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terça-feira, 30 de setembro de 2025

O programa de uma economia mista democrática

 

 

|Jorge C.

O todo e as partes

in AbrilAbril 

 

 Para uma Frente de Esquerda

Na sua passagem por Lisboa, em véspera do 25 de Abril de 2024, para apresentar a sua longa e imprescindível biografia de Karl Marx, o intelectual marxista e comunista brasileiro José Paulo Netto foi confrontado com uma pergunta sobre a responsabilidade da esquerda no recrudescimento dos fascismos. Reconhecendo a perda de força da esquerda e a necessidade de refletir sobre eventuais erros cometidos, o autor respondia, então, que essa autocrítica era muito conveniente às forças do capitalismo e que, mais do que a esquerda entrar num ciclo de autoflagelação, era necessário um combate concreto a essas forças. 

Passado pouco mais de um ano desta sessão, chega-nos A Economia Política do Antifascismo, uma obra que reúne cinco ensaios do professor e investigador de História da Economia e de Economia Política, João Rodrigues, pela editora Página a Página. Não sendo uma resposta àquele repto específico de José Paulo Netto, estes ensaios oferecem uma proposta de alternativa ao modelo socioeconómico hegemónico – o neoliberalismo – que pela sua natureza antidemocrática e antissocial cria as condições ideais para o crescimento dos neofascismos, alimentando-se e necessitando deles. Para derrotar, então, a voracidade deste movimento, será necessário um programa substantivo que seja, simultaneamente, resistência e projeto. A Economia Política do Antifascismo não é, por isso, um mero objeto de resistência, mas um instrumento precioso para a «reconfiguração institucional de uma economia que se quer democraticamente incrustada e logo socialmente blindada aos processos de fascização». 

Na nota introdutória encontramos uma bússola para esta Economia Política do Antifascismo. Entre referências académicas, interlocutores para os diferentes momentos em que estes ensaios foram produzidos e espaços onde se torna possível materializar essa produção, João Rodrigues assume o seu posicionamento com uma grande clareza, anunciando uma proposta que se funda na «lógica de frente popular», unida em torno de um programa substantivo e não da mera proclamação antifascista sem um programa alternativo e sem qualquer enquadramento teórico. Nesse sentido, João Rodrigues convoca o cruzamento de duas tradições da economia política – a de Marx e a de Keynes.

«A Economia Política do Antifascismo não é, por isso, um mero objeto de resistência, mas um instrumento precioso para a "reconfiguração institucional de uma economia que se quer democraticamente incrustada e logo socialmente blindada aos processos de fascização".»

Nesta seleção de textos, organizados cronologicamente do mais recente para o mais antigo, o ensaio que dá o título a este livro é um inédito, através do qual somos levados numa «digressão histórica» internacional e nacional. De forma perfeitamente sistematizada, João Rodrigues oferece-nos um enquadramento histórico do séc. XX, a partir da economia política e da luta antifascista, entrelaçando factos, colocando em oposição diferentes correntes de pensamento, numa dinâmica de «freios e contrapesos», que nos conduzirão até à atualidade, sem esquecer o contributo inestimável dos comunistas portugueses. Esta sistematização irá demonstrar que o surgimento dos fascismos e dos neofascismos está intrinsecamente associado às necessidades de afirmação do neoliberalismo e que um modelo de economia mista será a solução para a sua derrota.  

Para além desta proposta inequívoca de economia mista, tal como plasmada na Constituição portuguesa de 1976 e inspirada em experiências históricas, o autor vai explorar a forma como o neoliberalismo corrompeu uma parte expressiva do campo progressista e assumiu um papel determinante na capitulação das soberanias e nos ajustes de contas dos inimigos de uma economia com peso social e democrático, planeada e fomentada por uma política de pleno emprego, onde o Estado assume o controlo dos setores estratégicos e define como prioridade o provisionamento de bens essenciais. Neste capítulo, João Rodrigues insistirá na natureza perversa e equívoca da União Europeia, no enfraquecimento da economia soberana e nas narrativas que inspiraram a reação às crises do capitalismo, desde a intervenção da Troika ao reforço de uma corrente radical que designa de «liberais até dizer chega». 

A seleção dos ensaios que acompanham esta nova reflexão demonstra-se essencial. Não só pela narrativa que ajuda a construir, como também pela forma como cria uma coesão que nos permite compreender velhos debates. Os ensaios vão-se emparelhando, como rimas que não se limitam a manter o ritmo da coesão, mas como alavancas para a compreensão da universalidade do todo da obra. A repetição é uma ferramenta assumida pelo autor, mas creio que o seu efeito é ainda mais profundo do que aquele que o próprio assume. É um movimento que sintoniza e opera como um alicerce, permitindo avanços significativos no desenvolvimento da ideia central – uma proposta política sustentada numa economia mista e no planeamento indicativo, que sirva de alternativa ao neoliberalismo e de travão à escalada dos neofascismos. 

Segue-se um ensaio sobre as formas do planeamento económico e a sua perversão; uma reflexão sobre o medo e a melancolia e a forma como operam na economia política; um ensaio inspirado nas máscaras do capitalismo de António Avelãs Nunes; e, por fim, a exposição de um debate que põe em confronto as origens do neoliberalismo e as opções socialistas. 

O primeiro ensaio acaba por preencher um espaço que os outros, anteriores no tempo, foram deixando. É o fator de unidade entre as partes e funciona como proposta, porque não se limita a reconhecer a hipótese da economia mista mas, antes, propõe-na, abertamente, como solução. Os restantes textos dirigem-se a especificidades e particularidades desta história da economia política e contribuem para o enquadramento histórico e para a análise das várias correntes de pensamento. 

Com um vasto quadro de referências, João Rodrigues obriga-nos a sair de um debate imposto pela sabedoria económica convencional e a mergulhar em significados e contextos que nos dão perspetiva e, por isso, um impulso natural para perguntar: o que fazer?

Créditos

Ao longo de toda a obra, o autor sinaliza e corrige deturpações cirurgicamente elaboradas, que foram introduzidas na sabedoria convencional, impregnada da ideologia neoliberal, e normalizadas através de um falso empirismo, de uma falsa naturalidade, que se esconde atrás de uma neutralidade inverosímil. A negação dessa neutralidade e o compromisso com o ativismo político sem cedências demonstram mais coragem do que alguns dos seus pares e menos oportunismo do que tantos outros. Em cada momento, vão surgindo críticas e provocações explícitas e duras, mas sempre fundamentadas, justas e necessárias. São, elas mesmas, um desafio à afirmação inequívoca de um posicionamento político-económico e um convite a abandonar essa corrente contemporânea tão confortável que é o encimadomurismo. Um convite, enfim, a contribuir para essa Economia Política do Antifascismo. 

Há, por vezes, momentos em que a sua reflexão sugere uma «melancolia» social-democrata, um olhar melancólico sobre soluções social-democratas falhadas. Porém, uma leitura mais atenta mostra-nos que o exercício que nos propõe é outro: acompanhar uma tradição de ir ao encontro de autores de outras correntes, acolhendo o seu contributo para traçar, então, um mapa da história da economia política, as suas possibilidades e contradições e o seu campo de batalha. Este é um exercício de uma profunda humildade intelectual e de superação daquilo que, noutros momentos, poderão ter sido as nossas convicções, evoluindo para outras hipóteses que a realidade nos impõe. Sem a existência do primeiro ensaio, esta conclusão teria mais dificuldade em surgir, podendo até conduzir a alguns equívocos. Assim se demonstra a necessidade imperiosa de a ele regressar, para compreender o todo que compõe esta coletânea. 

Por outro lado, é no ensaio sobre o livro de Avelãs Nunes que vamos encontrar uma pista para compreender as opções de João Rodrigues e, em última análise, o leitmotiv de A Economia Política do Antifascismo. Neste texto, torna-se claro que só a leitura rigorosa e uma discussão dialética profunda de todas as correntes de pensamento que concorrem para a determinação do pensamento hegemónico poderão garantir a formulação de uma alternativa sustentada por um programa substantivo liberto de ilusões e preconceitos. 

No campo das referências teóricas, surge, então, a encerrar este livro, um ensaio essencial onde se disseca a liturgia neoliberal a partir da sua génese, onde se destaca a discussão entre Mises e Hayek com Polanyi. Este é um texto que expõe bem as insuficiências e debilidades do debate mediático contemporâneo sobre a economia liberal, sobretudo quando existem tentativas explícitas de transformar o liberalismo numa decorrência natural da vida. Nenhuma discussão se faz sozinha e a aparência de que autores como Hayek não tiveram contraditório e que totalizaram a discussão é aqui denunciada e contrariada. 

O conjunto dos ensaios não substitui o aproveitamento das leituras nele sugeridas. Mas, pelo contrário, estimula essas leituras, a reflexão e uma ação concreta, tanto do ponto de vista institucional como do ponto de vista social e popular. De resto, ao longo dos cinco ensaios valoriza-se o papel dos movimentos sociais, do movimento associativo, cooperativo e sindical na construção e consolidação de um modelo que permita o seu reforço. Demonstra-se, assim, que a Economia Política do Antifascismo favorece e é favorecida pelos mecanismos democráticos de progresso social, por oposição a um neoliberalismo apostado em aniquilar direitos, liberdades e garantias. 

Leio este conjunto de ensaios num momento em que o genocídio do povo palestiniano às mãos do sionismo fascista do Estado de Israel prossegue com cumplicidade de EUA e União Europeia (UE); num momento em que o nosso país arde; a destruição do SNS e de outros serviços públicos tem, cada vez mais, consequências drásticas; e em que o pacote laboral proposto pelo governo português anuncia um agravamento dramático das nossas condições de vida. Vou vislumbrando nesta preocupante realidade a natureza das opções ideológicas identificadas por João Rodrigues e a economia política que lhe está subjacente: a ausência forçada de «freios e contrapesos» no plano institucional e mediático, a falta de planeamento, sobretudo no ordenamento do território; e a reação agressiva e repressiva do imperialismo estadunidense à sua cada vez mais evidente perda de relevância, instituindo o medo e a violência e tendo na UE um cão de fila subserviente. 

