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By António Gomes Marques on 12 de Setembro de 2025
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Cancelamento, Inquisição e fatwa
por Boaventura de Sousa Santos
Precisões existenciais e conceptuais
Sou
um cientista social e, como tal, sinto-me obrigado a tratar dos temas
que abordo com objectividade, ainda que não com neutralidade. Sou contra
o controle das ideias e dos comportamentos por via dos dispositivos que
analiso neste texto, e tentarei explicar porquê. Acontece que, neste
caso concreto, há uma razão especial para a minha falta de neutralidade.
É que há três anos sou vítima de um cancelamento decorrente de uma
infame calúnia assente numa sórdida cadeia de denúncias falsas de que
não tenho podido defender-me por não encontrar um fórum onde possa
demonstrar a falsidade desta calúnia. O dano na minha reputação e na
minha saúde é enorme. Não posso, pois, ser neutro ao analisar este tema.
Mesmo assim procurarei fazê-lo com a objectividade possível.
Entendo
por cancelamento a proibição ou silenciamento formal ou informal de um
pensamento ou de um pensador por razões da sua desconformidade com a
ortodoxia política ou cultural dominantes, razões que são, em geral,
ocultadas e substituídas por outras de natureza não política e não
cultural. Este tipo de controle social do pensamento e de pensadores tem
uma história muito ampla, foi declarado eliminado ou restringido pela
emergência da democracia liberal e pelo seu princípio da liberdade de
expressão, mas voltou a ter uma renovada intensidade em tempos recentes
com a chamada “cultura do cancelamento”. Implica exclusão sumária do que
é considerado controverso, heterodoxo ou simplesmente perigoso. São bem
conhecidos os cancelamentos de Sócrates, Giordano Bruno, Baruch
Espinosa, Damião de Góis, Nikolai Buhkarin, Rosa Luxemburgo,
intelectuais opositores das ditaduras civis e militares de todos os
tipos, no período do MacCartismo nos EUA e, mais recentemente, na
chamada cultura do wokeismo e nalguma reacção contra ela. Nas sociedades
democráticas, cuja característica política essencial é o facto de as
ideias controversas ou heterodoxas não serem perigosas desde que não
envolvam insultos, calúnias ou incitamentos à insurreição
antidemocrática, o cancelamento tem de operar através de dispositivos
ideológicos considerados não políticos. Os mais comuns no período
recente têm a ver com diversidade etno-cultural, com a sexualidade e com
a corrupção.
Cancelar
está nos antípodas de responsabilizar. Responsabilizar implica
argumentação, contraditório, proporcionalidade e respeito pela lei,
possibilidade de recurso e de reparação. Cancelar, pelo contrário,
implica condenar sem contraditório credível, silenciar, boicotar,
torturar, exilar, banir, matar civil ou mesmo fisicamente, com
desrespeito pela lei ou total manipulação da lei. Em face disto, a
resistência ou oposição no processo de responsabilização é
incomensuravelmente mais fácil que no processo de cancelamento.
O cancelamento é o produto de um certo Zeitgeist,
amplo ambiente cultural, social, político e jurídico que deixa marcas
profundas e duradouras na sociedade, mesmo depois de deixar de existir
formalmente. O cancelamento nunca é legítimo. Ao contrário, a
responsabilização é tanto mais urgente quanto são prevalentes o racismo,
o sexismo, a intolerância, o ódio, a difusão de ideias e notícias
falsas e as práticas de supressão dos direitos democráticos (como o
direito de votar e de escolher livremente em quem votar).
O cancelamento hoje
O
cancelamento está hoje associado à prevalência das redes sociais como
uma forma de cultura digital popular que visa envergonhar publicamente
uma figura pública influente mediante denúncias referentes à violação
não provada de normas de aceitabilidade, de moralidade ou de legalidade,
cujo objectivo é silenciar, ou eliminar a influência da figura pública
visada. A prevalência das redes sociais é tal que a diferença entre vida
real e vida virtual desaparece, sobretudo entre a juventude. Uma nova
forma de sociabilidade emerge centrada num individualismo narcisista
cujo espelho é a rede (ou redes) em que o indivíduo se integra. Trata-se
da fabricação ultrarrápida de prismas de informação e de avaliação
assentes numa confiança participativa cujas raízes não são mais
profundas que a superficialidade das relações virtuais.
A cultura do cancelamento tem quatro características específicas. A
primeira característica é a hiperbolização da denúncia de modo a
transformá-la em escândalo público, um escândalo tanto maior quanto a
dimensão do conhecimento e influência públicos do visado, seja ele
intelectual, líder político, “celebridade” ou “influencer”. A denúncia
em si não significa escândalo. Pode, aliás, ser recebida com indiferença
ou apenas ressentimento. Para se transformar em escândalo tem de ser
processada pelos amplificadores das redes sociais e dos média que podem
ter interesses próprios na amplificação. No caso actual, os
amplificadores pertencem dominantemente às forças políticas de direita e
de extrema-direita, e ainda a alguma forças de esquerda e de
extrema-esquerda cuja única aspiração é serem reconhecidas pela direita.
