« (...) Fredric Jameson é bastante consciente desse impasse, algo que é explicado por ele jus- tamente pelo fato de cada forma de dialética estar relacionada à situação específica na qual foi desenhada. Hegel, Marx e o próprio Lukács, por exemplo, a pensaram em períodos históricos de revolução social (Revolução Francesa; Revolução de 1848, Comuna de Paris, Primeira Internacional; Revolução Russa), em que “a janela em direção a um futuro radicalmente diferente foi, por mais que levemente, aberta” (Jameson, 2009c, p.280). Na ocasião em que escreve (que oscila entre o ambiente da Guerra Fria, a efervescência dos anos 1960, a crise do capitalismo nos anos 1970, a derrocada do socialismo real e a virada neoliberal em 1980 e 1990), tais “condições de possibilidade” teriam mudado consideravelmente, de forma que estaria posto o desafio de se pensar uma concepção dialética adequada às características desse momento particular. Nesse sentido, Jameson de certa forma aplica os princípios de reflexividade e historicidade das operações dialéticas ao seu próprio pensamento, avaliando o marxismo com sua própria lupa, ou seja, entendendo-o como mais um fenômeno cultural que, como qualquer outro, varia historicamente, de acordo com situações sociais concretas. É nessa perspectiva, inclusive, que defende a existência de “dife- rentes marxismos no mundo de hoje, cada um deles respondendo às necessidades e problemas específicos de seu próprio sistema socioeconômico” (Jameson, 1996, p.8). Assim, cada marxismo seria específico de uma situação: “são as ideologias locais de uma ciência marxiana na história e em situações concretas, que estabe- lecem não só suas prioridades, mas também seus limites”, de forma que cada um abrange “as determinações de classe e os horizontes cultural e nacional de seus proponentes (horizontes que incluem, entre outras coisas, o desenvolvimento de uma classe trabalhadora política no período em questão)” (ibid., p.19). (...)
GIOVANNA MARCELINO , O marxismo de Fredric Jameson, in Academia. edu
Fredric Jameson foi sem dúvida o maior crítico cultural de sua época
Conheci Fred Jameson em 1976, quando ele me convidou a lecionar para
seus alunos de pós-graduação na Universidade de Califórnia, San Diego.
Antes disso, só sabia da sua existência por conta do espantoso Marxismo e forma,[i]
publicado cinco anos antes, um conjunto de ensaios reluzentes sobre
pensadores como György Lukács, Walter Benjamin, Theodor Adorno e Ernst
Bloch, entre outros.
O próprio título do livro já desafiava frontalmente uma embotada
linhagem de crítica marxista vulgar. Também lidava com uma série de
obras alemãs, algumas delas eriçadas de dificuldades, que ainda não
haviam sido traduzidas para o inglês.
Na época, fiquei convencido de que o nome Fredric Jameson era
provavelmente pseudônimo de Hans-Georg Kaufmann ou Karl Gluckstein,
algum refugiado de Mittleuropa encafuado no sul da Califórnia. O
homem que encontrei, no entanto, e que me cumprimentou com uma
brusquidez que depois entendi ser timidez, era tão estadunidense quanto
Tim Walz – embora suspeite que Walz não tenha o costume de se esgueirar
para ler a mais recente ficção tcheca acompanhado de uma taça de vinho.
Ele usava expressões como look it e holy shit, vestia jeans denim, gostava de comer surf n’ turf
e ficava claramente desconfortável na presença de intelectuais
franceses patrícios, preferindo muito mais a companhia do cordial,
extrovertido Umberto Eco.
Tudo isso já era autêntico o bastante; mas ele também foi um
intelectual em uma civilização na qual tais criaturas são aconselhadas a
aparecer disfarçadas. Algo semelhante poderia ser dito da retórica
eivada de frases longas e sonoras própria de seu estilo literário, que
opera tanto como uma máscara quanto como um modo de comunicação.
Fredric Jameson era em alguns sentidos um homem privado lançado na
esfera pública, viajando pelo mundo (nos cruzamos depois na China e na
Austrália) ao mesmo tempo em que vivia numa remota casa de campo na zona
rural da Carolina do Norte cercada de cabras e galinhas e cheia do som
das crianças. As crianças eram particularmente preciosas para ele, e ele
deixou um verdadeiro batalhão de netos e netas.
Fredric Jameson foi sem dúvida o maior crítico cultural de sua época –
embora o termo “crítico cultural” designe aqui um tipo de trabalho
intelectual que engloba estética, filosofia, sociologia, antropologia,
psicanálise, teoria política e afins, para o qual ainda não temos nome
adequado. Não havia nada no campo das humanidades que não chamasse sua
atenção – do cinema à arquitetura, passando pela pintura e a ficção
científica – e ele parecia ter lido mais livros do que qualquer outra
pessoa no planeta.
Ele era capaz de falar tanto sobre Parmênides quanto sobre pós-modernismo, e quando estreou Barry Lyndon
(1975), filme de Stanley Kubrick baseado em um romance obscuro de
Thackeray do qual ninguém havia ouvido falar, um de seus alunos
comentou, confiante: “Fred deve ter lido” (e provavelmente estava
certo). Ele tinha uma energia americana voraz combinada com uma alta
sensibilidade europeia.
Sustentava que nenhuma crítica marxista tinha muito valor se não
conseguisse dar conta da forma das frases; e era capaz detectar toda uma
estratégia ideológica em uma guinada narrativa ou uma mudança de tom
poético. Ao mesmo tempo, também media o pulso de uma civilização
inteira, como em seu ensaio clássico sobre cultura pós-moderna.[ii]
Críticos literários não têm muita função social hoje em dia. Parte do
feito de Fredric Jameson foi ter mostrado para o resto de nós como tais
modestas figuras acadêmicas podem novamente se tornar intelectuais
públicos, homens e mulheres cuja influência se espraia para muito além
dos limites convencionais dos estudos literários. É isso que a palavra
amorfa “teoria” passou a significar, e Fredric Jameson foi o mais fino
teórico de todos.
*Terry Eagleton, filósofo e crítico literário, é
professor emérito de literatura inglesa na Universidade de Oxford.
Autor, entre outros livros, de O acontecimento da literatura (Unesp).
[i] Fredric Jameson, Marxismo e forma: teorias dialéticas da literatura no século XX. Tradução: Iumna Maria Simon, Ismail Xavier e Fernando Oliboni. São Paulo, Editora Hucitec, 1985.
[ii] Fredric Jameson, Pós-modernismo, ou, a lógica cultural do capitalismo tardio.Tradução: Maria Elisa Cevasco. São Paulo, Ática, 1996.
Com Jameson, aprendi que mais do que saber
repetir direitinho tudo que estava presente na obra de Adorno e da
Teoria Crítica, o esforço que valia era tentar refletir sobre como essa
teoria ilumina o presente. Essa era a graça da coisa toda, dizia ele.
Nenhum exercício de conformação, mas liberdade, liberdade radical diante
dos textos (dentro do que sua matéria, permite, evidentemente) e
disposição para levar determinados autores aonde esses mesmos não
quiseram ir.
“Ser
dialético significa ter o vento da história mundial em suas velas. As
velas são os conceitos. Mas não basta dispor das velas. O que é decisivo
é a arte de poder içá-las.“ Walter Benjamin, Das Passagen-Werk
Fredric Jameson
morreu em 22 de setembro de 2024. O marxismo perdeu um de seus maiores e
mais importantes intelectuais. Alguém que, apesar de todas as derrotas
da esquerda desde a queda do Muro de Berlim, permanecia um socialista
convicto, sem nenhum traço de melancolia e que colocou a sua mente um
tanto quanto privilegiada a serviço dessa causa, pela via da crítica.
Jameson foi um dos maiores militantes teóricos do marxismo e sua obra é a
prova da relevância dessa teoria, método e posição política para o
século XXI.
Jameson ainda escrevia – acabou de lançar Inventions of a Present: The Novel in its Crisis of Globalization –
e permanecia um professor ativo no Departamento de Literatura da
Universidade de Duke, em Durham, Carolina do Norte, onde lecionava desde
1985. Graduado pelo Haverford College e com doutorado em Yale, lecionou
nesta, em Harvard e na University of California (campi de San Diego e
Santa Cruz). Além de ensinar no Programa de Literatura de Duke, Jameson
atuava no âmbito da literatura comparada, com ênfase na teoria crítica e
tratava de temas filosóficos relacionados à cultura e à literatura. O
departamento, que ele ajudou a construir, era único e um dos mais
abertos em termos de temas e disciplinas dos Estados Unidos.