«Vou vislumbrando nesta preocupante realidade a natureza das opções ideológicas identificadas por João Rodrigues e a economia política que lhe está subjacente: a ausência forçada de "freios e contrapesos" no plano institucional e mediático (...).»

Mas no meio deste cenário trágico, este A Economia Política do Antifascismo traz-nos um sinal de esperança e convoca-nos para um combate, oferecendo uma base substantiva e um discurso humanista a que dificilmente podemos ser alheios. Livro essencial para os dias que correm, no meio de ruídos dissonantes e de caos programado, A Economia Política do Antifascismo é, sobretudo, um desafio aos que não querem ficar a morder a própria cauda ou a ver até que ponto a espinha dobra. Porque se há acordo nesta proposta, então procurem-se os espaços para uma intervenção política e social que a materialize.

O livro será apresentado na edição deste ano da Festa do Avante!, um lugar privilegiado para discutir esta proposta e encontrar caminhos de convergência para uma alternativa concreta a essa hegemonia do neoliberalismo. Será também uma oportunidade para incentivar João Rodrigues a prosseguir o projeto prometido de um livro de Economia Política. Não faltemos a essa oportunidade. 

Nota de N. P. - O texto foi publicado pouco antes da realização da Festa do Avante! 


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

domingo, 28 de setembro de 2025

 O principal inimigo das classes trabalhadoras é a propaganda burguesa, a desinformação pela classe dominante. É ela o núcleo da ideologia capitalista imperialista. Não são a transformações que a classe operária tem vindo a sofrer, a variação nas formas de exploração e acumulação do capitalismo, por muito importantes que sejam, no emprego precário por exemplo.

É, pois, a frente de agitação e consciencialização a mais fundamental no imediato. Nas fábricas e outros locais de trabalho , no boca-a-boca nos locais de residência, nas ruas e nas escolas e universidades.  

A intervenção da Rússia na Ucrânia é revolucionária? Joti Brar responde

sábado, 27 de setembro de 2025

Ojetivamente o PCP permanece com dificuldade em penetrar no eleitorado, enfim, nas massas. Porquê se alguns dos seus comentadores nas tvs, youtubers, entrevistados nos diversos órgãos, autores de livros recentes com enorme sucesso , são do mais elevado nível na eloquência, nos conhecimentos concretos que debatem ou analisam? Porquê se se conserva imune a corrupções e a cedências às Direita reacionária ? Se na governança das autarquias são do melhor, senão do melhor? Só vislumbro uma explicação para este tempo : o preconceito, as posições políticas sobre a guerra da Ucrânia

 

 
  

Rota de Fuga   por Alexandre Hoffmann

 


Lia-se no outro dia que se João Ferreira fosse de outro partido ganharia facilmente a disputa autárquica em Lisboa, é preciso, no entanto, compreender que se João Ferreira fosse de outro partido não seria o João Ferreira, seria outro qualquer. É precisamente nessa premissa, que reconhece involuntariamente a capacidade e competência de João Ferreira e dos candidatos da CDU, que se encontram as razões para o clima hostil em relação às candidaturas da CDU, com o seu recorrente silenciamento e ocultação mediática (podíamos falar do silenciamento de António Filipe, já agora), por um lado, e o pavor que essas mesmas candidaturas imprimem nos seus adversários, por outro.

Com o alto patrocínio da direcção de informação da SIC, deu-se início a um, já comum, pressuposto de que “comunista não entra”, na tentativa de implementar debates num frente-a-frente entre as candidaturas de PSD e PS (independentemente dos demais apêndices que dão forma às suas coligações). A CDU protestou, como protestaram igualmente vários democratas e progressistas, a discriminatória ausência de João Ferreira no debate agendado para Paços de Arcos. A esta indignação, com base legal e política, a ERC veio dar razão à CDU e eis que João Ferreira esteve mesmo no debate televisivo.

Ora, o debate foi o que tendes visto, uma candidatura da CDU preparada e profundamente conhecedora dos problemas da cidade e com soluções identificadas, configurando-se, sem surpresas, como a frente popular e de esquerda que se apresenta como a verdadeira alternativa à gestão do egomaníaco edil, Carlos Moedas, que teve também, como afirmou Alexandra Leitão recentemente, todas as condições ofertadas pelo PS para governar e executar as suas políticas.

Carlos Moedas, ensacado num bolso fundo de João Ferreira, optou por credibilizar ainda mais a CDU numa esperança que a candidatura de comunistas, ecologistas e tantos democratas, capitalizasse à esquerda votos que derrotasse a coligação de Alexandra Leitão, que morando no outro bolso de João Ferreira, decidiu ir pelos trilhos de esclarecer que pouco a separa de Carlos Moedas, seja na prática ou na teoria, na visão que têm sobre a cidade, de como a viver e de como a transformar.

Um desastre do extremo-centrismo, à esquerda e à direita, que veio a acrescentar novos capítulos nesta fuga para a frente de ambas as candidaturas, ora não fosse o debate agendado na TSF ter sido cancelado porque tanto Moedas como Leitão se negaram a participar, se comunista entra não estamos nós, pensaram alegadamente, muito medo, pouca vergonha, dizemos nós.

Já que estamos numa de ditos populares, pese embora forçados, chamamos ao texto outro mais, quem tem medo, recolhe para casa cedo, e se o esclarecimento popular parece estar agora desaconselhado nas hostes socialistas social-democratas, numa validação do quem muito fala, pouco acerta, inexplicavelmente Alexandra Leitão, que não encontrou tempo para debater aos microfones da TSF, arranjou o tempo e disponibilidade para conferenciar perante uma selectiva plateia de empresários, investidores e decisores públicos, os que mais têm sofrido na pele a cidade levantada por Carlos Moedas, claro está. Um evento promovido no JNcQUOI Club, com entrada mediante pagamento e realizado no conforto da exclusividade a sócios, curiosamente, ou nem por isso, um clube privado do Grupo Amorim, com serviço, pasme-se, de membership lifestyle, onde afirmam que “Alexandra Leitão apresenta-se como principal alternativa à continuidade de Carlos Moedas”, pois bem, mas já em relação às políticas de Moedas não se pode afirmar o mesmo, não fosse dar-se o caso do PS ter aprovado todos os Orçamentos Municipais e Grandes Opções do PSD nestes últimos 4 anos.

Para mais conclusões, os lisboetas que aguardem pelo o debate na CNN, onde estarão presumivelmente todo os candidatos, ou não, logo veremos.

 

 

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

VLADIMIR SAFATLE

 

Estado suicidário

in A Terra é Redonda

Por VLADIMIR SAFATLE*

Reflexões sobre o fascismo e os problemas do uso político do conceito de pulsão de morte

La vie est un minotaure, elle dévore l’organisme (Buffon).

 

Gozar do sacrifício de si

Na longa e dispersa tradição dos autores que se dedicaram a descrever a economia libidinal do fascismo, há ao menos um ponto surpreendente de convergência. É provável que ele tenha sido formulado pela primeira vez por Theodor Adorno, já em 1946. Voltemos à conclusão de seu texto “Antissemitismo e propaganda fascista”:

Nesse ponto, deve-se prestar atenção à destrutividade como o fundamento psicológico do espírito fascista […] Não é acidental que todos os agitadores fascistas insistam na iminência de catástrofes de alguma espécie. Enquanto advertem de perigos iminentes, eles e seus seguidores se excitam com a ideia da ruína inevitável sem sequer diferenciar claramente entre a destruição de seus inimigos e de si mesmos […] Este é o sonho do agitador: uma união do horrível e do maravilhoso, um delírio de aniquilação mascarado como salvação (Adorno, 2015, p. 152).

Ou seja, trata-se de falar da destrutividade como “fundamento psicológico” do fascismo, e não apenas como característica de dinâmicas imanentes de lutas sociais e processos de conquista. Pois, se fosse questão apenas de descrever a violência da conquista e da perpetuação do poder, seria difícil compreender como se chega a esse ponto em que não seria sequer possível diferenciar claramente entre a destruição de seus inimigos e de si mesmos, entre a aniquilação e a salvação. Para dar conta da singularidade desse fato, Adorno falará, décadas depois, de um “desejo de catástrofe”, de “fantasias de fim de mundo” que ressoam socialmente estruturas típicas de delírios paranoicos (Adorno, 2019, p. 26).[i]

Colocações como essas de Adorno visam expor a singularidade dos padrões de violência no fascismo. Pois não se trata apenas da generalização da lógica de milícias dirigidas contra grupos vulneráveis, lógica através da qual o poder estatal se apoia em uma estrutura paraestatal controlada por grupos armados. Também não se trata apenas de levar sujeitos a acreditarem que a impotência da vida ordinária e da espoliação constante será vencida através da força individual de quem enfim tem o direito de tomar para si a produção autorizada da violência. A esse respeito, sabemos como o fascismo oferece certa forma de liberdade, ele sempre se construiu a partir da vampirização da revolta.[ii] Nem se trata de junção entre indiferença e violência extrema contra grupos historicamente violentados. Essa articulação não precisou esperar o fascismo para aparecer, mas está presente em todos os países de tradição colonial, com suas tecnologias de destruição sistemática de populações.[iii]

No entanto, se Adorno fala de “fundamentação psicológica”, é porque se faz necessário compreender a violência, principalmente, como dispositivo de mutação psíquica. Uma mutação que teria como eixo de desenvolvimento certa generalização da destrutividade às formas de relação a si, ao outro e ao mundo. Nesse horizonte, a psicologia é chamada para quebrar a ilusão econômica dos indivíduos como agentes maximizadores de interesses. Ao contrário, seria necessário não ignorar investimentos libidinais em processos nos quais os indivíduos claramente investem contra seus interesses mais imediatos de autopreservação.

