Em Yinchuan, onde o deserto está a ser
transformado em vinha (I)
Público - 6 Sep 2025
Pedro Garcias Jornalista e produtor de vinho no Douro
Um tipo vai à China e vem de lá sem saber muito bem o que dizer. A
escala humana e geográ ca é gigantesca e em poucos dias só dá para
obter pequenos ashes da realidade.
Fui como jurado do Concurso Mundial de Bruxelas, que decorreu no
passado mês de Junho em Yinchuan, no noroeste da China, uma cidade
com mais de sete milhões de habitantes e que não se sabe muito bem
onde começa e acaba, porque as suas muitas avenidas, com cinco e seis
faixas em cada sentido, parecem não ter fim. E é uma cidade pequena.
O trânsito ui com uma naturalidade espantosa. O facto de as motos,
quase todas eléctricas, terem um generoso canal dedicado também
ajuda. Ninguém diria que vive tanta gente em Yinchuan. A cidade é
muito limpa e organizada de forma quase militar, embora não se vejam
polícias na rua e os únicos elementos de controlo visíveis sejam as
inúmeras câmaras colocadas nos pórticos das estradas.
Mas não é uma cidade bonita, nem amigável para os passeantes. Sair
do hotel é uma aventura, a não ser de táxi e com a morada bem escrita
em mandarim. O risco de
car perdido no regresso é grande, sobretudo à noite. Mas é à noite, na
zona das tendas das raspadinhas e de outros jogos a dinheiro, dos cães
e gatos para venda, e das bancas com todo o tipo de comida, de cabeças
de borrego a escorpiões, gafanhotos e o mais que se possa imaginar,
que se pode sentir um bocadinho o pulso à vida e à cultura locais.
Fiquei-me pelas espetadas de borrego. Mesmo assim, a coisa correu
mal.
O concurso mostrou o que já se sabia: que é cada mais difícil descobrir
às cegas a origem dos vinhos. Um dos exercícios mais interessantes e
risíveis é ouvir os jurados assegurarem com a maior das certezas de
que determinada série de vinhos é de Itália ou de Espanha e depois
descobrirem que é da Eslováquia ou do México. Que certos tintos só
podem ser franceses quando, na verdade, são da China e que o branco
muito fresco é da Turquia e não da região dos Vinhos Verdes. Por vezes
acerta-se e é uma festa.
O mundo do vinho está cada vez mais igual, porque a tecnologia e até o
gosto se globalizaram e as castas dominantes ainda continuam a ser
basicamente as mesmas, as francesas mais populares: Cabernet
Sauvignon, Merlot, Syrah e Pinot Noir nas tintas e Chardonnay e
Sauvignon Blanc nas brancas. Mas há uma aposta cada vez maior em
vinhos de castas pouco conhecidas, vinhos mais étnicos. Embora
valham o que valham, os grandes concursos como o de Bruxelas são
um bom espelho do sector, mesmo que os vinhos de topo não se
sujeitem a estas provas cegas — mas só uma ín ma parte do mundo é
que bebe vinhos de topo.
Os vinhos muito amadeirados e alcoólicos são cada vez mais
penalizados. Nos tintos, a preferência vai para os vinhos com bastante
fruta e boa estrutura, mas elegantes. Vinhos taninosos e rústicos são
severamente castigados. Nos brancos, é cada vez mais valorizada a
frescura, a fruta viva e a secura. Brancos com alguma doçura têm
vindo a perder adeptos. Nos rosés é a mesma coisa.
O tempo corre de feição a brancos como os da região dos Vinhos
Verdes, desde que não tenham gás,
É cada vez mais difícil descobrir às cegas a origem dos vinhos
nem açúcar residual. Nos tintos, o meu grupo provou uma série do Tejo
e outra do Douro e as reacções foram muito boas. Eram vinhos com
bastante fruta e pouca madeira. Foram dos mais pontuados, tal como
uma série de brancos da Turquia e outra de tintos da Moldávia.
Portugal voltou a ser bastante medalhado. Obteve 14 grandes
medalhas de ouro, 120 medalhas de ouro e 155 medalhas de prata. Mas
concorreu com 876 vinhos (um pouco mais de 10% do total, que foi de
7165 vinhos, provenientes de 49 países e provados às cegas por 375
provadores de 56 países diferentes). As regiões mais premiadas, como
de costume, foram o Douro e o Alentejo, seguidas dos Vinhos Verdes e
do Tejo. O vinho português mais pontuado foi o tinto Forte de S.
