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domingo, 29 de setembro de 2024

FREDRIC JAMESON---- Um dos mais inovadores filósofos marxistas conremporâneos. Já há muito que não pode elaborar análises críticas sobre artes (eruditas e populares) e Cultura, desconhecendo-o.

 

Vento nas velas. 

Vento nas velas. Fredric Jameson (1934-2024)

Com Jameson, aprendi que mais do que saber repetir direitinho tudo que estava presente na obra de Adorno e da Teoria Crítica, o esforço que valia era tentar refletir sobre como essa teoria ilumina o presente. Essa era a graça da coisa toda, dizia ele. Nenhum exercício de conformação, mas liberdade, liberdade radical diante dos textos (dentro do que sua matéria, permite, evidentemente) e disposição para levar determinados autores aonde esses mesmos não quiseram ir.

Foto: Fronteiras do Pensamento (Wikimedia Commons)

Por Bruna Della Torre

Ser dialético significa ter o vento da história mundial em suas velas. As velas são os conceitos. Mas não basta dispor das velas. O que é decisivo é a arte de poder içá-las.
Walter Benjamin, Das Passagen-Werk

Fredric Jameson morreu em 22 de setembro de 2024. O marxismo perdeu um de seus maiores e mais importantes intelectuais. Alguém que, apesar de todas as derrotas da esquerda desde a queda do Muro de Berlim, permanecia um socialista convicto, sem nenhum traço de melancolia e que colocou a sua mente um tanto quanto privilegiada a serviço dessa causa, pela via da crítica. Jameson foi um dos maiores militantes teóricos do marxismo e sua obra é a prova da relevância dessa teoria, método e posição política para o século XXI.

Jameson ainda escrevia – acabou de lançar Inventions of a Present: The Novel in its Crisis of Globalization – e permanecia um professor ativo no Departamento de Literatura da Universidade de Duke, em Durham, Carolina do Norte, onde lecionava desde 1985. Graduado pelo Haverford College e com doutorado em Yale, lecionou nesta, em Harvard e na University of California (campi de San Diego e Santa Cruz). Além de ensinar no Programa de Literatura de Duke, Jameson atuava no âmbito da literatura comparada, com ênfase na teoria crítica e tratava de temas filosóficos relacionados à cultura e à literatura. O departamento, que ele ajudou a construir, era único e um dos mais abertos em termos de temas e disciplinas dos Estados Unidos.

Nem todo acadêmico é um intelectual. Jameson era ambos. Como a de Walter Benjamin, sua extensa obra é inclassificável. Ensaísta, Jameson interveio em muitos campos e abordou inúmeros assuntos: teoria do romance, filosofia, marxismo, crítica literária, arquitetura, artes plásticas, estudos de mídia, estudos culturais, teoria da globalização, modernismo, ficção científica, cultura de massas etc. Ele dizia que a mente não era como um computador, em que a memória é restrita, mas ilimitada – no caso dele, talvez isso seja verdade. E cada área tocada por sua pena se transformou, fazendo dele uma referência incontornável para a teoria crítica contemporânea. Cada intervenção teórica sua produzia uma transformação completa em seus muitos campos de estudos. A ficção científica é um gênero debatido pelo marxismo hoje, em grande medida, graças a ele. A crítica literária marxista que conjuga o pós-estruturalismo e a teoria crítica também é tributária de seus escritos. O debate sobre as tensões entre modernismo e realismo é outro depois de suas leituras. Bertolt Brecht, Walter Benjamin e Theodor W. Adorno saíram renovados de seus livros. Como com Karl Marx e Friedrich Hegel, Jameson era capaz de superar as querelas da fortuna crítica e sempre dizer algo novo sobre o que comentava.