Esse diagnóstico de uma corrida em direção ao autossacrifício, em um processo no qual a figura do Estado protetor parece dar lugar a uma espécie de Estado predador que se volta inclusive contra si mesmo.[iv] Estado animado pela dinâmica irrefreável de autodestruição de si e da própria vida social, não era exclusivo dos frankfurtianos. Ele podia ser encontrado também nas análises de Hannah Arendt. Basta lembrarmos como, em 1951, Arendt (2013, p. 434) falava do fato espantoso de que aqueles que aderiam ao fascismo não vacilavam mesmo quando eles próprios se tornavam vítimas, mesmo quando o monstro começava a devorar seus próprios filhos.

Esses autores eram sensíveis, entre outros, ao fato de a guerra fascista não ter sido uma guerra de conquista e estabilização. Ela não tinha como parar, dando-nos a impressão de estarmos diante de um “movimento perpétuo, sem objeto nem alvo”, cujos impasses só levavam a uma aceleração cada vez maior. Arendt (2013, p. 434) falará da “essência dos movimentos totalitários que só podem permanecer no poder enquanto estiverem em movimento e transmitirem movimento a tudo o que os rodeia”. Há uma guerra ilimitada que significa a mobilização total do efetivo social, a militarização absoluta em direção a um conflito que se torna permanente.

Ainda durante a guerra, Franz Neumann fornecerá uma explicação funcional para tal dinâmica de guerra permanente. O chamado “Estado” nazista seria, na verdade, a composição heteróclita e instável de quatro grupos em conflito perpétuo por hegemonia: o partido, as forças armadas e seu alto comando aristocrata prussiano, a grande indústria e a burocracia estatal:

Desprovido de toda lealdade comum e concernido apenas com a preservação de seus próprios interesses, os grupos dirigentes irão se separar tão logo o líder produtor de milagres encontre um oponente a altura. Por enquanto, cada grupo precisa do outro. As forças armadas precisam do partido porque a guerra é totalitária. As forças armadas não podem organizar a sociedade “totalmente”, o que é tarefa do partido. O partido, por sua vez, precisa das forças armadas para vencer a guerra e assim estabilizar e mesmo ampliar seu poder. Ambos precisam da indústria monopolista para garantir uma expansão contínua. E todos os três precisam da burocracia para realizar a racionalidade técnica sem a qual o sistema não poderia operar. Cada grupo é soberano e autoritário, cada um é equipado com poderes legislativo, administrativo e jurídico; cada um é capaz de realizar de forma rápida e implacável os compromissos necessários entre os quatro (Neumann, 2009, p. 397-398).

Ou seja, apenas a continuação indefinida da guerra permitia a essa composição caótica de grupos soberanos e autoritários encontrar certa unidade e estabilidade. Não se tratava assim de uma guerra de expansão e fortalecimento do Estado, mas de uma guerra pensada como estratégia de adiamento indefinido de um Estado em rota de desagregação, de adiamento indefinido de uma ordem política em regime de colapso. E, para sustentar tal mobilização contínua, com sua exigência monstruosa de esforço e perdas incessantes, faz-se necessário que a vida social se organize sob o espectro da catástrofe, do risco constante invadindo todos os poros do corpo social e da violência cada vez maior necessária para pretensamente imunizar-se de tal risco.[v] Ou seja, a única forma de adiar a desagregação da ordem política, a fragilidade tácita da ordem, consistiria em gerenciar, em um movimento de flerte contínuo com o abismo, uma junção entre chamados à autodestrutividade e reiteração sistemática de heterodestrutividade.[vi]

Não será por acaso que encontraremos, décadas depois, alguns analistas a sugerirem a figura do Estado fascista como um corpo social marcado por uma doença autoimune: “a condição última na qual o aparelho protetor se torna tão agressivo que se volta contra seu próprio corpo (que ele deveria proteger), levando à morte” (Esposito, 2008, p. 116). A presença sistemática da tópica da proteção como imunização contra a degenerescência do corpo social seria, na verdade, expressão da consciência dos antagonismos profundos a atravessarem uma sociedade em dinâmica de radicalização de lutas de classe e de sedição revolucionária. Desde Hobbes, sabemos como o recurso à tópica da imunização contra as “doenças do corpo social” é mobilizado em situações de sublevação revolucionária.[vii] Não seria diferente em uma contrarrevolução preventiva como o fascismo. Essa imunização exigirá a aceitação, por todos os atores da ordem, da militarização da sociedade e da transformação da guerra em única situação possível de produção da unidade do corpo social.

Mas, mesmo aceitando tal hipótese, há ainda ao menos um ponto não totalmente claro. Pois mesmo uma guerra infinitamente sustentada não implica necessariamente uma guinada autossacrificial. Foi para deixar ainda mais explícita essa especificidade que, décadas depois, autores como Paul Virilio (1976) cunharão o termo “Estado suicidário”. Essa era uma maneira astuta de andar na contramão do discurso liberal da igualdade entre nazismo e stalinismo ao insistir na estrutura da violência como traço diferencial entre o Estado fascista e outras formas de Estados totalitários. O termo “suicidário” se mostrará frutífero porque era a maneira de lembrar como um Estado dessa natureza não deveria ser compreendido apenas como o gestor da morte para grupos específicos. Ele era o ator contínuo de sua própria catástrofe, o cultivador de sua própria explosão, o organizador de um empuxo da sociedade para fora de sua própria autorreprodução.[viii] Segundo Virilio, um Estado dessa natureza se materializou de forma exemplar em um telegrama. Um telegrama que tinha número: Telegrama 71. Foi com ele que, em 1945, Adolf Hitler proclamou o destino de uma guerra então perdida. Ele dizia: “Se a guerra está perdida, que a nação pereça”. Com ele, Hitler exigia que o próprio exército alemão destruísse o que restava de infraestrutura na combalida nação que via a guerra perdida. Como se esse fosse o verdadeiro objetivo final: que a nação perecesse pelas suas próprias mãos, pelas mãos do que ela mesma desencadeou.

 

A política do suicídio e a pulsão de morte

A discussão sobre a natureza “suicidária” do Estado fascista será retomada no mesmo ano por Michel Foucault, em seu seminário Em defesa da sociedade (em uma aproximação injustificada e profundamente equivocada com a violência do socialismo real) e anos mais tarde por Gilles Deleuze e Félix Guattari, em Mil platôs. Diante do regime de destrutividade imanente ao fascismo e seu movimento permanente, Deleuze e Guattari irão sugerir a figura de uma máquina de guerra descontrolada que teria se apropriado do Estado, criando não exatamente um Estado totalitário preocupado com o extermínio de seus oponentes, mas um Estado suicidário incapaz de lutar pela sua própria preservação. Daí por que era o caso de afirmar: “Há no fascismo um niilismo realizado. É que, à diferença do Estado Totalitário que se esforça por colmatar todas as linhas de fuga possíveis, o fascismo se constrói sobre uma linha de fuga intensa, que ele transforma em linha de destruição e de abolição puras. É curioso como, desde o início, os nazis anunciaram à Alemanha o que eles trariam: ao mesmo tempo as núpcias e a morte, inclusive sua própria morte e a morte dos alemães […] Uma máquina de guerra que tinha apenas a guerra por objeto e que preferia abolir seus próprios servos a parar a destruição”. (Deleuze; Guattari, 1980, p. 281).

Como se vê, 30 anos depois e em uma tradição filosófica distinta, o tópico abordado inicialmente por Adorno retorna, inclusive com a lembrança da aliança entre aniquilação e salvação. Mas, ao aprofundar tal ponto, Guattari dará um passo a mais e não verá problemas em afirmar que a produção de uma linha de destruição e de uma “paixão de abolição” pura se relacionaria com “o diapasão da pulsão de morte coletiva que teria se liberado das valas da Primeira Guerra Mundial” (Guattari, 2012, p. 67). Isso lhe permitia afirmar que as massas teriam investido, na máquina fascista, “uma fantástica pulsão de morte coletiva” que lhes permitia abolir, em um “fantasma de catástrofe” (p. 70),[ix] uma realidade que elas detestavam e para a qual a esquerda revolucionária não soube como fornecer outra resposta.

Segundo essa leitura, a esquerda nunca teria sido capaz de fornecer às massas uma real alternativa de ruptura, que passava necessariamente pela abolição do Estado, de seus processos imanentes de individuação e de suas dinâmicas disciplinares repressivas. Essa é a maneira que Guattari tem de seguir afirmações de William Reich (1996, p. 17) como “O fascismo não é, como se tende a acreditar, um movimento puramente reacionário, mas ele se apresenta como um amálgama de emoções revolucionárias e de conceitos sociais reacionários”. A questão não poderia resumir-se apenas àquilo que o fascismo proíbe, mas há de se entender aquilo que ele autoriza, o tipo de revolta a que ele dá forma, ou, ainda, a energia libidinal que ele é capaz de captar.

Isso nos lembra como há várias formas de destruir o Estado, e uma delas, a forma contrarrevolucionária própria ao fascismo, seria acelerar em direção a sua própria catástrofe, mesmo que isso custe nossas vidas. Como gostaria de mostrar mais à frente, o Estado suicidário seria capaz de fazer da revolta contra o Estado injusto, contra as autoridades que nos excluíram, o ritual de liquidação de si em nome da crença na vontade soberana e na preservação de uma liderança que deve encenar seu ritual de onipotência mesmo quando já está clara sua impotência. Desse modo, juntam-se a noção do fascismo como uma contrarrevolução preventiva e como uma forma de abolição pura e simples do Estado através da autoimolação do povo a ele vinculado.

Mas aqui poderíamos nos perguntar se a hipótese da pulsão de morte seria, afinal, o verdadeiro nome do fundamento psicológico da destrutividade fascista. O que ela poderia nos trazer? Pois isso parece inicialmente nos colocar diante da clássica tópica da pretensa destrutividade imanente da ordem humana, da hostilidade primária entre os humanos como fator permanente de ameaça à integração social.[x]Lembremos como, ao se perguntar sobre as razões da guerra, tendo em vista os impactos da Primeira Guerra, Freud de fato mobiliza o instinto de destruição, esse instinto que age no interior de cada ser vivo e se empenha em levá-lo à desintegração, em fazer a vida retroceder ao estado de matéria inanimada. Mas isso serve, no máximo, como uma explicação genérica e a-histórica das bases libidinais que podem ser mobilizadas por Estados que usam a tópica da guerra total e do extermínio como modelo de gestão social.

