A “Crítica do Programa de Gotha”: um manifesto para além do “Manifesto”

Cartaz do Azerbaijão, 1920. Imagem: Wikimedia Commons
Por Gabriel Teles
Em 1875, Karl Marx redigiu um documento singular. Não se tratava de um tratado filosófico ou de um ensaio jornalístico, mas de uma crítica interna — cirúrgica, contundente e, ainda hoje, frequentemente negligenciada. Refiro-me à Crítica do Programa de Gotha, escrita como uma carta-comentário ao projeto de unificação dos socialistas alemães em torno de um programa comum. À primeira vista, pareceria um episódio menor na trajetória do pensamento marxiano. No entanto, como argumenta o marxista indiano Paresh Chattopadhyay1, trata-se de um verdadeiro “segundo Manifesto Comunista” — mais maduro, menos panfletário, mas não menos revolucionário.
Entre Gotha e o horizonte comunista
Para compreender o alcance dessa formulação, é preciso voltar ao contexto. Em 1875, os seguidores de Marx e os adeptos de Ferdinand Lassalle — figura central do socialismo estatal e reformista alemão — buscavam fundir suas organizações no recém-fundado Partido Socialista dos Trabalhadores da Alemanha (posteriormente SPD, sigla para Partido Social-Democrata da Alemanha). O programa que sintetizaria essa fusão foi redigido majoritariamente por lassalleanos e carregava marcas profundas de um socialismo estatista, legalista e conciliador. Marx, ao ler o texto, respondeu com a Crítica do Programa de Gotha, enviada em carta a Wilhelm Bracke, mas jamais publicada integralmente em vida — e só conhecida publicamente em 1891.
O que Marx ofereceu naquele texto não foi apenas uma crítica conjuntural. Foi a reafirmação radical dos fundamentos de sua teoria da emancipação. Nele, Marx contesta, por exemplo, a ideia de que “o trabalho é a fonte de toda riqueza e de toda cultura”, apontando que tal formulação, ao apagar a contribuição da natureza e do contexto social, repete de forma fetichista o discurso burguês sobre o valor do trabalho. Mas mais do que isso, Marx recusa a idealização do trabalho tal como existe sob o capitalismo. Não se trata de redimir o trabalho assalariado — trata-se de superá-lo.
O trabalho como prisão (e não como virtude)
Marx reitera que o trabalho, na forma como é organizado sob o capital, é inseparável da alienação. A emancipação humana, portanto, só pode ocorrer com a abolição da forma social do trabalho abstrato, subordinado à produção de valor. É por isso que ele rejeita a fórmula lassalleana da “repartição equitativa dos frutos do trabalho”, pois ela conserva, no fundo, a estrutura da exploração.
Esse ponto é crucial. Muitas leituras reformistas do marxismo insistem em defender que se redistribua o produto, mas sem tocar na estrutura da produção. Marx, ao contrário, denuncia o cerne da dominação capitalista: a separação entre produtores e meios de produção, o comando do tempo de vida por uma lógica de valorização cega e desumana, a subordinação do fazer ao ter.
Na fase superior do comunismo — que ele apenas esboça —, Marx propõe que o trabalho deixe de ser “um meio de vida” para se tornar a “primeira necessidade vital”. Isso significa, em termos concretos, a reconciliação entre atividade e realização, entre o fazer humano e a liberdade. Um trabalho que não é mais ditado pela sobrevivência ou pela coerção do valor, mas pela autorrealização dos indivíduos.
Importa frisar: em Marx não há propriamente uma distinção entre “socialismo” e “comunismo”, como se fossem dois regimes ou modos de produção distintos. Essa cisão, muito presente em leituras posteriores — especialmente no marxismo soviético —, não corresponde à concepção marxiana original. O que Marx propõe é uma distinção entre duas fases do comunismo: uma fase inicial, ainda marcada por traços da velha sociedade (como o princípio distributivo do “direito igual” proporcional ao trabalho), e uma fase superior, na qual o princípio da igualdade formal é superado pela satisfação das necessidades reais2. Ambas as fases pertencem ao processo de superação do modo de produção capitalista e à constituição da nova sociabilidade comunista.