Ele é o grande teórico da cultura sob o neoliberalismo e sua teoria sobre o pós-modernismo (como estilo tardio) e a pós-modernidade é certamente o maior desdobramento da teoria da indústria cultural de Theodor W. Adorno até hoje. Infelizmente esses aspectos de sua obra foram quase completamente ignorados pela filosofia e pelas ciências sociais brasileiras (salvo poucas e raras exceções), que ainda desprezam sua obra devido ao fato de ela vir da crítica literária ou talvez por ela desrespeitar todas as fronteiras disciplinares – um tabu para uma academia que ainda funciona na lógica das capitanias hereditárias (cada um no seu latifúndio, com a sua devida especialidade e ai de quem disser a palavra “crítica”). Apesar da trajetória estupenda de Jameson, quantas vezes não ouvi que sua obra era interessante, mas que lhe faltava substância e sistematicidade. Vale para ele o que Adorno escreveu sobre Marcel Proust em Minima Moralia; aquele que trai a sua classe para se dedicar às coisas do espírito “não é um profissional e, por melhor que seja, figura como um diletante na hierarquia dos concorrentes”. A tradução de suas obras completas, nesse sentido, é uma tarefa urgente para superar não só essa abordagem da obra de Jameson, mas a própria noção do que é a teoria crítica e de sua importância.

Além de um intelectual extraordinário, Jameson era um professor diligente, humilde e dedicado. Era respeitoso e sério e a prova de que um autor estupendo tem tempo para ser bom professor e orientador – nada nele dava a impressão de superstar. Ele dava aula duas vezes por semana, chegava cheio de livros e cadernos rabiscados e dava cursos sobre literatura, crítica literária e filosofia. Suas salas de aula eram lotadas de estrangeiros – os estadunidenses não davam muita bola para ele, pois diziam que os cursos de Jameson eram uma igrejinha, pois ao invés de dar seminários nos quais os alunos falam, Jameson dava palestras que duravam normalmente uma hora e quinze – talvez algo um pouco demasiado para a atenção já estilhaçada pelas redes sociais dos jovens dos EUA. Mas a cada aula, Jameson pedia que entregássemos antes uma “reação” ao texto do dia. Ele lia com atenção as respostas e sempre fazia questão de comentá-las de maneira discreta e sem personalizar. Ele tinha 83 anos quando me recebeu em Duke para um doutorado sanduíche e a paixão dele pela docência é algo que nunca havia visto. Sua família já havia se mudado para outra cidade, mas Jameson ficava em Durham – um lugar minúsculo e monótono – para lecionar. E lá ficou até o fim, evidenciando como o amor pelo que fazia sequer cedia às barreiras físicas que foram se impondo ao longo dos anos. Sua assistente me disse certa vez que ele comprava e lia um livro por dia e sua erudição era de fato impressionante. Quando deu uma aula sobre Bertolt Brecht, mencionou a Ópera do Malandro de Chico Buarque e em seu curso sobre modernismo incluiu Mário e Oswald de Andrade na bibliografia. Também recomendava fortemente a obra de Roberto Schwarz aos estudantes. Ele nunca falava de si, nem nas aulas, nem nas interações de orientação. Apesar de tudo que tinha escrito, nunca se indicava como referência bibliográfica e jamais escutei-o dizer: “eu escrevi um livro sobre isso”.