A
segunda característica reside em exigir participação acrítica e em
converter qualquer crítica em razão suficiente para cancelar o crítico. O
temor que isto gera é o principal motor da retroalimentação da cultura
do cancelamento. As comportas do ódio dos utilizadores e dos
amplificadores das redes abrem-se e inundam instantaneamente o espaço
digital.
A
terceira característica consiste em que a denúncia de comportamento ou
ideia inaceitável pode ser levada a cabo por qualquer indivíduo (real ou
virtual) que, ao fazê-lo, se transforma em acusador, juiz e executor da
sentença condenatória. Enquanto produto da cultura do cancelamento, o
wokeismo assenta na ideia de que a realidade social é uma construção
dominada pelo poder, pela opressão e pela identidade grupal. Quem se
insurge contra a realidade assim construída é sempre considerado o mais
vulnerável, o que corre mais riscos e, por isso, o que é verdadeiro.
Designo, como síndroma de David contra Golias, a inveja, não
necessariamente consciente, que acciona a diferença de escala de
humanidade pública entre quem denuncia e quem é denunciado e se propõe
invertê-la como prova de que a hierarquia é sempre injusta, e que
resignação não é destino.
A
quarta característica é o facto de o cancelamento, tal como o incêndio
florestal, se espalhar descontroladamente. Mas, ao contrário do
incêndio, ninguém se mobiliza para o apagar e apenas alguns esperam que o
terreno, depois de calcinado, eventualmente volte, depois de muito
tempo, a deixar crescer a frágil erva da verdade que, aliás, poucos
relacionarão com as causas do incêndio anterior. O silenciamento abrupto
inicial do visado e o esquecimento posterior são os dois marcos da
cultura do cancelamento.
Enquanto
vigora descontroladamente, o cancelamento funde o mundo interior de
cada participante numa comunidade virtual que opera com lógica de
multidão e actua como câmara de eco. Uma vez iniciada a participação,
torna-se indesejável tudo o que a ponha em causa. A recusa da
diversidade e da complexidade são essenciais ao crescimento da
comunidade canceladora. Divergência implica expulsão e cancelamento. O
silêncio perante a denúncia ou a perda de activismo em difundi-la podem
sem ser considerados suspeitos, mas não põem em causa a dinâmica do
cancelamento.
O cancelamento na história: a Inquisição e as fatwas
O
cancelamento é uma punição por ideias ou condutas consideradas
inaceitáveis, imorais ou ilegais. Todas as sociedades tiveram meios,
procedimentos e instituições encarregadas de averiguar a natureza das
ideias e das condutas e de impor a respectiva punição. As diferenças
quanto aos meios, procedimentos e instituições são o que distingue as
sociedades. Neste texto restrinjo-me a dois tipos de dispositivos
censórios e punitivos que, embora criados no que designamos como Idade
Média, continuaram a ter uma influência importante durante toda a época
moderna e até aos nossos dias. Trata-se de dispositivos com fortes
ligações ao Estado moderno, após a criação deste, mas que têm em relação
a ele alguma autonomia formal. Refiro-me aos tribunais da Inquisição na
Igreja Católica e à emissão de fatwas na religião islâmica,
embora a situação neste último caso varie muito de país para país. Não
pretendo entrar no longo debate histórico sobre a origem, a função, a
organização, a relação com o Estado ou autoridade civil de qualquer
destes dispositivos. Pretendo apenas analisar as semelhanças e as
diferenças entre os métodos que usam e as sanções que aplicam.
A Inquisição
Apesar
de existente desde o século XII, é sobretudo a partir do século XVI que
a Inquisição assume uma função importante de controle social, em
particular no respeitante à sexualidade e à heresia (apostasia,
blasfémia, feitiçaria), dois temas que, sob formas diferentes, aparecem
frequentemente nos processos de cancelamento. Havia tribunais da
autoridade civil com funções semelhantes, mas os tribunais do Santo
Ofício da Inquisição tinham uma ubiquidade, penetração territorial e
capilaridade social muito superior (“familiares”, clérigos, juízes
itinerantes). A relação com o Estado era estreita. Os condenados à morte
por heresia eram entregues aos tribunais seculares para estes
declararem e executarem a sentença final. Era frequente o Rei assistir
aos autos-de-fé, sobretudo quando a pena máxima (morte na
fogueira ou pelo garrote) era imposta pelo tribunal do Santo Ofício em
colaboração com o tribunal civil. A mesma colaboração estreita existia
no caso de confisco de bens e propriedades.
O
Tribunal da Inquisição existiu na Espanha entre 1478 e 1834 e em
Portugal entre 1536 e 1821. As relações entre as duas monarquias ditaram
a sorte de judeus e mouros, os quais durante séculos tinham praticado
livremente a sua religião. Em Portugal, é conhecida a perseguição de que
passaram a ser vítimas, a partir de 1497, os conversos (cristãos novos
ou marranos) acusados de continuarem a praticar secretamente a sua
religião. A perseguição estendeu-se às colónias destes países. São
exemplos a Inquisição de Goa e a Inquisição do Brasil, no caso
português, e a Inquisição do Peru e a Inquisição do México, no caso de
Espanha. As vítimas incluíam também os acusados de praticarem as
religiões africanas (feitiçaria) e, na Índia, o hinduísmo.
