in A Terra é Redonda
Por VLADIMIR SAFATLE*
Reflexões sobre o fascismo e os problemas do uso político do conceito de pulsão de morte
La vie est un minotaure, elle dévore l’organisme (Buffon).
Gozar do sacrifício de si
Na longa e dispersa tradição dos autores que se dedicaram a descrever
a economia libidinal do fascismo, há ao menos um ponto surpreendente de
convergência. É provável que ele tenha sido formulado pela primeira vez
por Theodor Adorno, já em 1946. Voltemos à conclusão de seu texto
“Antissemitismo e propaganda fascista”:
Nesse ponto, deve-se prestar atenção à destrutividade como o
fundamento psicológico do espírito fascista […] Não é acidental que
todos os agitadores fascistas insistam na iminência de catástrofes de
alguma espécie. Enquanto advertem de perigos iminentes, eles e seus
seguidores se excitam com a ideia da ruína inevitável sem sequer
diferenciar claramente entre a destruição de seus inimigos e de si
mesmos […] Este é o sonho do agitador: uma união do horrível e do
maravilhoso, um delírio de aniquilação mascarado como salvação (Adorno,
2015, p. 152).
Ou seja, trata-se de falar da destrutividade como “fundamento
psicológico” do fascismo, e não apenas como característica de dinâmicas
imanentes de lutas sociais e processos de conquista. Pois, se fosse
questão apenas de descrever a violência da conquista e da perpetuação do
poder, seria difícil compreender como se chega a esse ponto em que não
seria sequer possível diferenciar claramente entre a destruição de seus
inimigos e de si mesmos, entre a aniquilação e a salvação. Para dar
conta da singularidade desse fato, Adorno falará, décadas depois, de um
“desejo de catástrofe”, de “fantasias de fim de mundo” que ressoam
socialmente estruturas típicas de delírios paranoicos (Adorno, 2019, p.
26).[i]
Colocações como essas de Adorno visam expor a singularidade dos
padrões de violência no fascismo. Pois não se trata apenas da
generalização da lógica de milícias dirigidas contra grupos vulneráveis,
lógica através da qual o poder estatal se apoia em uma estrutura
paraestatal controlada por grupos armados. Também não se trata apenas de
levar sujeitos a acreditarem que a impotência da vida ordinária e da
espoliação constante será vencida através da força individual de quem
enfim tem o direito de tomar para si a produção autorizada da violência.
A esse respeito, sabemos como o fascismo oferece certa forma de
liberdade, ele sempre se construiu a partir da vampirização da revolta.[ii]
Nem se trata de junção entre indiferença e violência extrema contra
grupos historicamente violentados. Essa articulação não precisou esperar
o fascismo para aparecer, mas está presente em todos os países de
tradição colonial, com suas tecnologias de destruição sistemática de
populações.[iii]
No entanto, se Adorno fala de “fundamentação psicológica”, é porque
se faz necessário compreender a violência, principalmente, como
dispositivo de mutação psíquica. Uma mutação que teria como eixo de
desenvolvimento certa generalização da destrutividade às formas de
relação a si, ao outro e ao mundo. Nesse horizonte, a psicologia é
chamada para quebrar a ilusão econômica dos indivíduos como agentes
maximizadores de interesses. Ao contrário, seria necessário não ignorar
investimentos libidinais em processos nos quais os indivíduos claramente
investem contra seus interesses mais imediatos de autopreservação.
Esse diagnóstico de uma corrida em direção ao autossacrifício, em um processo no qual a figura do Estado protetor parece dar lugar a uma espécie de Estado predador que se volta inclusive contra si mesmo.[iv]
Estado animado pela dinâmica irrefreável de autodestruição de si e da
própria vida social, não era exclusivo dos frankfurtianos. Ele podia ser
encontrado também nas análises de Hannah Arendt. Basta lembrarmos como,
em 1951, Arendt (2013, p. 434) falava do fato espantoso de que aqueles
que aderiam ao fascismo não vacilavam mesmo quando eles próprios se
tornavam vítimas, mesmo quando o monstro começava a devorar seus
próprios filhos.
