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By António Gomes Marques on 4 de Setembro de 2025
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Um processo kafkiano – o processo contra
Boaventura de Sousa Santos
por Júlio Marques Mota
Sempre
que leio um texto de Boaventura de Sousa Santos fico extremamente
incomodado e interiormente muito agitado, porque sinto a crueldade da
situação que lhe foi criada: cancelado em toda a extensão da sua
carreira académica e à escala planetária. Curiosamente, no caso
português, isso acontece num momento em que a Universidade está a cair a
pique, quer do ponto de vista científico quer do ponto de vista moral,
isto é o desrespeito pelo espírito de missão da Universidade, a de criar
a massa crítica de cidadãos e técnicos de primeira classe de que o país
urgentemente precisa. Por contraponto, ou mesmo para abafar a crise em
que a Universidade vive atolada, ei-la que, altaneira, julga na praça
pública e assassina, consequentemente, um dos seus valores mais altos
que nela trabalhava desde as últimas décadas. Mas penso que não se trata
apenas de uma questão de ordem moral, no contexto acima, ou de ordem
científica, trata-se de um problema de ordem política, também, onde os
média foram peça central.
Nesta
pequena nota prefiro apoiar-me num dos meus autores preferidos, Piero
Sraffa, um autor que nada tem a ver com isto, é certo, mas que nos dá
uma sugestão bem curiosa;
Parafraseando Sraffa diremos:
Pode-se
imaginar um homem vindo da Lua observando a sociedade, que enxerga todo
o processo circular de produção e de troca como um todo, assim como
todo o processo de criação e distribuição de rendimento, sem fazer parte
dele ou ser influenciado pelas suas contingências internas.
Como
assinalam Heinz D. Kurz e Neri Salvadori em On the “Photograph”
Interpretation of Piero Sraffa’s Production Equations A View from the
Sraffa Archive (original aqui)
Primeiro,
caracterizar a situação em consideração com referência ao homem da Lua
remete a um evento ocorrido no Parlamento britânico por ocasião de um
debate sobre a crise agrícola em 30 de maio de 1820. No decorrer desse
debate, Ricardo teria dito que “porque consultava os interesses de toda a
comunidade, ele opor-se-ia às leis sobre o trigo” (Ricardo, Obras V:
49). Henry Brougham, o parlamentar por Winchelsea, que apoiava a moção
dos agricultores a favor de medidas protecionistas adicionais,
qualificou o argumento de Ricardo como se viesse de um homem que
“tivesse caído de outro planeta” e vivesse num “mundo utópico” (Ricardo,
Obras V: 56) 7. A referência ao “homem da Lua” pode, assim, ser vista
como uma metáfora concebida para indicar a necessidade de adotar um
ponto de vista distanciado, de ver as coisas como elas são, e não
através dos vidros coloridos de algum grupo de interesse particular.
A
citação de Sraffa neste contexto é intencional pelo que nos diz quanto
ao caminho a seguir na nossa análise sobre o processo contra Boaventura
de Sousa Santos e sobretudo pelo que simbolicamente tem de paralelo com a
situação de Boaventura. Sraffa vivia exilado na Grã-Bretanha, era
comunista, era judeu, e intelectualmente uma referência de primeira
importância. Boaventura vive exilado em Quintela, é uma figura sólida de
esquerda, a sua obra, uma referência mundial na área da Sociologia,
está a ser cancelada à escala mundo, enquanto a obra de Sraffa deveria
ser queimada, na lógica dos neoliberais dominantes na época.
Paralelamente, um e outro, Sraffa e Boaventura, estão relativamente
isolados no meio académico onde a obra científica de cada um deles é
expressão condigna do que podemos considerar como Missão da
Universidade. Os paralelos são evidentes.
A
obra de Sraffa era tão importante como contribuição para a economia e
contra os neoliberais, os economistas do pensamento único, que um seu
colega de Universidade, economista inglês de primeira linha e um dos
principais representantes ingleses nas negociações de Bretton Woods e
muito próximo de Keynes, a quem Sraffa deu o privilégio de ler o texto
ainda não impresso da sua obra Produção de Mercadorias Através de
Mercadorias, lhe terá dito: esta obra deveria ser queimada! Suspeita-se
que tenha sido Denis Robertson.
Sobre
esta questão soube-se pelo espólio deixado por Sraffa que o título da
obra Produção de Mercadorias Através de Mercadorias esteve para ser Produção de Mercadorias Através de Mercadorias e do Trabalho, mas isto claramente remetia para Ricardo e Marx, o que na época era muito perigoso.