O
tribunal do Santo Ofício começava pelo “édito de graça” (mais tarde,
“édito de fé”) em que durante trinta dias aceitava denúncias anónimas de
todo o tipo, incluindo, rumores, boatos, suspeitas. A confiança que os
inquisidores depositavam nos denunciantes era um incentivo à denúncia
oportunista (motivada por vinganças e rivalidades ou pelos benefícios
que podiam decorrer da condenação do denunciado). Os denunciantes com
uma relação mais próxima com o denunciado eram particularmente
valorizados (parceiros em negócios, trabalhadores no mesmo local,
habitantes da mesma casa, parentes). O prestígio decorrente de
participar no trabalho do Santo Ofício e a protecção que daí adviria
levou a que gente mais tarde famosa fosse colaboradora assídua. Foi o
que sucedeu com o pintor Doménikos Theotokópoulos, mais conhecido por El
Greco, que além de pintar figuras da Inquisição de Toledo, frequentou o
tribunal como intérprete e como testemunha. Os denunciantes não eram
sujeitos a qualquer processo de contraditório. O crime de heresia era
considerado tão grave que até criminosos, excomungados e dementes podiam
denunciar ou testemunhar. As denúncias mais comuns era o criptojudaísmo
ou cripto-islamismo, superstição, feitiçaria, blasfémia,
homossexualidade, bigamia, luteranismo, maçonaria, heresia (crítica dos
dogmas). Os suspeitos eram convocados perante os inquisidores e o terror
era tal que muitos confessavam apenas por medo que os amigos ou
vizinhos os viessem a acusar mais tarde. Os acusados eram presos e
considerados culpados a menos que provassem a sua inocência. Tal prova
era difícil até porque os acusados não conheciam os detalhes da acusação
nem quem os acusara ou a identidade das testemunhas. Por isso, uma
possibilidade comum de absolvição residia em o denunciado ter denunciado
outras pessoas. A confissão era obtida mediante ameaças de morte,
prisão, privação de alimentos, e sobretudo a tortura ou a ameaça de
tortura, mostrando os instrumentos de tortura que seriam utilizados. Ao
longo dos séculos o papado produziu vários manuais sobre a autorização e
uso da tortura. A tortura podia ser aplicada quer quando o crime não
estava provado, quer quando a confissão era considerada incompleta
(basicamente por não ter denunciado outras pessoas, o chamado diminuto).
A presença do advogado nomeado pelo Santo Ofício era um simulacro sem
qualquer propósito de defender o acusado. Aliás, o dito advogado não
tinha acesso ao processo e transformava-se frequentemente em mais um
denunciante.
Os
julgamentos eram secretos e não havia recurso. As punições tinham três
níveis: penitência, reconciliação e morte. Os penitenciados e
reconciliados eram obrigados a usar durante meses o sambenito,
uma túnica que os estigmatizava como condenados, símbolo de infâmia. As
penas mais comuns eram o exílio, a flagelação, o trabalho forçado (por
exemplo, nos navios), o confisco de propriedade, a prisão e a pena de
morte pela fogueira ou pelo garrote. O exílio tinha a função de excluir
da sociedade todos os indivíduos indesejáveis. O confisco da propriedade
tinha não só a função de financiar a Igreja (os inquisidores) e o
Estado (em menor medida), como também de punir a família do condenado
que ficava à mercê da caridade pública.
Um caso exemplar: a condenação de Damião de Góis[1]
Damião
de Góis nasceu em 1502 em Alenquer, Portugal, onde também morreu em
1574. Era um cristão-velho (sem ascendência judaica ou muçulmana), um
humanista, historiador (autor da Crónica de D. Manuel), diplomata com
várias missões no que são hoje a Holanda, a Alemanha, a Áustria e a
Itália, director da Torre Tombo, um intelectual conhecido em toda a
Europa, uma das figuras mais relevantes do Renascimento português. Como o
caracteriza Raul Rego, Damião de Góis era um homem “cheio de carácter,
tendo o culto da verdade e da beleza, da amizade também e gostando de
viver e comer bem, rodeado de coisas belas”. Foi hóspede de Erasmo
durante quatro meses em Friburgo e encontrou-se com Lutero e Melanchton,
com quem trocou correspondência. A primeira denúncia de heresia foi
feita pelo jesuíta Simão Rodrigues em 1545, mas só quase trinta anos
depois (em 1571) é que as denúncias o levaram ao tribunal do Santo
Ofício, tendo sido preso durante dezasseis meses e condenado em 16 de
Outubro de 1572 a prisão domiciliária perpétua. Morreu dois anos depois e
suspeita-se que terá sido assassinado. Os testemunhos foram
minuciosamente registados, o que nos permite ver o carácter vago das
denúncias, as diferentes versões, as dúvidas sobre as fontes de
informação, os hiatos entre aquilo de que a testemunha se lembra e do
que se não lembra. Entre as muitas denúncias de heresia menciono duas. A
primeira é de ter convivido com hereges satânicos e de, em conversa com
jovens que os acompanhavam, ter mostrado simpatia pelas suas ideias. O
denunciante reconhece que “por haver muito tempo que passou (oito anos,
não, talvez nove) e também por não pensar mais nisso” não se lembra em
pormenor das coisas heréticas de Damião de Góis, apenas “via que (ele)
se deleitava muito e comprazia nelas”. Damião tenta confessar pecados da
juventude, mas que não significam heresia. É que “ele, Damião de Goes,
se achou na Universidade de Lovaina e outras partes, em banquetes de
letrados, assim teólogos como outros, que o convidaram a suas casas, e
ele à sua, nos quais banquetes, como se lá costuma, se convidam os
homens uns aos outros a beberem mais do que do necessário. E, por
companhia, bebem com o dizerem o mesmo provérbio de não fazer mal o que
entra pela boca. E por o dizerem não ficam por isso suspeitos na fé”.