Nem todo
acadêmico é um intelectual. Jameson era ambos. Como a de Walter
Benjamin, sua extensa obra é inclassificável. Ensaísta, Jameson
interveio em muitos campos e abordou inúmeros assuntos: teoria do
romance, filosofia, marxismo, crítica literária, arquitetura, artes
plásticas, estudos de mídia, estudos culturais, teoria da globalização,
modernismo, ficção científica, cultura de massas etc. Ele dizia que a
mente não era como um computador, em que a memória é restrita, mas
ilimitada – no caso dele, talvez isso seja verdade. E cada área tocada
por sua pena se transformou, fazendo dele uma referência incontornável
para a teoria crítica contemporânea. Cada intervenção teórica sua
produzia uma transformação completa em seus muitos campos de estudos. A
ficção científica é um gênero debatido pelo marxismo hoje, em grande
medida, graças a ele. A crítica literária marxista que conjuga o
pós-estruturalismo e a teoria crítica também é tributária de seus
escritos. O debate sobre as tensões entre modernismo e realismo é outro
depois de suas leituras. Bertolt Brecht, Walter Benjamin e Theodor W.
Adorno saíram renovados de seus livros. Como com Karl Marx e Friedrich
Hegel, Jameson era capaz de superar as querelas da fortuna crítica e
sempre dizer algo novo sobre o que comentava.
Ele é o grande
teórico da cultura sob o neoliberalismo e sua teoria sobre o
pós-modernismo (como estilo tardio) e a pós-modernidade é certamente o
maior desdobramento da teoria da indústria cultural de Theodor W. Adorno
até hoje. Infelizmente esses aspectos de sua obra foram quase
completamente ignorados pela filosofia e pelas ciências sociais
brasileiras (salvo poucas e raras exceções), que ainda desprezam sua
obra devido ao fato de ela vir da crítica literária ou talvez por ela
desrespeitar todas as fronteiras disciplinares – um tabu para uma
academia que ainda funciona na lógica das capitanias hereditárias (cada
um no seu latifúndio, com a sua devida especialidade e ai de quem disser
a palavra “crítica”). Apesar da trajetória estupenda de Jameson,
quantas vezes não ouvi que sua obra era interessante, mas que lhe
faltava substância e sistematicidade. Vale para ele o que Adorno
escreveu sobre Marcel Proust em Minima Moralia; aquele que trai
a sua classe para se dedicar às coisas do espírito “não é um
profissional e, por melhor que seja, figura como um diletante na
hierarquia dos concorrentes”. A tradução de suas obras completas, nesse
sentido, é uma tarefa urgente para superar não só essa abordagem da obra
de Jameson, mas a própria noção do que é a teoria crítica e de sua
importância.
Além de um
intelectual extraordinário, Jameson era um professor diligente, humilde e
dedicado. Era respeitoso e sério e a prova de que um autor estupendo
tem tempo para ser bom professor e orientador – nada nele dava a
impressão de superstar. Ele dava aula duas vezes por semana,
chegava cheio de livros e cadernos rabiscados e dava cursos sobre
literatura, crítica literária e filosofia. Suas salas de aula eram
lotadas de estrangeiros – os estadunidenses não davam muita bola para
ele, pois diziam que os cursos de Jameson eram uma igrejinha, pois ao
invés de dar seminários nos quais os alunos falam, Jameson dava
palestras que duravam normalmente uma hora e quinze – talvez algo um
pouco demasiado para a atenção já estilhaçada pelas redes sociais dos
jovens dos EUA. Mas a cada aula, Jameson pedia que entregássemos antes
uma “reação” ao texto do dia. Ele lia com atenção as respostas e sempre
fazia questão de comentá-las de maneira discreta e sem personalizar. Ele
tinha 83 anos quando me recebeu em Duke para um doutorado sanduíche e a
paixão dele pela docência é algo que nunca havia visto. Sua família já
havia se mudado para outra cidade, mas Jameson ficava em Durham – um
lugar minúsculo e monótono – para lecionar. E lá ficou até o fim,
evidenciando como o amor pelo que fazia sequer cedia às barreiras
físicas que foram se impondo ao longo dos anos. Sua assistente me disse
certa vez que ele comprava e lia um livro por dia e sua erudição era de
fato impressionante. Quando deu uma aula sobre Bertolt Brecht, mencionou
a Ópera do Malandro de Chico Buarque e em seu curso sobre
modernismo incluiu Mário e Oswald de Andrade na bibliografia. Também
recomendava fortemente a obra de Roberto Schwarz aos estudantes. Ele
nunca falava de si, nem nas aulas, nem nas interações de orientação.
Apesar de tudo que tinha escrito, nunca se indicava como referência
bibliográfica e jamais escutei-o dizer: “eu escrevi um livro sobre
isso”.
Jameson falava e
lia em inúmeras línguas. Ele dizia que conhecer a teoria de um autor ou
a obra de um artista era um pouco como saber falar uma língua
estrangeira, pois também exige saber um vocabulário específico e uma
forma de organizar o pensamento e a experiência. Ele era o marxista mais
ortodoxo e heterodoxo que já vi na vida. Era um adorniano althusseriano
e brechtiano, um sartreano luckásciano e, talvez, por isso, um
benjaminiano. Jameson parecia ter um espírito antropológico com relação
tanto ao marxismo, quanto à literatura. Tudo interessava e gerava
curiosidade. Tudo se aproveitava, mas sem relativismo. O maior
ensinamento de sua obra é esse: ler todos os autores do marxismo, ler
toda a literatura – com as preferências inevitáveis que sempre temos –
de coração e mente aberta, sem tomar partido por uma coisa ou outra
antes de conhecê-la bem. Além disso, e acho que essa é a principal marca
de sua obra, Jameson fazia questão de dizer e mostrar que o medo de
errar não pode paralisar o pensamento. Ele experimentava com conceitos,
análises, interpretações. Sabia que para dizer algo novo era preciso um
impulso para ir além do estabelecido na fortuna crítica de uma obra. E
para isso é preciso mais coragem do que pensamos. Tenho para mim que foi
a superação dessa barreira psicológica e social que tornou sua obra tão
vibrante. Não precisamos concordar com o que está escrito ali, mas é
visível que se trata de um esforço da inteligência que funciona como
motor para o marxismo contemporâneo. Com ele, aprendi que mais do que
saber repetir direitinho tudo que estava presente na obra de Adorno e da
Teoria Crítica, o esforço que valia era tentar refletir sobre como essa
teoria ilumina o presente. Essa era a graça da coisa toda, dizia ele.
Nenhum exercício de conformação, mas liberdade, liberdade radical diante
dos textos (dentro do que sua matéria, permite, evidentemente) e
disposição para levar determinados autores aonde esses mesmos não
quiseram ir.
Mesmo aos 83
anos, Jameson separava uma hora e meia por semana para atender os alunos
depois da aula. Essas horas serviam para conversar, pedir bibliografia,
orientar os trabalhos. Muitas vezes, ele permanecia sentado, ao lado do
quadro de Marx que tinha em seu escritório, esperando por estudantes.
Mesmo quando ninguém aparecia, ele ficava lá. Essa sua imagem foi a que
ficou em mim. Em Prismas – Crítica Cultural e Sociedade, Adorno diz que no seguinte conto de Kafka encontramos a figura da revolução:
Em
nossa casa, essa imensa casa de subúrbio, uma caserna de aluguel
rodeada por ruínas medievais indestrutíveis, foi hoje proclamado, nessa
manhã fria e nebulosa de inverno, o seguinte manifesto:
A todos os meus co-locatários,
Eu
possuo cinco espingardas de brinquedo. Elas estão penduradas na minha
caixa, uma em cada gancho. A primeira me pertence. Quem quiser pode se
candidatar às outras. Caso se apresentem mais do que quatro, os
restantes devem trazer as suas próprias espingardas, e depositá-las na
minha caixa. Pois deve haver unidade, sem unidade não iremos para
frente. Aliás, possuo apenas espingardas que são inúteis para qualquer
outra utilização: o mecanismo está arruinado, a rolha estragada, somente
os gatilhos ainda funcionam. Portanto não será difícil conseguir outras
espingardas nesse estado. Na verdade, por agora ficarei contente também
com pessoas sem espingardas. Nós, que temos espingardas, colocaremos no
momento oportuno os sem espingardas no meio do combate. É uma tática
que teve êxito nas primeiras lutas dos fazendeiros norte-americanos
contra os índios. Por que não deve funcionar também aqui, já que as
condições são semelhantes? A longo prazo, portanto, podemos prescindir
de espingardas, e mesmo estas cinco não são absolutamente
imprescindíveis. Mas já que elas estão disponíveis, também devem ser
utilizadas. Se não quiserem utilizar as quatro restantes, podem
deixá-las lá. Neste caso, somente eu, como líder, levarei uma
espingarda. Mas como não deveríamos ter um líder, também vou quebrar
minha espingarda ou deixá-la de lado. Este foi o primeiro chamado. Na
nossa casa ninguém tem tempo nem vontade de ler manifestos ou de
refletir sobre eles. Os pequenos papéis logo nadavam na água do esgoto
que se inicia no sótão, é alimentada por todos os corredores, desce
pelas escadas e luta com a contracorrente de água que jorra do andar de
baixo. Mas depois de uma semana chegou um segundo chamado:
Inquilinos,
Até
agora ninguém se apresentou. Estive sempre em casa, a não ser no tempo
em que tinha que cuidar do meu sustento, e mesmo durante a minha
ausência a porta do meu quarto ficou sempre aberta, com uma folha em
cima de minha mesa, na qual quem quisesse poderia se inscrever. Ninguém o
fez.