Nesse sentido, o risco de tal apelo à pulsão de morte parece estar no recurso a certo “núcleo metafísico” da política, com sua ideia de uma violência irredutível das relações interpessoais. No limite, e esse talvez seja o problema maior, ela tenderia a fazer de toda violência e destrutividade no interior dos conflitos políticos a expressão de uma pulsão que seria o avesso da política. Não foram poucos os momentos em que a pulsão de morte foi chamada para preencher o papel do avesso da política, em uma fórmula que acabaria por ressuscitar certo humanismo, de cunho fortemente moralista, dos que pretensamente defendem as “forças da vida” (que significa sempre “a vida tal como hoje se configura”) contra o “império da morte”. Foi dessa forma que vimos, por exemplo, a pulsão de morte ser evocada como o nome do que se esconde por trás do “terrorismo internacional”, das “ações diretas”, entre outros.[xi]

De toda forma, não é isso que encontraremos na hipótese do Estado suicidário de Deleuze e Guattari.[xii] É tendo esse risco em mente que Guattari (2012, p. 52) dirá que a pulsão de morte não é uma “coisa em si”, que ela só se constitui quando “saímos do terreno das intensidades desejantes para este da representação”.[xiii] Mesmo em Mil platôs encontramos afirmações como: “não invocamos pulsão de morte alguma” como pretensa pulsionalidade imanente ao desejo. Essa é uma forma de afirmar que haveria uma metamorfose histórica responsável pelo advento da pulsão de morte, proposição distante da hipótese freudiana da inscrição biológica da pulsão de morte.

A insistência nessa possível metamorfose histórica especifica visa, à sua maneira, liberar a tópica freudiana da autodestrutividade imanente do organismo de sua tradução imediata em política de desagregação terrorista do corpo social. Em trabalhos anteriores, Deleuze demonstrara-se consciente de que a descoberta freudiana não poderia restringir-se às formas das dinâmicas bélicas que implicam autodestruição simples.

Em Diferença e repetição, encontrávamos, por exemplo, a ideia do instinto de morte como base pulsional para processos de despersonalização que mais se aproximavam dos impulsos estéticos de crítica da expressão egologicamente determinada. Daí a afirmação de que: “O instinto de morte é descoberto não em relação às tendências destrutivas, não em relação à agressividade, mas em função de uma consideração direta dos fenômenos de repetição. De forma bizarra, o instinto de morte vale como princípio positivo originário para a repetição, eis seu domínio e seu sentido. Ele desempenha o papel de um princípio transcendental enquanto que o princípio de prazer é apenas psicológico” (Deleuze, 1969, p. 27).[xiv][xv]

Não será por acaso que a noção de uma repetição como princípio transcendental será convocada para falar de Proust e das séries de repetições através das quais as relações afetivas se relacionam a um objeto virtual, abrindo espaço à experiência possível da pura forma do tempo. Ou, ainda, para falar de uma procura, própria à experiência estética, “determinada por sua indeterminação”, ou seja, por aquilo que Maurice Blanchot (1955, p. 111), pensando na escrita de Kafka, descreve como uma negatividade extrema que, “na morte tornada possibilidade, trabalho e tempo, permite encontrar a medida do absolutamente positivo”.[xvi] Nesse caso, outra forma de vínculo entre autodestruição e heterodestruição aparece como possível. Nesse momento, Deleuze (1969, p. 148) acredita que esse aspecto produtivo da construção freudiana estaria ainda preso ao “modelo objeto de uma matéria indiferente inanimada”, do qual deveríamos nos livrar. E é possivelmente a necessidade de, uma década depois, separar mais claramente a potência desse “princípio positivo originário” que levará Deleuze e Guattari (1980, p. 198) a afirmarem: “Inventam-se autodestruições que não se confundem com a pulsão de morte. Desfazer o organismo nunca foi matar-se, mas abrir o corpo a conexões que supõem todo um agenciamento, circuitos, conjunções, níveis e limiares, passagens, distribuições, intensidades, territórios e desterritorializações medidas a maneira de um agrimenso”.

Podemos dizer que, dessa maneira, trata-se de operar uma separação na qual uma espécie de “matriz estética da pulsão de morte” possa ser tematizada em sua especificidade, a despeito de certa “matriz política da pulsão de morte” vinculada, originariamente, à temática dos impactos da Primeira Guerra. Separação que podemos inclusive encontrar em Jacques Lacan, quando este fala da pulsão de morte como uma “sublimação criacionista”.[xvii] Notemos ainda como isso que podemos chamar de “matriz estética da pulsão de morte” recupera, em uma chave produtiva, a proximidade percebida por Jean Laplanche entre o caráter fragmentário e polimórfico da pulsão sexual da primeira tópica e a força de desligamento própria à pulsão de morte na segunda tópica freudiana.[xviii]

Essa matriz estética ressoa o potencial disruptivo do conceito freudiano de Unheimlichkeit: conceito este resultante das reflexões de Freud a respeito de certos aspectos da estética romântica. Não por acaso, o texto freudiano sobre o conceito é escrito no mesmo momento que os cinco primeiros capítulos de Para além do princípio de prazer.

Lembremos como, não por acaso, Unheimlich é inicialmente dito de fenômenos que embaralham a distinção entre o vivo e o morto, entre o animado e o inanimado (Freud, 1995, p. 237). Fenômenos que provocam a semelhança entre o inanimado e o vivo. Freud os aborda, entre outros, através de exemplos da fascinação por duplos, que, segundo sua interpretação, portam a condição de “inquietantes mensageiros da morte” (p. 238). Ele ainda fala do desejo por repetições que provocam desamparo e inquietude. Mesmo ao descrever a compulsão de repetição em Além do princípio de prazer, Freud fornecerá um duplo eixo para a compreensão do fenômeno: um vinculado às neuroses de guerra, o outro ligado ao jogo infantil. Ou seja, se um eixo nos leva à destruição psíquica, o outro nos coloca diante de um processo produtivo no qual as experiências traumáticas de perda e anulação são simbolizadas de forma tal a abrir um campo novo de relacionalidade e de ação.

Ou seja, há de se lembrar que a pulsão de morte tem uma tripla origem no interior do pensamento freudiano: uma histórico-política, ligada à mobilização da destrutividade pelo Estado moderno em uma dinâmica irrefreável de administração estatal do extermínio; uma estética, ligada à força de descentramento própria a processos de despersonalização e crítica da expressão egologicamente determinada; e uma biológica, ligada à dinâmica singular dos organismos de produzir a morte por suas própria vias.[xix]

Levando isso em conta, temos o direito de nos perguntar se a recuperação política dessa matriz estética da pulsão de morte (e talvez seja isso que estaria, de fato, em jogo no pensamento de Deleuze e Guattari) não nos abriria a uma política pós-humanista, na qual a temática da junção entre autodestruição e heterodestruição poderia ser conjugada de forma não propriamente suicidária, mas vinculada a transformações estruturais que permitiriam a emergência de subjetividades políticas não mais dependentes da perpetuação das figuras do indivíduo e da consciência. Isso nos levaria a admitir que a articulação entre pulsionalidade e política poderia servir, nesse caso, para pensarmos as bases pulsionais do desejo por experiências sociais de descentramento e de crítica à identidade. Ou seja, bases pulsionais para certo “devir revolucionário das pessoas”. Um devir que sempre começará pela afirmação de que será melhor a morte por suas próprias vias do que a vida que nos propõe. Esse caminho de reflexão ainda está para ser explorado de forma mais sistemática.[xx]

Notemos ainda que tal variabilidade do problema político da violência e da destrutividade talvez mostre a inutilidade do uso da pulsão de morte como conceito de forte potencial explanatório de fenômenos políticos. Se a pulsão de morte pode ser a base tanto de dinâmicas suicidárias quanto de processos revolucionários de transformação estrutural, se ela pode estar na base tanto das piores regressões quanto das mais desejadas transformações, então há de se perguntar sobre sua real utilidade no esclarecimento do campo do político. O que não significa que a tópica do “Estado suicidário” não tenha seu interesse e sua função, embora talvez sejamos obrigados a abordá-la por outro viés.

Isso nos levaria, por fim, a sermos mais críticos em relação ao uso do conceito de pulsão de morte para dar conta da especificidade do regime de violência no fascismo. Pois, mesmo admitindo que há destinos da pulsionalidade que podem se realizar como destrutividade bruta e direta, seria necessário não se contentar com o fantasma da pura aniquilação e se perguntar o que há de positivo nessa procura fascista de autodestruição do povo.

*Vladimir Safatle é professor titular de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação (Autêntica).

Trecho inicial de capítulo da coletânea Tempo, organizada por Daniela Teperman, Thaís Garrafa e Vera Iaconelli. Belo Horizonte, Autêntica, 2021.

 

Referências


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Notas


[i] Adorno e Horkheimer já haviam insistido no fascismo como patologia social de cunho paranoico em Dialética do esclarecimento (ADORNO; HORKHEIMER, 1992).

[ii] “A rebelião contra a leis institucionalizadas transforma-se em ausência de lei e autorização da força bruta a serviço dos poderes estabelecidos” (HORKHEIMER, 2007, p. 81).

[iii] Não por acaso, tecnologias de gestão da violência social, como campos de concentração e segregação, foram desenvolvidas, inicialmente, em situações coloniais. Ver, por exemplo, Roubinek (2016).

[iv] Sobre a figura do “Estado predador”, ver, por exemplo, Chamayou (2016).

[v] Daí o sentido de afirmações como essas de Goebbels: “No mundo da fatalidade absoluta no interior do qual se move Hitler, nada tem mais sentido, nem o bem nem o mal, nem o tempo nem o espaço, e o que os outros homens chamam de ‘sucesso’ não pode servir de critério […] É provável que Hitler terminará em catástrofe” (apud HEIBER, 2013).