Comenta Raul Rego, “Aí temos a cena da convivência social descrita por
um pobre encarcerado às almas miúdas e ressequidas dos inquisidores. É
um homem de mente larga a querer fazer entrar na cabeça pétrea de
teólogos para quem a fórmula, a letra, é tudo e o espírito quase nada, a
humana compreensão e generosidade. É querer obrigar um vesgo a olhar
direito.”
Uma
outra denúncia é a da Dona Briolanja, sobrinha de Damião de Góis. Há
muitos anos, numa sexta feira (não se lembra exactamente, “talvez tenha
sido sábado?”), “estando prenha”, não lhe apetecia comer pescado em dia
que era proibido comer carne e que, em face disso, o tio Damião de Góis
logo mandou vir um pedaço de lombo de porco da taberna (não se lembra
bem: seria lombo ou entrecosto de porco com linguiça?) e deu-lhe a comer
e também comeu. E quando a sobrinha se espantou, o processado respondeu
“sobrinha, o que entra pela boca não faz nojo” (ou talvez “o que vai
para dentro não faz nojo”).
Damião
de Góis, com setenta anos de idade, preso há vários meses, doente com
sarna, desespera com tantos detalhes, tantas versões e tantas minúcias
sobre coisas triviais passadas há muitos anos e desabafa perante os
inquisidores: “dizer na verdade que quando estou diante de Vossas Mercês
e me fazem perguntas, que não estou em mim perfeitamente como o estaria
se com eles praticasse e falasse em outros negócios fora desta
prisão…As coisas em Flandres e Itália andam mais largas que cá”.
De
nada valeu a defesa de Damião de Góis. Foi condenado, mas curiosamente o
auto-de-fé não foi público (sentença foi pronunciada na presença
exclusiva dos inquisidores), tal era o medo dos inquisidores que se
soubesse na Europa o atropelo que estavam a cometer contra um homem
internacionalmente reconhecido e respeitado. Justifica-se assim o
acórdão de 16 de Outubro de 1572: “E que não fosse a público, vistos os
inconvenientes que se consideraram da qualidade da pessoa do réu, ser
muito conhecido nos Reinos estranhos, pervertidos de hereges, que disso
se podem gloriar. E o que convém à limpeza e reputação deste Reino nas
coisas da fé”. Em comentário final afirma Raul Rego “E quem passava pela
Inquisição era chamuscado para sempre. Todos fugiam dele e menos ainda
gostariam de o ter sob o mesmo tecto. Longe iam o esplendor, a
criadagem, as reverências, as recepções com boa comida e harmoniosos
cantares. Saído da Inquisição, Damião de Goes era um reconciliado [tipo
de condenação] e o seu contacto comprometedor para quantos o conheciam”.
As fatwas
Tal como os julgamentos do Santo Ofício, as fatwas
têm a função de controle social e de correcção no plano da ortodoxia.
Mas as semelhanças terminam aí, dado que no Islão não existe uma
autoridade centralizada semelhante ao papado na Igreja Católica. A
história da fatwa no Islão sugere que ela pode ter três
significados: uma informação autorizada sobre a religião islâmica; um
parecer ou consulta para um tribunal; uma interpretação da lei islâmica.