Portanto, o que se costuma chamar de “socialismo” em Marx é, na verdade, a fase inferior do comunismo — uma etapa ainda condicionada por limitações herdadas da sociedade burguesa. Não se trata de um sistema autônomo ou permanente, mas de uma fase necessariamente transitória, que só se completa com a extinção da forma-valor, do Estado e da divisão do trabalho tal como conhecida.
O socialismo não é a gestão estatal do capital
Um dos alvos mais duros da crítica de Marx é a concepção lassalleana de Estado. Para Lassalle e seus seguidores, o Estado poderia ser um instrumento neutro de justiça distributiva. Marx, no entanto, alerta: o Estado não é um árbitro acima das classes, mas uma forma política que corresponde a determinadas relações de produção. Na sociedade capitalista, o Estado moderno é uma forma de reprodução da dominação burguesa. Esperar que ele seja o agente da emancipação é uma ilusão fatal.
Nesse sentido, a Crítica do Programa de Gotha antecipa muitos dos debates que só viriam a florescer no século XX, especialmente entre marxistas críticos ao estatismo soviético. A denúncia do fetichismo estatal, a defesa da autogestão dos produtores associados, a rejeição da centralização burocrática como caminho ao socialismo — tudo isso está, em embrião, nesse pequeno texto de 1875.
Esse aspecto da Crítica do Programa de Gotha é particularmente incômodo para projetos de esquerda que ainda depositam esperanças na tomada do aparelho estatal como via de transformação. Marx não apenas rejeita a neutralidade do Estado; ele denuncia sua forma estrutural como separada e oposta à autodeterminação popular. O Estado, na sociedade capitalista, existe para garantir a reprodução das condições de exploração, ainda que sob o disfarce do “interesse geral”. Sua burocracia, suas leis e seus mecanismos de coerção não são instrumentos vazios, mas formas sociais específicas que expressam a cisão entre trabalho e controle, entre produção e decisão.
Marx antecipa, nesse pequeno escrito, um dos impasses históricos da modernidade política: a tendência de movimentos emancipatórios se institucionalizarem dentro das formas estatais que deveriam superar. A crítica ao Estado, em Marx, não é funcionalista — não se limita a apontar que o Estado é “controlado” pela burguesia. Vai mais fundo, afirmando que o Estado é, por sua própria forma, a negação da autogestão e da associação livre entre os indivíduos. O problema, portanto, não está apenas em quem ocupa o Estado, mas no fato de que ele separa estruturalmente os produtores do exercício coletivo do poder.
Essa crítica radical ao estatismo torna-se ainda mais relevante à luz das experiências socialistas do século XX. O que se viu, em muitos casos, foi a substituição da burguesia por uma nova elite político-burocrática, mantendo-se intacta a separação entre o povo e o poder. Em nome do socialismo, reergueram-se Estados autoritários, partidos únicos, planificações verticais e repressão da dissidência. Tudo isso em nome de um projeto que, para Marx, só poderia ser viável mediante o fim do Estado enquanto tal. O assim chamado “comunismo de Estado” representa a negação prática daquilo que a Crítica do Programa de Gotha mais afirma: a necessidade da autogestão generalizada, da supressão da divisão entre dirigentes e executantes, da dissolução das formas sociais herdadas.
Ler a Crítica hoje, portanto, é enfrentar um desafio teórico e político de primeira ordem. Em tempos de reconstrução da crítica anticapitalista, a tentação de resgatar o Estado como ferramenta de justiça reaparece em novas roupagens: seja como “Estado social”, “neodesenvolvimentismo” ou “governança progressista”. Mas Marx adverte: sem a transformação radical das formas sociais que sustentam o Estado — o trabalho alienado, a propriedade privada dos meios de produção, a divisão técnica e política do trabalho —, não há emancipação. Há apenas gestão da barbárie.