Um especialista em Sraffa, Giorgio Gattei,
dá uma explicação para que não tenha sido este o título que veio a
público e esta explicação remete-nos para o elevado clima de tensão
politica e social em que viveu Sraffa. Vejamo-la então:
“Contudo,
não se pode culpá-lo por isso, uma vez que o tempo em que viveu tinha
sido um tempo de tiranias (nazi-fascismo, estalinismo, Macarthismo- a
não esquecer, o último dos quais produziu o escândalo na Grã-Bretanha em
1951 daqueles ‘espiões de Cambridge’ que, enquanto estudantes, tinham
sido iniciados no marxismo na célula comunista universitária de Maurice
Dobb, o camarada mais próximo de Sraffa, e que, depois, no meio da
‘guerra fria’, tinha fugido para a URSS para evitar ser preso como
agente secreto do KGB). É óbvio que nestas condições para um judeu mais
comunista mais expatriado, como era Sraffa, era mais do que apropriado
proceder disfarçado, e mesmo na esfera académica, se mesmo em 1960 um
dos seus colegas (talvez Dennis Robertson?) com a simples leitura do
rascunho da Produção de Mercadorias através das Mercadorias avisou-o de
que o livro deveria ser queimado porque era ‘imoral, neo-marxista e
neo-comunista’“. Fim de citação
Para
termos uma ideia da importância de Sraffa contra a visão das harmonias
universais em que assenta o neoliberalismo, repare-se que na linha dos
clássicos, de Adam Smith, de Ricardo e mesmo de Marx, Sraffa elimina as
ferramentas fundamentais da teoria neoliberal em economia: as
produtividades marginais do trabalho e do capital com as quais os
economistas do mainstream querem garantir que em capitalismo ninguém
explora ninguém. Com efeito diz-nos Sraffa:
“Qualquer
pessoa acostumada a pensar em termos de equilíbrio de demanda e oferta
pode inclinar-se a supor, ao ler estas páginas, que a argumentação
repousa sobre a suposição tácita de rendimentos constantes em todas as
indústrias. Se se achar útil tal suposição, não há inconveniente algum
em que o leitor a adote como uma hipótese temporária de trabalho. De
fato, entretanto, não se faz tal suposição. Não se considera variação
alguma no volume de produção, nem (ao menos nas Partes I e II) variação
alguma nas proporções em que os diferentes meios de produção são
utilizados por uma indústria, de modo que não surge problema algum sobre
a variação ou constância dos rendimentos. A investigação ocupa-se
exclusivamente daquelas propriedades de um sistema económico que não
dependem de variações na escala de produção ou nas proporções dos
‘fatores’. Este ponto de vista, que é o dos antigos economistas
clássicos, de Adam Smith a Ricardo, tem estado submerso e esquecido
desde o advento do método ‘marginalista’. A razão é óbvia. O enfoque
marginalista exige que a atenção se centralize na variação, porque sem
variação, seja na escala da indústria, seja ‘nas proporções dos fatores
de produção’, não pode haver produto marginal nem custo marginal. Num
sistema no qual a produção continue invariável nesses aspetos, dia após
dia, o produto marginal de um fator (ou, alternativamente, o custo
marginal de um produto) não seria apenas difícil de encontrar, mas não
se teria possibilidade de o encontrar.” (…)
“É,
entretanto, um traço particular do conjunto de proposições agora
publicadas que, embora não entrem numa discussão da teoria marginalista
do valor e da distribuição, têm sido destinadas para servir de base a
uma crítica de tal teoria. Se as bases se sustentarem, a crítica poderá
ser tentada mais tarde, seja pelo autor, seja por alguém mais jovem e
melhor equipado para a tarefa.”
Sraffa
abre o caminho a essa crítica ao ensino dominante procurando tornar
visível o que a teoria dominante pretende esconder, e o que estes
pretendem esconder é:
-
Que
a remuneração dos fatores de produção, capital, trabalho, terra, é o
resultado dos preços de equilíbrio do mercado determinados no confronto
entre oferta e procura, produtores-consumidores.
-
Que
a remuneração dos fatores produtivos é neste contexto determinado pela
sua produtividade marginal em valor. Neste mundo neoliberal ninguém
explora ninguém!
Uma
vez que que não é a teoria económica que aqui nos interessa, diremos
apenas que a obra de Sraffa é toda ela uma profunda construção teórica a
visar exatamente o ensino dominante, o neoliberalismo. Partindo de uma
qualquer configuração produtiva de uma sociedade capitalista,
analiticamente reconstrói-a com o que se chama o seu sistema padrão,
onde se mantêm todas as propriedades do sistema real para chegar à chave
central da Economia Política; os preços dependem da repartição e os
níveis que pontualmente se assumem nesta representam os níveis de poder
relativo das classes sociais em presença. Chega, pois, à relação linear
r= R (1-W) onde r minúsculo representa a taxa de lucro, R representa o
produto acrescentado no seu sistema padrão por unidade capital utilizado
neste mesmo sistema, e W representa a parte dos salários em rendimento
padrão. Nesta relação linear a um aumento dos salários corresponde uma
diminuição dos lucros do mesmo montante e vice-versa. O conflito de
classes é, pois, imediato.
Note-se
que na construção do sistema padrão de Sraffa é utilizada a quantidade
de trabalho do sistema real em vigor a partir do qual ele
matematicamente constrói o seu sistema padrão. Quanto à análise das
determinantes de W estas terão tanto a ver com a Economia como com a
Sociologia enquanto ciências autónomas.
Como assinala Sraffa:
“Mas
o sistema efetivo compõe-se das mesmas equações básicas que o
sistema-padrão, apenas em diferentes proporções; de modo que, uma vez
dado o salário, a taxa de lucro se determina em ambos os sistemas,
independentemente das proporções das equações em cada um deles.
Proporções particulares, tais como as proporções-padrão, podem dar
transparência a um sistema e tornar visível o que está oculto, mas não
podem alterar as suas propriedades matemáticas.” Fim de citação
O
que aqui me interessa sublinhar é que o que Sraffa pretende fazer com
esta obra é tornar visível o que no sistema capitalista e na análise dos
economistas oficiais está oculto. É sobretudo este o papel da Teoria
Económica, explicar o que está por explicar, intencionalmente ou não, da
mesma forma que poderemos dizer que o papel da Justiça será esclarecer o
que juridicamente está por esclarecer e impedir assim julgamentos de
rua, como este que está a ser feito contra Boaventura de Sousa Santos.
Quer-se justiça e não julgamentos populares.
Posto
isto, frise-se que não estamos aqui e agora para discutir economia, mas
sim o processo movido contra Boaventura de Sousa Santos. Na linha do
que nos diz Sraffa, impõe-se-nos, portanto, alguma frieza de análise,
algum distanciamento para não sermos engolidos pela voragem mediática de
um mundo de santos e santas com um diabo do lado de fora Boaventura de
Sousa Santos.
Do
ponto de vista dos média Boaventura de Sousa Santos foi acusado e sem
julgamento é simplesmente culpado, porque tudo o resto é extrema
santidade. Creio que desse ponto de vista, vale a pena citar aqui
extensamente um trabalho de Christopher Barclay sobre o caso Coldplay:
“É
verdade que a cultura atual no X (antigo Twitter) e noutros aplicativos
dos média sociais talvez seja menos imediatamente destrutiva do que foi
durante o auge do ‘woke’ (aproximadamente entre 2017 e 2021). Ainda
assim, o potencial viral desse tipo de história é um sinal de alerta de
que a nossa cultura está obcecada por vergonha, vigilância e controle. A
obsessão com a vida privada dos outros é uma doença.