Fatwa é usada no Corão como significando “solicitando uma resposta definitiva” ou “dando uma resposta definitiva”. A fatwa
cobre hoje um vasto campo de teoria jurídica, teologia, filosofia,
ortodoxia, muito para além do que se designa como jurisprudência (fiqh). A fatwa
não é uma decisão judicial e abrange matérias muito para além do que
compete aos tribunais. Ao contrário da decisão judicial, a fatwa não é de aplicação obrigatória; o seu cumprimento é voluntário. Dada a falta de centralização do Islão, as fatwas podem ser emitidas por diferentes escolas e a sua autoridade depende da autoridade dos chefes religiosos que as emitem (os muftis). E estes, ao pronunciarem uma dada fatwa, devem justificá-la à luz de uma dada tradição ou doutrina. Os líderes religiosos (muftis) com mais alta qualificação são considerados intérpretes “absolutos” ou “independentes” da sharia, a lei islâmica. Ao longo da história do Islão, têm existido alguns muftis muito poderosos, inclusivamente como líderes políticos. Em tempos mais recentes, a fatwa
tem sido considerada como uma opinião jurídica emitida por um
especialista em direito islâmico. Como uma tentativa de harmonizar e
sistematizar as fatwas existem hoje três Conselhos de ideologia
islâmica, um no Paquistão, outro na Arábia Saudita e outro no Egipto,
mas o seu papel é meramente consultivo e de clarificação.
As fatwas são semelhantes às opiniões dos jurisconsultos romanos ou às responsa rabínicas dos
especialistas judaicos. Comum a todas é o facto de consistirem em
respostas a perguntas, mas o estilo retórico, as fórmulas convencionais e
a própria linguagem variam muito segundo a cultura islâmica local.
Existem grandes colecções de fatwas do tempo do Império Otomano e de certas escolas da Índia. As fatwas
não assentam em prova testemunhal ou exercício do contraditório, mas na
leitura das fontes textuais e da interpretação que a autoridade
religiosa lhes dá. Os muftis não examinam os factos, aceitam-nos tal como são formulados nas questões de interpretação que lhes são postas. As fatwas variam muito de importância não apenas segundo a autoridade do mufti, mas também segundo o seu conteúdo. As fatwas menores contribuem para a estabilidade social e para a organização de assuntos correntes, enquanto as fatwas
maiores constituem uma declaração importante perante, se interesse
público geral sobre questões sem precedente ou particularmente difíceis,
referentes a legitimação religiosa, disputas doutrinais, crítica
política, mobilização política. No período do colonialismo histórico
europeu foram emitidas muitas fatwas anticoloniais.
No Império Otomano uma fatwa de 1727 autorizou a impressão de livros não religiosos, a vacinação foi considerada legítima por uma fatwa de 1845. Uma fatwa de 1804 declarou a guerra no norte da Nigéria e fatwas
das primeiras décadas do século XIX na Índia declararam este país como
sendo um país de infiéis e incitaram os muçulmanos a resistir ou
emigrar. Fatwas contrárias foram posteriormente emitidas.
A mesma contradição entre fatwas em temas políticos controversos teve lugar também na Argélia durante o século XIX. Em 1904, o ulama de Fez emitiu uma fatwa exigindo a demissão de todos os funcionários europeus contratados pelo sultão. A fatwa do sultão otomano em 14 de Novembro de 1914 declarando a jihad marcou a entrada oficial do Império Otomano na Primeira guerra mundial. Em 1933, o ulama do Iraque emitiu uma fatwa exigindo o boicote de produtos sionistas. Durante o século XX, talvez a mais famosa (e infame) fatwa em tempos recentes é do Ayatollah Ruhollah Khomeini, em 1989, condenando à morte Salman Rushdie pela publicação do livro Versos Satânicos e pela blasfémia, apostasia e ataque ao Islão que o livro continha.
Segundo
o Oxford Centre for Islamic Studies, houve recentemente
desenvolvimentos significativos no que diz respeito ao carácter do mufti, ao meio através do qual as fatwas são comunicadas, aos tipos de perguntas feitas e às metodologias pelas quais os muftis chegam às suas respostas. De acordo com os princípios tradicionais da jurisprudência islâmica (usūl al-fiqh), um mufti deve adquirir um alto nível de conhecimento especializado antes de emitir fatwas; no entanto, muitos movimentos militantes e reformistas têm divulgado fatwas
emitidas por não especialistas, que têm sido amplamente divulgadas e
seguidas. Por exemplo, em 1998, Osama bin Laden, juntamente com quatro
outros associados que se autodenominavam Frente Islâmica Mundial, emitiu
uma fatwa apelando a uma “Jihad contra judeus e cruzados”. A fatwa
proclamava que era dever individual de todos os muçulmanos matar o
maior número possível de norte-americanos, incluindo civis. Além de
denunciar o conteúdo desta e de outras fatwas atribuídas a bin
Laden, muitos juristas muçulmanos salientaram a falta de qualificações
necessárias por parte de bin Laden para emitir fatwas ou declarar jihad. Em tempos recentes, as fatwas
de militantes extremistas (recomendando bombas-suicidas, assassinato
indiscriminado de transeuntes) são considerados exemplos do desrespeito
pela jurisprudência clássica na qual se devem fundamentar as fatwas. Em Julho de 2005, quase duzentos proeminentes ulamas reuniram-se
na Jordânia para emitir uma decisão que reconhecia a legitimidade de
oito escolas de direito islâmico, proibia declarar qualquer membro
dessas escolas como apóstata e declarava que apenas estudiosos formados
de acordo com os requisitos de uma escola de direito reconhecida
poderiam emitir fatwas. Um dos principais objetivos da declaração, conhecida como a “Mensagem de Amã”, era deslegitimar as fatwas promulgadas por líderes de movimentos islâmicos violentos (www.ammanmessage.com).