Por que (ainda) o ignoramos?
A pergunta que se impõe é: por que esse texto, com tamanha densidade teórica e política, é tão pouco lido? Uma possível resposta é desconfortante. A Crítica do Programa de Gotha não oferece ilusões. Ela não promete atalhos institucionais, não confia no Estado, não edulcora o trabalho. Em tempos de políticas de “esquerda” que apenas gerem a miséria capitalista com verniz humanista, o texto de Marx soa como uma provocação.
Além disso, a Crítica exige uma leitura mais rigorosa da teoria do valor, do trabalho e do Estado — temas que frequentemente são substituídos por abordagens moralistas ou culturalistas no marxismo contemporâneo. Não há como lê-la sem confrontar a radicalidade do comunismo como ruptura total, não apenas com o mercado, mas com a forma-Estado, a forma-trabalho e a forma-direito. Talvez por isso a Crítica do Programa de Gotha permaneça, ainda hoje, como uma espécie de “documento maldito” dentro do corpus marxista. Ao contrário de textos mais populares, como o Manifesto Comunista ou o prefácio de Para a crítica da economia política, esse escrito não se presta a interpretações conciliatórias ou usos institucionais. Ele tensiona o leitor e o movimento operário a confrontar suas próprias ilusões: sobre o Estado, sobre a legalidade burguesa, sobre o trabalho enquanto virtude moral. É um texto que desarma as fantasias do reformismo.
A dificuldade de sua recepção está também ligada ao fato de que ele exige uma ruptura não apenas política, mas ontológica. Marx não propõe apenas novas políticas ou novas instituições, mas uma nova forma de vida: um mundo sem trabalho alienado, sem valor, sem Estado, sem capital. Essa radicalidade, ainda hoje, assusta — assusta inclusive setores que se dizem marxistas, mas que se limitam a gestões progressistas do existente. É mais confortável falar de redistribuição de renda ou de ampliação de direitos do que encarar o que Marx de fato propôs: a abolição das formas sociais fundamentais do capitalismo.
Além disso, o texto escapa às categorias usuais da política moderna. Ele não cabe nem na moldura da social-democracia nem na do marxismo-leninismo clássico. Sua crítica ao Estado o torna indigesto para os que creem na via institucional; sua recusa à planificação autoritária o distancia das experiências do “socialismo real”. O que sobra é uma crítica afiada e uma aposta estratégica na auto-organização dos trabalhadores — ideia que foi sufocada tanto pelas armas do capital quanto pelos decretos do partido-Estado.
Por tudo isso, reler a Crítica do Programa de Gotha é mais do que um exercício filológico. É um ato de reencontro com a dimensão mais radical do comunismo marxiano: aquela que não busca melhorar o mundo do capital, mas superá-lo. No tempo da precarização estrutural, da financeirização da vida e da automação gerida por algoritmos, Marx nos lembra que nenhuma técnica ou Estado pode substituir a ação consciente e organizada dos próprios trabalhadores. A emancipação será obra deles — ou não será.
Um manifesto para além do manifesto
Ao chamar a Crítica do Programa de Gotha de “segundo Manifesto Comunista”, Chattopadhyay não sugere uma repetição, mas um aprofundamento. O Manifesto de 1848 foi um grito de guerra, escrito no calor da revolução. Já a Crítica, quase três décadas depois, é uma síntese reflexiva e amadurecida da experiência do movimento operário e das armadilhas da institucionalização precoce.
Se o Manifesto proclamou que “os proletários nada têm a perder a não ser suas correntes”, a Crítica mostrou onde essas correntes se escondem: no trabalho alienado, no Estado burocrático, na ideologia da igualdade formal. É por isso que ela deve ser lida, estudada, debatida e trazida de volta ao centro das formulações socialistas do século XXI.