Esses autores eram sensíveis, entre outros, ao fato de a guerra
fascista não ter sido uma guerra de conquista e estabilização. Ela não
tinha como parar, dando-nos a impressão de estarmos diante de um
“movimento perpétuo, sem objeto nem alvo”, cujos impasses só levavam a
uma aceleração cada vez maior. Arendt (2013, p. 434) falará da “essência
dos movimentos totalitários que só podem permanecer no poder enquanto
estiverem em movimento e transmitirem movimento a tudo o que os rodeia”.
Há uma guerra ilimitada que significa a mobilização total do efetivo
social, a militarização absoluta em direção a um conflito que se torna
permanente.
Ainda durante a guerra, Franz Neumann fornecerá uma explicação
funcional para tal dinâmica de guerra permanente. O chamado “Estado”
nazista seria, na verdade, a composição heteróclita e instável de quatro
grupos em conflito perpétuo por hegemonia: o partido, as forças armadas
e seu alto comando aristocrata prussiano, a grande indústria e a
burocracia estatal:
Desprovido de toda lealdade comum e concernido apenas com a
preservação de seus próprios interesses, os grupos dirigentes irão se
separar tão logo o líder produtor de milagres encontre um oponente a
altura. Por enquanto, cada grupo precisa do outro. As forças armadas
precisam do partido porque a guerra é totalitária. As forças armadas não
podem organizar a sociedade “totalmente”, o que é tarefa do partido. O
partido, por sua vez, precisa das forças armadas para vencer a guerra e
assim estabilizar e mesmo ampliar seu poder. Ambos precisam da indústria
monopolista para garantir uma expansão contínua. E todos os três
precisam da burocracia para realizar a racionalidade técnica sem a qual o
sistema não poderia operar. Cada grupo é soberano e autoritário, cada
um é equipado com poderes legislativo, administrativo e jurídico; cada
um é capaz de realizar de forma rápida e implacável os compromissos
necessários entre os quatro (Neumann, 2009, p. 397-398).
Ou seja, apenas a continuação indefinida da guerra permitia a essa
composição caótica de grupos soberanos e autoritários encontrar certa
unidade e estabilidade. Não se tratava assim de uma guerra de expansão e
fortalecimento do Estado, mas de uma guerra pensada como estratégia de
adiamento indefinido de um Estado em rota de desagregação, de adiamento
indefinido de uma ordem política em regime de colapso. E, para sustentar
tal mobilização contínua, com sua exigência monstruosa de esforço e
perdas incessantes, faz-se necessário que a vida social se organize sob o
espectro da catástrofe, do risco constante invadindo todos os poros do
corpo social e da violência cada vez maior necessária para pretensamente
imunizar-se de tal risco.[v]
Ou seja, a única forma de adiar a desagregação da ordem política, a
fragilidade tácita da ordem, consistiria em gerenciar, em um movimento
de flerte contínuo com o abismo, uma junção entre chamados à
autodestrutividade e reiteração sistemática de heterodestrutividade.[vi]
Não será por acaso que encontraremos, décadas depois, alguns
analistas a sugerirem a figura do Estado fascista como um corpo social
marcado por uma doença autoimune: “a condição última na qual o aparelho
protetor se torna tão agressivo que se volta contra seu próprio corpo
(que ele deveria proteger), levando à morte” (Esposito, 2008, p. 116). A
presença sistemática da tópica da proteção como imunização contra a
degenerescência do corpo social seria, na verdade, expressão da
consciência dos antagonismos profundos a atravessarem uma sociedade em
dinâmica de radicalização de lutas de classe e de sedição
revolucionária. Desde Hobbes, sabemos como o recurso à tópica da
imunização contra as “doenças do corpo social” é mobilizado em situações
de sublevação revolucionária.[vii]
Não seria diferente em uma contrarrevolução preventiva como o fascismo.
Essa imunização exigirá a aceitação, por todos os atores da ordem, da
militarização da sociedade e da transformação da guerra em única
situação possível de produção da unidade do corpo social.