Calcula-se que um terço dos muçulmanos do mundo vive actualmente em países de maioria não muçulmana. A procura por fatwas sobre questões como participar em casamentos na igreja, responder à proibição francesa do hijab
em escolas públicas ou comprar casas através de hipotecas levou ao
controverso desenvolvimento do que, desde 1994, tem sido denominado fiqh al-aqallīyāt,
ou a jurisprudência das minorias (muçulmanas). Organizações como o
Conselho Fiqh da América do Norte, criado em 1986, e o Conselho Europeu
para a Fatwa e a Investigação (ECFR, http://www.e-cfr.org),
fundado em 1997, têm procurado fornecer decisões autorizadas que
abordem as preocupações das minorias muçulmanas, facilitem a sua adesão à
lei islâmica e salientem a compatibilidade do Islão com a vida em
diversos contextos modernos. Os membros internacionais do ECFR adoptaram
uma metodologia explícita de recorrer às quatro principais escolas de
direito, bem como a uma série de outros conceitos jurídicos, a fim de
produzir fatwas colectivas adequadas aos contextos europeus.
Por exemplo, uma decisão do ECFR emitida em 2001 permitiu que uma mulher
convertida ao Islão permanecesse casada com o seu marido não muçulmano;
os muftis justificaram esta posição em parte com base nas leis
e costumes europeus existentes que garantem às mulheres a liberdade
religiosa. Embora este tipo de decisão tenha sido bem recebido por
muitos, foi criticado por outros como criando um sistema divisionista de
excepções. Aliás, um dos desenvolvimentos mais importantes tem sido a
emergência das mulheres como muftis e a consequente solicitação de que a fatwa seja declarada por uma mufti
ou por uma especialista jurídica. O que se tem designado como “guerras
de fatwas” reflecte a intensidade das controvérsias políticas que se
tem agravado no mundo islâmico em tempos mais recentes. Este tipo de
polarização não é muito diferente da polarização social que subjaz ao
cancelamento onde o conceito de “guerra cultural” tem sido invocado ou
às “guerras do Vaticano” que, aliás, têm conhecido acidentes muito pouco
cristãos.
Cancelamentos, sentenças do Santo Ofício e fatwas
Os
processos judiciais da Inquisição têm sido comparados aos infames
julgamentos estalinistas entre 1936 e 1938, “os julgamentos de Moscovo”,
mas poderiam ser igualmente comparados aos Volksgerichtshof,
os tribunais Nazis da mesma época. Os processos de denúncia na
Inquisição têm sido também comparados aos prevalentes na Rússia nos
primeiros anos da dinastia dos Romanov, no início do século XVII. Há
também quem os considere como concretizações reais do Processo na ficção de Kafka.
O meu objectivo é mais limitado. É analisar o cancelamento produzido pela cancel culture
com dois instrumentos de controle do pensamento e da conduta que,
apesar de muito antigos, se mantiveram até aos nossos dias, sobrevivendo
a vários regimes políticos e às profundas transformações sociais e
culturais entretanto havidas. O Tribunal do Santo Ofício foi eliminado
no início do século XIX e vinha perdendo importância desde muito antes,
como referi, mas o controle da ortodoxia, agora praticamente limitado
aos membros do clero, continua por parte da Santa Sé através de um
departamento da Cúria Romana, o Dicastério para a Doutrina da Fé. Este
departamento é o sucessor directo do departamento que regulava a
Inquisição, a Suprema e Sacra Congregação do Santo Ofício. Mantém os
procedimentos inquisitoriais do Santo Ofício, assenta na interpretação
dos textos sagrados por parte de especialistas (tal como as fatwas),
e os clérigos atingidos têm poucos direitos de defesa. As condenações
traduzem-se em várias proibições do múnus clerical ou teológico,
ostracizações e estigmatizações.
O
que há de comum entre os três dispositivos de controle do pensamento e
da conduta pode resumir-se no seguinte. Todos estes dispositivos negam
os princípios da argumentação democrática, das garantias processuais e
dos direitos fundamentais das Constituições posteriores às revoluções
norte-americana e francesa. Nenhum deles assenta na análise dos factos,
mas na interpretação autoritária de normas de aceitabilidade, moralidade
ou legalidade. Todos aceitam denúncias anónimas a cujas fontes os
acusados não têm acesso. No caso das fatwas – por serem
respostas a perguntas concretas – a situação é distinta, embora a
identificação de quem pergunta possa manter-se secreta. De todo o modo, o
impacto da fatwa foge igualmente ao controle de quem pode ser
atingido por ela, tal como acontece nas sentenças do Santo Ofício e no
cancelamento. O facto de as denúncias poderem ser oportunistas ou falsas
não tem qualquer importância já que, uma vez formuladas, o denunciado é
pronunciado culpado e as possibilidades de provar a sua inocência são
muito limitadas ou inexistentes. Dado o prestígio que advém de
participar num movimento impulsionado pela autoridade central ou pelo
princípio da multidão, gente notória de outros tempos tal como a gente
notória de hoje (comentadores políticos, jornalistas e “influencers”
conhecidos) esmeram-se no trabalho de amplificação e confirmação das
denúncias. As recompensas nas redes sociais não se fazem esperar, o que
retroalimenta o narcisismo estrutural do sistema. Todos os três
dispositivos rejeitam o princípio do exercício do contraditório. As
vítimas das condenações ficam expostas a formas de vulnerabilidade
pública de que se não podem defender.