Jameson falava e lia em inúmeras línguas. Ele dizia que conhecer a teoria de um autor ou a obra de um artista era um pouco como saber falar uma língua estrangeira, pois também exige saber um vocabulário específico e uma forma de organizar o pensamento e a experiência. Ele era o marxista mais ortodoxo e heterodoxo que já vi na vida. Era um adorniano althusseriano e brechtiano, um sartreano luckásciano e, talvez, por isso, um benjaminiano. Jameson parecia ter um espírito antropológico com relação tanto ao marxismo, quanto à literatura. Tudo interessava e gerava curiosidade. Tudo se aproveitava, mas sem relativismo. O maior ensinamento de sua obra é esse: ler todos os autores do marxismo, ler toda a literatura – com as preferências inevitáveis que sempre temos – de coração e mente aberta, sem tomar partido por uma coisa ou outra antes de conhecê-la bem. Além disso, e acho que essa é a principal marca de sua obra, Jameson fazia questão de dizer e mostrar que o medo de errar não pode paralisar o pensamento. Ele experimentava com conceitos, análises, interpretações. Sabia que para dizer algo novo era preciso um impulso para ir além do estabelecido na fortuna crítica de uma obra. E para isso é preciso mais coragem do que pensamos. Tenho para mim que foi a superação dessa barreira psicológica e social que tornou sua obra tão vibrante. Não precisamos concordar com o que está escrito ali, mas é visível que se trata de um esforço da inteligência que funciona como motor para o marxismo contemporâneo. Com ele, aprendi que mais do que saber repetir direitinho tudo que estava presente na obra de Adorno e da Teoria Crítica, o esforço que valia era tentar refletir sobre como essa teoria ilumina o presente. Essa era a graça da coisa toda, dizia ele. Nenhum exercício de conformação, mas liberdade, liberdade radical diante dos textos (dentro do que sua matéria, permite, evidentemente) e disposição para levar determinados autores aonde esses mesmos não quiseram ir.

Mesmo aos 83 anos, Jameson separava uma hora e meia por semana para atender os alunos depois da aula. Essas horas serviam para conversar, pedir bibliografia, orientar os trabalhos. Muitas vezes, ele permanecia sentado, ao lado do quadro de Marx que tinha em seu escritório, esperando por estudantes. Mesmo quando ninguém aparecia, ele ficava lá. Essa sua imagem foi a que ficou em mim. Em Prismas – Crítica Cultural e Sociedade, Adorno diz que no seguinte conto de Kafka encontramos a figura da revolução:

Em nossa casa, essa imensa casa de subúrbio, uma caserna de aluguel rodeada por ruínas medievais indestrutíveis, foi hoje proclamado, nessa manhã fria e nebulosa de inverno, o seguinte manifesto:

A todos os meus co-locatários,

Eu possuo cinco espingardas de brinquedo. Elas estão penduradas na minha caixa, uma em cada gancho. A primeira me pertence. Quem quiser pode se candidatar às outras. Caso se apresentem mais do que quatro, os restantes devem trazer as suas próprias espingardas, e depositá-las na minha caixa. Pois deve haver unidade, sem unidade não iremos para frente. Aliás, possuo apenas espingardas que são inúteis para qualquer outra utilização: o mecanismo está arruinado, a rolha estragada, somente os gatilhos ainda funcionam. Portanto não será difícil conseguir outras espingardas nesse estado. Na verdade, por agora ficarei contente também com pessoas sem espingardas. Nós, que temos espingardas, colocaremos no momento oportuno os sem espingardas no meio do combate. É uma tática que teve êxito nas primeiras lutas dos fazendeiros norte-americanos contra os índios. Por que não deve funcionar também aqui, já que as condições são semelhantes? A longo prazo, portanto, podemos prescindir de espingardas, e mesmo estas cinco não são absolutamente imprescindíveis. Mas já que elas estão disponíveis, também devem ser utilizadas. Se não quiserem utilizar as quatro restantes, podem deixá-las lá. Neste caso, somente eu, como líder, levarei uma espingarda. Mas como não deveríamos ter um líder, também vou quebrar minha espingarda ou deixá-la de lado. Este foi o primeiro chamado. Na nossa casa ninguém tem tempo nem vontade de ler manifestos ou de refletir sobre eles. Os pequenos papéis logo nadavam na água do esgoto que se inicia no sótão, é alimentada por todos os corredores, desce pelas escadas e luta com a contracorrente de água que jorra do andar de baixo. Mas depois de uma semana chegou um segundo chamado:

Inquilinos,

Até agora ninguém se apresentou. Estive sempre em casa, a não ser no tempo em que tinha que cuidar do meu sustento, e mesmo durante a minha ausência a porta do meu quarto ficou sempre aberta, com uma folha em cima de minha mesa, na qual quem quisesse poderia se inscrever. Ninguém o fez.