[vi] Conforme encontramos em Balibar [s.d.].

[vii] Ver Thomas Hobbes sobre “as doenças da commonwealth” em Leviatã, cap. XXIX.

[viii] “Temos então na sociedade nazista essa coisa absolutamente extraordinária: uma sociedade que generalizou de forma absoluta o biopoder, mas que, ao mesmo tempo, generalizou o direito soberano de matar […]. O Estado nazista tornou absolutamente coextensivo o campo de uma vida que ele administra, protege, garante biologicamente e, ao mesmo tempo, o direito soberano de matar quem quer que seja – não apenas os outros, mas os seus […]. Temos um Estado absolutamente racista, um Estado absolutamente assassino e um Estado absolutamente suicidário” (FOUCAULT, 1997, p. 232).

[ix] “Todas as significações fascistas reverberam em uma representação composta de amor e de morte. Eros e Tanatos se unem. Hitler e os nazistas lutavam pela morte, até mesmo pela morte da Alemanha. E as massas alemãs aceitaram segui-lo até sua própria destruição” (GUATTARI, 2012, p. 70).

[x] Como podemos encontrar em Derrida (1995).

[xi] Ver, por exemplo, Roudinesco (2015) ou Enriquez (2003).

[xii] Mesmo que essa seja a acusação de Land (2007).

[xiii] Notemos que Deleuze é mais reticente do que Guattari no uso do conceito de pulsão de morte. Tanto que afirmará: “cada vez que uma linha de fuga se transforma em linha de morte não invocamos uma pulsão interior do tipo ‘instinto de morte’, nós invocamos ainda um agenciamento de desejo que coloca em jogo uma máquina definível de forma objetiva ou extrínseca” (DELEUZE; PARNET, 1996, p. 171).

[xiv] Essa posição ainda está presente em O anti-Édipo “O instinto de morte é silêncio puro, transcendência pura, não dada na experiência. Esse ponto é absolutamente impressionante: é porque a morte, segundo Freud, não tem nem modelo nem experiência, que ele faz dela um princípio transcendente” (DELEUZE; GUATTARI,

[xv] p. 397).

[xvi] É com isso em mente que devemos ler a passagem fundamental de Deleuze: “um estado de diferenças livres que não são mais submetidas à forma que lhes era dada por um Eu, que se desenvolve em uma figura que exclui minha própria coerência ao mesmo tempo em que a coerência de uma identidade qualquer. Há sempre um ‘morre-se’ mais profundo do que um ‘eu morro’” (DELEUZE, 1969, p. 148).

[xvii] “A pulsão de morte é uma sublimação criacionista, ligada ao elemento estrutural que faz com que, desde que nos relacionemos ao que quer que seja que se apresenta sob a forma da cadeia significante, há algum lugar, mas seguramente fora do mundo da natureza, o para além desta cadeia, o exnihilo sobre o qual ela se funda e se articula como tal” (LACAN, 1986, p. 252).

[xviii] Como Laplanche (1990, p. 123) afirma: “Eros é o que procura manter, preservar e mesmo aumentar a coesão e a tendência sintética tanto do ser vivo quanto da vida psíquica. Enquanto que, desde as origens da psicanálise, a sexualidade era, por essência, hostil à ligação, princípio de ‘des-ligamento’ ou de desencadeamento (Entbildung) que só se ligava através da intervenção do Eu, o que aparece com Eros é a forma ligada e ligadora da sexualidade, colocada em evidência pela descoberta do narcisismo”.

[xix] Esse ponto, há muito desacreditado, foi recuperado por biólogos contemporâneos como Jean-Claude Ameisen e Henri Atlan.

[xx] A esse respeito, ver também: Martins, 2021.

As ferramentas fascistas da Guerra Fria nos Estados Unidos

 

David Cole 

 

O FBI desenvolveu extensos arquivos sobre suspeitos vermelhos, incluindo muitos americanos que simplesmente defendiam a justiça racial ou os direitos dos trabalhadores. Hollywood, universidades e outras organizações privadas cooperaram na repressão, impedindo de trabalhar os suspeitos de serem comunistas. 

 

 

"O passado é um país estrangeiro: eles fazem as coisas de maneira diferente lá." Assim começa o romance magistral de L.P. Hartley sobre amor e memória, The Go-Between [O Mensageiro]. A linha pode servir de lema para historiadores. O desafio do historiador é entender o quão diferente era um período anterior da existência humana e resistir a traçar paralelos com os tempos contemporâneos. 

 

Red Scare: Blacklists, McCarthyism, and the Making of Modern America, [Medo vermelho: listas negras, macarthismo e a construção da América moderna] de Clay Risen, permanece fiel a esse princípio. Fornecendo uma riqueza de detalhes envolventes que ressaltam o quão diferente foi aquela metade do século XX de hoje, ele conta a história fascinante e vergonhosa do protagonista desde as suas origens após a Segunda Guerra Mundial até à sua morte no final dos anos 1950. E ele recusa-se expressamente a fazer analogias com o momento atual. 

 

Isso pode ter sido mais fácil de fazer porque ele escreveu Susto vermelho antes da reeleição de Donald Trump e do desastre que já é Trump 2.0. Mas mesmo que ele evite cuidadosamente delinear as semelhanças, para quem está a ler agora, os paralelos são gritantes demais para serem ignorados. Por mostrar como o bode expiatório populista pode tomar conta de uma nação e representar dilemas reais para os muitos que estão presos na sua teia, Susto vermelho é uma leitura essencial hoje. 

 

Na verdade, houve vários sustos vermelhos na história americana. O primeiro, que começou logo após a Primeira Guerra Mundial, apresentou com destaque os ataques-surpresa de Palmer 1, nos quais o governo federal respondeu a uma série de atentados prendendo milhares de estrangeiros e deportando mais de 500 por suspeitas de associação com grupos anarquistas ou comunistas. As raízes de muitas leis anticomunistas, de facto, remontam a esse período. Esse Susto vermelho terminou em 1920. 

 

O segundo Susto vermelho, o assunto do relato de Risen, surgiu quase logo depois de a Segunda Guerra Mundial ter terminado. Winston Churchill foi um dos primeiros a prever a Guerra Fria num discurso que proferiu no Missouri em 1946. Esta guerra rapidamente voltou a casa, criando raízes em Hollywood quatro meses depois, quando o editor fundador do The Hollywood Reporter, Billy Wilkerson, publicou os nomes de 11 pessoas nas fileiras de Hollywood suspeitos de serem comunistas. Outros prontamente se juntaram ao apelo para livrar Hollywood dos vermelhos, incluindo Ronald Reagan e a romancista Ayn Rand. O Comité de Atividades Antiamericanas da Câmara, nascido em 1938 de um comité que investigava nazis, voltou a sua atenção para os comunistas e logo intimou inúmeros escritores, diretores e atores a testemunhar sobre os seus supostos laços com o Partido Comunista. 

 

Em 1947, o presidente Harry Truman anunciou um "programa de fidelidade" para funcionários federais. O programa, que analisou o histórico de todos os funcionários federais atuais e novos, examinou 4,76 milhões de pessoas ao longo de cinco anos, em busca de "qualquer evidência de 'deslealdade', um termo que foi deixado ameaçadoramente indefinido", escreve Risen. Truman também instruiu o seu procurador-geral, Tom Clark, a compilar uma lista de "organizações subversivas", que acabou incluindo centenas de grupos, incluindo o National Lawyers Guild, uma organização de advogados progressistas. A associação com qualquer grupo que constava da lista podia levar alguém a ficar com uma ficha no FBI ou custar-lhe o emprego. A maioria das pessoas sobreviveu às triagens de lealdade de Truman, mas quase 7 000 pessoas renunciaram ou retiraram as suas inscrições e 560 foram despedidas. O programa de fidelidade não descobriu um único espião. 

 

Julgamentos proeminentes de supostos espiões comunistas, Alger Hiss e Julius e Ethel Rosenberg, dividiram o país - e terminaram na condenação dos três e na pena de morte para os Rosenbergs. O Congresso aprovou leis que tornam uma ofensa razão suficiente para deportação e um crime ser membro do Partido Comunista ou defender as suas posições, e inúmeros estrangeiros foram deportados e cidadãos condenados pelas suas crenças políticas. 

 

No seu auge, praticamente todas as partes da sociedade estavam envolvidas no projeto. O Congresso promulgou leis anticomunistas e realizou audiências para revelar simpatizantes comunistas e amigos. Os promotores federais julgaram pessoas pela sua associação com o partido e por se recusarem a citar nomes. Os tribunais, incluindo o Supremo Tribunal, mantiveram as condenações. O FBI desenvolveu extensos arquivos sobre suspeitos vermelhos, incluindo muitos americanos que simplesmente defendiam a justiça racial ou os direitos dos trabalhadores. Hollywood, universidades e outras organizações privadas cooperaram na repressão, impedindo de trabalhar suspeitos de serem comunistas. 

 

Os governos estaduais estenderam o esquema ao nível local, promulgando os seus próprios juramentos de lealdade e leis anti-subversivas. Chicago proibiu suspeitos de serem comunistas de acederem a habitações públicas; O estado de Nova York negou licenças de pesca a membros de qualquer grupo na lista de organizações subversivas do procurador-geral, e a cidade de Nova York demitiu até mesmo professores de matemática do ensino médio por suspeita de laços comunistas. 

 

É difícil não estabelecer paralelos com o que está a acontecer hoje. Considere-se, por exemplo, as origens do Susto vermelho. Risen atribui isso a uma reação contra o New Deal, alimentada ainda mais pelo medo de um adversário comunista com armas nucleares na União Soviética. O New Deal, escreve ele, derrubou a velha ordem e inaugurou, embora provisoriamente, "uma nova América - igualitária, diversificada, tolerante". Mas nem todos estavam a bordo. Os empresários opuseram-se às regulamentações que protegiam consumidores e trabalhadores, bem como aos impostos mais altos necessários para financiar um governo maior. E então, como agora, o ressentimento estendia-se muito além dos ricos: 

 

Os progressistas da década de 1930 alegavam defender o Homem Esquecido, mas havia muitos americanos que sentiam que o New Deal os tinha de facto esquecido: a classe média de uma cidade pequena, os fundamentalistas religiosos, os supremacistas brancos declarados que continuavam a insistir que a América era um país fundado por e para os europeus do norte. Eles viram uma América cada vez mais urbana e cosmopolita, industrializada e regulamentada, diversificada e tolerante, governada pelo que eles acreditavam ser uma elite separada e antipática ao americano branco médio. 