Entre o cancelamento e o Santo Ofício há mais afinidades do que entre qualquer deles e as fatwas. Devido à descentralização da religião islâmica, as fatwas
só excepcionalmente atingem a unanimidade típica quer do cancelamento,
quer da Inquisição. Embora o exercício do verdadeiro contraditório não
exista em nenhum deles, no Islão o facto de haver fatwas
contraditórias cria uma forma de contraditório que, sem ser democrático,
permite um direito de escolha que contradiz a unanimidade do princípio
da multidão que preside ao cancelamento ou ao Santo Ofício. No caso das fatwas,
só as condenações proferidas por líderes religiosos altamente
prestigiados atingem níveis de consenso e de unanimidade semelhantes aos
do cancelamento e da Inquisição. As mulheres, os intelectuais, os
artistas e os cineastas têm sido vítimas de fatwas maiores
quando estas assumem o estatuto de sentenças judiciais. Nestes casos, a
descentralização torna as punições mais caóticas e imprevisíveis e
incluem a flagelação, o exílio e a morte (por apedrejamento, por
exemplo)
Há
mais semelhanças entre o dispositivo do cancelamento e o dispositivo da
Inquisição. Ambos os dispositivos de controle social são accionados por
um poder altamente centralizado que permite a unanimidade das
condenações. Na Inquisição, a centralização era institucionalmente
garantida pela Santa Sé, enquanto no caso do cancelamento a
centralização é garantida pelo princípio da multidão digital e dos
consensos e unanimismos instantâneos que ele permite. O princípio da
multidão digital, longe de actuar como agente de democratização da
opinião, fecha o debate e blinda o consenso obtido em relação a qualquer
posição minimamente divergente. Quem diverge é de imediato considerado
suspeito e, dependendo da época, tanto pode ser ele próprio transformado
em alvo do Santo Ofício, como do cancelamento.
Por
esta razão, a denúncia produz uma síndroma de terror que se estende a
todo o círculo mais próximo do denunciado, seja a família ou o lugar de
trabalho. Em teoria, o máximo de solidariedade a que o denunciado
poderia aspirar seria o silêncio, mas, na realidade, o próprio silêncio
converte-se num amplificador tácito das denúncias: quem pertence ao
círculo mais próximo do denunciado tem obrigação de saber mais do que o
que os outros sabem. E todos sabem. O silêncio é cumplicidade. É por
isso que o lugar do trabalho ou a proximidade comunitária são os campos
privilegiados para as denúncias oportunistas, as que produzem os
dividendos da inveja – do capital social, por exemplo, do poder e do
prestígio institucionais anteriormente na posse do denunciado.
O
que se exige formalmente é a confissão, mas a confissão não é mais do
que a confirmação e, por isso, a denúncia é simultaneamente o ponto de
partida e o ponto de chegada. Na Inquisição, a tortura era o grande
agente de confirmação. Como disse Alexandre Herculano, qualquer pessoa
sujeita à tortura da Inquisição poderia confessar ter engolido a lua. No
cancelamento, a tortura é o próprio silenciamento imposto ao
denunciado. Tudo o que ele disser confirma tanto a denúncia como o que
ele não disser. Ele pode tentar fazer uma autocrítica honesta, mas essa
funciona sempre como a diminuto da Inquisição. Ou seja,
qualquer que seja a sua extensão, é sempre considerada incompleta
porque, as denúncias, como são vagas e anónimas, possuem uma
elasticidade e dispõem de uns amplificadores que as permite aumentar até
ao infinito.
O
denunciado-condenado tem de ser exposto a toda a sociedade porque o
objectivo não é corrigir o denunciado-condenado, mas instigar o terror
social de que o mesmo pode acontecer a outros. Daí a importância dos
sambenitos. Mas enquanto na Inquisição os sambenitos operavam pela
sobre-exposição, no cancelamento operam pela sobre-ocultação. As vestes
são agora as vestes da invisibilização que se estende ao desaparecimento
do espaço público, ao desaparecimento dos seus livros das bibliotecas e
das livrarias, da sua imagem como atracção nos meios de comunicação, à
eliminação do seu nome nas citações e bibliografias, ao olhar de
desprezo ou de ódio se por acaso ele aflora no espaço público, ao
sussurro sobre quem é o denunciado-condenado para o caso de o
transeunte-parceiro de ocasião o não ter identificado.