Certamente muita gente atendeu ao chamado de Jameson, ele orientou e ensinou muitas pessoas que hoje buscam continuar seu projeto. Mas o convite permanece aberto, mesmo depois de sua morte. Nossa sociedade costuma homenagear os mortos, baixando suas bandeiras em sinal de luto. A morte de Jameson exige outro gesto. Que se icem as velas.

Adeus, Fredric Jameson.

Abaixo, uma lista de algumas de suas obras para quem quiser conhecer mais sobre o autor:

  • Sartre: The Origins of a Style
  • Marxism and Form: Twentieth-Century Dialectical Theories of Literature
  •  The Prison-House of Language: A Critical Account of Structuralism and Russian Formalism (originalmente a segunda parte de Marxismo e Forma, desmembrada por razões editoriais)
  •  O marxismo tardio
  •  Fables of Aggression: Wyndham Lewis, the Modernist as Fascist
  •  The Political Unconscious: Narrative as a Socially Symbolic Act
  •  Ideologies of Theory: Essays
  •  Postmodernism, or The Cultural Logic of Late Capitalism
  •  Signatures of the Visible; The Geopolitical Aesthetic: Cinema and Space in the World System
  •  The Seeds of Time
  • Brecht and Method
  •  The Cultural Turn: Selected Writings on the Postmodern, 1983–1998
  •  A Singular Modernity: Essay on the Ontology of the Present
  •  Archaeologies of the Future: The Desire Called Utopia and Other Science Fictions
  •  The Modernist Papers
  •  Valences of the Dialectic
  • The Hegel Variations: On the Phenomenology of Spirit
  •  Representing Capital: A Reading of Volume One
  •  The Antinomies of Realism
  • An American Utopia: Dual Power and the Universal Army
  •  Raymond Chandler: The Detections of Totality
  •  Allegory and Ideology
  •  The Benjamin Files
  •  The Inventions of a Present: The Novel in its Crisis of Globalization
  • The Years of Theory: Postwar French Thought to the Present
  •  Mimesis, Expression, Construction

 (1934-2024)

Com Jameson, aprendi que mais do que saber repetir direitinho tudo que estava presente na obra de Adorno e da Teoria Crítica, o esforço que valia era tentar refletir sobre como essa teoria ilumina o presente. Essa era a graça da coisa toda, dizia ele. Nenhum exercício de conformação, mas liberdade, liberdade radical diante dos textos (dentro do que sua matéria, permite, evidentemente) e disposição para levar determinados autores aonde esses mesmos não quiseram ir.

Foto: Fronteiras do Pensamento (Wikimedia Commons)

Por Bruna Della Torre

Ser dialético significa ter o vento da história mundial em suas velas. As velas são os conceitos. Mas não basta dispor das velas. O que é decisivo é a arte de poder içá-las.
Walter Benjamin, Das Passagen-Werk

Fredric Jameson morreu em 22 de setembro de 2024. O marxismo perdeu um de seus maiores e mais importantes intelectuais. Alguém que, apesar de todas as derrotas da esquerda desde a queda do Muro de Berlim, permanecia um socialista convicto, sem nenhum traço de melancolia e que colocou a sua mente um tanto quanto privilegiada a serviço dessa causa, pela via da crítica. Jameson foi um dos maiores militantes teóricos do marxismo e sua obra é a prova da relevância dessa teoria, método e posição política para o século XXI.