Mas, mesmo aceitando tal hipótese, há ainda ao menos um ponto não
totalmente claro. Pois mesmo uma guerra infinitamente sustentada não
implica necessariamente uma guinada autossacrificial. Foi para deixar
ainda mais explícita essa especificidade que, décadas depois, autores
como Paul Virilio (1976) cunharão o termo “Estado suicidário”. Essa era
uma maneira astuta de andar na contramão do discurso liberal da
igualdade entre nazismo e stalinismo ao insistir na estrutura da
violência como traço diferencial entre o Estado fascista e outras formas
de Estados totalitários. O termo “suicidário” se mostrará frutífero
porque era a maneira de lembrar como um Estado dessa natureza não
deveria ser compreendido apenas como o gestor da morte para grupos
específicos. Ele era o ator contínuo de sua própria catástrofe, o
cultivador de sua própria explosão, o organizador de um empuxo da
sociedade para fora de sua própria autorreprodução.[viii]
Segundo Virilio, um Estado dessa natureza se materializou de forma
exemplar em um telegrama. Um telegrama que tinha número: Telegrama 71.
Foi com ele que, em 1945, Adolf Hitler proclamou o destino de uma guerra
então perdida. Ele dizia: “Se a guerra está perdida, que a nação
pereça”. Com ele, Hitler exigia que o próprio exército alemão destruísse
o que restava de infraestrutura na combalida nação que via a guerra
perdida. Como se esse fosse o verdadeiro objetivo final: que a nação
perecesse pelas suas próprias mãos, pelas mãos do que ela mesma
desencadeou.
A política do suicídio e a pulsão de morte
A discussão sobre a natureza “suicidária” do Estado fascista será retomada no mesmo ano por Michel Foucault, em seu seminário Em defesa da sociedade
(em uma aproximação injustificada e profundamente equivocada com a
violência do socialismo real) e anos mais tarde por Gilles Deleuze e
Félix Guattari, em Mil platôs. Diante do regime de
destrutividade imanente ao fascismo e seu movimento permanente, Deleuze e
Guattari irão sugerir a figura de uma máquina de guerra descontrolada
que teria se apropriado do Estado, criando não exatamente um Estado
totalitário preocupado com o extermínio de seus oponentes, mas um Estado
suicidário incapaz de lutar pela sua própria preservação. Daí por que
era o caso de afirmar: “Há no fascismo um niilismo realizado. É que, à
diferença do Estado Totalitário que se esforça por colmatar todas as
linhas de fuga possíveis, o fascismo se constrói sobre uma linha de fuga
intensa, que ele transforma em linha de destruição e de abolição puras.
É curioso como, desde o início, os nazis anunciaram à Alemanha o que
eles trariam: ao mesmo tempo as núpcias e a morte, inclusive sua própria
morte e a morte dos alemães […] Uma máquina de guerra que tinha apenas a
guerra por objeto e que preferia abolir seus próprios servos a parar a
destruição”. (Deleuze; Guattari, 1980, p. 281).
Como se vê, 30 anos depois e em uma tradição filosófica distinta, o
tópico abordado inicialmente por Adorno retorna, inclusive com a
lembrança da aliança entre aniquilação e salvação. Mas, ao aprofundar
tal ponto, Guattari dará um passo a mais e não verá problemas em afirmar
que a produção de uma linha de destruição e de uma “paixão de abolição”
pura se relacionaria com “o diapasão da pulsão de morte coletiva que
teria se liberado das valas da Primeira Guerra Mundial” (Guattari, 2012,
p. 67). Isso lhe permitia afirmar que as massas teriam investido, na
máquina fascista, “uma fantástica pulsão de morte coletiva” que lhes
permitia abolir, em um “fantasma de catástrofe” (p. 70),[ix] uma realidade que elas detestavam e para a qual a esquerda revolucionária não soube como fornecer outra resposta.