 

Num sentido fundamental, a direita ainda está a lutar contra o New Deal e está a usar uma estratégia muito semelhante – uma estratégia que alimenta as queixas dos americanos que acreditam ter sido deixados para trás pelos desenvolvimentos económicos e culturais e estão ansiosos para encontrar falhas nas elites e nos migrantes. É por essa razão que, embora a maioria dos americanos se sinta desconfortável com a pressa irresponsável com que Trump, com a ajuda de Elon Musk, começou a derrubar a infraestrutura federal da qual muitos dependem, os seus principais apoiantes não estão tão preocupados. 

 

Entretanto, a maioria do Supremo Tribunal, composta por seis juízes nomeados pelos republicanos, defende um profundo ceticismo sobre o Estado administrativo. No ano passado, derrubou um precedente de 40 anos que exigia que os tribunais se submetessem à experiência das agências. E tem insistido cada vez mais que o presidente deve ter autoridade irrestrita para remover do Poder Executivo qualquer funcionário que ele queira por qualquer motivo, questionando medidas que salvaguardam a independência das agências governamentais. Em maio, o tribunal sinalizou numa decisão temporária que provavelmente derrubará um precedente de 1935 que permite ao Congresso controlar a capacidade do presidente de demitir os chefes de agências independentes mesmo sem prevaricação ou negligência. 

 

E onde os progressistas do New Deal valorizavam a experiência e a ciência como base para resolver problemas sociais, Trump procurou agressivamente suprimir qualquer evidência ou  investigação que pudesse contradizer os seus compromissos ideológicos - incluindo, mais catastroficamente, investigações críticas sobre saúde e mudanças climáticas. 

 

Em ambos os períodos, o ressentimento anti-elite foi galvanizado por políticos que não respeitavam as normas fundamentais de justiça e decência, estavam dispostos a mentir descaradamente e eram hábeis em explorar a insatisfação e a ansiedade para ganho pessoal e partidário. Joseph McCarthy, como Donald Trump, era um estranho grosseiro para o establishment republicano que se tornou tão poderoso que poucos no partido ousaram contrariá-lo. Uma diferença: McCarthy era apenas um senador, logo o seu poder de moldar a sociedade americana era necessariamente indireto. Ele podia realizar audiências e lançar acusações, mas tinha de confiar noutras partes do governo e da sociedade para aplicar punições materiais. 

 

E onde Truman exigia "lealdade" aos funcionários federais, Trump instituiu um tipo diferente de programa de lealdade - demitindo qualquer pessoa que ele considere ser-lhe insuficientemente fiel (não importa o país) e nomeando pessoas para altos cargos cuja única qualificação é a sua lealdade ao chefe. O seu governo assemelha-se não a um 

Estado de segurança mas a uma gangue do crime organizado. E por essa razão, entre outras, é improvável que os democratas sejam cooptados por Trump da mesma forma que muitos o foram pelo anticomunismo. 

 

O relato multitexturado de Risen de como o macarthismo passou a permear todos os aspetos da vida americana também nos lembra que a histeria atual não está, pelo menos até agora, em nenhuma medida tão profundamente entrelaçada no tecido da vida americana. O Susto vermelho durou mais de uma década (e, se incluirmos o primeiro Susto vermelho, ainda mais). Ele permeou todos os aspetos da vida pública e privada, e as suas investigações afetaram diretamente milhões de americanos. 

 

Em contraste, além do "Big Beautiful Bill" [a construção do muro na fronteira com o México], as iniciativas de Trump até agora têm sido amplamente limitadas a ordens e ações executivas unilaterais. Trump foi reeleito com menos do que a maioria dos votos, e os seus números nas sondagens, à partida historicamente baixos, estão a cair. Os estados vermelhos [republicanos] são cúmplices, mas os procuradores-gerais dos estados azuis [democratas] contestaram muitas das suas iniciativas no tribunal federal, enquanto Risen identifica apenas um punhado de funcionários do governo que desafiaram o macarthismo. 

 

Além disso, até agora os tribunais decidiram contra Trump numa ampla gama das suas iniciativas. Um estudo da Bloomberg Law contou mais de 200 decisões contra o governo. Em contraste, os tribunais durante o Susto vermelho não fizeram nada para impedir o macarthismo e, em vez disso, confirmaram muitas sentenças e demissões duvidosas por mera associação política. Somente depois de a maré política ter mudado e o Senado ter censurado McCarthy, é que o Supremo Tribunal começou a desmantelar a arquitetura legal do Susto vermelho. 

 

O ponto de viragem legal veio em 17 de junho de 1957, quando o tribunal emitiu quatro decisões contra medidas anticomunistas. Anulou a condenação por desrespeito de um líder sindical que se recusou a citar nomes perante o HUAC [Comité de atividades antiamericanas].  Reverteu uma decisão de New Hampshire que tinha prendido um professor marxista por se recusar a responder a perguntas sobre as suas palestras.  Reintegrou um funcionário do Departamento de Estado que tinha sido demitido por deslealdade. E anulou uma condenação sob a Lei Smith, que criminalizava a filiação no Partido Comunista. 

 

Só uma década depois é que o tribunal foi mais longe, decidindo que ninguém poderia ser punido por se filiar no Partido Comunista, a menos que pretendesse especificamente promover os seus fins ilegais, e não poderia ser processado nem mesmo por defender o derrube violento do governo dos EUA, a menos que o discurso de alguém tivesse a intenção e a probabilidade de incitar a uma ação ilegal iminente. Essas decisões continuam a ser uma boa lei até hoje e são uma importante pedra angular das nossas liberdades da Primeira Emenda. Mas quando o tribunal emitiu essas decisões, o macarthismo tinha-se tornado, como disse Dwight D. Eisenhower, "McCarthywasm", e inúmeras vidas já tinham sido arruinadas. 

 

Os paralelos mais pungentes entre o Susto vermelho e hoje envolvem a questão da concordância ou resistência. O Susto vermelho era uma parceria público-privada. McCarthy dependia fortemente de instituições privadas, incluindo a indústria do entretenimento e universidades, para despedir ou colocar na lista negra aqueles que o seu comité afirmava serem comunistas. Toda uma indústria parasitária do anticomunismo surgiu, primeiro revelando suspeitos de simpatia com os comunistas e depois facilitando a sua "reabilitação" através de confissões, nomes, serviços como  informadores e coisas do género. 

 

Muitos cidadãos estavam mais do que dispostos colaborar. Das 110 figuras de Hollywood chamadas para testemunhar perante o HUAC somente em 1951, 58 cooperaram, oferecendo 902 nomes. Assim como alguns dos escritórios de advocacia que fecharam acordos preventivos com Trump, alguns em Hollywood nem esperaram para serem chamados e, em vez disso, estenderam a mão por iniciativa própria para citar nomes. Um desses voluntários foi o ator Sterling Hayden, que se arrependeu para o resto da sua vida. Até os sindicatos foram cúmplices: a Associação Nacional de Educação expulsou membros comunistas em 1949, e a Federação Americana de Professores votou a favor de não defender professores acusados de ligações aos comunistas. 

 

Os poucos que se recusaram a acompanhá-los sofreram por causa das suas ações nas mãos do governo federal, que poderia processá-los por desrespeito ao Congresso, e da indústria privada, que se recusou a contratá-los. Dalton Trumbo, um dos escritores mais bem-sucedidos de Hollywood, recusou-se a citar nomes, cumpriu pena na prisão e só conseguiu encontrar trabalho sob pseudónimos. O autor de filmes negros Dashiell Hammett cumpriu seis meses de prisão por se recusar a identificar contribuintes para um fundo de fiança. Gale Sondergaard, que ganhou o primeiro Óscar de Melhor Atriz Secundária, recusou-se a citar nomes e não conseguiu outro papel na tela durante 20 anos. Outros tiveram mais sorte. O dramaturgo Arthur Miller recusou-se a citar nomes e foi condenado por desrespeito, mas a sua condenação foi revertida em recurso. O físico de Harvard Wendell Furry recusou-se a cooperar, mas Harvard apoiou-o e, ao contrário de outros, manteve o seu emprego. A maioria dos que resistiram sofreu na época; mas, em retrospetiva, eles são os heróis desse período. 

 

A mesma dinâmica está ativa hoje, à medida que alguns escritórios de advocacia e universidades capitulam perante as exigências ilegais de Trump, enquanto outros, como o escritório de advocacia Perkins Coie e a Universidade de Harvard, resistem corajosamente. Aqui, também, a história provavelmente olhará positivamente para aqueles que se mantiveram firmes nos princípios enquanto condenavam aqueles, como Paul, Weiss e Columbia, que optaram por cumprir ordens flagrantemente ilegais. 

 

Nas primeiras semanas do segundo governo Trump, apareci   num seminário na rede com Ellen Schrecker, historiadora da Guerra Fria. Ela começou os seus comentários dizendo que passou a sua carreira a estudar o macarthismo e a Guerra Fria, e "isto é pior". Eu tenho as minhas dúvidas. A Guerra Fria, afinal, durou quase meio século, gerou o Estado de vigilância moderno e teve a adesão completa dos governos federal, estadual e local. No exterior, levou a milhões de mortes em guerras por procuração; no país, mandou muitas pessoas para a prisão por nada mais do que exercer o seu direito de associação, submeteu milhões a investigações de lealdade e levou à demissão ou colocação na lista negra de inúmeros americanos inocentes. 

 

As iniciativas de Trump, por mais devastadoras que tenham sido, ainda não chegam nem perto de igualar o alcance e a profundidade do Susto vermelho. Mas, novamente, ele está apenas a começar. 