É
claro que há algo na natureza humana que tende ao mexerico, à vergonha e
ao ridículo (de forma irrefletida, automática). Mas as novas
tecnologias permitem-nos dar vazão a essas tendências sórdidas de
maneiras historicamente sem precedentes. Devemos levar a sério o efeito
destorcedor que essas histórias — e nossa obsessão por elas — têm sobre
nossas almas.
A
aldeia global é como qualquer aldeia — repreensiva, punitiva, consumida
por boatos, sem nada melhor para fazer. Embora transformar alguém em um
meme possa parecer divertido, é profundamente indigno e descarta os
costumes e salvaguardas de uma sociedade liberal para participar de um
linchamento sádico.
Se
essas tendências continuarem — se os algoritmos continuarem a funcionar
como estão, e não consigo imaginar que não o farão — então cada vez
mais vítimas serão arrancadas do anonimato para sacrifício mimético. E,
como consequência, os tabus significativos sobre privacidade, vergonha e
respeito desaparecem, e a vida e o comportamento de todos passam a
tornar-se material para comentários e ridicularização.
Nós
precisamos urgentemente de novos tabus — não contra adultério,
imoralidade sexual ou engano interpessoal, porque claramente já temos
muitos desses. Em vez disso, precisamos de tabus contra o fato de nos
agregarmos em multidões idiotas e repugnantes, incapazes de pensar no
que as vítimas de nosso ridículo e desses apedrejamentos digitais podem
sofrer. Uma perspetiva mais sábia admitiria que todos nós, no momento
errado, somos mentirosos, tolos, trapaceiros, charlatães, hipócritas.
Que atire a primeira pedra quem nunca pecou — ou clique no botão
‘curtir’ ou ‘compartilhar’. Se a nossa resposta natural à vigilância mútua constante não for de nojo, então deveria sê-lo." Fim de citação.
As
acusações contra Boaventura de Sousa Santos são bem conhecidas pelo que
não vamos repeti-las, mas sobre muitas delas devo dizer que estas
sinceramente me são ininteligíveis, por razões que de forma sucinta
tentarei mais abaixo explicar.
Uma pequena nota sobre a FEUC
Vejamos
alguns detalhes. Conheço o Boaventura de Sousa Santos desde 1975,
quando eu estava brutalmente descontente com o que se passava no ISEG,
disciplinas que não funcionavam, notas que eram atribuídas de mão no ar.
A FEUC de então estava praticamente a partir do zero. Por espírito de
missão de um punhado de pessoas a FEUC foi-se fazendo e nesse punhado de
gente estava necessariamente o Boaventura de Sousa Santos. Neste
trajeto conjunto, de que pessoalmente muito me orgulho, não deixou de
haver focos de tensão e a razão da sua existência era bem simples: a
FEUC estava a partir do zero e ambos queríamos fazê-la à nossa imagem, à
imagem de cada um de nós: o Boaventura quereria uma Faculdade de
Sociologia, onde a Economia tivesse o papel de auxiliar, e eu desejava
uma Faculdade de Economia onde a Sociologia fosse auxiliar da Economia,
mas com um papel menor do que aquele que o Boaventura de Sousa Santos
pretendia para a Economia. A razão era simples: como economista, e tendo
a certeza de que a maioria dos nossos alunos seria destinada a
trabalhar nas pequenas e médias empresas da região, do país, eu sabia
que eles teriam de sair da FEUC com conhecimentos fundamentais em
Gestão. Mas sempre armados de uma ferramenta fundamental, hoje
completamente desaparecida no Ensino Superior, uma enorme capacidade de
aprender a fazer, dada a estrutura de ensino levada a cabo na FEUC. Não
havia espaço para lecionar de tudo e, na minha visão da FEUC, no curso
de Economia a Sociologia teria menos peso do que teria a Economia no
curso de Sociologia. Essas tensões foram desaparecendo e fez-se para a
época o plano de curso de economia mais equilibrado que se lecionava no
país. Quem o disse e o escreveu foi um relator do ISEG num relatório
enviado à ministra de então.
Posteriormente
cria-se o CES que mais tarde se torna um centro gigante por influência,
quem diria, dos chineses, dos criadores do Índice de Xangai. Num
momento em que as comunicações entre centros se tornavam cada vez mais
fáceis, em vez de unidades científicas especializadas e financiadas
adequadamente, estabeleceram-se centros gigantes, aglomeraram-se
centros. Foi assim em Portugal, foi assim em todo o lado. Viva o índice
de Xangai, apetecia-me dizê-lo, sarcasticamente, claro.
Tudo isto para dizer que raramente eu ia ao CES. Não queria ser enrolado pela
Sociologia. Tinha o meu trajeto próprio que, de resto, não me levou a
lado nenhum, mas isto é toda uma outra história que não é para aqui
chamada. Fui lá duas a três vezes assistir a conferências sobre temas de
economia de gente com quem me identificava. Aí reparei no método de
trabalho de Boaventura de Sousa Santos. Era o moderador. Acabada a
palestra, o Boaventura iniciava o debate, solicitando a cada um dos
presentes o seu comentário ao que se tinha dito. Isto aparentemente era
coisa fácil, mas não era, assim em resposta pronta, direta!
Desagradou-me, mas o problema era e é meu. Custa-me falar em público,
ainda hoje. Mas reconheço hoje, e até na altura o reconheci, que este é o
método correto para “abrir” as pessoas ao discurso científico, ao
debate mentalmente organizado, mas para quem se inicia nestas andanças,
isto gera alguma angústia.
Nota sobre Assédio Moral.
