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terça-feira, 10 de setembro de 2024

Uma entrevista atual

 

Marxismo e ciência política - Entrevista com Armando Boito

João Aguiar*    11.Jul.07    Colaboradores

“O modelo capitalista neoliberal tornou mais evidente a actualidade de O Capital: esse modelo capitalista aumentou a população excedente, destruiu as reformas que abrandavam a condição de mercadoria da força de trabalho, transformou o Estado capitalista em algo muito mais próximo do que ele é do que daquilo que ele diz ser”

 

Entrevista com Armando Boito

Entrevista realizada por João Aguiar para O Diário com Armando Boito, professor de Ciência Política na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Brasil.

João Aguiar (JA): - Neste ano de 2007 passam 140 anos da publicação do Primeiro Livro d’O Capital. Na tua perspectiva, qual a actualidade dessa obra magna do pensamento de Marx para compreender a realidade contemporânea do capitalismo?

Armando Boito (AB): - A economia, a sociedade e a política capitalista mudaram muito desde que Marx escreveu O Capital: monopólios, imperialismo, industrialização capitalista de parte dos antigos países coloniais, Estado de bem-estar (ou o que ainda resta dele), ampliação da democracia burguesa, transformações da classe operária etc. Mas a obra de Karl Marx é uma obra científica revolucionária e trata das leis básicas da economia capitalista. Antes de nos perguntarmos sobre a sua actualidade, chamemos atenção para esse aspecto.

Como obra científica revolucionária, O Capital abriu um novo continente teórico, o continente das formas de reprodução e de transformação da vida em sociedade. Como e por que os homens organizam-se dessa ou daquela maneira? Como reproduzem essa organização? Como e por que essas formas de organização envelhecem e morrem? Como e por que se transita para formas novas? Quantas obras enfrentam questões teóricas fundamentais e de longo alcance como essas, como faz Karl Marx em O Capital? O objecto dele não é, digamos assim, isso tudo. Ele trata, fundamentalmente, da economia capitalista. Porém, ele insere esse tratamento no corpo de uma teoria mais ampla, o materialismo histórico, que ele próprio estava, juntamente com Frederico Engels, colocando em pé. O resultado foi a longa tradição marxista. Muitos elementos básicos dessa teoria puderam ser extraídos de O Capital por economistas, sociólogos, antropólogos e cientistas políticos marxistas que criaram conceitos e teses originais para pensar de modo científico e crítico a economia, a política e a cultura no capitalismo contemporâneo. Os estudos do século XX e XXI sobre o processo de monopolização (“A concorrência leva ao monopólio”, Marx), sobre imperialismo, sobre o Estado capitalista (ao qual Marx reservou um lugar especial no plano original, e nunca completado, de sua obra…), sobre o Estado de bem-estar, sobre as classes sociais e tantos outros são tributários dessa grande obra revolucionária de Karl Marx.

Além disso, olhando a obra O Capital apenas como a análise da economia capitalista, devemos lembrar que Marx nos fala, digamos assim, do conceito de capitalismo e, não, do capitalismo do século XIX. Por isso, é possível enumerar conceitos e teses desenvolvidos por Marx que são, a despeito das transformações reais do capitalismo, fundamentais para compreender o funcionamento actual desse sistema: o conceito de mercadoria, a teoria do valor, a distinção entre trabalho e força de trabalho, a distinção entre o mercado e a produção, a análise do processo de acumulação como valorização do valor, a análise da “escravidão” do moderno trabalhador assalariado (“O trabalhador livre pode escolher se trabalhará para este ou aquele capitalista, mas não se irá ou não trabalhar para a classe capitalista.”, Marx), os conceitos de mais-valia absoluta e relativa, os mecanismos que governam a jornada de trabalho, a análise da inovação tecnológica, a lei geral da acumulação capitalista, a população excedente, a tendência decrescente da taxa de lucro (que, na verdade, não está tratada no volume cuja publicação comemoramos este ano de 2007, mas que é a lei que instigou a burguesia a combater o Estado de bem-estar e implantar o modelo capitalista neoliberal), esses e outros conceitos e teses continuam imprescindíveis para compreender a economia capitalista actual.

Falando de actualidade da obra, caberia ainda lembrar, que o modelo capitalista neoliberal tornou mais evidente a actualidade de O Capital: esse modelo capitalista aumentou a população excedente, destruiu as reformas que abrandavam a condição de mercadoria da força de trabalho, transformou o Estado capitalista em algo muito mais próximo do que ele é do que daquilo que ele diz ser. As reformas impostas pelo movimento operário ao capitalismo (Estado de bem-estar) e pela luta anti-imperialista ao imperialismo (desenvolvimento capitalista de parte dos países dependentes) aparecem, hoje em dia, como resultado de uma luta que desviou o capitalismo de sua tendência espontânea e natural. A tese de Marx no capítulo XXIII do Volume I, segundo a qual a lei geral da acumulação capitalista acaba por se impor, soa, hoje, como a advertência de um grande sábio. O capitalismo neoliberal “actualizou” O Capital.