Sebastião Signature 2023, da região de Lisboa (Arruda dos Vinhos).
Custa oito euros.
O melhor tinto do concurso foi o Les Sorts Vinyes Vlles 2020, da
denominação catalã de Montsant (17,50 euros em lojas online) e a
escolha do melhor branco recaiu no húngaro Kancellár Somloí Cuvée
2021, da região Lac Balaton (custa, no produtor, pouco mais do que
oito euros). O lado bom destes concursos é que não se resume a provas.
Incluem uma série de visitas a adegas locais. Servem, por isso, para
sentir o pulso da região e até do país organizador.
O Concurso Mundial de Bruxelas já se tinha realizado uma vez na
China, em Pequim, em 2018, e, na altura, o nível qualitativo da maioria
dos vinhos chineses ainda era bastante baixo. Mas, desde então, o
gigante asiático deu um salto monumental, não só em área de vinha
como também em qualidade. E isso é sobretudo visível na região de
Ningxia, a nova terra prometida da China e cuja capital é Yinchuan. E,
tal como na terra prometida bíblica, de tantas disputas e mortes, a
região de Ningxia é também muito desértica. À primeira vista, é um
lugar inviável para a viticultura, pela natureza do solo e do clima. Só
que na China nada é impossível. A ideia das autoridades chinesas é
mesmo transformar Ningxia numa das principais denominações de
origem do mundo. E já faltou mais.
(continua na próxima semana)
Os trabalhos de Hércules da China para
assombrar o mundo do vinho (II)
Público - 13 Sep 2025
Pedro Garcias Jornalista e produtor de vinho no Douro
O algoritmo da Google está sempre a sugerir-me notícias sobre vinhos
e vinhas em todo o mundo, desde a Rioja, em Espanha, a Mendoza, na
Argentina, e quase todas vão bater ao mesmo: crise e mais crise. O
mundo está inundado de vinho e sem grandes expectativas de que a
situação venha a melhorar nos próximos anos, o que poderá levar a um
massivo e dispendioso arranque de vinhas em muitos países. Mas há
pelo menos um que prossegue em sentido contrário: a China.
O gigante asiático não pára de plantar vinha, até nos sítios mais
remotos e áridos, como na região de Ningxia, na fronteira com a
Mongólia oriental, já é o quarto maior produtor mundial de vinho
(Itália é o primeiro e Portugal o décimo) e não quer ficar por aqui. Em
2020, numa visita a Ningxia, o Presidente chinês, Xi Jinping, prometeu:
“Com o tempo, talvez dentro de dez ou vinte anos, o vinho chinês
assombrará o mundo”.
O sonho vínico chinês está em marcha e avança quase à mesma
velocidade dos progressos nos telemóveis e nos automóveis eléctricos. O
caso de Ningxia é o melhor exemplo. Em redor da cidade de Yinchuan,
a capital da região e onde, no passado mês de Junho, decorreu mais
uma edição do Concurso Mundial de Bruxelas, estende-se uma
paisagem árida, dominada pelas imponentes montanhas Helan,
cordilheira de 200 quilómetros de extensão que divide Ningxia do
deserto de Gobi.
A terra é pobre e cascalhenta, o clima é extremo (quente no Verão e
muito frio no Inverno), chove muito pouco e os ventos são fortes e
erosivos. Deserto autêntico, embora sem dunas. O cenário é
desencorajador, mas acontece que a região, tal como Bordéus, se
encontra no paralelo 38 do hemisfério Norte, considerada a latitude
certa para a cultura da vinha. E bastou isso para que os dirigentes
chineses decidissem combater a deserti cação de Ningxia através da
viticultura, uma obra de dimensões colossais.
A partir do rio Amarelo foi construída uma gigantesca rede de canais
de rega e, para proteger as futuras vinhas dos ventos, foram plantados
milhões de árvores. Em apenas três décadas, a região passou de uns
meros 200 hectares de vinha para cerca de 40 mil, quase tantos como
tem o Douro. É cerca de um terço de toda a área de vinha (para vinho)
da China. Em 1984 só havia uma adega. Hoje, são 228 e produzem em
conjunto 130 milhões de garrafas. E os planos até 2030 passam por
aumentar a área de vinha em mais 30 mil hectares e produzir 300
milhões de garrafas.