Neste
campo centram-se algumas das críticas que lhe foram feitas e
comentemo-las de forma genérica, uma vez que desconheço a realidade
concreta do CES, situando-nos a um nível do CES abstrato. O trabalho de
investigador é, por definição, neste país um trabalho precário para
muita gente até ao meio da sua carreira temporal. Há trabalhos a fazer,
há debates a organizar, há debates em que as pessoas se têm de preparar
de corpo e alma, e há, sobretudo, trabalhos de campo ou trabalhos
teóricos a realizar. A escrever, a rever, e rever, muitas vezes, até que
se considere o trabalho perfeito. A concorrência para se manterem no
lugar é, nestes grandes centros, cada vez maior, e a consequência para
se lutar contra a precariedade é cair em situações de burnout
que também nos conduzem à precariedade. Estou a falar de quando se fazem
trabalhos a sério, de investigação criteriosa, não de publicações a
metro, como agora se está a fazer em muitas das nossas faculdades em que
os autores dos trabalhos funcionam como extensão dos computadores que
os redigem em bruto. Pessoalmente questiono-me se muita da disputa em
torno do Boaventura de Sousa Santos em matéria de assédio moral não terá
como pano de fundo a situação que acabo de descrever, envolvida esta
sob a acusação de assédio moral. Se assim é, o alvo está errado, é todo o
sistema que deve ser julgado e o Boaventura de Sousa Santos ele próprio
está sujeito às mesmas condicionantes que os investigadores do CES, se
se quiser manter o CES fora da linha de água. E o certo é que o manteve
fora da linha de água.
A
concluir esta curtíssima nota sobre assédio moral refira-se que estamos
perante um problema geral. O Estado cada vez se burocratiza mais, e
tanto mais quanto maior é o disfuncionamento em que a sociedade se
encontra. Acusar o Boaventura de Sousa Santos desta situação,
diabolizando-o, é passar por cima da realidade portuguesa. Já imaginaram
o que significa trabalhar num departamento do Estado em que os
funcionários só saem quando o chefe sai? Já imaginaram o que significa
receber uma ordem de serviço às 18h30min de uma sexta-feira com trabalho
a fazer em casa e para levar feito na segunda-feira de manhã? Já
imaginaram o que significa em EPEs os funcionários públicos aí colocados
serem sucessivamente assediados para passarem a empregados com contrato
de trabalho individual? E isto desde os tempos do socialista António
Costa com tendência a agravar-se fortemente com a Administração
Montenegro. Já imaginaram o que significa deslocar professores de áreas
científicas onde se especializaram para disciplinas que nunca
lecionaram? E podíamos continuar até quase ao infinito a falar de
assédio moral, materializado agora numa só pessoa, Boaventura de Sousa
Santos.
Nota sobre Extrativismo
Boaventura
de Sousa Santos é acusado de forçar os outros a trabalhar para ele. Não
vi nenhuma prova disso no âmbito da acusação que lhe foi movida. Que me
falassem disso nos anos 70 e 80, décadas em que andávamos todos a viver
das nossas ideias e das ideias dos outros, ainda aceitaria isso, mas
para lá dos anos 90 com uma formação sólida já construída não é uma
acusação creditável.
A confirmar isso, aqui deixo 4 links para textos por ele escritos e no violento período de clausura a que tem estado submetido
-
-
-
-
E
digam-me se é credível que o homem que escreve estes artigos numa
situação de clausura imposta precisaria do trabalho de algum assistente
para os escrever. A resposta é imediata: não precisaria.
Nota sobre Assédio sexual
Aqui o problema é muito mais complexo e vou-me limitar a duas afirmações de Boaventura de Sousa Santos:
-
é a de que nasceu no início dos anos 40, foi um homem do seu tempo e terá tido assim atitudes hoje consideradas menos corretas.
-
A minha derrota é a vitória do neoliberalismo
Vejamos ponto por ponto:
1.A Quanto ao primeiro ponto, quando ouvi a história da mão no joelho pensei no filme O Joelho de Claire
de Eric Rohmer, mas visto de forma diferente. Para muita gente,
sobretudo da América Latina, o Boaventura de Sousa Santos é uma sumidade
e natural é que jovens se sintam encantadas por estarem juntas com o
Mestre. A mão no joelho para mim, sou sincero no que estou a dizer e não
sei ser de outra maneira, significaria uma certa tensão despida de
carga erótica em que a mão no joelho representaria do lado do Boaventura
de Sousa Santos um gesto habitual de apoio para com quem estava a falar
enquanto pelo lado da mulher assim acariciada seria uma espécie de
confirmação emocionada do apoio do Boaventura de Sousa Santos ao
trabalho que pensaria fazer. O certo é, o ato descrito é apenas a mão no
joelho e não estou a ver o Boaventura de Sousa Santos a viver o papel
do personagem de Rohmer em Le genou de Claire. Há o depois
relatado pela estudante brasileira e este relato é arrasador para a
figura de Boaventura de Sousa Santos, relatado 10 anos depois e em plena
euforia do Movimento MeToo, quando o relato público por ela
feito lhe poderia dar dividendos. Entre a verdade de um e a verdade da
outra, dez anos depois relatada, eu opto pela verdade do Boaventura de
Sousa Santos.
Falo
da sedução intelectual do Boaventura de Sousa Santos por ter assistido a
uma sessão de trabalho com um grupo de gente de Letras, já licenciada,
realizado numa sala do primeiro andar no palácio dos Limas, em que
participava também a sua mulher, Irene Ramalho. Era impressionante a
concentração de quem o ouvia, 10 a 15 pessoas, era impressionante o ar
de espanto de toda aquela gente, maravilhada com o que ouvia. Naquela
sessão de trabalho, onde terei participado por mero acaso, eu percebia
bem porque é que o Boaventura de Sousa Santos enchia anfiteatros. Não
admira, pois, que até a este nível intelectual ele seduzisse e fosse até
invejado.