Certamente
muita gente atendeu ao chamado de Jameson, ele orientou e ensinou muitas
pessoas que hoje buscam continuar seu projeto. Mas o convite permanece
aberto, mesmo depois de sua morte. Nossa sociedade costuma homenagear os
mortos, baixando suas bandeiras em sinal de luto. A morte de Jameson
exige outro gesto. Que se icem as velas.
Adeus, Fredric Jameson.
Abaixo, uma lista de algumas de suas obras para quem quiser conhecer mais sobre o autor:
Sartre: The Origins of a Style
Marxism and Form: Twentieth-Century Dialectical Theories of Literature
The Prison-House of Language: A Critical Account of Structuralism and Russian Formalism (originalmente a segunda parte de Marxismo e Forma, desmembrada por razões editoriais)
Fables of Aggression: Wyndham Lewis, the Modernist as Fascist
The Political Unconscious: Narrative as a Socially Symbolic Act
Ideologies of Theory: Essays
Postmodernism, or The Cultural Logic of Late Capitalism
Signatures of the Visible; The Geopolitical Aesthetic: Cinema and Space in the World System
The Seeds of Time
Brecht and Method
The Cultural Turn: Selected Writings on the Postmodern, 1983–1998
A Singular Modernity: Essay on the Ontology of the Present
Archaeologies of the Future: The Desire Called Utopia and Other Science Fictions
The Modernist Papers
Valences of the Dialectic
The Hegel Variations: On the Phenomenology of Spirit
Representing Capital: A Reading of Volume One
The Antinomies of Realism
An American Utopia: Dual Power and the Universal Army
Raymond Chandler: The Detections of Totality
Allegory and Ideology
The Benjamin Files
The Inventions of a Present: The Novel in its Crisis of Globalization
The Years of Theory: Postwar French Thought to the Present
Mimesis, Expression, Construction
(1934-2024)
Com Jameson, aprendi que mais do que saber
repetir direitinho tudo que estava presente na obra de Adorno e da
Teoria Crítica, o esforço que valia era tentar refletir sobre como essa
teoria ilumina o presente. Essa era a graça da coisa toda, dizia ele.
Nenhum exercício de conformação, mas liberdade, liberdade radical diante
dos textos (dentro do que sua matéria, permite, evidentemente) e
disposição para levar determinados autores aonde esses mesmos não
quiseram ir.
“Ser
dialético significa ter o vento da história mundial em suas velas. As
velas são os conceitos. Mas não basta dispor das velas. O que é decisivo
é a arte de poder içá-las.“ Walter Benjamin, Das Passagen-Werk
Fredric Jameson
morreu em 22 de setembro de 2024. O marxismo perdeu um de seus maiores e
mais importantes intelectuais. Alguém que, apesar de todas as derrotas
da esquerda desde a queda do Muro de Berlim, permanecia um socialista
convicto, sem nenhum traço de melancolia e que colocou a sua mente um
tanto quanto privilegiada a serviço dessa causa, pela via da crítica.
Jameson foi um dos maiores militantes teóricos do marxismo e sua obra é a
prova da relevância dessa teoria, método e posição política para o
século XXI.
Jameson ainda escrevia – acabou de lançar Inventions of a Present: The Novel in its Crisis of Globalization –
e permanecia um professor ativo no Departamento de Literatura da
Universidade de Duke, em Durham, Carolina do Norte, onde lecionava desde
1985. Graduado pelo Haverford College e com doutorado em Yale, lecionou
nesta, em Harvard e na University of California (campi de San Diego e
Santa Cruz). Além de ensinar no Programa de Literatura de Duke, Jameson
atuava no âmbito da literatura comparada, com ênfase na teoria crítica e
tratava de temas filosóficos relacionados à cultura e à literatura. O
departamento, que ele ajudou a construir, era único e um dos mais
abertos em termos de temas e disciplinas dos Estados Unidos.
Nem todo
acadêmico é um intelectual. Jameson era ambos. Como a de Walter
Benjamin, sua extensa obra é inclassificável. Ensaísta, Jameson
interveio em muitos campos e abordou inúmeros assuntos: teoria do
romance, filosofia, marxismo, crítica literária, arquitetura, artes
plásticas, estudos de mídia, estudos culturais, teoria da globalização,
modernismo, ficção científica, cultura de massas etc. Ele dizia que a
mente não era como um computador, em que a memória é restrita, mas
ilimitada – no caso dele, talvez isso seja verdade. E cada área tocada
por sua pena se transformou, fazendo dele uma referência incontornável
para a teoria crítica contemporânea. Cada intervenção teórica sua
produzia uma transformação completa em seus muitos campos de estudos. A
ficção científica é um gênero debatido pelo marxismo hoje, em grande
medida, graças a ele. A crítica literária marxista que conjuga o
pós-estruturalismo e a teoria crítica também é tributária de seus
escritos. O debate sobre as tensões entre modernismo e realismo é outro
depois de suas leituras. Bertolt Brecht, Walter Benjamin e Theodor W.
Adorno saíram renovados de seus livros. Como com Karl Marx e Friedrich
Hegel, Jameson era capaz de superar as querelas da fortuna crítica e
sempre dizer algo novo sobre o que comentava.
Ele é o grande
teórico da cultura sob o neoliberalismo e sua teoria sobre o
pós-modernismo (como estilo tardio) e a pós-modernidade é certamente o
maior desdobramento da teoria da indústria cultural de Theodor W. Adorno
até hoje. Infelizmente esses aspectos de sua obra foram quase
completamente ignorados pela filosofia e pelas ciências sociais
brasileiras (salvo poucas e raras exceções), que ainda desprezam sua
obra devido ao fato de ela vir da crítica literária ou talvez por ela
desrespeitar todas as fronteiras disciplinares – um tabu para uma
academia que ainda funciona na lógica das capitanias hereditárias (cada
um no seu latifúndio, com a sua devida especialidade e ai de quem disser
a palavra “crítica”). Apesar da trajetória estupenda de Jameson,
quantas vezes não ouvi que sua obra era interessante, mas que lhe
faltava substância e sistematicidade. Vale para ele o que Adorno
escreveu sobre Marcel Proust em Minima Moralia; aquele que trai
a sua classe para se dedicar às coisas do espírito “não é um
profissional e, por melhor que seja, figura como um diletante na
hierarquia dos concorrentes”. A tradução de suas obras completas, nesse
sentido, é uma tarefa urgente para superar não só essa abordagem da obra
de Jameson, mas a própria noção do que é a teoria crítica e de sua
importância.
Além de um
intelectual extraordinário, Jameson era um professor diligente, humilde e
dedicado. Era respeitoso e sério e a prova de que um autor estupendo
tem tempo para ser bom professor e orientador – nada nele dava a
impressão de superstar. Ele dava aula duas vezes por semana,
chegava cheio de livros e cadernos rabiscados e dava cursos sobre
literatura, crítica literária e filosofia. Suas salas de aula eram
lotadas de estrangeiros – os estadunidenses não davam muita bola para
ele, pois diziam que os cursos de Jameson eram uma igrejinha, pois ao
invés de dar seminários nos quais os alunos falam, Jameson dava
palestras que duravam normalmente uma hora e quinze – talvez algo um
pouco demasiado para a atenção já estilhaçada pelas redes sociais dos
jovens dos EUA. Mas a cada aula, Jameson pedia que entregássemos antes
uma “reação” ao texto do dia. Ele lia com atenção as respostas e sempre
fazia questão de comentá-las de maneira discreta e sem personalizar. Ele
tinha 83 anos quando me recebeu em Duke para um doutorado sanduíche e a
paixão dele pela docência é algo que nunca havia visto. Sua família já
havia se mudado para outra cidade, mas Jameson ficava em Durham – um
lugar minúsculo e monótono – para lecionar. E lá ficou até o fim,
evidenciando como o amor pelo que fazia sequer cedia às barreiras
físicas que foram se impondo ao longo dos anos. Sua assistente me disse
certa vez que ele comprava e lia um livro por dia e sua erudição era de
fato impressionante. Quando deu uma aula sobre Bertolt Brecht, mencionou
a Ópera do Malandro de Chico Buarque e em seu curso sobre
modernismo incluiu Mário e Oswald de Andrade na bibliografia. Também
recomendava fortemente a obra de Roberto Schwarz aos estudantes. Ele
nunca falava de si, nem nas aulas, nem nas interações de orientação.