João Aguiar (JA): - No 24º capítulo do Capital referente à acumulação primitiva ou original, Marx afirma que «em Inglaterra, no fim do século XVII, os diversos momentos da acumulação original são reunidos sistematicamente no sistema colonial, no sistema da dívida do Estado, no sistema moderno de impostos e no sistema proteccionista. Estes métodos repousam, em parte, sobre a violência mais brutal. Todos eles utilizam, porém, o poder de Estado, a violência concentrada e organizada da sociedade, para acelerar, como em estufa, o processo de transformação do modo de produção feudal em capitalista e para encurtar essa transição». Tu tens abordado esta temática em alguns dos teus trabalhos. Nesse sentido, de que modo é que o Estado contribuiu para a transição para o capitalismo? Qual o seu papel nesse processo?

Armando Boito (AB): - No geral, eu parto da análise de Karl Marx presente no capítulo sobre a chamada acumulação primitiva e no Prefácio de 1859 a Contribuição à Crítica da Economia Política: o desenvolvimento das forças produtivas é a causa necessária da mudança histórica. Esse é, para mim, o coração materialista do materialismo histórico. Abandonada essa tese, acabou o marxismo. Como explicar a mudança histórica sem ela? Acrescento, contudo, que a transformação política do Estado deve ser acrescentada como causa suficiente, acréscimo que, embora esteja perfeitamente de acordo com o grosso dos escritos de Marx, é, contudo, negligenciado por ele na formulação sintética que fez no Prefácio de 1859 do qual é possível deduzir uma visão economicista do processo histórico – visão na qual o desenvolvimento das forças produtivas seria a causa necessária e suficiente da mudança.

Digamos uma palavrinha, então, sobre a causa suficiente: a política. Eu a concebo de modo um tanto diferente daquele que a pergunta apresenta, e que é o modo predominante de pensar a questão. É claro que a acção repressiva do Estado é fundamental na mudança. Não nego isso. Mas, para que essa acção do Estado encaminhe a transição é preciso uma mudança prévia: uma mudança na estrutura do Estado, isto é, no tipo de Estado.

Eu entendo que é disso que fala Marx quando analisa a Comuna de Paris de 1871: a forma política foi enfim descoberta. Ou seja, é preciso mudar a estrutura do Estado – cargos electivos na administração, mandato imperativo, passagem de tarefas da burocracia directamente para as organizações populares etc. Essa mudança na estrutura é a mudança fundamental. Ela cria as condições políticas imprescindíveis para mudar a estrutura económica. Podemos formular esta ideia assim: a socialização do poder político é pré-condição para a socialização dos meios de produção.

A transição ao capitalismo também dependeu da mudança prévia da estrutura do Estado. A criação de um Estado baseado num direito formalmente igualitário e constituído de instituições aparentemente universalistas, o que só foi proporcionado pela eliminação das ordens e dos estamentos e pelo fim do acesso restrito aos indivíduos oriundos das classes dominantes aos cargos de Estado, isto é, o que só foi proporcionado pela revolução política burguesa, propiciou o desenvolvimento da economia capitalista. Sequer o mercado de trabalho pode se formar sem o direito formalmente igualitário.

João Aguiar (JA): - Uma última questão. De forma resumida qual consideras ser o principal legado de Marx para o estudo dos fenómenos políticos? Ou seja, que vectores nucleares se encontram no conjunto da obra marxiana e que se podem afirmar como essenciais para a compreensão da luta política que se engendra na actualidade?

Armando Boito (AB): - Essa é uma pergunta pertinente e difícil. Pertinente, porque, na maioria das vezes, os próprios marxistas não a fazem. Infelizmente, o economicismo dominante em algum marxismo do século XX ainda não foi suficientemente criticado. Tal economicismo bloqueia a reflexão teórica sobre a política. Difícil, porque Marx não deixou, ao contrário do que ocorre com a economia capitalista, uma obra teórica sistemática sobre a política. Considero que o grosso da teoria marxista sobre a política encontra-se em suas obras históricas e deve ser extraída e desenvolvida a partir de lá, separando o que está colado na conjuntura que Marx analisa daquilo que é teórico e geral.