No tempo da automação e da inteligência artificial, em que a promessa de libertação do trabalho esconde a intensificação da vigilância e da exploração, o gesto de Marx volta a nos interpelar: não basta redistribuir os frutos do trabalho — é preciso transformar o próprio trabalho, abolir sua forma alienada e libertar o tempo humano do relógio da produção de valor. As engrenagens do capital se adaptam com rapidez: algoritmos substituem chefes, plataformas fragmentam vínculos, e a ilusão de autonomia esconde o controle total do tempo, do corpo e da subjetividade.
Nesse cenário, a Crítica do Programa de Gotha ressurge como farol conceitual. Não se trata de nostalgia, mas de necessidade: ela nos recorda que emancipação não é ampliar o consumo, mas destruir os mecanismos sociais que nos obrigam a viver para produzir. Uma sociedade comunista, como esboçada por Marx, é aquela onde o fazer deixa de ser instrumento da sobrevivência e passa a ser expressão da vida plena — onde o tempo livre não é apenas tempo ocioso, mas tempo para si, para os outros, para a criação.
A inteligência artificial, longe de ser inimiga em si, poderia ser aliada de uma humanidade liberta da compulsão produtiva. Mas isso só será possível se rompida a forma social que converte toda inovação em intensificação da exploração. O que está em jogo, portanto, não é a tecnologia em si, mas a estrutura social que a comanda. E essa estrutura — fundada sobre a extração de mais-valor, a separação entre produtores e meios de produção, a concorrência e a propriedade privada — é precisamente aquilo que a Crítica nos ensina a identificar e combater.
Ao esvaziar o trabalho de sentido, o capitalismo digital nos dá, paradoxalmente, o impulso para pensar sua superação. Se as máquinas já realizam parte do trabalho necessário, por que seguimos submetidos à lógica da escassez e do sacrifício? Por que não reorganizar a vida social a partir das necessidades humanas e das potências coletivas? É essa a pergunta subjacente à Crítica do Programa de Gotha, que retorna com força numa era em que o trabalho, ao mesmo tempo, perde centralidade econômica e adquire centralidade existencial.
Não haverá revolução sem essa ruptura. E não haverá ruptura sem que ouçamos, mais uma vez — e com a radicalidade que ele exige —, o segundo manifesto. Um manifesto silencioso, sem slogans, mas que pulsa em cada linha da crítica marxiana: libertar o trabalho do capital, libertar o tempo da mercadoria, libertar a vida da abstração da lei do valor. Ler a Crítica do Programa de Gotha hoje é abrir, mais uma vez, a possibilidade do comunismo — não como projeto de governo, mas como forma de vida por vir.
Notas
- CHATTOPADHYAY, Paresh. A Manifesto of Emancipation: Marx’s’ Marginal Notes’. Economic and Political Weekly, p. 1134-1140, 2001. ↩︎
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Gabriel Teles é doutor em Sociologia pela USP e professor e pós-doutorando pela UnB. Contato: teles.gabriel@gmail.com
Crítica do Programa de Gotha, de Karl Marx
Em
1875, Marx encaminhou à cidade de Gotha um conjunto de observações
críticas ao programa do futuro Partido Social-Democrata da Alemanha,
resultado da unificação dos dois partidos operários alemães: a
Associação Geral dos Trabalhadores Alemães, dirigida por Ferdinand
Lassalle, e o Partido Social-Democrata dos Trabalhadores, dirigido por
Wilhelm Liebknecht, Wilhelm Bracke e August Bebel, socialistas próximos
de Marx. O projeto de programa proposto no congresso de união
privilegiava as teses de Lassalle, o que suscitou críticas virulentas de
Marx em forma de carta direcionada aos dirigentes. Sua oposição
devia-se não à fusão dos partidos — quanto a isso era da opinião de que
“cada passo do movimento real é mais importante do que uma dezena de
programas” —, mas ao estatismo exacerbado que ganhara espaço nas
diretrizes do novo partido.

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