Apesar de tudo que tinha escrito, nunca se indicava como referência
bibliográfica e jamais escutei-o dizer: “eu escrevi um livro sobre
isso”.
Jameson falava e
lia em inúmeras línguas. Ele dizia que conhecer a teoria de um autor ou
a obra de um artista era um pouco como saber falar uma língua
estrangeira, pois também exige saber um vocabulário específico e uma
forma de organizar o pensamento e a experiência. Ele era o marxista mais
ortodoxo e heterodoxo que já vi na vida. Era um adorniano althusseriano
e brechtiano, um sartreano luckásciano e, talvez, por isso, um
benjaminiano. Jameson parecia ter um espírito antropológico com relação
tanto ao marxismo, quanto à literatura. Tudo interessava e gerava
curiosidade. Tudo se aproveitava, mas sem relativismo. O maior
ensinamento de sua obra é esse: ler todos os autores do marxismo, ler
toda a literatura – com as preferências inevitáveis que sempre temos –
de coração e mente aberta, sem tomar partido por uma coisa ou outra
antes de conhecê-la bem. Além disso, e acho que essa é a principal marca
de sua obra, Jameson fazia questão de dizer e mostrar que o medo de
errar não pode paralisar o pensamento. Ele experimentava com conceitos,
análises, interpretações. Sabia que para dizer algo novo era preciso um
impulso para ir além do estabelecido na fortuna crítica de uma obra. E
para isso é preciso mais coragem do que pensamos. Tenho para mim que foi
a superação dessa barreira psicológica e social que tornou sua obra tão
vibrante. Não precisamos concordar com o que está escrito ali, mas é
visível que se trata de um esforço da inteligência que funciona como
motor para o marxismo contemporâneo. Com ele, aprendi que mais do que
saber repetir direitinho tudo que estava presente na obra de Adorno e da
Teoria Crítica, o esforço que valia era tentar refletir sobre como essa
teoria ilumina o presente. Essa era a graça da coisa toda, dizia ele.
Nenhum exercício de conformação, mas liberdade, liberdade radical diante
dos textos (dentro do que sua matéria, permite, evidentemente) e
disposição para levar determinados autores aonde esses mesmos não
quiseram ir.
Mesmo aos 83
anos, Jameson separava uma hora e meia por semana para atender os alunos
depois da aula. Essas horas serviam para conversar, pedir bibliografia,
orientar os trabalhos. Muitas vezes, ele permanecia sentado, ao lado do
quadro de Marx que tinha em seu escritório, esperando por estudantes.
Mesmo quando ninguém aparecia, ele ficava lá. Essa sua imagem foi a que
ficou em mim. Em Prismas – Crítica Cultural e Sociedade, Adorno diz que no seguinte conto de Kafka encontramos a figura da revolução:
Em
nossa casa, essa imensa casa de subúrbio, uma caserna de aluguel
rodeada por ruínas medievais indestrutíveis, foi hoje proclamado, nessa
manhã fria e nebulosa de inverno, o seguinte manifesto:
A todos os meus co-locatários,
Eu
possuo cinco espingardas de brinquedo. Elas estão penduradas na minha
caixa, uma em cada gancho. A primeira me pertence. Quem quiser pode se
candidatar às outras. Caso se apresentem mais do que quatro, os
restantes devem trazer as suas próprias espingardas, e depositá-las na
minha caixa. Pois deve haver unidade, sem unidade não iremos para
frente. Aliás, possuo apenas espingardas que são inúteis para qualquer
outra utilização: o mecanismo está arruinado, a rolha estragada, somente
os gatilhos ainda funcionam. Portanto não será difícil conseguir outras
espingardas nesse estado. Na verdade, por agora ficarei contente também
com pessoas sem espingardas. Nós, que temos espingardas, colocaremos no
momento oportuno os sem espingardas no meio do combate. É uma tática
que teve êxito nas primeiras lutas dos fazendeiros norte-americanos
contra os índios. Por que não deve funcionar também aqui, já que as
condições são semelhantes? A longo prazo, portanto, podemos prescindir
de espingardas, e mesmo estas cinco não são absolutamente
imprescindíveis. Mas já que elas estão disponíveis, também devem ser
utilizadas. Se não quiserem utilizar as quatro restantes, podem
deixá-las lá. Neste caso, somente eu, como líder, levarei uma
espingarda. Mas como não deveríamos ter um líder, também vou quebrar
minha espingarda ou deixá-la de lado. Este foi o primeiro chamado. Na
nossa casa ninguém tem tempo nem vontade de ler manifestos ou de
refletir sobre eles. Os pequenos papéis logo nadavam na água do esgoto
que se inicia no sótão, é alimentada por todos os corredores, desce
pelas escadas e luta com a contracorrente de água que jorra do andar de
baixo. Mas depois de uma semana chegou um segundo chamado:
Inquilinos,
Até
agora ninguém se apresentou. Estive sempre em casa, a não ser no tempo
em que tinha que cuidar do meu sustento, e mesmo durante a minha
ausência a porta do meu quarto ficou sempre aberta, com uma folha em
cima de minha mesa, na qual quem quisesse poderia se inscrever. Ninguém o
fez.
Certamente
muita gente atendeu ao chamado de Jameson, ele orientou e ensinou muitas
pessoas que hoje buscam continuar seu projeto. Mas o convite permanece
aberto, mesmo depois de sua morte. Nossa sociedade costuma homenagear os
mortos, baixando suas bandeiras em sinal de luto. A morte de Jameson
exige outro gesto. Que se icem as velas.
Adeus, Fredric Jameson.
Abaixo, uma lista de algumas de suas obras para quem quiser conhecer mais sobre o autor:
Sartre: The Origins of a Style
Marxism and Form: Twentieth-Century Dialectical Theories of Literature
The Prison-House of Language: A Critical Account of Structuralism and Russian Formalism (originalmente a segunda parte de Marxismo e Forma, desmembrada por razões editoriais)
Como Fredric Jameson reinventou a crítica literária
POR Robert Tally
Tradução Fabio Fernandes
O principal crítico literário e cultural marxista do mundo, Fredric
Jameson, nos deixou esse final de semana. Ao longo da sua carreira, ele
se opôs às abordagens reducionistas da cultura e a uma tradição de
leitura atenta à política. Seu último livro mostra-o no auge de seus
poderes, esculpindo uma nova alternativa.
Resenha do livro Inventions of a Present: The Novel in Its Crisis of Globalization, de de Fredric Jameson (Verso, 2024)
Por mais de cinco décadas, Fredric Jameson tem
sido o principal crítico literário e cultural marxista nos Estados
Unidos, se não no mundo. Aos noventa anos, ele continua produzindo. Seu
último livro, Inventions of a Present: The Novel in Its Crisis of Globalization, foi lançado em maio, e The Years of Theory: Postwar French Thought to the Present
está programado para ser publicado ainda este ano. Jameson também está
em processo de conclusão do que será o último volume de seu projeto de
seis partes, The Poetics of Social Forms – de uma forma verdadeiramente dialética, o livro final da série é o volume 1.
Nascido em Cleveland em 1934, Fredric Jameson frequentou o Haverford
College, onde estudou com o lendário teórico retórico Wayne Booth, que
cunhou o termo “narrador não confiável”. Depois de se formar em francês,
Jameson concluiria seus estudos em Yale, onde obteria o doutorado em
1959. Passou sua carreira profissional e acadêmica em francês, estudos
românicos ou programas de literatura comparada (não em inglês, por
acaso), primeiro em Harvard, depois Universidade da Califórnia, San
Diego; Yale; UC Santa Cruz; e desde 1985, Duke University. Assim, a sua
perspectiva sempre abrangeu ambas as costas: olhando para o continente a
partir dos Estados Unidos em busca de insights. A vasta
experiência de ensino de Jameson, sem dúvida, informa a ampla gama de
assuntos, línguas, literaturas e teorias que compõem o seu corpo de
trabalho.
Tornar a crítica literária marxista novamente
Apesar de toda a sua produtividade literária,
Jameson sempre foi e continua sendo um professor, e muito do seu
trabalho – tanto na sala de aula (onde o encontrei pela primeira vez
como estudante em 1989) quanto em seus escritos – tem um aspecto
profundamente pedagógico. Em Marxism and Form: Twentieth-Century Dialectical Theories of Literature
(1971), ele apresentou aos leitores de língua inglesa a rica tradição
da teoria marxista ocidental, examinando o trabalho de Georg Lukács,
Walter Benjamin, a Escola de Frankfurt e Jean-Paul Sartre.