Jameson ainda escrevia – acabou de lançar Inventions of a Present: The Novel in its Crisis of Globalization – e permanecia um professor ativo no Departamento de Literatura da Universidade de Duke, em Durham, Carolina do Norte, onde lecionava desde 1985. Graduado pelo Haverford College e com doutorado em Yale, lecionou nesta, em Harvard e na University of California (campi de San Diego e Santa Cruz). Além de ensinar no Programa de Literatura de Duke, Jameson atuava no âmbito da literatura comparada, com ênfase na teoria crítica e tratava de temas filosóficos relacionados à cultura e à literatura. O departamento, que ele ajudou a construir, era único e um dos mais abertos em termos de temas e disciplinas dos Estados Unidos.

Nem todo acadêmico é um intelectual. Jameson era ambos. Como a de Walter Benjamin, sua extensa obra é inclassificável. Ensaísta, Jameson interveio em muitos campos e abordou inúmeros assuntos: teoria do romance, filosofia, marxismo, crítica literária, arquitetura, artes plásticas, estudos de mídia, estudos culturais, teoria da globalização, modernismo, ficção científica, cultura de massas etc. Ele dizia que a mente não era como um computador, em que a memória é restrita, mas ilimitada – no caso dele, talvez isso seja verdade. E cada área tocada por sua pena se transformou, fazendo dele uma referência incontornável para a teoria crítica contemporânea. Cada intervenção teórica sua produzia uma transformação completa em seus muitos campos de estudos. A ficção científica é um gênero debatido pelo marxismo hoje, em grande medida, graças a ele. A crítica literária marxista que conjuga o pós-estruturalismo e a teoria crítica também é tributária de seus escritos. O debate sobre as tensões entre modernismo e realismo é outro depois de suas leituras. Bertolt Brecht, Walter Benjamin e Theodor W. Adorno saíram renovados de seus livros. Como com Karl Marx e Friedrich Hegel, Jameson era capaz de superar as querelas da fortuna crítica e sempre dizer algo novo sobre o que comentava.

Ele é o grande teórico da cultura sob o neoliberalismo e sua teoria sobre o pós-modernismo (como estilo tardio) e a pós-modernidade é certamente o maior desdobramento da teoria da indústria cultural de Theodor W. Adorno até hoje. Infelizmente esses aspectos de sua obra foram quase completamente ignorados pela filosofia e pelas ciências sociais brasileiras (salvo poucas e raras exceções), que ainda desprezam sua obra devido ao fato de ela vir da crítica literária ou talvez por ela desrespeitar todas as fronteiras disciplinares – um tabu para uma academia que ainda funciona na lógica das capitanias hereditárias (cada um no seu latifúndio, com a sua devida especialidade e ai de quem disser a palavra “crítica”). Apesar da trajetória estupenda de Jameson, quantas vezes não ouvi que sua obra era interessante, mas que lhe faltava substância e sistematicidade. Vale para ele o que Adorno escreveu sobre Marcel Proust em Minima Moralia; aquele que trai a sua classe para se dedicar às coisas do espírito “não é um profissional e, por melhor que seja, figura como um diletante na hierarquia dos concorrentes”. A tradução de suas obras completas, nesse sentido, é uma tarefa urgente para superar não só essa abordagem da obra de Jameson, mas a própria noção do que é a teoria crítica e de sua importância.