Segundo essa leitura, a esquerda nunca teria sido capaz de fornecer
às massas uma real alternativa de ruptura, que passava necessariamente
pela abolição do Estado, de seus processos imanentes de individuação e
de suas dinâmicas disciplinares repressivas. Essa é a maneira que
Guattari tem de seguir afirmações de William Reich (1996, p. 17) como “O
fascismo não é, como se tende a acreditar, um movimento puramente
reacionário, mas ele se apresenta como um amálgama de emoções
revolucionárias e de conceitos sociais reacionários”. A questão não
poderia resumir-se apenas àquilo que o fascismo proíbe, mas há de se
entender aquilo que ele autoriza, o tipo de revolta a que ele dá forma,
ou, ainda, a energia libidinal que ele é capaz de captar.
Isso nos lembra como há várias formas de destruir o Estado, e uma
delas, a forma contrarrevolucionária própria ao fascismo, seria acelerar
em direção a sua própria catástrofe, mesmo que isso custe nossas vidas.
Como gostaria de mostrar mais à frente, o Estado suicidário seria capaz
de fazer da revolta contra o Estado injusto, contra as autoridades que
nos excluíram, o ritual de liquidação de si em nome da crença na vontade
soberana e na preservação de uma liderança que deve encenar seu ritual
de onipotência mesmo quando já está clara sua impotência. Desse modo,
juntam-se a noção do fascismo como uma contrarrevolução preventiva e
como uma forma de abolição pura e simples do Estado através da
autoimolação do povo a ele vinculado.
Mas aqui poderíamos nos perguntar se a hipótese da pulsão de morte
seria, afinal, o verdadeiro nome do fundamento psicológico da
destrutividade fascista. O que ela poderia nos trazer? Pois isso parece
inicialmente nos colocar diante da clássica tópica da pretensa
destrutividade imanente da ordem humana, da hostilidade primária entre
os humanos como fator permanente de ameaça à integração social.[x]Lembremos
como, ao se perguntar sobre as razões da guerra, tendo em vista os
impactos da Primeira Guerra, Freud de fato mobiliza o instinto de
destruição, esse instinto que age no interior de cada ser vivo e se
empenha em levá-lo à desintegração, em fazer a vida retroceder ao estado
de matéria inanimada. Mas isso serve, no máximo, como uma explicação
genérica e a-histórica das bases libidinais que podem ser mobilizadas
por Estados que usam a tópica da guerra total e do extermínio como
modelo de gestão social.
Nesse sentido, o risco de tal apelo à pulsão de morte parece estar no
recurso a certo “núcleo metafísico” da política, com sua ideia de uma
violência irredutível das relações interpessoais. No limite, e esse
talvez seja o problema maior, ela tenderia a fazer de toda violência e
destrutividade no interior dos conflitos políticos a expressão de uma
pulsão que seria o avesso da política. Não foram poucos os momentos em
que a pulsão de morte foi chamada para preencher o papel do avesso da
política, em uma fórmula que acabaria por ressuscitar certo humanismo,
de cunho fortemente moralista, dos que pretensamente defendem as “forças
da vida” (que significa sempre “a vida tal como hoje se configura”)
contra o “império da morte”. Foi dessa forma que vimos, por exemplo, a
pulsão de morte ser evocada como o nome do que se esconde por trás do
“terrorismo internacional”, das “ações diretas”, entre outros.[xi]
De toda forma, não é isso que encontraremos na hipótese do Estado suicidário de Deleuze e Guattari.[xii]
É tendo esse risco em mente que Guattari (2012, p. 52) dirá que a
pulsão de morte não é uma “coisa em si”, que ela só se constitui quando
“saímos do terreno das intensidades desejantes para este da
representação”.[xiii] Mesmo em Mil platôs
encontramos afirmações como: “não invocamos pulsão de morte alguma”
como pretensa pulsionalidade imanente ao desejo. Essa é uma forma de
afirmar que haveria uma metamorfose histórica responsável pelo advento
da pulsão de morte, proposição distante da hipótese freudiana da
inscrição biológica da pulsão de morte.
A insistência nessa possível metamorfose histórica especifica visa, à
sua maneira, liberar a tópica freudiana da autodestrutividade imanente
do organismo de sua tradução imediata em política de desagregação
terrorista do corpo social. Em trabalhos anteriores, Deleuze
demonstrara-se consciente de que a descoberta freudiana não poderia
restringir-se às formas das dinâmicas bélicas que implicam
autodestruição simples.