Jameson organizou esses pensadores a serviço de uma sofisticada
teoria de crítica dialética. Naquela época, esses pensadores não apenas
eram pouco conhecidos, mas a própria crítica marxista ou de orientação
social era pouco praticada nos Estados Unidos. Quando Jameson iniciou
sua carreira, a crítica acadêmica era dominada por abordagens
estritamente formalistas. Estes centraram-se em “leituras atentas” do
texto, mas excluíram em grande parte qualquer discussão do contexto
social ou histórico. Alguns críticos endossaram mais modelos históricos,
mas estes foram frequentemente longe demais na outra direção, ignorando
inteiramente as características linguísticas ou formais da literatura,
em favor de ver a literatura como um mero “reflexo” do seu momento
histórico.
“Jameson nunca simpatizou com as rejeições
esquerdistas de práticas críticas supostamente misteriosas como a
“desconstrução” pela sua falta de relevância social.”
Para Jameson, nenhuma destas abordagens era satisfatória. Cada um
impôs limites à forma ou ao conteúdo, enquanto Jameson mostrou como
forma e conteúdo, o exame cuidadoso do texto e as investigações do
conteúdo sócio-histórico, leituras estritamente linguísticas e
expansivamente políticas também poderiam ser relacionadas numa abordagem
marxista abrangente. Jameson defendeu de forma persuasiva uma abordagem
social, política e histórica; ele também permaneceu profundamente
comprometido com a análise formal. Avançando nestas duas posições – uma
obsessão anglófona pela forma, uma preocupação de influência continental
pelo social – Jameson lançou as bases para a sua participação nos
debates sobre estudos literários e teoria crítica nos próximos anos.
Nas décadas de 1970 e 1980, a “teoria” estava na moda. Influenciados
em grande parte pelo trabalho dos filósofos franceses do pós-guerra, os
críticos literários procuraram aplicar ideias psicanalíticas, bem como
noções desenvolvidas na linguística, ao estudo da cultura. Jameson, no
entanto, insistiu na relevância do marxismo como quadro indispensável.
Jameson nunca simpatizou com as rejeições esquerdistas de práticas
críticas supostamente misteriosas como a “desconstrução” pela sua falta
de relevância social. O marxismo, afirmou consistentemente, é capaz de
abraçar estas outras práticas mais limitadas, atribuindo-lhes a sua
“validade setorial” como meio de analisar certos aspectos linguísticos,
psicológicos, éticos ou históricos da nossa existência, mantendo ao
mesmo tempo um compromisso com a totalidade. Com isto, ele quis dizer
uma visão da nossa subjetividade individual e coletiva como parte de um
sistema social, político e histórico mais vasto – o modo de produção
capitalista.
O marxismo é, na opinião de Jameson, a única abordagem crítica capaz
de dar sentido à experiência humana como um fenómeno histórico. Tomando
emprestada uma frase de Sartre, Jameson afirmou o marxismo como o
“horizonte intransponível”. Ela, mais do que qualquer outra perspectiva,
é capaz de detectar os múltiplos significados, termo que Jameson usa
num sentido amplo e flexível, de um determinado texto.
Este é o argumento apresentado em O inconsciente político: a narrativa como ato socialmente simbólico
(1981), sem dúvida o trabalho mais famoso e influente de Jameson. Aqui,
Jameson conecta toda a história das formas narrativas – desde o épico
homérico e o romance medieval, até a história do romance, passando pelos
grandes estágios do realismo, modernismo, pós-modernismo e além (ou
seja, arqueologias do futuro) – até as mudanças modos de produção na
história do capitalismo.
Seguindo uma tradição marxista hegeliana, Jameson vê a história
humana como uma narrativa única, embora por vezes descontínua, que liga
vários modos de produção. Tanto as sociedades de caçadores-coletores
como o feudalismo moldaram a nossa imaginação cultural, produzindo
contos míticos relatados através de narrativas épicas, a ascensão do
romance alegórico e o desenvolvimento do romance moderno. Tais formas
narrativas em si mesmas, como gêneros ou através das suas figuras e
tropos distintivos, revelam o “inconsciente político” da sociedade em
que são produzidas.
Os dramatis personae de sua narrativa são Honoré de Balzac,
George Gissing e Joseph Conrad. Emergindo em pontos altos do capitalismo
e do imperialismo, os seus romances deveriam, argumenta Jameson, ser
entendidos como compromissos com as mudanças sísmicas que foram o seu
pano de fundo.
Entre outras coisas, a leitura de Jameson revela as “estratégias de
contenção” ideológicas que tendem a isolar a experiência individual e,
assim, minimizar o conteúdo social e político, que se torna cada vez
mais relegado a uma dimensão invisível (ou “inconsciente”).
Dispersando nuvens
Notoriamente complexa, a escrita de Jameson é
produto de sua vasta e eclética gama de referências culturais e
tradições teóricas envolvidas em seu pensamento. Suas frases, que ele
chamou de “dialéticas”, tendem a ser longas, e o que muitas vezes
parecem tangentes ou digressões são traços característicos de seus
ensaios, que funcionam reunindo uma nuvem de ideias que se aguçam
repentinamente em um momento de insight como um relâmpago em uma
tempestade.
O pensamento dialético, disse Jameson, “exige que você diga tudo
simultaneamente, quer você pense que pode ou não”, e há um forte sentido
disso em sua prosa. “Voltaremos a isso mais tarde”, “enquanto isso”,
“como vimos” são refrões comuns. Comentando sobre esse elemento do
estilo de Jameson em sua resenha de Valences of the Dialectic
(2009), Benjamin Kunkel observou que é “como se tudo estivesse presente
em sua mente ao mesmo tempo, e fosse apenas a natureza infelizmente
sequencial da linguagem que o forçou explicitar frase por frase e ensaio
por ensaio uma apreensão do mundo contemporâneo que fosse simultânea e
total.”
Talvez isto esteja relacionado com a visão de Jameson de que a
totalidade social, irrepresentável em si mesma, pode de alguma forma ser
delimitada através da interpretação dialética de várias formas ou
textos distintos. Dessa forma, a leitura de um determinado filme,
romance ou estrutura arquitetônica pode nos ajudar a compreender melhor o
sistema do qual ele e nós fazemos parte. Este sistema é, em última
análise, o próprio modo de produção, o capitalismo, e as várias formas
culturais ou obras de arte produzidas no seu todo estrutural
representam, de várias maneiras, esse sistema, ao mesmo tempo que
potencialmente criam alternativas.
A última oferta de Jameson, Inventions of a Present: The Novel in Its Crisis of Globalization,
é uma coleção de artigos publicados anteriormente, exibindo uma gama
eclética de seu trabalho ao longo de muitos anos, ao mesmo tempo que
fornece uma espécie de visão geral deste vasto corpo de pensar. Como o
subtítulo indica, Jameson está aqui interessado no romance em si e, de
fato, muitos dos capítulos foram publicados originalmente como resenhas
de livros ou ensaios de resenhas, e quase todos os capítulos se
concentram em um único romance. Assim, embora possa não ser exatamente
representativo da obra de Jameson como um todo, Invenções de um Presente
seria um bom ponto de partida para um novo leitor, pois proporciona uma
oportunidade de ver o teórico e o crítico em ação — Jameson, o leitor,
por assim dizer, em uma ampla gama de romances.
Suas linhas iniciais são caracteristicamente marcantes:
O estudioso anseia pelo salto de um tigre para o passado; o revisor
de livros em busca de vislumbres do presente. O romance, por sua vez, é o
mapa em relevo do tempo, com seus sulcos e esporas marcando a intrusão
da história nas vidas individuais ou então seus silêncios reveladores.
Desta forma, conclui Jameson, “[todos] os romances são, portanto,
históricos”, mesmo que o que costumava ser pensado como “o romance
histórico” em si pareça ser uma coisa do passado.
“Os romances são um meio pelo qual podemos empreender o impossível projeto de historicizar o momento atual.”
O resenhista, portanto, localiza cada romance em seu e no nosso
momento presente, ao mesmo tempo que o situa dentro dos contextos
sociais, políticos e históricos mais amplos de sua produção e recepção,
juntamente com as histórias literárias e sociais muito mais vastas das
quais os textos e o os leitores fazem parte. Como sempre, Jameson
permanece hostil à falsa escolha entre formalismo e historicismo. “Ler
estes registros e estes sintomas com alguma precisão exige uma espécie
de formalismo, desde que seja um formalismo social ou, melhor ainda,
materialista, capaz de detectar a profunda historicidade da qual estas
obras são uma transcrição arqueológica.” As resenhas e ensaios de
Jameson em Inventions of a Present enquadram assim o círculo da
leitura atenta e da crítica de orientação social ou política, a fim de
mostrar como o romance hoje registra a nossa situação histórica numa era
de globalização.
Em The Autonomous Work of Art: Utopian Plot-Formation in The Wire,
ele se volta para a célebre série de televisão baseada em Baltimore,
que confunde o gênero, produzida por David Simon. Este é o único
capítulo de Invenções do Presente que não se concentra em romances ou
romancistas, mas a sua inclusão nesta coleção mostra até que ponto The Wire,
como muitos críticos observaram na época, é um triunfo do realismo
romanesco, mais dickensiano do que a maioria dos dramas de seu gênero.