 

Fonte: Red Scares, Past and Present – MLToday, publicado e acedido em 08.09.2025 

 

Tradução de TAM

in Pelo Socialismo 

domingo, 21 de setembro de 2025

 

Ainda o processo kafkiano contra Boaventura de Sousa Santos Carta a um amigo – por Júlio Marques Mota

By António Gomes Marques on 15 de Setembro de 2025

Ainda o processo kafkiano contra Boaventura de Sousa Santos

Carta a um amigo

por Júlio Marques Mota

Meu grande amigo

Obrigado pela tua leitura do meu texto sobre o Processo kafkiano – o processo contra Boaventura de Sousa Santos

Dizes-me:

“Júlio,

Já li texto sobre a defesa do Boaventura.

Formalmente está bem escrito, com lógica, e é uma boa defesa que fazes do nome dele.

Sendo amigo dele, interpreto como um gesto nobre da tua parte, numa altura em que ele está a ser marginalizado. Isto nada tem a ver com as opiniões que possamos ter sobre o pensamento político dele.” Fim de citação

Meu caro amigo, eu sublinho no meu texto que parto de um ponto de vista muito especial, o caminho indicado por Sraffa, como sendo o homem caído da lua, o homem que se quer assumir como não conhecendo ninguém, um homem que se quer assumir sem circunstâncias que o condicionem. Não cito ninguém ligado ao processo, não conheço as acusantes, não frequento o CES, nunca “quis ser envolvido nas Sociologias”, não me cruzo com o Boaventura de Sousa Santos há mais de 20 anos. Este é o ponto de partida.

E porquê este ponto de partida? Porque é que não parti da ideia de que as acusações feitas correspondiam ao que se tinha passado?

Dito de uma outra forma, escrevi o texto não como amigo seja de quem for, escrevi-o como cidadão revoltado contra o cancelamento que a uma das figuras de maior relevo na universidade portuguesa atual está a ser imposto. Assim, sejamos bem claros, o ser amigo do Boaventura não tem nada a ver com o texto escrito. Fui seu amigo de muitos anos antes, apesar de muitas picardias profissionais entre nós os dois, continuo a ser seu amigo porque como argumento no texto, não me é credível o que as acusantes afirmam. Se me fossem credíveis as referidas afirmações acusatórias garantidamente eu deixaria de o considerar como amigo e o texto que leste nunca seria escrito. Detesto o politicamente correto.

Este distanciamento permitiu-me sustentar a minha argumentação apenas no plano lógico e tanto assim que só depois do texto terminado é que passei a ler a troca de emails entre Boaventura de Sousa Santos e as acusantes. Fiquei-me pelo primeiro nome da lista, uma das principais acusantes senão mesmo a principal, e fiquei horrorizado com o que li. Até dois anos antes da “bomba” explodir ele era visto por ela como uma espécie de anjo protetor, tendo-lhe até sido pedido pela acusante que ajudasse um amigo seu que estava com uma depressão, possivelmente provocada pela tensão vivida em torno de uma tese para entregar. Um pedido que significa muito: significa que a relação entre Boaventura e a acusante era boa, que o Boaventura era visto como alguém capaz de tirar o amigo da “fossa”, uma confiança credivelmente assente noutros casos de apoio dado pelo Boaventura de que a acusante deverá ter tido conhecimento.

Com o quadro mental, que a vida me permitiu elaborar ao longo destes meus 82 anos vividos e muitas das vezes sofridos, pretendi apenas olhar para a suposta realidade do que as acusantes dizem ter acontecido e confrontar o que diziam sobre essa situação com o que conheço da vida académica. Como expliquei no meu texto, nada bate certo de uma coisa com a outra e é esse mesmo texto, meu amigo, que tu consideras solidamente argumentado. Fiquei satisfeito com essa tua leitura onde até a palavra amigo está certa desde que associada a espírito de missão e este espírito de missão estava implícito quando referes o ato nobre de publicar o texto para além dos mal-entendidos que se pudessem colher com a sua publicação.

Partes, pois, do raciocínio lógico do meu texto para o sentimento do homem comum que expões a seguir e que reproduzo mais abaixo. Deixa-me, entretanto, explicar-te qual foi o meu trajeto.

Quando a bronca estalou, numa coisa eu acreditei, que haveria assédio sexual mas questionei-me: qual a origem nele ou nelas? Um enviesamento, seguramente. Deixa-me expor uma anedota que corre na Internet.

“ Há algumas semanas, jantei na casa de um amigo. À mesa, a filha dele, de 9 anos, desafiou-me com um enigma. Talvez o leitor já o conheça.

Um pai e um filho sofrem um grave acidente de carro. O pai morre na hora, enquanto o filho é levado de helicóptero para o hospital em estado crítico. Quando o garoto chega ao pronto-socorro, um cirurgião entra, olha para o paciente e diz: “Não posso operar este menino, ele é meu filho”. Então, quem é o cirurgião?

Eu disparei alguns palpites rápidos. O cirurgião era o padrasto do menino. O pai que morreu no acidente era o padrasto, e o cirurgião era o pai biológico. Ou talvez o pai adotivo do garoto. Demorei alguns minutos nisso. A filha do meu amigo olhava-me como se eu tivesse três cabeças. Depois de um tempo,  perguntou-me: “O que há de errado consigo ?A resposta é: a mãe!”.

Fiquei a morrer de vergonha. Pensei: “Meu Deus, o que há de errado comigo?!”. Não conseguia acreditar que não tinha pensado na mãe. A resposta era tão óbvia depois que o ouvi.

Quando li essa história no blog anecdote.com neste fim de semana, também não consegui pensar na resposta certa. E isso apanhou de surpresa a minha filha (que estuda uma área relacionada com a medicina) e a minha esposa (que é médica). O meu filho adolescente, no fim de contas, acertou.

Este é um ótimo exemplo de como os nossos pressupostos estão tão profundamente enraizados na nossa cabeça que um enigma com uma resposta tão óbvia como é este o caso pode deixar-nos perplexos. Não consigo evitar extrapolar a partir deste caso sobre como hipóteses inconscientes influenciam as nossas decisões e perspetivas diante dos muitos desafios difíceis que estamos a tentar enfrentar – a igualdade no local de trabalho, por exemplo. Este artigo da Psychology Today explica que “o viés de confirmação faz-nos pensar que estamos a pensar e a avaliar racionalmente, quando na verdade não o estamos a fazer racionalmente”. (original aqui)

O final desta história a brincar diz-nos muito. Que pensei eu com as primeiras declarações bombásticas? Que não há fumo sem fogo. Pensei então: quem é que assediou quem? Parti, pois, da hipótese de que o assédio existia, mas a partir de quem é que não sabia. Razão para este raciocínio: como afirmei no texto o Boaventura aparecia para muita gente como uma figura encantadora e para muita gente da América Latina como uma espécie de santo na Terra. Naturalmente, a admiração poderia transformar-se consciente ou inconscientemente em tentativa de sedução delas, ou vice-versa pela parte dele face à admiração por elas mostrada. Não pus a hipótese de não haver fogo, de só haver fumo , e um fumo muito estranho, diga-se de passagem! Mas deixemos o mundo de santos e santas. Surge depois a ideia de assédio moral e supostamente altamente violento relativamente ao namorado da agora deputada brasileira. Aí pensei, não, isto não pode ser. Isto seria só próprio de um monstro e de um monstro fora de qualquer controlo. E de um monstro sem controlo não havia uma qualquer notícia. Logo, uma hipótese a rejeitar. Depois houve a documentação apresentada por Boaventura de Sousa Santos relativamente às duas primeiras denúncias. Aí comecei a colocar uma hipótese diferente: a de as duas acusantes estarem em campanha política nas suas terras e de a campanha de acusações  corresponder a interesses outros que não os que as palavras de acusação traduziam. Uma ideia que morreu ali. Era vaga demais para eu me ficar nela.

Mas o inconsciente coletivo tem muita força sobretudo quando envolve questões em torno da sexualidade. Esta lógica de só de um monstro voltou-me, de novo, à cabeça quando ouvi a narrativa sobre o que se teria passado na Curia com as tentativas sempre repelidas de mão na virilha de uma mulher e num local rodeado de gente conhecida, um local público! Ninguém abordaria uma mulher assim. Mais uma vez esta era, assim, uma outra hipótese a rejeitar. Não, vão para o diabo com estas histórias. Não, isto não pode ser assim, estas histórias não encaixam. Ninguém abordaria inicialmente uma mulher, enquanto fêmea, desta forma, Terá de haver outras razões, mas quais? A terminar a minha tomada de consciência a sério, fiquei a saber dos múltiplos cancelamentos a que Boaventura foi sujeito e, por fim, veio o cancelamento de Thomas Palley, estabelecido pelos seus próprios colegas porque se tinha oposto á guerra na Ucrânia. O campo de análise era agora já outro, era político, e esse expliquei-o no texto que comentaste, uma análise em que penso teres aceitado quando consideras que o meu texto estava bem argumentado. É aqui que me desembaracei definitivamente dos fantasmas do inconsciente coletivo quanto á sexualidade com as quais o pensamento único é hábil em jogar, e como este caso tem muito bem ilustrado O meu trajeto, o teu trajeto, mostram bem esta triste realidade, esse peso da moralidade mesmo que inconsciente. E voltamos assim a história do acidente acima relatada.

Com o cancelamento tanto de Palley como de Boaventura estamos a falar já não de acontecimentos locais- uma revista (Palley), uma Universidade (Boaventura)-  mas de um acontecimento a nível mundial e este não é nada proporcional ao que se poderia considerar local. No caso que nos importa aqui fomos levados a pensar em dois acontecimentos que a partir de dado momento se terão desenrolado em paralelo, primeiro um movimento desencadeado pelas vítimas do CES , depois é o aproveitamento mundial pelos media, servidores fiéis e servis da lógica neoliberal e das suas Instituições de base, as geridas pelos senhores do mundo, a que se segue de imediato o descomunal cancelamento de Boaventura de Sousa Santos. Depois, as ditas vítimas montam nesse cavalo poderoso que lhes é oferecido para reforçarem as suas posições.