Em Diferença e repetição, encontrávamos, por exemplo, a
ideia do instinto de morte como base pulsional para processos de
despersonalização que mais se aproximavam dos impulsos estéticos de
crítica da expressão egologicamente determinada. Daí a afirmação de que:
“O instinto de morte é descoberto não em relação às tendências
destrutivas, não em relação à agressividade, mas em função de uma
consideração direta dos fenômenos de repetição. De forma bizarra, o
instinto de morte vale como princípio positivo originário para a
repetição, eis seu domínio e seu sentido. Ele desempenha o papel de um
princípio transcendental enquanto que o princípio de prazer é apenas
psicológico” (Deleuze, 1969, p. 27).[xiv][xv]
Não será por acaso que a noção de uma repetição como princípio
transcendental será convocada para falar de Proust e das séries de
repetições através das quais as relações afetivas se relacionam a um
objeto virtual, abrindo espaço à experiência possível da pura forma do
tempo. Ou, ainda, para falar de uma procura, própria à experiência
estética, “determinada por sua indeterminação”, ou seja, por aquilo que
Maurice Blanchot (1955, p. 111), pensando na escrita de Kafka, descreve
como uma negatividade extrema que, “na morte tornada possibilidade,
trabalho e tempo, permite encontrar a medida do absolutamente positivo”.[xvi]
Nesse caso, outra forma de vínculo entre autodestruição e
heterodestruição aparece como possível. Nesse momento, Deleuze (1969, p.
148) acredita que esse aspecto produtivo da construção freudiana
estaria ainda preso ao “modelo objeto de uma matéria indiferente
inanimada”, do qual deveríamos nos livrar. E é possivelmente a
necessidade de, uma década depois, separar mais claramente a potência
desse “princípio positivo originário” que levará Deleuze e Guattari
(1980, p. 198) a afirmarem: “Inventam-se autodestruições que não se
confundem com a pulsão de morte. Desfazer o organismo nunca foi
matar-se, mas abrir o corpo a conexões que supõem todo um agenciamento,
circuitos, conjunções, níveis e limiares, passagens, distribuições,
intensidades, territórios e desterritorializações medidas a maneira de
um agrimenso”.
Podemos dizer que, dessa maneira, trata-se de operar uma separação na
qual uma espécie de “matriz estética da pulsão de morte” possa ser
tematizada em sua especificidade, a despeito de certa “matriz política
da pulsão de morte” vinculada, originariamente, à temática dos impactos
da Primeira Guerra. Separação que podemos inclusive encontrar em Jacques
Lacan, quando este fala da pulsão de morte como uma “sublimação
criacionista”.[xvii]
Notemos ainda como isso que podemos chamar de “matriz estética da
pulsão de morte” recupera, em uma chave produtiva, a proximidade
percebida por Jean Laplanche entre o caráter fragmentário e polimórfico
da pulsão sexual da primeira tópica e a força de desligamento própria à
pulsão de morte na segunda tópica freudiana.[xviii]
Essa matriz estética ressoa o potencial disruptivo do conceito freudiano de Unheimlichkeit: conceito
este resultante das reflexões de Freud a respeito de certos aspectos da
estética romântica. Não por acaso, o texto freudiano sobre o conceito é
escrito no mesmo momento que os cinco primeiros capítulos de Para além do princípio de prazer.
Lembremos como, não por acaso, Unheimlich é inicialmente
dito de fenômenos que embaralham a distinção entre o vivo e o morto,
entre o animado e o inanimado (Freud, 1995, p. 237). Fenômenos que
provocam a semelhança entre o inanimado e o vivo. Freud os aborda, entre
outros, através de exemplos da fascinação por duplos, que, segundo sua
interpretação, portam a condição de “inquietantes mensageiros da morte”
(p. 238). Ele ainda fala do desejo por repetições que provocam desamparo
e inquietude. Mesmo ao descrever a compulsão de repetição em Além do princípio de prazer, Freud
fornecerá um duplo eixo para a compreensão do fenômeno: um vinculado às
neuroses de guerra, o outro ligado ao jogo infantil. Ou seja, se um
eixo nos leva à destruição psíquica, o outro nos coloca diante de um
processo produtivo no qual as experiências traumáticas de perda e
anulação são simbolizadas de forma tal a abrir um campo novo de
relacionalidade e de ação.