Na sua leitura de The Wire, a meticulosa construção do
enredo do realismo da série, com as suas múltiplas perspectivas e
coletividades, contribui para uma visão de uma reestruturação
potencialmente revolucionária ou transformadora da sociedade. As
múltiplas perspectivas e enredos dinâmicos, traçando fluxos e energias
sociais ao longo deste sistema complexo, formam assim uma espécie de
mapa, não apenas dos espaços literais da cidade, mas do sistema social
como um todo, que por sua vez pode ser usado como um meio para imaginar
formas alternativas. The Wire apresenta, portanto, “um enredo
em que elementos utópicos são introduzidos, sem fantasia ou realização
de desejo, na construção de eventos fictícios, mas totalmente
realistas”.
O curioso título merece uma palavra. Tal como acontece com os títulos
de muitos dos livros de Jameson, que o crítico Phillip E. Wegner
chamou, com razão, de “romances teóricos”. Invenções de um Presente é
uma alusão a uma frase de Stéphane Mallarmé: “Não existe presente[…] Não
– um presente não existe”, e que “aqueles que se declaram seus
contemporâneos” estão mal-informados. É nesta tarefa de inventar o
presente que o romance é mais indispensável. Os romances são um meio
pelo qual podemos empreender o impossível projeto de historicizar o
momento atual. Independentemente da perspectiva política do seu autor,
eles sintetizam o mundo, e uma crítica dialética marxista do tipo à qual
Jameson dedicou toda a sua carreira pode ajudar a dar sentido à forma
como os artistas dão sentido ao mundo. “Nestes romances”, como diz
Jameson, refletindo sobre a citação de Mallarmé, “podemos começar a
ouvir, ainda que fracamente, as vozes dos contemporâneos”.
é
professor de inglês na Texas State University. Seus livros recentes
incluem The Fiction of Dread: Dystopia, Monstrosity, and Apocalypse, The
Critical Situation: Vexed Perspectives in Postmodern Literary Studies e
For a Ruthless Critique of All That Exists: Literature in an Age of
Capitalist Realism.
Morreu Fredric R. Jameson, proeminente filósofo e crítico cultural (1934-2024)
sexta-feira, 13 de setembro de 2024
in JACOBINA
12/09/2024
Um dos maiores revolucionários anticoloniais do mundo
POR Marcela Magalhães de Paula
Neste dia, em 1924, nascia Amilcar Cabral, o revolucionário africano
responsável por liderar a libertação de Guiné-Bissau e Cabo Verde da
colonização portuguesa. Seu legado teórico e prático continua sendo uma
referência central para as lutas contra o imperialismo, o racismo e a
crise climática.
Era 1964, quando, em pleno curso da guerra de
independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, Amílcar Cabral tomou uma
decisão que encapsulava sua visão revolucionária em toda a sua
profundidade: começou a assinar o seu nome como Abel Djassi. Mais do que
um simples pseudônimo, essa escolha carregava um simbolismo
significativo. Líder incontestável do Partido Africano para a
Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), Cabral optou por afastar
sua identidade individual em prol da coletividade da luta, esvaziando o
protagonismo pessoal para reforçar a natureza coletiva da revolução.
Hoje, em 2024, 60 anos depois desse acontecimento, celebramos o
centenário de nascimento deste grande marxista e uma das figuras mais
importantes da luta anticolonial e do pensamento revolucionário no
século XX. Nascido em 12 de setembro de 1924, Cabral foi não apenas um
estrategista militar e político, mas um teórico inovador que soube
adaptar o marxismo à realidade das colônias africanas, especialmente na
Guiné-Bissau e em Cabo Verde. Seu legado continua a ser uma referência
central para as lutas contemporâneas contra o imperialismo, o racismo e o
neocolonialismo.
“O nome escolhido evocava a ideia de que cada
combatente era um fio indispensável do tecido revolucionário e que a
vitória só seria alcançada por meio do esforço coletivo e da mobilização
das massas.”
A adoção do nome Abel Djassi por Cabral refletia também sua profunda
compreensão da natureza dialética da luta anticolonial. Para ele, a
identidade revolucionária não poderia se limitar à figura de um único
líder ou à centralidade de uma personalidade carismática. Era necessário
criar uma unidade de propósito entre todos os envolvidos, desde os
guerrilheiros nas florestas da Guiné até os trabalhadores em Cabo Verde,
todos igualmente responsáveis pelo futuro de suas nações. O nome
escolhido evocava a ideia de que, no campo de batalha e nas arenas
políticas, cada combatente era um fio indispensável do tecido
revolucionário, e que a vitória só seria alcançada por meio do esforço
coletivo e da mobilização das massas. Essa era a essência da visão de
Cabral: construir um movimento de libertação que fosse orgânico,
inclusivo e enraizado nas necessidades e sonhos do povo. A luta não era
de um único homem, mas de todo um povo.
O pseudônimo Abel Djassi simbolizava o desejo de Amílcar Cabral de se
integrar profundamente aos combatentes, não como um líder distante ou
um teórico isolado, mas como um igual — alguém que, tal como os
camponeses e guerrilheiros ao seu lado, empunhava não apenas armas, mas o
sonho coletivo da libertação. Cabral sempre entendeu que a revolução
não se construía por meio de ações individuais, mas pela força
organizada das massas. A sua liderança se fundia com o destino coletivo
da nação em formação, demonstrando que a verdadeira libertação não se
baseava no protagonismo individual, mas sim no esforço conjunto de
todos.
A arte da palavra
Cabral destacou-se não apenas por sua
perspicácia teórica e liderança militar, mas também por sua
extraordinária habilidade de ajustar seu discurso conforme o público.
Além de ser um grande poeta, com maestria, ele conseguia comunicar suas
ideias de maneira eficaz tanto a camponeses de pouca ou nenhuma
escolaridade quanto a líderes revolucionários internacionais e figuras
de alta autoridade política e religiosa. Essa adaptabilidade revelava
sua notável capacidade política e pragmática, permitindo que ele
alcançasse diferentes audiências sem comprometer seus princípios.
Momentos cruciais, como seus discursos na ONU, sua participação nas
comemorações do centenário de Lenin, em Moscou, e seu encontro com o
Papa Paulo VI, no Vaticano, revelam essa versatilidade discursiva, na
qual transitava facilmente entre diferentes interlocutores, sempre
mantendo como caminho central a luta pela libertação nacional e a
justiça social.
Em cada cenário, Cabral demonstrava sua habilidade única de adaptar o
discurso conforme o contexto e o público. Nos palcos internacionais,
ele soube alinhar seu discurso às expectativas diplomáticas e políticas,
ao mesmo tempo em que reafirmava os valores centrais da luta de
libertação. Para Cabral, não se tratava apenas de obter apoio ou
reconhecimento externo, mas de deixar claro que a batalha pela
independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde era parte de uma luta global
contra o imperialismo e pela autodeterminação. Essa capacidade de
transitar entre diferentes arenas, mantendo a coerência de sua mensagem,
era uma de suas grandes forças, permitindo que construísse pontes tanto
com o movimento socialista internacional quanto com instituições e
lideranças que, a princípio, poderiam parecer distantes de sua causa.
Em dezembro de 1972, por exemplo, Amílcar Cabral discursou na
Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), onde apresentou a causa da
independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde diante da comunidade
internacional. Nessa ocasião histórica, Cabral utilizou um tom
diplomático, mas firme, para denunciar o colonialismo português e expor
ao mundo as atrocidades cometidas pelo regime de Salazar. Ele argumentou
que a luta de libertação liderada pelo PAIGC era legítima e inevitável,
sendo uma resposta necessária à exploração e à repressão colonial.
“Cabral dialogou diretamente com a tradição
revolucionária do socialismo científico, referindo-se às ideias de Lenin
sobre o imperialismo.”
Cabral conciliou, de forma exemplar, um apelo ao direito
internacional, invocando o princípio da autodeterminação dos povos, com
uma análise marxista do imperialismo. Com esse discurso, soube
adaptar-se ao cenário diplomático, mantendo uma crítica contundente ao
colonialismo em um formato que dialogava com o movimento socialista
internacional.
Dois anos antes, em abril de 1970, Cabral havia participado das
comemorações do centenário de nascimento de Lenin, em Moscou, onde
discursou para líderes revolucionários e autoridades da União Soviética.
Utilizando uma linguagem profundamente enraizada no marxismo, Cabral
dialogou diretamente com a tradição revolucionária do socialismo
científico, referindo-se às ideias de Lenin sobre o imperialismo. O
discurso foi um marco importante para reafirmar os vínculos entre as
lutas de libertação africanas e o legado do marxismo-leninismo contra o
colonialismo português na Guiné-Bissau e Cabo Verde:
“Como estamos nos esforçando para libertar nosso país de um jugo
estrangeiro, estamos aqui para representar não apenas nosso Partido.