Tal
como na Inquisição, a pena do cancelamento começa a ser cumprida com a
denúncia. Há, no entanto, no cancelamento uma informalidade criada pelo
princípio da multidão digital que não existia na Inquisição. Nesta era
preciso medir minuciosamente a gravidade das denúncias para calibrar a
pena que podia ser mais leve ou mais pesada. As mais pesadas eram o
exílio, o confisco e a morte. No caso do cancelamento estas três penas
podem sobrepor-se sem contradição. O exílio pode ser a fuga para outro
lugar muito distante ou para o mesmo lugar onde sempre viveu. Neste
último caso, o lugar de sempre é o lugar de nunca porque, depois da
denúncia, se está nele de uma maneira totalmente diferente: não como
lugar de conforto e reparação de forças para novas saídas ou viagens,
mas antes como o lugar de refúgio, de esconderijo seguro. É a nova forma
de prisão domiciliária decretada pela multidão digital.
O
exílio significa confisco não pelo que se lhe rouba, mas pelo que se
lhe impede de ganhar. Se era carpinteiro, deixa de ter encomendas, se
era actor, deixa de ter contratos para representar ou para filmar, se
era escritor, deixa de poder publicar ou vender os seus livros. O exílio
combinado com o confisco conduz cumulativamente à pena mais grave: a
morte. A morte é considerada civil quando o corpo-espírito do
denunciado-condenado continuam vivos, mas a vida é secreta, não porque
esteja presa nalgum lugar, mas porque está esquecida em todos os
lugares. O esquecimento é a condenação à morte perpétua.
A
morte civil desliza para a morte física, às vezes devagar, outras vezes
depressa, mas, em qualquer caso, ninguém nota. Só depois de ocorrer
alguém se atreve a lembrar. Mas não há ressurreição porque essa foi
apropriada por um ser humano que cometeu o escândalo de se considerar
filho de Deus. Mais coragem teve a escrava Rosa Egipcíaca que nasceu na
Costa de Ajudá, hoje Benin, em 1719, e morreu nas masmorras (ou talvez a
trabalhar nas cozinhas) da Inquisição de Lisboa, em 1771, depois de
escrito o primeiro livro de uma mulher negra do Brasil, a Sagrada Teologia do Amor Divino das Almas Peregrinas. Essa ressurreição feita de esforço e sacrifício é a única digna de nome e, por isso, é tão rara.
Conclusão
Para mostrar a expansão da cultura do cancelamento, Bromwich escrevia em 2018 no New York Times que “quase qualquer pessoa digna de ser conhecida já foi cancelada por alguém” (https://www.nytimes.com/2018/06/28/style/is-it-canceled.html).
Isto deve-se ao facto de que, embora as normas que regem o cancelamento
sejam ambíguas e variem com o clima concreto das redes sociais num dado
momento, os seus efeitos são unívocos: transformar inclusão em
exclusão, voz influente em voz silenciada, presença procurada e
bem-vinda em presença evitada e ostracizada.
O
cancelamento é um instrumento de purga ideológica. Embora a direita e a
extrema-direita tenham tido mais êxito em usar a cultura do
cancelamento a seu favor, a esquerda e a extrema-esquerda também têm
recorrido a ela e, se o fazem com menos intensidade ou menos êxito, isso
não resulta de opções políticas, mas simplesmente de terem menos
representatividade no mundo das redes sociais.
A
cultura do cancelamento não é um movimento social, nem contribui para a
democratização do discurso. Os movimentos sociais foram historicamente
movimentos de inclusão, que diversificaram as vozes em vez de as
silenciar, e sempre que alteraram os discursos dominantes fizeram-no
através de duras lutas políticas e do investimento em muita
argumentação. Correram muitos riscos em vez de cavalgarem na impunidade.
Não procuraram substituir os titulares do poder, mas antes transformar o
poder. A voz que obtiveram foi obtida a pulso e contra os silenciadores
ao serviço do poder e da cultura dominantes. Nunca buscaram a
humilhação pública fosse de quem fosse, embora fossem muitas vezes
objecto dela. Sempre procuraram o debate público e, portanto, o
enfrentamento de ideias em vez da restrição do debate segundo critérios
vagos de correção política, aceitabilidade ou legalidade.
O
cancelamento implica epistemicídio, controle epistémico sobre a
diversidade epistémica da sociedade e do mundo. Cria linhas abissais que
privam os que são por elas atingidos dos direitos considerados
irrenunciáveis pelos seres humanos tratados como plenamente humanos.
Impede o reconhecimento da complexidade dos temas e o debate rigoroso
que ela suscita. Ao fazê-lo, fomenta uma cultura de mediocridade, de
dogmatismo, de mimetismo, e de unanimismos dispersos polarizados entre
si. A educação, a convivência democrática e a intersubjectividade são as
grandes vítimas do cancelamento. O cancelamento é o caldo de cultura
das novas formas de fascismo societal e político.
[1]A melhor análise deste processo é a de Raul Rego em O Processo de Damião de Goes na Inquisição. Lisboa, Edições Excelsior, 1971.
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