Ou seja, há de se lembrar que a pulsão de morte tem uma tripla origem
no interior do pensamento freudiano: uma histórico-política, ligada à
mobilização da destrutividade pelo Estado moderno em uma dinâmica
irrefreável de administração estatal do extermínio; uma estética, ligada
à força de descentramento própria a processos de despersonalização e
crítica da expressão egologicamente determinada; e uma biológica, ligada
à dinâmica singular dos organismos de produzir a morte por suas própria
vias.[xix]
Levando isso em conta, temos o direito de nos perguntar se a
recuperação política dessa matriz estética da pulsão de morte (e talvez
seja isso que estaria, de fato, em jogo no pensamento de Deleuze e
Guattari) não nos abriria a uma política pós-humanista, na qual a
temática da junção entre autodestruição e heterodestruição poderia ser
conjugada de forma não propriamente suicidária, mas vinculada a
transformações estruturais que permitiriam a emergência de
subjetividades políticas não mais dependentes da perpetuação das figuras
do indivíduo e da consciência. Isso nos levaria a admitir que a
articulação entre pulsionalidade e política poderia servir, nesse caso,
para pensarmos as bases pulsionais do desejo por experiências sociais de
descentramento e de crítica à identidade. Ou seja, bases pulsionais
para certo “devir revolucionário das pessoas”. Um devir que sempre
começará pela afirmação de que será melhor a morte por suas próprias
vias do que a vida que nos propõe. Esse caminho de reflexão ainda está
para ser explorado de forma mais sistemática.[xx]
Notemos ainda que tal variabilidade do problema político da violência
e da destrutividade talvez mostre a inutilidade do uso da pulsão de
morte como conceito de forte potencial explanatório de fenômenos
políticos. Se a pulsão de morte pode ser a base tanto de dinâmicas
suicidárias quanto de processos revolucionários de transformação
estrutural, se ela pode estar na base tanto das piores regressões quanto
das mais desejadas transformações, então há de se perguntar sobre sua
real utilidade no esclarecimento do campo do político. O que não
significa que a tópica do “Estado suicidário” não tenha seu interesse e
sua função, embora talvez sejamos obrigados a abordá-la por outro viés.
Isso nos levaria, por fim, a sermos mais críticos em relação ao uso
do conceito de pulsão de morte para dar conta da especificidade do
regime de violência no fascismo. Pois, mesmo admitindo que há destinos
da pulsionalidade que podem se realizar como destrutividade bruta e
direta, seria necessário não se contentar com o fantasma da pura
aniquilação e se perguntar o que há de positivo nessa procura fascista
de autodestruição do povo.
*Vladimir Safatle é professor titular de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação (Autêntica).
Trecho inicial de capítulo da coletânea Tempo, organizada por Daniela Teperman, Thaís Garrafa e Vera Iaconelli. Belo Horizonte, Autêntica, 2021.
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Notas
[i] Adorno e Horkheimer já haviam insistido no fascismo como patologia social de cunho paranoico em Dialética do esclarecimento (ADORNO; HORKHEIMER, 1992).
[ii]
“A rebelião contra a leis institucionalizadas transforma-se em ausência
de lei e autorização da força bruta a serviço dos poderes
estabelecidos” (HORKHEIMER, 2007, p. 81).
[iii]
Não por acaso, tecnologias de gestão da violência social, como campos
de concentração e segregação, foram desenvolvidas, inicialmente, em
situações coloniais. Ver, por exemplo, Roubinek (2016).
[iv] Sobre a figura do “Estado predador”, ver, por exemplo, Chamayou (2016).