Somos os representantes legais do povo africano da Guiné e das Ilhas de
Cabo Verde, as mais antigas colônias portuguesas na África — um povo que
foi compelido a pegar em armas para sua libertação diante da violência
criminosa por parte dos colonialistas fascistas portugueses, que estão
pisoteando o direito internacional e os direitos humanos elementares.”
Para Cabral, era essencial adaptar o marxismo-leninismo ao contexto
específico das lutas de libertação na África. Embora as ideias de Lenin
fossem fundamentais, era imprescindível que cada movimento
revolucionário se adaptasse às condições materiais e culturais de seu
próprio país. Cabral argumentava que o marxismo, assim como qualquer
teoria revolucionária, não deveria ser aplicado de forma dogmática, mas
sim moldado pelas realidades locais.
No ano seguinte, em 1971, Amílcar Cabral teve uma reunião de grande
importância com o Papa Paulo VI, no Vaticano. Este momento representou
uma significativa derrota simbólica para o regime de Salazar. O governo
português, que se autoproclamava defensor do cristianismo contra o
“perigo comunista” nas colônias, via-se confrontado com o fato de que o
líder de um movimento marxista estava sendo recebido pelo maior chefe da
Igreja Católica.
“Frequentemente utilizava metáforas agrícolas
e exemplos do dia a dia para explicar a complexidade da luta contra o
colonialismo, conectando a teoria revolucionária com as experiências
cotidianas das massas.”
Durante o encontro, Cabral soube evitar a retórica revolucionária que
poderia criar atritos com o Vaticano. Em vez disso, apresentou a luta
de libertação como uma questão de direitos humanos e justiça moral,
apelando diretamente aos valores da doutrina social da Igreja Católica,
destacando que o povo guineense lutava por dignidade, paz e liberdade,
conectando a luta anticolonial com “valores mais universais”. Com essa
abordagem, Cabral teria mostrado sua habilidade de dialogar com esferas
de poder fora do campo socialista, conquistando a simpatia de novos
aliados.
Nos campos de batalha, Cabral se comunicava de maneira simples e
direta, usando uma linguagem acessível, ao mesmo tempo em que mobilizava
suas palavras para a ação política e militar. Frequentemente utilizava
metáforas agrícolas e exemplos do dia a dia para explicar a complexidade
da luta contra o colonialismo, conectando a teoria revolucionária com
as experiências cotidianas das massas. Isso não apenas facilitava a
compreensão do movimento, mas reforçava a relevância da luta para o povo
comum, ao mostrar como o colonialismo impactava diretamente suas vidas.
Um exemplo clássico pode ser encontrado nos seus discursos sobre os tipos de resistência.
Cabral falava de diferentes formas de resistência – armada, política,
cultural e econômica – de maneira que o povo pudesse entender a luta
como algo que transcende o campo de batalha. Ao explicar a resistência
econômica, ele fazia paralelos com o trabalho agrícola: “Assim como a
terra deve ser cultivada de forma independente para gerar frutos, a
economia de um país livre deve ser construída pelos próprios camponeses,
sem o domínio de estrangeiros.” Dessa forma, ele conectava o conceito
abstrato de independência econômica à prática concreta do cultivo da
terra.
Nos seus discursos sobre a resistência política, Cabral era
igualmente pedagógico, utilizando exemplos da vida comunitária para
explicar a importância da organização política. Ele comparava a
resistência organizada com o plantio em cooperativas, onde “cada
trabalhador contribui para a colheita final”, ilustrando que a
libertação nacional só seria possível com a participação de todos.
Assim, ele mobilizava as massas para a ação política, mostrando que a
luta era um esforço coletivo, como o trabalho no campo.
“A educação política das massas era central,
pois sem a conscientização dos oprimidos, a luta armada poderia ser
cooptada por interesses elitistas ou degenerar em simples troca de
opressores.”
A descolonização das mentes e a resistência cultural
Antes que o primeiro tiro fosse disparado,
Cabral entendia que era necessário preparar a base ideológica da
revolução. A luta contra o colonialismo começava na mente e no espírito
dos colonizados. Ele diagnosticava o colonialismo não apenas como um
sistema de opressão material, mas como um mecanismo que alienava os
povos de suas próprias identidades, culturas e histórias. Contra isso,
ele propunha uma resistência ideológica radical: a descolonização das
mentes:
“Devemos trabalhar muito para liquidar a cultura dos colonialistas
das nossas cabeças, camaradas. É que, queiramos ou não, na cidade ou no
mato, o colonialismo meteu-nos muitas coisas nas nossas cabeças.”
A educação política das massas era central, pois sem a
conscientização dos oprimidos, a luta armada poderia ser cooptada por
interesses elitistas ou degenerar em simples troca de opressores. Cabral
trazia uma adaptação crítica do marxismo às realidades africanas,
rejeitando uma imposição dogmática e europeia. Ele via a necessidade de
um marxismo enraizado nas condições históricas e culturais específicas
da África, que pudesse não apenas guiar a luta, mas também forjar uma
nova consciência coletiva.
Assim, a cultura era considerada como trincheira contra a dominação.
Era um campo de batalha tão importante quanto o campo de combate físico.
O colonialismo não só pilhava riquezas e terras. Ele também buscava
sufocar e apagar as culturas nativas, impondo valores e práticas
europeias: um povo alienado de sua própria história é um povo mais fácil
de subjugar. Desse modo, resistir culturalmente não era um ato
simbólico, mas um ato profundamente político. Era através da valorização
das línguas, costumes e tradições que os colonizados combatiam o roubo
de sua humanidade e seu direito à autodeterminação. Cabral denunciava
que a destruição cultural era uma forma de “genocídio espiritual”, e por
isso, a preservação e revitalização das tradições locais eram armas
poderosas contra a desumanização promovida pelo colonialismo.
“Essa visão pragmática aproximava Cabral do
pensamento de Frantz Fanon, que também argumentava que os colonizados
precisavam transcender a mera defesa das tradições para forjar novas
táticas.”
Entretanto, é importante ressaltar que, além de ver a cultura como
trincheira contra a dominação, Amílcar Cabral também defendia uma assimilação crítica das influências externas, como lembram Inês Galvão, José Neves e Rui Lopes na edição revista e comentada do livro Amílcar Cabral: análise de alguns tipos de resistência.
Embora o líder do PAIGC valorizasse profundamente a preservação das
tradições locais como forma de resistência ao colonialismo, Cabral não
adotava uma postura purista ou essencialista em relação à cultura. Ele
reconhecia que as culturas, inclusive as africanas, estavam em constante
transformação e que a assimilação de certos aspectos do mundo exterior,
inclusive colonial, poderia ser estratégica para o desenvolvimento e a
libertação dos povos colonizados. Essa visão pragmática aproximava
Cabral do pensamento de Frantz Fanon, que também argumentava que os
colonizados precisavam transcender a mera defesa das tradições para
forjar novas táticas no processo de luta pela libertação.
Cabral acreditava que a resistência cultural não significava rejeitar
automaticamente todas as influências coloniais, mas sim saber
diferenciá-las e adotá-las de maneira crítica, quando pudessem servir ao
processo revolucionário. Para ele, o importante era que a assimilação
fosse realizada de forma consciente, sempre em benefício da emancipação.
Essa postura flexível permitia que os povos colonizados incorporassem
tecnologias, ideias políticas e até certos aspectos para além da cultura
africana, desde que isso contribuísse para a sua autonomia e não
reforçasse a dominação.
Ou seja, Cabral não adotava uma postura de rechaço completo ao que os
portugueses haviam trazido para as colônias. Sua perspectiva era
pragmática, crítica e antropofágica, pois ele compreendia que, embora o
colonialismo tivesse sido e fosse uma força devastadora e
desumanizadora, não se podia negar que certos elementos trazidos pelo
colonizador — como conhecimentos técnicos — poderiam ser apropriados e
utilizados em benefício dos povos colonizados: “O nosso trabalho deve
ser tirar da cabeça aquilo que não presta e deixar aquilo que é bom.
Devemos ser capazes de combater a cultura colonialista, mas deixar na
nossa cabeça os aspectos da cultura humana, científica que os
portugueses deixaram na nossa terra”, afirma Cabral no seu discurso
sobre “Resistência cultural”.
Cabral acreditava que a independência não deveria significar a
rejeição completa do conhecimento europeu, mas sim a sua reapropriação
de forma crítica, moldada para os interesses das nações africanas. A
revolução não era apenas militar, mas também um processo de aprendizado e
incorporação seletiva.
“Cabral reconhecia a importância de
estabelecer alianças com os portugueses anticolonialistas, compreendendo
que a libertação nacional não seria apenas uma vitória contra o
colonialismo, mas também uma derrota para o fascismo português.”