A
este nível contaram-me uma vez uma história curiosa. Num jantar festivo
da Faculdade falou-se de um livro que tinha acabado de sair. Eis que o
Boaventura explicou de forma desenvolvida a temática do livro. De
repente, a colega e amiga Maria dos Anjos pergunta-lhe: Boaventura, como
é que tiveste tempo de ler o livro? Não o li, li a contracapa e as
badanas, foi a resposta, e esta foi acompanhada de uma risada geral. E a
explicação devia corresponder ao livro senão a história ser-me-ia
contada de uma outra forma, de crítica e não de admiração.
Mas
a afirmação do Boaventura é demasiado séria para ser tratada de raspão.
Nascido no início dos anos quarenta fará a sua adolescência nos tempos
duros do fascismo e a sua aprendizagem sexual, e esta é uma aprendizagem
que é demasiado séria para se estar a brincar com ela, terá sido feita
aos ziguezagues, com altos e baixos, com quedas e levantamentos. Uma
trajetória aos ziguezagues é, por definição, uma aprendizagem feita
pelos erros, pela aprendizagem com eles, pela procura das suas correções
e isso significa também, o que é muito importante, um enorme respeito
por aquelas com quem percorreu essa trajetória. O contrário dessa
aprendizagem pelos erros seria uma aprendizagem de santo e os santos,
que eu saiba, não têm sexo, logo, não precisam de aprendizagem sexual.
Creio ser isso que ele queria dizer, foi assim que o entendi, contra
muita gente que ironizou em torno dessa afirmação. Um amigo do
Boaventura criticou-o severamente por essa afirmação, que ele
considerava uma inoportuna mea culpa. Por contraponto a essa
séria afirmação, no entanto, perguntaria eu, qual a ideia que se tem
HOJE da educação sexual da nossa juventude? Basta ver o que se passa
numa qualquer Queima das Fitas, por exemplo a de Faro, onde a mulher
acaba por ser vista não como mulher mas sobretudo como objeto sexual,
bem mais próxima da ideia que a maioria dos rapazes dos anos 50 tinha
sobre as raparigas, sobre as gajas. Para além do que acabo de
dizer, a violência no namoro é bem prova de que talvez estejamos nesta
matéria a ficar aquém do que era a sexualidade nos anos 50!
1B.
Há um outro relato de uma estudante, segundo a qual, numa sessão
pública num curso de verão na Curia, Boaventura de Sousa Santos lhe
teria colocado a mão na virilha. Diz Boaventura de Sousa Santos que,
durante a projecção de um documentário sobre direitos humanos, com a
estudante sentada a seu lado, ele lhe tocou no joelho para lhe chamar a
atenção para determinado episódio. Muito mais tarde, em entrevista já do
“colectivo de vítimas”, a estudante afirmou que Boaventura de Sousa
Santos lhe pusera a mão na virilha e ela, de tão perturbada, sentiu-se
incapaz de acompanhar os trabalhos a partir daí, o que é negado pelos
registos do curso e pelos demais participantes. Vemo-la nas fotos
esfusiante de alegria, tal como os outros participantes. Aliás, pensemos
bem: tem isto algum sentido? Para mim, não tem nenhum. Para utilizar
uma expressão parecida com a de Sraffa com que iniciei este texto, direi
que nasci e cresci até aos 11 anos numa aldeia quase no fim do mundo
ou, antes, que terei lá caído vindo do lado escuro da Lua.
Fui
para a cidade com onze-doze anos e aprendi por conta própria a
sobreviver, observando o que via nos outros e racionalizando sobre o que
via. Como qualquer adolescente também chegou a minha vez em que a fúria
das pulsões se sobrepunha a tudo o que fossem reflexões. Nesta fase de bruto,
alguma vez seria capaz de uma atitude destas, de abordar uma rapariga
desta forma, fosse em que situação fosse? Depois, cresci e atravessei os
diversos estratos sociais e culturais da sociedade portuguesa e até à
libertação de abril não deixo de assinalar uma marca daquele tempo de
cristandade em geral falsa: para que houvesse jogos eróticos eram
necessárias duas condições: o rapaz só poderia avançar se jurasse e jurasse (fingindo) que a rapariga em presença era a sua amada e a rapariga para consentir esses avanços (desejados)
diria a pés juntos que acreditava na verdade do seu amado. Se desse
para o torto, o rapaz passava para outra e a rapariga confortava-se
dizendo que não era culpa dela, tinha sido enganada, até que se repetia a
história com um outro com quem simpatizasse. Tratava-se de uma dupla
mentira essa que gerava, muitas vezes à primeira, à segunda ou à
terceira oportunidade, uma verdade, a verdade de que acabavam por se
amar e casar.
Pode
parecer patético o que acabo de dizer sobre as primeiras relações entre
homens e mulheres naqueles tempos dos anos 50 a meados de 60, mas será
isto muito diferente da ideia cristã expressa por Paul Claudel de que
“Finge acreditar e acabarás por acreditar”? A ideia é semelhante! Para
uma visão recente deste tipo de relações veja-se o livro de Pio Abreu A
Queda dos Machos.
Isto
é bem menos primário do que o que é relatado por uma mulher no que se
terá passado na Curia, entre uma mulher adulta e um cientista social de
renome e à frente de toda a gente. Primário de mais para se poder
acreditar! Lamento dizê-lo de forma tão direta. Mas há ainda uma outra
razão para dizer não acredito. Para além deste primarismo absurdo,
poderei acrescentar um outro argumento. Boaventura de Sousa Santos
passava cerca de metade do seu tempo fora, no estrangeiro. Porque razão é
que só se fala destes comportamentos em Portugal? Ora a dar crédito ao
primarismo da Curia, a mão na virilha e em público, ele teria um
comportamento compulsivo, mas para ter um comportamento compulsivo este
seria independente do espaço onde estivesse, e pelos vistos não é isso
que se passa. Conclusão, logicamente, é esse o plano que me interessa,
isto não tem nenhum sentido.
-
A minha derrota é a vitória do neoliberalismo
Transcrevo o que escrevi em tempos sobre o enquadramento político do cancelamento de Boaventura de Sousa Santos.