Além de um intelectual extraordinário, Jameson era um professor diligente, humilde e dedicado. Era respeitoso e sério e a prova de que um autor estupendo tem tempo para ser bom professor e orientador – nada nele dava a impressão de superstar. Ele dava aula duas vezes por semana, chegava cheio de livros e cadernos rabiscados e dava cursos sobre literatura, crítica literária e filosofia. Suas salas de aula eram lotadas de estrangeiros – os estadunidenses não davam muita bola para ele, pois diziam que os cursos de Jameson eram uma igrejinha, pois ao invés de dar seminários nos quais os alunos falam, Jameson dava palestras que duravam normalmente uma hora e quinze – talvez algo um pouco demasiado para a atenção já estilhaçada pelas redes sociais dos jovens dos EUA. Mas a cada aula, Jameson pedia que entregássemos antes uma “reação” ao texto do dia. Ele lia com atenção as respostas e sempre fazia questão de comentá-las de maneira discreta e sem personalizar. Ele tinha 83 anos quando me recebeu em Duke para um doutorado sanduíche e a paixão dele pela docência é algo que nunca havia visto. Sua família já havia se mudado para outra cidade, mas Jameson ficava em Durham – um lugar minúsculo e monótono – para lecionar. E lá ficou até o fim, evidenciando como o amor pelo que fazia sequer cedia às barreiras físicas que foram se impondo ao longo dos anos. Sua assistente me disse certa vez que ele comprava e lia um livro por dia e sua erudição era de fato impressionante. Quando deu uma aula sobre Bertolt Brecht, mencionou a Ópera do Malandro de Chico Buarque e em seu curso sobre modernismo incluiu Mário e Oswald de Andrade na bibliografia. Também recomendava fortemente a obra de Roberto Schwarz aos estudantes. Ele nunca falava de si, nem nas aulas, nem nas interações de orientação. Apesar de tudo que tinha escrito, nunca se indicava como referência bibliográfica e jamais escutei-o dizer: “eu escrevi um livro sobre isso”.

Jameson falava e lia em inúmeras línguas. Ele dizia que conhecer a teoria de um autor ou a obra de um artista era um pouco como saber falar uma língua estrangeira, pois também exige saber um vocabulário específico e uma forma de organizar o pensamento e a experiência. Ele era o marxista mais ortodoxo e heterodoxo que já vi na vida. Era um adorniano althusseriano e brechtiano, um sartreano luckásciano e, talvez, por isso, um benjaminiano. Jameson parecia ter um espírito antropológico com relação tanto ao marxismo, quanto à literatura. Tudo interessava e gerava curiosidade. Tudo se aproveitava, mas sem relativismo. O maior ensinamento de sua obra é esse: ler todos os autores do marxismo, ler toda a literatura – com as preferências inevitáveis que sempre temos – de coração e mente aberta, sem tomar partido por uma coisa ou outra antes de conhecê-la bem. Além disso, e acho que essa é a principal marca de sua obra, Jameson fazia questão de dizer e mostrar que o medo de errar não pode paralisar o pensamento. Ele experimentava com conceitos, análises, interpretações. Sabia que para dizer algo novo era preciso um impulso para ir além do estabelecido na fortuna crítica de uma obra. E para isso é preciso mais coragem do que pensamos. Tenho para mim que foi a superação dessa barreira psicológica e social que tornou sua obra tão vibrante. Não precisamos concordar com o que está escrito ali, mas é visível que se trata de um esforço da inteligência que funciona como motor para o marxismo contemporâneo. Com ele, aprendi que mais do que saber repetir direitinho tudo que estava presente na obra de Adorno e da Teoria Crítica, o esforço que valia era tentar refletir sobre como essa teoria ilumina o presente. Essa era a graça da coisa toda, dizia ele. Nenhum exercício de conformação, mas liberdade, liberdade radical diante dos textos (dentro do que sua matéria, permite, evidentemente) e disposição para levar determinados autores aonde esses mesmos não quiseram ir.

Mesmo aos 83 anos, Jameson separava uma hora e meia por semana para atender os alunos depois da aula. Essas horas serviam para conversar, pedir bibliografia, orientar os trabalhos. Muitas vezes, ele permanecia sentado, ao lado do quadro de Marx que tinha em seu escritório, esperando por estudantes. Mesmo quando ninguém aparecia, ele ficava lá. Essa sua imagem foi a que ficou em mim. Em Prismas – Crítica Cultural e Sociedade, Adorno diz que no seguinte conto de Kafka encontramos a figura da revolução:

Em nossa casa, essa imensa casa de subúrbio, uma caserna de aluguel rodeada por ruínas medievais indestrutíveis, foi hoje proclamado, nessa manhã fria e nebulosa de inverno, o seguinte manifesto:

A todos os meus co-locatários,

Eu possuo cinco espingardas de brinquedo. Elas estão penduradas na minha caixa, uma em cada gancho. A primeira me pertence. Quem quiser pode se candidatar às outras. Caso se apresentem mais do que quatro, os restantes devem trazer as suas próprias espingardas, e depositá-las na minha caixa. Pois deve haver unidade, sem unidade não iremos para frente. Aliás, possuo apenas espingardas que são inúteis para qualquer outra utilização: o mecanismo está arruinado, a rolha estragada, somente os gatilhos ainda funcionam. Portanto não será difícil conseguir outras espingardas nesse estado. Na verdade, por agora ficarei contente também com pessoas sem espingardas. Nós, que temos espingardas, colocaremos no momento oportuno os sem espingardas no meio do combate. É uma tática que teve êxito nas primeiras lutas dos fazendeiros norte-americanos contra os índios. Por que não deve funcionar também aqui, já que as condições são semelhantes? A longo prazo, portanto, podemos prescindir de espingardas, e mesmo estas cinco não são absolutamente imprescindíveis. Mas já que elas estão disponíveis, também devem ser utilizadas. Se não quiserem utilizar as quatro restantes, podem deixá-las lá. Neste caso, somente eu, como líder, levarei uma espingarda. Mas como não deveríamos ter um líder, também vou quebrar minha espingarda ou deixá-la de lado. Este foi o primeiro chamado. Na nossa casa ninguém tem tempo nem vontade de ler manifestos ou de refletir sobre eles. Os pequenos papéis logo nadavam na água do esgoto que se inicia no sótão, é alimentada por todos os corredores, desce pelas escadas e luta com a contracorrente de água que jorra do andar de baixo. Mas depois de uma semana chegou um segundo chamado:

Inquilinos,

Até agora ninguém se apresentou. Estive sempre em casa, a não ser no tempo em que tinha que cuidar do meu sustento, e mesmo durante a minha ausência a porta do meu quarto ficou sempre aberta, com uma folha em cima de minha mesa, na qual quem quisesse poderia se inscrever. Ninguém o fez.

Certamente muita gente atendeu ao chamado de Jameson, ele orientou e ensinou muitas pessoas que hoje buscam continuar seu projeto. Mas o convite permanece aberto, mesmo depois de sua morte. Nossa sociedade costuma homenagear os mortos, baixando suas bandeiras em sinal de luto. A morte de Jameson exige outro gesto. Que se icem as velas.

Adeus, Fredric Jameson.

Abaixo, uma lista de algumas de suas obras para quem quiser conhecer mais sobre o autor:

  • Sartre: The Origins of a Style
  • Marxism and Form: Twentieth-Century Dialectical Theories of Literature
  •  The Prison-House of Language: A Critical Account of Structuralism and Russian Formalism (originalmente a segunda parte de Marxismo e Forma, desmembrada por razões editoriais)
  •  O marxismo tardio
  •  Fables of Aggression: Wyndham Lewis, the Modernist as Fascist
  •  The Political Unconscious: Narrative as a Socially Symbolic Act
  •  Ideologies of Theory: Essays
  •  Postmodernism, or The Cultural Logic of Late Capitalism
  •  Signatures of the Visible; The Geopolitical Aesthetic: Cinema and Space in the World System
  •  The Seeds of Time
  • Brecht and Method
  •  The Cultural Turn: Selected Writings on the Postmodern, 1983–1998
  •  A Singular Modernity: Essay on the Ontology of the Present
  •  Archaeologies of the Future: The Desire Called Utopia and Other Science Fictions
  •  The Modernist Papers
  •  Valences of the Dialectic
  • The Hegel Variations: On the Phenomenology of Spirit
  •  Representing Capital: A Reading of Volume One
  •  The Antinomies of Realism
  • An American Utopia: Dual Power and the Universal Army
  •  Raymond Chandler: The Detections of Totality
  •  Allegory and Ideology
  •  The Benjamin Files
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