Nesse contexto, é interessante pensar como a relação entre Amílcar
Cabral e o Partido Comunista Português (PCP) foi significativa. O PCP,
um dos principais oponentes do regime fascista de Salazar, desempenhou
um papel importante na conscientização de setores da esquerda portuguesa
sobre a necessidade de apoiar as lutas de libertação nas colônias. Nos
anos 1960 e 1970, o colonialismo português enfrentava resistência armada
em várias frentes, incluindo Guiné-Bissau, Angola e Moçambique. Cabral,
como líder do PAIGC, articulava uma estratégia de resistência armada e
mobilização popular contra o domínio colonial. Ao mesmo tempo, o PCP,
que já havia passado décadas na clandestinidade, liderava a oposição
interna ao Estado Novo, o regime autoritário de Salazar (e depois de
Marcello Caetano). Cabral reconhecia a importância de estabelecer
alianças com os portugueses anticolonialistas, compreendendo que a
libertação de Guiné-Bissau e Cabo Verde não seria apenas uma vitória
contra o colonialismo, mas também uma derrota para o fascismo português.
Pensando nisso, Cabral manteve ligações com militantes do PCP,
partilhando ideias e estratégias para a luta comum contra o imperialismo
e o colonialismo, compreendendo que a resistência nas colônias estava
diretamente ligada à luta contra a opressão fascista em Portugal. Esse
intercâmbio com setores progressistas portugueses, especialmente o PCP,
reforçava sua visão de que o colonialismo e o fascismo eram duas faces
de um mesmo sistema de dominação. Essas conexões possibilitaram um apoio
mútuo, tanto no campo ideológico quanto no prático, fortalecendo a
resistência nas colônias africanas e no próprio território português.
Para o PCP, a luta contra o regime fascista português tinha um
caráter tanto de luta de classes quanto de resistência ao imperialismo. A
dominação das colônias africanas era uma parte essencial da política
imperialista de Salazar. As guerras coloniais consumiam vastos recursos
financeiros e humanos, exacerbando a crise política e social dentro de
Portugal. O PCP, como um partido marxista-leninista comprometido com o
internacionalismo, reconhecia a importância da luta anticolonial e via
também a derrota do colonialismo como parte integrante da luta contra o
fascismo e o capitalismo em Portugal, como podemos comprovar no dossiê
sobre Amílcar Cabral da revista O militante, publicada pelo PCP.
A importância do protagonismo das mulheres
Como já dissemos, Amílcar Cabral não era apenas
um líder prático, mas também um teórico profundamente comprometido com a
ideia de que a teoria revolucionária precisa ser adaptada às condições
locais. Ele defendia o que chamava de “arma da teoria”, ou seja, a
importância de uma análise profunda da realidade concreta antes de
iniciar qualquer luta revolucionária.
Cabral combinava a luta armada com a educação política das massas.
Nas zonas libertadas da Guiné-Bissau, o PAIGC organizava escolas,
serviços de saúde e cooperativas agrícolas, mostrando que a revolução
não era apenas um momento de ruptura, mas um processo contínuo de
transformação social. Esse compromisso com a construção de estruturas de
autossuficiência e educação popular continua sendo um dos legados mais
importantes de Cabral.
“Crispina Gomes destaca que Cabral não apenas
defendia a participação das mulheres na luta armada, mas também nas
estruturas de poder local.”
Crispina Gomes, socióloga cabo-verdiana membro da fundação Amílcar
Cabral, destaca o papel central das mulheres na luta de libertação
liderada por Cabral, ressaltando como ele reconheceu e promoveu a
participação feminina tanto no contexto militar quanto no político e
social. Para a socióloga, Cabral tinha uma visão clara da importância
das mulheres na luta de libertação, tendo incorporado isso nas práticas e
políticas do PAIGC. Ela aponta que Cabral compreendia que a libertação
nacional não poderia ser alcançada plenamente sem que houvesse também a
libertação das mulheres de estruturas patriarcais tradicionais e da
opressão imposta pelo colonialismo.
Crispina Gomes destaca que Cabral não apenas defendia a participação
das mulheres na luta armada, mas também nas estruturas de poder local.
Esse aspecto é particularmente relevante nas tabancas (aldeias) das
zonas libertadas da Guiné-Bissau, onde as mulheres eram incorporadas nos
conselhos de administração e outras formas de liderança comunitária,
promovendo cotas: a cada 5 pessoas na liderança, no mínimo 2 deveriam
ser mulheres. Para Cabral, garantir a presença feminina nas lideranças
das tabancas era uma forma de assegurar que as mulheres tivessem voz e
participação ativa na organização da vida comunitária.
Outro ponto importante que Crispina Gomes levanta é a importância que
Cabral atribuía à educação e à conscientização política das mulheres.
Ele defendia que, além de participarem diretamente nas frentes de
batalha, as mulheres precisavam ser politicamente educadas para
compreenderem seu papel na transformação social. A formação das mulheres
como líderes políticas era essencial para o sucesso da revolução e para
a construção da sociedade pós-colonial desejada.
Gomes também ressalta que Cabral tinha plena consciência das
estruturas patriarcais que existiam nas sociedades africanas antes da
colonização e que foram reforçadas pelo colonialismo. Ele acreditava que
a revolução deveria não apenas libertar o povo do domínio colonial, mas
também transformar as relações sociais internas, incluindo as relações
de gênero.
Um legado para além da vida e da morte
No centenário de Amílcar Cabral, seu legado
permanece vivo e altamente relevante para as nações africanas e para os
movimentos progressistas em todo o mundo. Cabral antecipou que a
verdadeira libertação de África não viria apenas com a independência
política, mas com a independência econômica e cultural. Insistia na
necessidade de romper com a dependência de economias coloniais voltadas
para o exterior e de construir um modelo de desenvolvimento que fosse
autossuficiente e voltado para as necessidades do povo.
Essa visão é especialmente relevante hoje, quando muitas nações
africanas ainda sofrem com a exploração de suas riquezas naturais por
corporações multinacionais, perpetuando uma nova forma de colonialismo
econômico. Cabral também destacava a importância de integrar o povo no
processo de desenvolvimento, alertando contra a criação de elites
pós-coloniais que se descolariam das massas, algo que vemos se repetir
em muitos países africanos.
“Em um mundo onde o capitalismo global
continua a expandir-se, explorando trabalhadores e devastando o meio
ambiente, o pensamento de Cabral é mais importantes do que nunca.”
Seu pensamento, portanto, vai além da luta anticolonial, oferecendo
um projeto de transformação interna que se alinha às demandas
contemporâneas anticapitalistas. Cabral defendia que o sucesso de
qualquer revolução dependia da capacidade de envolver diretamente o povo
na construção da nova sociedade, uma lição que continua ecoando para
movimentos progressistas no mundo todo.
Em um mundo onde o capitalismo global continua a expandir-se,
explorando trabalhadores e devastando o meio ambiente, o pensamento de
Cabral sobre autossuficiência e a necessidade de uma descolonização
cultural crítica são mais importantes do que nunca. Ele nos lembra que o
verdadeiro desenvolvimento só é possível quando as nações se libertam
das amarras da exploração externa e da alienação cultural, construindo
seu futuro a partir de suas próprias necessidades e realidades. “Kabral
ka mori”.
A primeira crítica recuperada por Lahire deriva justamente de
ensinamentos das ciências sociais sobre a moldagem sociocultural da
psique, ensinamentos integrados ao pensamento psicanalítico por figuras
como Erich Fromm e Karen Horney. Por um lado, o acento freudiano sobre o
peso decisivo das primeiras experiências infantis, em relações
afetivamente carregadas com os pais no cenário familiar, já pode ser
visto como um passo analítico importante na direção do social. Por outro
lado, esse aceno permaneceu insuficientemente sociológico na sua falta
de atenção tanto à variedade sócio-histórica de arranjos familiares quanto às influências socializantes que derivam da inserção da família em sistemas sociais mais amplos (por exemplo, em estruturas de classe ou étnico-raciais).
Grosso
modo, em sua teoria do Complexo de Édipo, Freud partiu da observação de
dinâmicas familiares características das classes médias no Ocidente do
século XIX para, daí, formular uma tese generalizante sobre a psique –
masculina, pelo menos – que ele julgava aplicável a quaisquer cenários
sócio-históricos. Contra esse pressuposto universalizante, autores como
Margaret Mead, Bronislaw Malinowski e Roger Bastide mostraram a especificidade histórica e cultural
dos esquemas de relacionamento familiar que engendravam a situação
edipiana: uma estrutura patriarcal que conferia significativo poder à
figura do pai, cuja atuação extradoméstica o tornava um tanto ausente na
experiência diária do lar, em relação com uma mãe socialmente colocada
em uma condição subalterna ao marido, mas que desempenhava um papel
crucial na organização da família. (...) »
Gabriel Peters , sobre o livro de Bernard Lahire -L’interprétation Sociologique des rêves. La Découvert, 2018.