Recebi
na caixa de email notícias de Thomas Palley, um importante
pós-keynesiano americano, pertencente pois à corrente de pensamento
económico mais progressista e fora da corrente marxista, onde ele nos
informa que foi sancionado e cancelado pela Sociedade dos Economistas
Pós-Keynesianos por ter escrito um texto contra a posição ocidental
assumida no quadro da guerra. Não se pode pensar fora do quadro
estabelecido pelos nossos políticos guerreiros e vêm-nos falar no
respeito pela liberdade de pensamento! Quer isto dizer que há liberdade
de pensamento desde que este esteja conforme ao pensamento das
autoridades, ou seja, é o caminho do fascismo. Diríamos mesmo que 1984 de Orwell começa a ser uma realidade no quadro da suposta Democracia: é-se acusado de antidemocrata se o contestarmos.
Chegados
aqui, tenho ou não tenho o direito de pensar que o cancelamento a que
Boaventura de Sousa Santos foi sujeito se insere no mesmo pano de fundo?
Se olharmos para o caso de Assange, preso porque teve relações sexuais
consentidas com uma ativista nórdica, mas em que a camisinha de
contracetivo se rasgou e em que ela o acusa de a ter rasgado
intencionalmente, é pensável que um homem seja destruído por isto? E
nessa destruição tenham estado envolvidos vários Estados: Inglaterra,
Austrália, USA, Equador? Ou não será isto uma falsa questão “fabricada”
para limpeza moral dos nossos falsos democratas? Uma coisa é certa: foi evidente que Assange terá contribuído
para a não eleição de Hillary Clinton, e isso tinha de ser pago a um
preço muito alto. E pagou-o! Nessa altura falei com o saudoso Mário
Ruivo em que lhe manifestei o meu espanto por Obama apoiar a Hillary
Clinton e a resposta foi imediata: há dívidas a pagar e Obama está a
pagar a sua. Dito de outra maneira: Trump sobe ao poder não por culpa de
Assange, mas por culpa dos Democratas que não souberam ou não quiseram
escolher outro candidato. Relembro aqui Obama ao dizer: Bernie Sanders,
esse, nunca! E Hillary perdeu. E Trump ganhou! E a tragédia
reconfirmou-se em novembro de 2024 quando o candidato que o Partido
democrata lançou contra Trump era nada mais nada menos que o doente
Biden, reconhecidamente doente desde o início do seu mandato de
2020-2024. Neste seu mandato de 2020 a 2024, assinala o jornal The Atlantic
na sua edição de 16 de maio de 2025, “o governo americano era
constituído por Cinco pessoas [que] estavam a dirigir o país”, disse um
informador político aos autores do novo livro Original Sin. “E
Joe Biden era, na melhor das hipóteses, um membro mais do conselho de
administração.” E mais uma vez é o Partido Democrata que oferece a
vitória a Trump, que ganha, não por mérito próprio, mas por falta de
mérito do seu opositor. O remendo que foi Kamala Harris foi um remendo
que nada remendou.
Quanto
a Thomas Palley, um crítico acérrimo da política externa americana, tal
como Assange, o ataque é direto, mas tão grave quanto o seu
cancelamento é o facto de que este cancelamento vem do grupo de gente
que seria pensável estar próximo de Palley, gente de esquerda e da
primeira água. Logo, não deveria ser encarado como um cancelamento
político. Mas o argumento é puramente formal: não ter respeitado as
regras da Sociedade dos Economistas Pós-Keynesianos quanto à divulgação
dos seus artigos, nomeadamente o artigo “A Guerra da Ucrânia e o
aprofundamento da marcha de loucura da Europa” (publicado na Viagem dos
Argonautas, ver aqui).
Contudo, no plano formal vem da mesma linha política (mesma linha de
pensamento económico), da mesma forma que o cancelamento de Assange não
era político, era devido a assédio sexual.
Quanto
ao Boaventura de Sousa Santos, o elemento político comum enquadra-se na
mesma tipologia: um crítico de nível internacional quanto à política
externa seguida pelas diferentes administrações americanas e, tal como
aconteceu a Palley ou a Assange, a sua queda seria conveniente. E,
publicamente, não é um cancelamento por razões de ordem política, mas de
ordem sexual! E assim, entre muitos sinais de cancelamento, refira-se
que a FNAC e a Bertrand se recusaram a distribuir os seus livros, e as
edições 70 têm dois manuscritos parados porque temem que não sejam
vendáveis. Pelo meio, cerca de 10 programados doutoramentos Honoris
Causa foram cancelados. Como me assinala o próprio, trata-se de uma
“morte civil pura e dura”.
A
terminar este texto pedi ao Boaventura de Sousa Santos que me
disponibilizasse alguma das diversas trocas de emails com uma ou outra
das mulheres que o acusam de ser o Diabo em pessoa. Fiquei demasiado
impressionado com o que li, e de tal modo fiquei que me concentrei
apenas na troca de emails de uma só pessoa. Espantou-me a fragilidade
académica de alguém perante a pressão de teses a realizar, de provas a
apresentar, de textos a discutir. Impressionado com os ziguezagues
profissionais, não fui capaz de continuar a ler este tipo de emails.
Deixo-vos aqui alguns excertos:
“Agradeço,
antes de mais, ao Professor Doutor Boaventura de Sousa Santos, meu
orientador, pela oportunidade de aprender com o seu trabalho e as suas
ideias, tão influentes nesta dissertação, e com o seu rigor científico.
Nunca esquecerei a oportunidade que me deu de fazer parte de um projecto
de investigação que me permitiu crescer pessoal e profissionalmente e
conhecer por dentro um país pelo qual me apaixonei para sempre.”