Consideremos apenas a política nas sociedades de classe, o que já é muita coisa. Quem e como se faz política nas comunidades tribais, é um tema diferente.

a) A ideia mais geral, penso eu, é a concepção de que a política, nas sociedades de classe, é um confronto duro de interesses. Ela não é uma tertúlia, um espaço público reservado ao diálogo, ao contrário do que pretende Jurgen Habermas – veja-se o capítulo VII do mais recente livro de Habermas Direito e democracia. Os argumentos não convencem aqueles cujos interesses são contrariados e tampouco os indivíduos controlam, racionalmente, a sua própria argumentação. São os interesses de classe que a comandam, às espaldas do emissor do discurso.

b) A política nas sociedades de classe é um confronto duro de interesses porque é uma acção de classe. Não é a luta entre correntes de opinião – conservadores contra progressistas, direita contra esquerda, neoliberais contra desenvolvimentistas. As correntes de opinião existem, mas o que é preciso é perceber que são, apenas, a parte mais visível do fenómeno. Elas têm, no fundo, raízes de classe. Um valor, uma opinião, uma proposta política podem representar uma ameaça a tudo aquilo que determinadas pessoas têm de mais importante. A distribuição de renda retira a riqueza material dos abastados, a reforma agrária retira a terra do grande proprietário, a democracia no local de trabalho mina o poder dos chefes e dos proprietários, e assim por diante. São interesses materiais básicos, modos de vida entranhados que são defendidos ou postos em questão por determinados valores ou por determinadas ideias – essa relação entre valores e interesses que os determinam nem sempre é consciente, como já indiquei. Esses valores e ideias se difundem, no geral e abstraindo outros factores, seguindo essas linhas de interesses socio-económicos vitais que são, em última instância, interesses de classe. Daí o carácter agudo, e muitas vezes selvagem, do conflito político como conflito de classe.

c) A acção política é uma acção de classe, mas ela não aparece como tal – daí a importância da análise científica da política. A cena política burguesa oculta o carácter de classe da acção política, isto é, oculta a relação de representação de interesses existente entre, de um lado, os partidos políticos, organizações de diversos tipos, jornais etc. e, de outro lado, as classes sociais, suas fracções, as alianças que estabelecem etc. Isso não foi sempre assim. Os Estados de tipo pré-capitalista traziam inscritos nas suas próprias instituições o seu carácter de classe. Foi o Estado capitalista, com as suas instituições aparentemente universalistas, que possibilitou a formação da cena política burguesa onde tudo se parece com uma sociedade de cidadãos inominados agrupados segundo grandes princípios e valores comuns. Essa é a visão superficial e liberal da cena política burguesa. Onde Marx tratou magistralmente disso é no seu conhecido livro Dezoito Brumário de Luís Bonaparte.

d) Esse confronto duro de interesses de classe está concentrado no Estado. Aqui, a polémica importante a ser feita é com Michel Foucault e com Talcott Parsons – veja-se, do primeiro, a colectânea A microfísica do poder e, do segundo, o artigo “On the concept of political power”. São dois pensadores muito importantes do século XX e, ambos, pensaram a política como algo institucionalmente difuso, uma prática que se desenvolve em todos os âmbitos, sem qualquer hierarquia de importância entre eles – os seguidores de Foucault não gostam de recordar isso, mas Foucault seguiu o conservador Parsons nesse terreno. Na prática, Parsons e Foucault pensaram a política nas micro-instituições sociais. Tudo seria, indistintamente, política. Ora, para Marx e para toda tradição marxista, a política tem como objectivo estratégico a conquista do poder institucionalmente concentrado no Estado. Quem julga poder dar as costas para o Estado coloca-se fora da luta política – e passa a ser objecto da acção política de terceiros. Diversos movimentos sociais ignoram essa tese nos dias de hoje. O altermundialismo fez da dispersão estratégica das lutas, que tem como tese correlata o desprezo pela organização partidária, uma divisa do movimento. Há um foucaultianismo ou parsonianismo espontâneo no altermundialismo. Se continuar assim, esses movimentos jamais romperão com o reformismo.

e) Dizer que a luta política de classes concentra-se na disputa pelo poder de Estado, é dizer, ao mesmo tempo, que o Estado organiza a dominação de classe. Essa tese sobre a função social do Estado é a grande e revolucionária tese da teoria marxista do Estado, que integra a teoria marxista da política. Não penso que Marx não tenha, como pretende Norberto Bobbio, uma teoria do Estado ou da política. Expus algumas teses da teoria da política, aquelas referentes à sociedade de classes. Falei, agora, da teoria do Estado. Quem ler, hoje, o Estado e a revolução, de Lenine, ou A guerra civil na França, de Marx, poderá constatar a riqueza dessa teoria do Estado. Na segunda metade do século XX, tivemos o tratado de Nicos Poulantzas, Poder político e classes sociais, onde a função social do Estado e a sua estrutura são analisados de modo sistemático e original dentro da tradição marxista. Mas, o essencial é isso: o Estado organiza a dominação de classe, concentrando, em si, o poder da classe dominante.

* Estudante de sociologia

 

 

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