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quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Na Hora da Nossa Morte-novela-cont.

DIÁRIO DE CARLOS - 7




Há dias cruzei-me com uma mulher dentro de um automóvel que me pareceu conhecê-la. Foi apenas um instantâneo, não me permitiu observar os pormenores, um ápice, um relance, um olhar de esguelha, mas uma luz intensa, um pequeno foco de luz que colocou na sombra tudo o mais: o presente factual e os pensamentos, um rosto na escuridão que, pouco a pouco, se transfigurou num rosto muito antigo, juvenil. Podia não ser ela, quantas vezes confundimos caras. Podia ser, mas creio que não. E creio cada vez mais. Foi há dias e a recordação que emergiu de um passado distante torna-se cada vez mais nítida. Sempre tive dificuldade em recordar nomes, mas este nunca esqueci: Marta! Se acaso foi ela. Era bem estranho que fosse. Há trinta anos que não a vejo. Não foi o primeiro amor, mas foi, talvez, o mais genuíno. Porventura aquele que mais nostalgia me deixou. Talvez porque não guarde dele, ao contrário de alguns outros amores, amargura, ressentimento. Talvez porque me ficasse sempre a impressão de que eu seria feliz se a relação continuasse. Talvez porque nunca fosse capaz de explicar a mim mesmo qual o motivo do seu termo. Ainda por cima, desfecho abrupto. Apenas porque sentimos a certa altura necessidade premente de variarmos, de experimentarmos, de outras novidades e acontecimentos, e dissemo-lo um ao outro quase ao mesmo tempo. E rumámos cada um para o seu lado à procura. Preferi suspeitar que havia alguém próximo dela a fazer pressão, porém nunca quis confirmar, perguntar a outrem nunca, persegui-la para descobrir jamais. Nunca me inclinei para atitudes dessas. Se ela disse que não, ainda que me mentisse, pelo não fiquei. Até hoje, depois de ter casado, depois de ter enviuvado, depois de ter perdido a juventude. Gostaria de ter a certeza que era ela. Não tenho qualquer interesse normalmente em águas passadas; neste caso, contudo, faria uma excepção.






Ontem fui visitar o meu antigo professor. O sô Doutor Ramos, como é usual os estudantes abreviarem, não apreciava que lhe chamassem doutor, mas professor, embora possua mestrado e doutoramento, explicava sempre no início dos anos aos estudantes que doutores eram os médicos, ele era professor. E que professor! O ensino para ele era uma missão humanista, quase religiosa, e o ensino dele era um prazer, uma quase constante novidade, por vezes, quando inspirado, um acontecimento. Nessas ocasiões merecia um auditório enorme, de voluntários, e não uma sala modesta onde uma boa dúzia de ouvintes não entendia o que ouviam. Uma vez por outra visito-o na sua casa resguardada por um muro não muito alto, de pedras sem cimento ou reboco, construído por ele próprio, que em vez de afastar, atraía, pelo seu ar rústico e bravio. Um largo quintal nas traseiras e um espaço ajardinado na frente, ambos trabalhados a primor, fariam pensar a um passeante que havia ali um agricultor. A mim sempre me pareceu a vivenda de um inglês, onde não faltava sequer uma estufa envidraçada. Sinto-me bem quando lá vou. Não falamos quase nunca do passado, nem eu nem ele temos qualquer gosto nisso, ainda que o tempo passado com ele na escola, aluno e professor, tivesse sido dos mais felizes. Eu então ria com gosto e facilidade, adorava os desportos, mas tirava um grande prazer dos livros que lia, ou devorava, dos sempre novos conhecimentos que bebia com sofreguidão, e até dos exames não tinha receio, muito embora me enervassem bastante. Foi por esse tempo que namorei com a Marta.


“A solidão é um estado de espírito, sempre se pode mudar um estado de espírito!”, diz-me o professor. “Somos animais de hábitos, um hábito pode ser substituído por um hábito mais potente”. Potência é uma palavra que ele gosta de empregar, potências positivas, assim como as há negativas. “As primeiras produzem alegria, as últimas são a tristeza, o medo, a inveja, a esperança”. Gosta de citar os seus filósofos preferidos: Epicuro, Lucrécio, Séneca, Espinosa, e ensinou-me que todos eles, no fundo, são semelhantes, e que o que escreveram é sempre actual, muito embora somente mais velhos os entendamos bem.


Falei-lhe na Marta, fora aluna dele também. Aqui fizemos uma pequena excepção: falámos desse passado. Mas queria ouvi-lo dizer que a Marta fora uma excelente aluna e apesar de ser tímida e discreta, não participara menos por isso nas actividades. Conversámos sobre a possibilidade de ser ela mesma que eu vislumbrei na cidade onde eu resido. Talvez, afinal Lisboa onde estudámos não é longe, ela cursou medicina, portanto pode ter andado de hospital em hospital. Mas deve encontrar-se há pouco tempo onde a vi, porque de outro modo seria completamente estranho não me ter cruzado com ela. “Olha, meu caro, até pode lá andar há muito, só que nenhum de vós andaria então disponível para se reconhecerem…”. Andarei eu disponível, eu que enviuvei de uma mulher que já não amava há muito? Andará ela disponível para um encontro? “Pergunta-lhe e logo saberás!». É verdade, professor.

2 comentários:

Meg disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Meg disse...

Pergunta-lhe e logo saberás!

Sábia resposta... e tão óbvia!

Um abraço

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