalismo global continua a expandir-se, explorando trabalhadores e devastando o meio ambiente, o pensamento de Cabral sobre autossuficiência e a necessidade de uma descolonização cultural crítica são mais importantes do que nunca. Ele nos lembra que o verdadeiro desenvolvimento só é possível quando as nações se libertam das amarras da exploração externa e da alienação cultural, construindo seu futuro a partir de suas próprias necessidades e realidades. “Kabral ka mori”.

Sobre os autores

é jornalista, doutora em literatura pós-colonial comparada e estudos ibéricos e mora na Itália.

Gabriel Peters no blog LABEMUS , em sucessivos fascículos, vai tecendo inovadoras interpretações da teoria psicanalítica, com base no importante livro do francês Bernard Lahire

 

 

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A primeira crítica recuperada por Lahire deriva justamente de ensinamentos das ciências sociais sobre a moldagem sociocultural da psique, ensinamentos integrados ao pensamento psicanalítico por figuras como Erich Fromm e Karen Horney. Por um lado, o acento freudiano sobre o peso decisivo das primeiras experiências infantis, em relações afetivamente carregadas com os pais no cenário familiar, já pode ser visto como um passo analítico importante na direção do social. Por outro lado, esse aceno permaneceu insuficientemente sociológico na sua falta de atenção tanto à variedade sócio-histórica de arranjos familiares quanto às influências socializantes que derivam da inserção da família em sistemas sociais mais amplos (por exemplo, em estruturas de classe ou étnico-raciais). 

Grosso modo, em sua teoria do Complexo de Édipo, Freud partiu da observação de dinâmicas familiares características das classes médias no Ocidente do século XIX para, daí, formular uma tese generalizante sobre a psique – masculina, pelo menos – que ele julgava aplicável a quaisquer cenários sócio-históricos. Contra esse pressuposto universalizante, autores como Margaret Mead, Bronislaw Malinowski e Roger Bastide mostraram a especificidade histórica e cultural dos esquemas de relacionamento familiar que engendravam a situação edipiana: uma estrutura patriarcal que conferia significativo poder à figura do pai, cuja atuação extradoméstica o tornava um tanto ausente na experiência diária do lar, em relação com uma mãe socialmente colocada em uma condição subalterna ao marido, mas que desempenhava um papel crucial na organização da família. (...) »

Gabriel Peters , sobre o livro de Bernard Lahire -L’interprétation Sociologique des rêves. La Découvert, 2018.O que cabe em um indivíduo? Notas de uma aula sobre ...

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