Espuma dos dias — O genocídio de Gaza: não um fracasso do Ocidente, mas antes o seu sucesso. Por Davide Malacaria
Seleção e tradução de Francisco Tavares
4 min de leitura
O genocídio de Gaza: não um fracasso do Ocidente, mas antes o seu sucesso
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em 1 de Setembro de 2025 (original aqui)
“As políticas e ações de Israel em Gaza cumprem a definição legal de genocídio contida no artigo II da Convenção das Nações Unidas sobre a prevenção e punição do crime de genocídio”. Assim o diz a Associação Internacional de estudiosos do Genocídio (IAGS), a mais prestigiada a associação internacional de estudos do genocídio.
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Não que possa haver qualquer dúvida – para além dos apoiantes do próprio genocídio, em Israel e noutros lugares, ou das teses de muitos que, incapazes de apoiar esta posição impossível, se esforçam por diminuir as responsabilidades israelitas afirmando que a resposta ao ocorrido em 7 de outubro [de 2023] é desproporcionada com os crimes de guerra anexos, mas não é um genocídio – continua a ser importante reiterar que há genocídio em Gaza.
Nada muda, seja no imediato ou talvez no curto (e talvez nem mesmo no longo prazo), e é por isso que mesmo tantos críticos genuínos de Israel tendem a evitar tal questão, como se isso não tivesse importância.
Pelo contrário, sim, é importante. Porque se trata da impunidade que Israel desfrutou nas últimas décadas, com a licença para matar, oprimir e roubar terras e bens palestinianos, impunidade cada vez mais alargada ao longo dos anos. Uma impunidade de amplo espectro, com exceções residuais, que agora lhe permite fazer o que está a fazer.
Esta impunidade deriva do genocídio sofrido, da construção de uma responsabilidade colectiva por este genocídio, que das nações malditas da Segunda Guerra Mundial tem gradualmente envolvido de várias maneiras mesmo aqueles que não eram malditos e os descendentes dos autores do crime horrível.
E este é o dano que mais teme a inteligêncai e a política israelitas, que o genocídio actual, se for reconhecido pela comunidade internacional, lhe tirará o escudo do genocídio que lhe deu tanta impunidade, isto é, tanto poder. Isso explica a reação irada e as críticas ferozes, não apenas em Israel, contra aqueles que usam o termo genocídio.
Escusado será detalhar os crimes enumerados no documento do IAGS, que no seu conjunto constituem o quadro que identifica o genocídio, sendo mais útil para informar que reafirma a urgência de a comunidade internacional agir, “porque a sociedade civil internacional tem a responsabilidade de prevenir o genocídio, incentivando e ajudando os Estados a cumprir as suas obrigações nos termos da Convenção sobre Genocídio para prevenir, suprimir e punir o genocídio”.
A solicitação encontra o contexto que existe, mas condena a actual liderança Ocidental, com muito poucas excepções, como co-responsável pelo genocídio, quer através de apoio imediato, aberto ou encoberto, quer na prevenção da oposição de outros países, especialmente os Brics, porque estão cientes de que o apoio Ocidental subiria ao nível de dar origem a uma confrontação global.
Na página inicial do sítio web do IAGS, uma citação bastante interessante de Philip Gourevitch, que investigámos. Revendo um livro de Gourevitch dedicado ao genocídio ruandês, Imre Szeman resume uma conclusão que, a partir daí, reconstrói o quadro em que os genocídios são consumados.
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Rejeitando o argumento de que o genocídio ruandês era possível porque eram povos atrasados e que a racionalidade dominante no Ocidente torna impossível que este seja protagonista de tal deriva, Szeman observa que “para Gourevitch, a chave para entender o genocídio ruandês é tomar consciência de que violência em massa… deve ser organizada: não acontece sem propósito. As multidões e as agressões em massa devem também ter um plano, e uma destruição grande e duradoura exige uma grande ambição. Por outras palavras, não é um evento que possa ser descrito por ‘teorias que vêem em ação uma loucura coletiva, uma mania de massa, um ódio febril que resultou num crime passional em massa’”.
“Matar com catanas [como aconteceu no Ruanda] é um trabalho árduo; observando um homem a abater uma vaca com uma catana, Gourevitch comenta que “foram necessários muitos golpes – dois, três, quatro, cinco golpes duros – para cortar a pata da vaca. Quantos são necessários para desmembrar uma pessoa?’. Matar oitocentas mil pessoas com catanas em cem dias requer um plano de acção claro e uma ideologia firmemente estabelecida para orientar tal acção, a fim de continuar o árduo trabalho de matar uma vez iniciado”.
“Por outras palavras, o genocídio ruandês requer uma análise política, para além daquelas que incidem sobre os factores psicológicos (ou psicanalíticos) ou sociológicos que transformam as massas em assassinos cruéis. ‘O genocídio, afinal, é um exercício de construção de comunidades’, escreve Gourevitch, e só observando-o como tal é possível chegar a uma compreensão das suas causas”. Da mesma forma, explicar o genocídio de Gaza apenas como um produto da loucura messiânica é errado.
Além disso, é também um trabalho árduo em Gaza, composto por ataques destinados a causar vítimas em massa, deslocamentos em massa e, em seguida, “tortura, detenções arbitrárias e violência sexual e contra a reprodução; ataques deliberados a médicos, trabalhadores humanitários e jornalistas” aos quais se acrescenta “a privação de alimentos, água, medicamentos e electricidade essenciais para a sobrevivência”, como detalha o documento do IAGS. Só para mencionar alguns dos horrores de Gaza.
Interessante também a denúncia de Gourevitch sobre o encobrimento do genocídio ruandês, que coincide com o atual genocídio: “os relatórios que previam os acontecimentos futuros, apresentados pelos comandantes da UNAMIR (missão de assistência das Nações Unidas no Ruanda) e pelas agências humanitárias internacionais, foram minimizados ou ignorados; relatórios semelhantes apresentados pelas agências de inteligência foram sumariamente encobertos pelos governos aos quais foram enviados”.
A conclusão é fulminante, e também tão atual: “Embora o genocídio ruandês tenha sido descrito por muitos como um fracasso político, Gourevitch é rápido em apontar que é de facto um exemplo brilhante de uma iniciativa política internacional bem-sucedida: os Estados Unidos e as Nações Unidas estavam determinados a não fazer nada e não fizeram nada”. No caso em apreço, a ONU não é cúmplice, mas impotente perante a iniciativa bem sucedida dos EUA e das suas colónias europeias.
Regressaremos a este assunto.
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O autor: Davide Malacaria, jornalista italiano e blogger, escreveu no católico “30giorni” e dirige o sítio Piccole Note de que é fundador. “Trabalhava numa revista, mas já não trabalho. Mas a vontade de olhar para os jornais continuou a ser a de captar lampejos de inteligência e de conforto sobre os assuntos do mundo e da Igreja. E de as comunicar aos outros. Daí a ideia deste pequeno sítio. Uma coisa pobre, sem pretensões, que espero que seja de alguma utilidade para aqueles que partilharem estas páginas comigo. Com o passar do tempo, Piccole note enriqueceu-se com colaborações queridas. Não como resultado de uma procura laboriosa, mas através de uma feliz acumulação espontânea. Uma riqueza para o sítio, mas muito mais para os nossos pobres corações.”






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