“Agradeço
ao Professor Doutor Boaventura de Sousa Santos a Escola que criou e os
desafios que permanentemente lança e abrem espaço a caminhos livres de
monotonia. Foi sempre um privilégio fazer parte das suas equipas e ter a
oportunidade de aprender e crescer nesse contexto. Agradeço a confiança
e as tantas partilhas que fazem parte do que sou”
“eu vim-vos dizer do coração, é verdade, só uma pequena observação sobre este livro que se chama O fim do império cognitivo”
.
“Sendo
assim, gostaria muito que o Prof. Boaventura pudesse ser meu
orientador, aceitando o Dr.XXXX como co-orientador. No início, esta não
me pareceu a melhor opção, uma vez que o Professor só pode aceitar dois
orientandos/as.”
“Neste
momento, parece-me certo que terei que entrar nessa corrida, porque
gostava mesmo que o Prof. aceitasse orientar o meu trabalho.”
“o
CES tem sido sempre a minha instituição e nunca pus a hipótese de, por
minha vontade, me desligar dela, sendo que gostaria de poder ficar
ligada às duas instituições.”
“Se
o Professor aceitar este pedido, passarei a enviar-lhe todas as coisas
que for fazendo e a discuti-las sempre que o Professor assim o entender.
Aguardo com ansiedade uma resposta tua “
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Tabela de excertos adicionais
Em Março de 2018 escreve
Como
quase todxs saberão, este ano, o CES (e curiosamente varixs de nós) faz
40 anos. Em novembro, será realizado um colóquio comemorativo da data,
que é simultaneamente uma homenagem ao Professor Boaventura, Na minha
opinião, o projeto Alice fez parte do melhor do CES nos últimos 40 anos e
nós fomos todxs parte disso juntamente com o Professor.
Em 2020 pede apoio ao Boaventura de Sousa Santos para que este apoie um amigo seu em estado de depressão e escreveu:
Olá
Professor, espero que esteja bem. Falei ontem com o (nome da pessoa) e
fiquei preocupada. Não sei se lhe vou dar uma novidade ou não, mas achei
que devia dar-lhe conta do que pareceu. Acho que ele está com uma
depressão e numa crise de insegurança com a tese. Tentei motivá-lo, mas
sei que o Professor costuma ser excelente a ajudar os seus alunos a
saírem daquele lugar. Se puder dar-lhe uma palavra, acho que pode
ajudá-lo.
No dia 31.12.2020 escreve:
Bom
dia, Professor. Não fico surpreendida, mas muito feliz por saber que a
conversa com o (nome da pessoa) correu bem. Além da amizade por ele,
vejo uma sensibilidade crítica e um coração que faz falta nas EdS. Eu
sei que o Professor está a gerir muita coisa, vou sempre acompanhando, e
que os tempos que vivemos nos obrigaram a alterar prioridades. Estou
tranquila. Desejo-lhe um 2021 criativo e feliz”
Estes dois últimos excertos são relevantes e por duas razões:
1.O
amigo da denunciante está em preparação de tese e está em depressão.
Uma situação muito comum em situação de tese. Conheço pessoas que nunca
mais recuperaram da situação de burnout em que entraram na situação de preparação final de tese.
2.
mostra as francas relações de amizade existentes entre as pessoas,
neste caso particular entre a denunciante e o Boaventura de Sousa
Santos. Pede-se ao Boaventura de Sousa Santos que socorra um amigo seu
em depressão dada a capacidade por ela reconhecida da competência do
Boaventura em apoiar casos como este. Isto significa o quê? Só tem uma
leitura possível: reconhece a capacidade afetiva e EFETIVA de Boaventura
de Sousa Santos em apoiar as pessoas que com ele trabalhavam e que se
encontravam nesta situação.
E
fico-me por aqui neste mar de transcrições inacreditáveis face ao que
ela declarou depois. Se à teoria económica cabe explicar o que está
oculto, na linha do que nos disse Sraffa, à justiça caberá esclarecer o
que no plano jurídico está por entender.
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Desisti
de ler mais emails e o que li confirma-me de que estamos perante uma
verdadeira monstruosidade no plano da lei, ou da ausência dela. Direi
que nisto há muito de estranho no plano político dada a dimensão
coletiva que o processo tomou e fico com uma dúvida adicional: não será
que a monstruosidade do que li face ao que se disse de Boaventura não é
ela o resultado dos insucessos da vida académica, com uma tese de
mestrado que nunca mais terminava, quatro anos e não chegou para
concluí-la, com um salto para o doutoramento que também tardou em
concluir? Não haverá por aqui um mecanismo psicológico clássico de
sobrevivência, em que a culpa dos nossos insucessos, das nossas
incapacidades, é sempre dos outros, em que perante estes insucessos e
perante as próprias denunciantes os culpados são sempre os outros?
L'enfer, c'est les autres, terá dito um personagem de Sartre na peça Huis Clos.
Será por estes insucessos, nos emails bem sentidos por quem os possa
ler, que se quer fazer de Boaventura o responsável-mor do Inferno?
Temos
então estes tempos longos de conclusão de trabalhos, com o sistema a
pressionar por tempos ainda mais curtos. É aqui que entra a precarização
crescente no sistema, é aqui que entram em ação os mecanismos de
insegurança e as distorções nos comportamentos psicológicos que dessa
insegurança resultam, mas isto não é o resultado de uma pessoa outra, o
orientador, é o resultado das fragilidades da própria pessoa, das suas
caraterísticas pessoais, da sua formação de base. E é também o resultado
de um sistema que é urgente mudar, mas não se muda, isso garanto eu,
com comportamentos erráticos nas suas trajetórias, com
irresponsabilidades nos comportamentos como os emails acima reproduzidos
nos mostram.
A partir daqui o aproveitamento político da situação terá sido fácil a quem o desencadeou, é o que tudo isto me leva a pensar.
Assim, nada mais tenho a acrescentar sobre este cancelamento.
Em jeito de conclusão
Uma curtíssima nota em dois pontos.