Meu caro amigo, no teu texto abandonas depois o meu texto e o sentido lógico nele contido para assumires o papel do cidadão comum, questionando-se sobre a racionalidade ou não que pode estar por detrás das acusações. E afirmas:

“Eu só conheço este tema pelo que li nos jornais, nem sei se parte ou o todo de que é acusado é verdade ou não, mas há coisas que fazem pouco sentido, e se assemelham a muitas cabalas que nos chegaram através do Metoo, de que sempre fui muito céptico, e acho, sem negar, por desconhecer, que tenha havido situações de assédio, muitas foram vinganças e acerto de contas antigas.

Uma coisa que tenho dificuldade em perceber é o que terá motivado estas “acusações”, ainda por cima agora e não no momento em que eventualmente ocorreram. Vinganças? Mas porquê? Frustrações profissionais? Mas o que resolve nesta altura?

O movimento woke, apadrinhado por alguma esquerda (a esquerda também tem defeitos), criou uma cultura de censura e autocensura e acusações a tudo o que sai fora das baias do politicamente correcto. Não deixa de ser curioso que Boaventura seja vítima desta cultura Woke, a que ele, justa ou injustamente, foi por vezes associado. Movimentos como o Metoo e um certo moralismo nasceram no seio da cultura Woke”. Fim de citação

Meu caro amigo, sejamos claros, os homens e as mulheres são também o que são as suas circunstâncias. Possivelmente, a maioria das circunstâncias destas acusantes, por elas próprias designadas Coletivo de vítimas do CES, para estas acusações de agora não terão de ser encontradas no tempo e no espaço ao qual aludem as acusações, onde tu te queres situar, onde eu também comecei por me sentar, mas sim nas circunstâncias de um outro tempo, o de agora, e de outros espaços, os espaços em que vivem agora as acusantes com as suas determinantes específicas. Que ambos desconhecemos. Estas novas circunstâncias de tempo e espaço ignoramo-las por completo e, então, será que as podemos considerar como elusivas unknow unknows, uma vez que não podemos saber o que é que não sabemos delas? As tuas interrogações de agora, tal como as minhas de outrora, são, pois, puramente irrelevantes como digo acima, dadas as inconsistências verificadas ou não explicadas pela Justiça que permanece calada. E não esqueçamos o que o artigo da Psychology Today nos explica que “o viés de confirmação faz-nos pensar que estamos a pensar e a avaliar racionalmente, quando na verdade não estamos.” Julgamos avaliar racionalmente quando muitas vezes não é o que fazemos como parece ter sido o nosso caso, o meu e o teu, sobre esta situação.

Na linha de raciocínio do meu texto, em que considero incoerentes as declarações feitas pelas denunciantes quer com a vida universitária e as suas exigências de trabalho intelectual quer com aquilo que se relata na longa lista de emails trocados entre Boaventura e as acusantes, onde se denota uma convivência sã, sou levado a pensar que também aqui há uma motivação fortemente política deste grupo- independentemente do que é feito á escala internacional pelos autores do cancelamento de Boaventura pois aí os atores são já outros- assente o grupo na interseção estabelecida por duas linhas radicais de esquerda não convencional: o wokismo e o interseccionalidade. Quanto aos efeitos destas duas linhas de atividade política na América e não só nela, estes são já bem visíveis

Num texto de Isabella Gonçalves e do Colectivo de vítimas do CES , intitulado

Chaui, a verdade não se divide entre o ‘santo Boaventura’ e as denunciantes (original aqui)

em que se pretende responder ao texto de Marilena Chaui onde esta defende fortemente Boaventura, pode-se ler:

 Para enaltecer as qualidades intelectuais do homem, Marilena — que não nos conhece, desconhece grande parte da história e sequer nos nomeia — sentiu a necessidade de deslegitimar e atacar mulheres que se mobilizam contra relações de poder estruturais na academia: o assédio sexual e moral e o extrativismo acadêmico. (O sublinhado é nosso)

(...)

“E a história hoje se move de uma academia enclausurada, marcada pela hegemonia do pensamento colonial, racista e patriarcal, para uma academia com mais mulheres, com mais pessoas do Sul Global, mais indígenas, mais pessoas negras, que pensam, escrevem, questionam, se inquietam e se rebelam contra as estruturas acadêmicas opressivas que por muito tempo lhes impuseram barreiras e lhes causaram danos. O pensamento de Boaventura se inscreve nesse movimento, mas não está livre de contradições. ( O sublinhado é nosso)

A relevância dos livros e da teoria de Boaventura para o pensamento progressista leva alguns e algumas a crer que ele seja um santo na terra. Mas, basta um pouco de convivência, para perceber a distância entre o que se fala e o que se faz, entre teoria e prática, escancarada em sua trajetória marcada por muitos privilégios, brancos e europeus, e por uma forma arrogante de se relacionar com quem desagrada sua vontade imaculada, sobretudo quando essas pessoas estão subordinadas a ele por vínculos laborais ou acadêmicos (os sublinhados são nossos)

(...)

“A exposição do “Caso Boaventura” não se trata de vingança nem de destruir a imagem pública de alguém. A sequência de relações abusivas de poder narradas pelas denunciantes diz respeito não apenas ao professor, mas sobretudo à forma estrutural como o patriarcado se reproduz no espaço acadêmico.”

(...)

Falar de extrativismo intelectual e assédio moral e sexual no contexto acadêmico significa debater duas dimensões estruturantes de uma universidade que precisa se reinventar para reduzir a distância abissal entre teoria e prática. Debates feministas importantes têm refletido como a academia deve se tornar emancipatória, intercultural e ecológica para as mulheres, em especial migrantes, indígenas, negras, LGBT+. (O sublinhado é nosso)

(...)

Marilena, ao afirmar que as denunciantes mentem, pois usufruíam de boas condições de trabalho e pesquisa – o que as protegeria do assédio moral e sexual – parece desconhecer a realidade da maior parte das mulheres na academia: vivendo sem bolsas ou com remuneração insuficiente, sendo constrangidas a não engravidar, a não amamentar, conciliando duplas e triplas jornadas de trabalho, e, na maioria das vezes, realizando trabalhos extras para seus orientadores para manter uma relação laboral e científica precária.

(...)

A ‘Verdade’ é que o assédio moral e sexual e o extrativismo acadêmico são elementos estruturais e estruturantes das relações de poder na academia. Combatê-los não tem a ver com destruir a imagem pública de alguém, mas sim com aprofundar um movimento dialético por uma academia que não continue violentando mulheres.” Fim de citação.

Estes excertos merecem ser lidos com muita atenção. Ao longo de mais de 15 anos tenho sido um forte crítico do que se passa na Universidade, dos muitos poucos que se manifestam frontalmente  contra o que se passa hoje no Ensino Superior, mas quando falo de estudantes falo de homens e mulheres, independentemente da cor, da raça, do género, quando falo de docentes, falo de professores e professoras, uma vez que a precariedade atinge-os a todos, e a precariedade para mim assenta na precariedade do emprego  de quem nas Universidades trabalha, assenta na precariedade das condições de trabalho de uns e de outras, seja-se homem ou mulher, assenta na desvalorização sistemática da profissão de docente, assenta na degradação sistemática dos conteúdos do que se ensina, assente na precariedade do valor dos diplomas concedidos, a valerem talvez  menos do que a tinta gasta na sua impressão. E isto não tem nada a ver com o que se diz no texto acabado de citar, como se o problema da Universidade fosse a necessidade desta “se tornar emancipatória, intercultural e ecológica para as mulheres, em especial migrantes, indígenas, negras, LGBT+” ou a necessidade desta ter “mais pessoas do Sul Global, mais indígenas, mais pessoas negras, que pensam, escrevem, questionam, se inquietam e se rebelam contra as estruturas acadêmicas opressivas que por muito tempo lhes impuseram barreiras e lhes causaram danos”

Curiosamente, quando estamos em vias de ver ruir toda a estrutura universitária, por estar a ficar minada pelo trabalho demolidor levado a cabo pela Inteligência Artificial Generativa (IAG) quando não se dispõe, nem de Reitores, nem de diretores à altura dos graves problemas com se debate o  ensino superior, quando estes dirigentes académicos vivem incapacitados para procurarem encontrar as linhas sempre difíceis de defesa contra o ataque que contra a Universidade está a ser desencadeado, quando a maioria dos professores que nela trabalham estão já totalmente formatados para  apenas lerem powerpoints e aumentarem as linhas escritas dos seus curricula, quando tudo isto acontece  assiste-se à tentativa de assassinato intelectual de figuras de alto gabarito como, por exemplo, as de Thomas Palley e de Boaventura de Sousa Santos no altar do Pensamento Único, assiste-se é lamentável ideia que os problemas da Universidade sejam basicamente os que são citados por Isabella Gonçalves. Quanto a isso não é preciso dizer mais nada.

O alvo deste grupo parece, pois, ser político, parece então ser outra coisa que não o que é expresso pelas acusações contra Boaventura: estas acusações seriam apenas o meio para a notoriedade política que o cancelamento de Boaventura lhes possibilitaria. Veja-se o que aconteceu em S. Paulo, onde Boaventura de Sousa Santos terá sido impedido de estar presente. Confinados, silenciados, vilipendiados na praça pública, anulados, parece ser agora o destino dos que recusam o pensamento único. Curiosamente, Isabella Gonçalves não deixa de afirmar: “A exposição do “Caso Boaventura” não se trata de vingança nem de destruir a imagem pública de alguém. A sequência de relações abusivas de poder narradas pelas denunciantes diz respeito não apenas ao professor, mas sobretudo à forma estrutural como o patriarcado se reproduz no espaço acadêmico.”

Pelo que se transcreve, uma coisa é certa, a Universidade que Isabella Gonçalves deseja não é claramente aquela pela qual me tenho vindo a bater desde há décadas. Tudo isto é bem claro.

 

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Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

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