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A economia vulgar, desde Marx até hoje, iguala a parte e o todo. Por exemplo, hoje, na defesa da austeridade fiscal sempre é igualada a natureza e a gestão dos orçamentos de uma família e do Estado. Marx chama a atenção de que um indivíduo pode manter seu capital fora do investimento produtivo, convertendo-o em capital portador de juros. Para o indivíduo, os juros aparecem como se fosse renda gerada pelo capital por si só. Mas é claro que não faz sentido a generalização desse comportamento para todo o capital da sociedade e para a explicação da origem do lucro. Isso é um disparate dos economistas vulgares, aponta Marx.
O resultado seria desvalorização do capital monetário e colapso da taxa de juros. Ele denuncia que há “uma ideia ainda mais absurda, a de que com base no modo de produção capitalista, o capital poderia gerar juros sem funcionar como capital produtivo, isto é, sem criar mais-valor, do qual os juros não são mais que uma parte; a ideia de que o modo de produção capitalista poderia mover-se sem a produção capitalista”.[x] Pois bem, parece que essa “ideia ainda mais absurda” foi normalizada hoje.
A financeirização, que, claro, não exclui o desenvolvimento industrial, exacerbou o caráter supérfluo do capitalista como funcionário da produção. O desenvolvimento das empresas por ações, acompanhando o avanço do sistema de crédito, foi saudado positivamente, por Marx, como socialização da produção, apesar das ressalvas. Ele destacou o aspecto da separação do trabalho de administração, como função, da propriedade do capital. Por isso, “(…) o lucro revelou ser também na prática aquilo que ele já era indiscutivelmente na teoria: simples mais-valor (…)”.[xi]
Para Marx, essa forma de empresas, com o descarte do capitalista ativo, era um prenúncio de transição sistêmica, apesar de seu sentido negativo por causa da persistência da exploração do trabalho.
Karl Marx criticava duramente as profecias de alguns discípulos de Saint Simon, com base em ilusões no “poder miraculoso do sistema de crédito e bancário”.[xii] Eles estavam embevecidos com as perspectivas de evolução da sociedade, por meio da produção das grandes empresas industriais, propulsoras do avanço tecnológico, com o apoio e estímulo do crédito e da bolsa. A pioneira e mais poderosa experiência desse impulso financeiro para a aceleração da transformação produtiva capitalista foi o banco Crédit Mobilier de Isac Pereire, egresso das fileiras de Saint Simon. Esse banco é uma espécie de antepassado na família dos bancos de desenvolvimento, a exemplo do BNDES.
Financeirização como lógica dominante
Para Alfredo Saad Filho, “O processo de financeirização sob o neoliberalismo não foi uma distorção do ‘capitalismo puro’, ou um ‘golpe’ do setor financeiro contra o capital produtivo. Ele acrescenta que as finanças não são apenas uma estrutura parasitária simplesmente “sugando” o capital industrial e/ou os rendimentos dos trabalhadores. Ao contrário, a financeirização é uma característica estrutural da reprodução social no neoliberalismo”. [xiii]
O capitalismo financeirizado alterou profundamente os termos da distribuição do capital total na sociedade. Em sua época, Marx constatava que totalidade do capital existia sob a forma de meios de produção, “com exceção de uma porção relativamente pequena existente em dinheiro”. No capitalismo, desde as últimas décadas do século XX, o fenômeno da financeirização não decorreu da conversão de capital, por um número gigantesco de capitalistas, em capital monetário.
Não se trata de uma aproximação do disparate da generalização do capital monetário. Obviamente, mantém-se em níveis muito elevados o capital produtivo. A exploração do trabalho produtivo atingiu mais trabalhadores e recrudesceu, preservando a fonte do mais-valor. A novidade é a extensão, as formas, as funções e implicações do capital monetário, como polo dominante ou mesmo estado geral e normal do conjunto da economia, agudizando as contradições e a instabilidade na dinâmica turbulenta do capitalismo contemporâneo.[xiv]
*Renildo Souza é professor de economia e de relações internacionais na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Autor entre outros livros, de A China de Mao e Xi Jinping (Editora da UFBA).
Para ler o primeiro artigo da série, clique em https://aterraeredonda.com.br/marx-e-a-financeirizacao/
Notas
[i] MARX, K. Capítulo 23, Livro III, versão Kindle.
[ii] Idem.
[iii] HILFERDING, Rudolf. O capital financeiro. São Paulo: Nova Cultural, 1985. (Coleção Os Economistas).
[iv] BRAGA, José Carlos. Qual conceito de financeirização compreende o capitalismo contemporâneo? In: BARROSO, Aloísio Sérgio; SOUZA, Renildo. A grande crise capitalista global 2007-2013: gênese, conexões e tendências. São Paulo: Anita Garibaldi, 2013, p. 117-135.
[v] MARX, K. Capítulo 23, Livro III, versão Kindle.
[vi] Idem.
[vii] Ibidem.
[viii] MARX, K. Capítulo 22, Livro III, versão Kindle.
[ix] MARX, K. Capítulo 35, Livro III, versão Kindle.
[x] MARX, K. Capítulo 23, Livro III, versão Kindle.
[xi] Idem.
[xii] MARX, K. Capítulo 36, Livro III, versão Kindle.
[xiii] SAAD FILHO, Alfredo. Reflexões sobre a crise do neoliberalismo. Revista Versus Acadêmicas, agosto de 2009, p. 37.
[xiv] Este artigo é uma versão modificada de um capítulo do livro Karl Marx: desbravar um mundo novo no século XXI, coletânea organizada por Adalberto Monteiro e Augusto Buonicore, pela editora Anita Garibaldi, em 2018.
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