-
Os
excertos de emails reproduzidos foram por mim conhecidos já com o texto
completamente elaborado, daí o ficarem em caixa no final. Eles vêm
confirmar a análise quanto à minha recusa em aceitar as acusações contra
Boaventura de Sousa Santos, pois torna-se impossível compreender no
campo da lógica, e este é único campo que me interessa, o que foi dito
face ao que foi escrito nos emails acima reproduzidos.
-
O
problema das acusações é um problema local que virou um problema
internacional com mecanismos de pressão até hoje quase desconhecidos e
próprios de um novo macarthismo conduzido à escala mundial. Penso mesmo
que as acusantes não terão pensado em efeitos tão drásticos quanto ao
que assistimos, mas terão depois bem cavalgado no cancelamento que por
outros foi instituído. Se o meu texto é coerente, e penso que o é, não
me parece que as acusantes tenham pernas para cavalgar esse cavalo, a
menos que disponham de fortes seguranças que os senhores do mundo lhes
ofereçam, e é isso que pode estar já a acontecer.
Não
terão sido, creio eu, os senhores do mundo a desencadear as acusações
feitas; também não terão sido eles a desencadear o cancelamento. Este
terá sido independente das pessoas envolvidas nas acusações,
independente das tomadas de decisão dos senhores donos do mundo. Não,
mais grave que qualquer destas duas hipóteses, o cancelamento é devido
aos servos que anseiam por servir os senhores do mundo, quer pelas
benesses que possam ter de imediato, quer para se posicionarem em
lugares de relevo junto dos senhores do mundo para usufruírem também do
prestígio do poder ou até para depois os substituírem – e aqui falo da
ganância do poder. Veja-se também Vance e Trump nos USA, Montenegro e
Passos Coelho em Portugal, Jeremy Corbyn e Keir_Starmer no Reino Unido. E
podíamos continuar…
Dois exemplos:
-
O
cancelamento de Thomas Palley por se opor à guerra conduzida pela NATO
não foi imposto pelos senhores do mundo, foi imposto pelos seus colegas,
a linha de economistas pós-keynesianos que fora do mundo marxista é
considerada a mais importante linha de pensamento económico progressista
no Ocidente.
-
Desde
2011 a Universidade de Coimbra tem tido á frente dos seus destinos
reitores de direita pura e dura, João Gabriel Silva e Amílcar Falcão. Do
meu ponto de vista ambos foram representantes do governo junto das
faculdades e não representantes das Faculdades junto do Governo. Os
tempos de coragem com Teixeira Ribeiro já se foram. Que fizeram os
diretores das Faculdades, sejam eles Álvaro Garrido, José Manuel Mendes
ou outros diretores? Venha o Diabo e escolha. Cito estes dois
especificamente porque eles não podem ser considerados de direita, mas
no fundo fizeram o mesmo que os outros: serviram o poder. Serviram os
reitores, serviram o Governo, e assim o ensino está como está. O desejo
de saber o que o poder deseja para o poderem servir esteve sempre na
ordem do dia e a respeitar, com o máximo de rigor. E os docentes, o que
fizeram? Instalada a precariedade e o medo que esta arrasta consigo,
calaram-se. Cabe-me apenas e por agora respeitar o seu silêncio.1 Penso
ser correto dizer que o desejo de servir os senhores do mundo imperou e
o agradar ao poder dominante foi sempre a nota política que se ouviu
tocar. Aqui, se dúvidas há, veja-se a reforma dos planos de curso da
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e veja-se também a
dança atual dos professores nas suas distribuições de serviço.
É
neste quadro de servilismo geral em que se vive, e não só à escala de
Portugal, mas do mundo, que se compreende bem o brutal cancelamento a
que Boaventura de Sousa Santos foi sujeito e, se assim é, isto é muito
grave e significa que nuvens negras, muito negras, pairam sob os céus da
Democracia em todo o lado. Veja-se, por exemplo, o que se está agora a
passar em Portugal com a Administração de Luís Montenegro e os meios
silêncios do PS.
A
este nível vale a pena recordar aqui o conto de Franz Kafka, “O Homem
do Leme”. Fui a uma livraria e tirei uma fotografia do conto. Sugeri à
empregada que o lesse. Leu-o, depois olhou para mim com espanto e diz: parece que foi escrito hoje.
O conto:
O Homem do Leme
«Não
sou eu o homem do leme?», gritei. «Tu?», perguntou um homem escuro e
alto e passou a mão sobre os olhos como quem afugenta um sonho. Estive
ao leme na noite escura, a lanterna de luz fraca sobre a minha cabeça,
quando chegou este homem e me quis afastar. E como eu não me afastei,
colocou o pé em cima do meu peito e pisou-me lentamente, enquanto eu
estava ainda agarrado ao cubo da roda do leme e, ao cair ao chão, mudei
bruscamente a direção. Mas aí o homem segurou-a, colocou-a na posição
certa, mas a mim repeliu-me. Contudo, recompus-me depressa, corri para a
escotilha, que conduzia para a sala da tripulação, e gritei:
«Tripulação! Camaradas! Venham depressa! Um individuo estranho
escorraçou-me do leme!» Eles vinham devagar, subiam pela escada da
embarcação, figuras vacilantes, cansadas, pesadas. «Eu sou o homem do
leme?», perguntei. Fizeram que sim com a cabeça, mas só tinham olhos
para o individuo estranho, rodearam-no em semicírculo e quando ele disse
num tom autoritário: «Não me perturbem», juntaram-se todos, acenaram-me
com a cabeça e desceram de novo pela escada da embarcação. Que povo é
este? Será que têm a cabeça para pensar ou deixam-se arrastar sobre a
face da terra como loucos?”
Parece que foi escrito hoje, é o que me diz a empregada da livraria, e tem razão.
NOTA
-
Refiro-me
aos professores ainda empenhados naquilo que são, naquilo que fazem,
professores condignos, professores empenhados, que Westbrook define como
um grupo que ele compara a Don Quixote, de Cervantes, que deseja ser um
cavaleiro galante já depois de passada a era da Cavalaria. (Citado por
Wessie du Toit em Qual é o objetivo da Universidade?
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