O objectivo é fazer de Ningxia a mais importante denominação de
origem de vinho da China e, se possível, do mundo. Para isso, foi
criada uma faculdade de enologia na Universidade de Ningxia e
estabelecida uma classi cação dos vinhedos inspirada nas principais
denominações bordalesas, assentes em 5 classes de grand cru, sendo
que os melhores começam pela Classe I. Para já, nenhum produtor de
Ningxia atingiu este patamar e na Classe II só há nove. A exigência é
grande e tem contribuído para a melhoria acentuada da qualidade
geral dos vinhos. A primeira vez que o Concurso Mundial de Bruxelas
se realizou na China foi em 2018, em Pequim, e já na altura os vinhos
de Ningxia foram os mais medalhados de entre os concorrentes locais.
O que mais impressiona é o gigantismo de algumas adegas. A mais
antiga, a estatal Xi Xia King, é um enorme complexo de edifícios,
alguns dos quais cheios de cubas de inox e de cimento que lembram as
velhas adegas portuguesas. Possui também uma ala moderna, também
gigante, e um grande lago arti cial com um restaurante no meio, ao
qual só se acede de barco. Outra curiosidade: um dos principais
fornecedores de barricas desta mega adega é a tanoaria portuguesa M.
J. Gonçalves, de Palaçoulo (Miranda do Douro).
Há adegas em Ningxia que se assemelham a recintos desportivos, em
forma de arena, com pagode e recinto de espectáculos no centro e uma
cintura de enormes cubas de inox. Há outras que impressionam pelo
gigantismo dos seus túneis, como é o caso da adega da Great Wall, a
maior empresa de vinhos chinesa, pertencente ao grupo estatal
COFCO. E há umas quantas que são autênticas réplicas de imponentes
e glamorosos châteaux de Bordéus. Até levam a designação de château.
O crescimento da viticultura em Ningxia é de tal ordem que alguns
grandes grupos de vinho do mundo, como a Pernod-Ricard e a LVMH,
também se instalaram lá. O jantar de gala do concurso decorreu, de
resto, no moderníssimo Domaine Chandon, da LVMH.
Em volta das maiores adegas estão a nascer novos povoamentos, alguns
com centenas de casas, muitas ainda vazias. A transformação da
desolada Ningxia num oásis de vinhas tem sido feita à custa de muito
investimento estatal e privado e de mão-de-obra barata e
O sonho vínico chinês está em marcha. O caso de Ningxia é o melhor
exemplo
abundante. Em nenhum outro lugar do mundo, à excepção talvez da
Índia, seria possível replicar o exemplo de Ningxia.
Por causa do rigor do Inverno, durante o qual os termómetros
costumam chegar aos 18 graus negativos, grande parte dos vinhedos
são enterrados. É uma operação que requer muito trabalho braçal. Na
Primavera, quando as terras começam a descongelar, as vinhas voltam
a ser desenterradas, de novo manualmente. O desenterramento é ainda
mais moroso e complexo. Para facilitar ambas as operações, as videiras
são plantadas já com uma certa inclinação.
Nem é preciso ser produtor para imaginar o custo que o soterramento
invernal das vinhas acarreta. Esse custo ajuda, de resto, a explicar os
elevados preços dos vinhos de Ningxia, onde se produz de tudo, desde
vinhos tranquilos brancos, tintos e rosés, espumantes e até forti cados.
Mas os mais reconhecidos e procurados são os tintos tranquilos, feitos
a partir das mais famosas castas francesas.
A França, e Bordéus em particular, tem sido o espelho de Ningxia e da
própria China. Mas, depois de terem apreendido o essencial com os
franceses, os produtores de Ningxia começam a ir além das imitações e
a fazer o seu próprio caminho. E é aqui que entra a casta tinta
Marselan. Tal como aconteceu com as variedades Carmenére e Malbec,
ambas de origem francesa e que encontraram o seu terroir no Chile e
na
Argentina, respectivamente, ou a própria Alicante Bouschet, que só
ganhou alguma notoriedade no Alentejo, a Marselan, resultante de um
cruzamento de Cabernet Sauvignon com Grenache, está a converter-se
na variedade rainha de Ningxia. Dá vinhos cheios de cor, muito
aromáticos, potentes e com boa capacidade de envelhecimento.
Provados às cegas, muitos passariam por grandes Bordéus. E, tal como
estes, são demasiado caros. Um bom tinto de Ningxia não custa menos
de 50 euros.
Ah, já me esquecia de dizer que cada chinês consome em média meio
litro de vinho por ano. Em contrapartida, cada português consome
61,7 litros.
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domingo, 14 de setembro de 2025
Os vinhos da China
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