[v]
Daí o sentido de afirmações como essas de Goebbels: “No mundo da
fatalidade absoluta no interior do qual se move Hitler, nada tem mais
sentido, nem o bem nem o mal, nem o tempo nem o espaço, e o que os
outros homens chamam de ‘sucesso’ não pode servir de critério […] É
provável que Hitler terminará em catástrofe” (apud HEIBER, 2013).
[vi] Conforme encontramos em Balibar [s.d.].
[vii] Ver Thomas Hobbes sobre “as doenças da commonwealth” em Leviatã, cap. XXIX.
[viii]
“Temos então na sociedade nazista essa coisa absolutamente
extraordinária: uma sociedade que generalizou de forma absoluta o
biopoder, mas que, ao mesmo tempo, generalizou o direito soberano de
matar […]. O Estado nazista tornou absolutamente coextensivo o campo de
uma vida que ele administra, protege, garante biologicamente e, ao mesmo
tempo, o direito soberano de matar quem quer que seja – não apenas os
outros, mas os seus […]. Temos um Estado absolutamente racista, um
Estado absolutamente assassino e um Estado absolutamente suicidário”
(FOUCAULT, 1997, p. 232).
[ix]
“Todas as significações fascistas reverberam em uma representação
composta de amor e de morte. Eros e Tanatos se unem. Hitler e os
nazistas lutavam pela morte, até mesmo pela morte da Alemanha. E as
massas alemãs aceitaram segui-lo até sua própria destruição” (GUATTARI,
2012, p. 70).
[x] Como podemos encontrar em Derrida (1995).
[xi] Ver, por exemplo, Roudinesco (2015) ou Enriquez (2003).
[xii] Mesmo que essa seja a acusação de Land (2007).
[xiii]
Notemos que Deleuze é mais reticente do que Guattari no uso do conceito
de pulsão de morte. Tanto que afirmará: “cada vez que uma linha de fuga
se transforma em linha de morte não invocamos uma pulsão interior do
tipo ‘instinto de morte’, nós invocamos ainda um agenciamento de desejo
que coloca em jogo uma máquina definível de forma objetiva ou
extrínseca” (DELEUZE; PARNET, 1996, p. 171).
[xiv] Essa posição ainda está presente em O anti-Édipo
“O instinto de morte é silêncio puro, transcendência pura, não dada na
experiência. Esse ponto é absolutamente impressionante: é porque a
morte, segundo Freud, não tem nem modelo nem experiência, que ele faz
dela um princípio transcendente” (DELEUZE; GUATTARI,
[xv] p. 397).
[xvi]
É com isso em mente que devemos ler a passagem fundamental de Deleuze:
“um estado de diferenças livres que não são mais submetidas à forma que
lhes era dada por um Eu, que se desenvolve em uma figura que exclui
minha própria coerência ao mesmo tempo em que a coerência de uma
identidade qualquer. Há sempre um ‘morre-se’ mais profundo do que um ‘eu
morro’” (DELEUZE, 1969, p. 148).
[xvii]
“A pulsão de morte é uma sublimação criacionista, ligada ao elemento
estrutural que faz com que, desde que nos relacionemos ao que quer que
seja que se apresenta sob a forma da cadeia significante, há algum
lugar, mas seguramente fora do mundo da natureza, o para além desta
cadeia, o exnihilo sobre o qual ela se funda e se articula como tal” (LACAN, 1986, p. 252).
[xviii]
Como Laplanche (1990, p. 123) afirma: “Eros é o que procura manter,
preservar e mesmo aumentar a coesão e a tendência sintética tanto do ser
vivo quanto da vida psíquica. Enquanto que, desde as origens da
psicanálise, a sexualidade era, por essência, hostil à ligação,
princípio de ‘des-ligamento’ ou de desencadeamento (Entbildung)
que só se ligava através da intervenção do Eu, o que aparece com Eros é
a forma ligada e ligadora da sexualidade, colocada em evidência pela
descoberta do narcisismo”.
[xix] Esse ponto, há muito desacreditado, foi recuperado por biólogos contemporâneos como Jean-Claude Ameisen e Henri Atlan.
[xx] A esse respeito, ver também: Martins, 2021.