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quarta-feira, 23 de janeiro de 2019


Antes pelo contrário
Antes pelo contrário
Daniel Oliveira
Uma investigação mal feita sobre o PCP não é anticomunismo, é mau jornalismo

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Uma autarquia dirigida pelo PCP pode contratar os serviços do genro do secretário-geral do partido? Qual é a fronteira entre o nepotismo e o direito de familiares de políticos manterem relações com instituições públicas? O genro de um primeiro-ministro não se pode relacionar com o Estado? E o do Presidente da República? Tendo em conta que a CDU não dirige assim tantas câmaras e que Jorge Bernardino não parece, pelo seu currículo, ser um fornecedor incontornável, talvez o bom senso mandasse que não se candidatasse a trabalhar com uma autarquia dirigida pelo partido que o sogro lidera. E se ele próprio for militante do PCP, a cautela deveria ser ainda maior. Se não for pela defesa da imagem do Estado, que seja para não prejudicar o seu partido.
Ainda assim, é bom ser rigoroso. Antes de tudo, a comparação que o PS local fez com uma velha acusação ao seu mandato em Loures é, para dizer o mínimo, forçada. Uma autarquia ter negócios com um familiar de um dirigente do partido que tem a presidência da câmara, quando esse dirigente nem sequer tem qualquer função nessa entidade pública, não é a mesma coisa que um presidente da câmara contratar a mulher, a filha, dois cunhados e a nora. Haja um bocadinho de decoro.
Também seria importante a TVI ter algumas informações importantes que, na realidade, fragilizam a relevância da história. Que Jorge Bernardino foi escolhido depois de uma consulta prévia a mais duas empresas, como a lei exige, tendo sido ele quem apresentou os preços mais baixos. Que aquilo que na peça é resumido a mudar umas lâmpadas, uns casquilhos e uns cartazes corresponde a garantir a manutenção permanente de 438 abrigos de paragem, incluindo a substituição de publicidade institucional. Não é pago à peça. Que recebe pelos 438 abrigos menos do que outra empresa recebia por 271 (quando Jorge Bernardino apenas garantia a manutenção de 153). Que o aumento do valor pago a Jorge Bernardino, apresentado como suspeito, resulta desta passagem de 153 para 438 abrigos. E, acima de tudo, que não estamos a falar de um salário ou de uma avença para um biscateiro mas da contratação de um serviço externo, o que inclui todas as despesas associadas e não apenas a mão de obra. A comparação com o salário do presidente da câmara é idiota. A ninguém passaria pela cabeça comparar o salário do primeiro-ministro com o que o Estado paga a um fornecedor pelos seus serviços.
Descontado o que a peça da TVI não nos quis contar, que esvaziaria parte do assunto, e parecendo que todos os procedimentos legais foram cumpridos, restava o incómodo ético de um familiar do líder de um partido manter relações comerciais com uma câmara dirigida por esse partido. Cada um decidirá até onde leva os seus pruridos, mas seguramente isto não permite o escândalo que se instalou. Pelo menos não me lembro de igual reação perante as relações que o genro do ex-Presidente Cavaco Silva foi mantendo com o Estado, seguramente bem mais relevantes (nos valores e no impacto) do que a manutenção de uns abrigos.
A melhor forma de combater a mentira (ou a meia-verdade) é a verdade. Foi o que fez o comunicado da Câmara Municipal de Loures. A pior forma é apelar a uma excecionalidade vitimizadora para cerrar fileiras, sem gastar uma linha a esclarecer os factos. Foi o que fez o PCP. Esteve bem Bernardino Soares, esteve mal o PCP, esteve péssima a TVI
Sendo altamente improvável que o presidente da câmara não tenha dado todos estes esclarecimentos ao jornalista (eles estão no site da autarquia), fica a dúvida: porque ficámos sem saber estes “pormenores” sobre a relação contratual entre o genro de Jerónimo de Sousa e a Câmara Municipal de Loures? Porque se eles tivessem sido apresentados a coisa não se ia vender tão bem. E este é um dos problemas do jornalismo mercantilizado: quanto melhor for o produto menor o seu valor comercial.
Dito tudo isto, a reação do PCP não podia ter sido pior. Em vez de remeter para os esclarecimentos da Câmara de Loures, que me parecem rigorosos, preferiu antecipar-se e vir com a velha acusação de “anticomunismo”, num comunicado carregado de adjetivos, onde até o combate ao fascismo vem à baila, banalizando-o da pior forma. Infelizmente, esta reação não é nova. Já aconteceu em circunstâncias em que o PCP não tinha razão. Ela não resulta apenas do sentimento momentâneo de injustiça (que outros partidos já sofreram), mas da ideia instalada na Soeiro Pereira Gomes de que pôr em causa a seriedade de um comunista é um crime de lesa-majestade.
O PCP está tão sujeito ao escrutínio democrático como qualquer outro partido. Não goza de maior presunção de inocência que todos os outros, nem tem de ser visto como se fosse tributário de algum tipo de superioridade moral. Os dirigentes do PCP são tão honestos e tão desonestos como os de qualquer outro partido. Quem conhece as autarquias dirigidas pelo PCP sabe que lá pode encontrar tantos casos de favorecimentos e irregularidades como em qualquer outro lado. Assim sendo, o PCP não tem de reagir a notícias que considera injustas como se elas tivessem uma natureza diferente de qualquer outra investigação pouco rigorosa. Não há qualquer razão para imensas notícias mal feitas sobre o PS, o PSD, o CDS ou o BE serem apenas mau jornalismo e uma notícia injusta sobre o PCP ser anticomunista feito “a par da conhecida promoção da extrema-direita e da reabilitação de Salazar e do regime fascista”. E a vitimização é absurda. Na realidade, pela discrição pública que mantêm e o mito de que são mais sérios do que os outros, os autarcas e dirigentes do PCP até são menos escrutinados do que os dos outros partidos.
A melhor forma de combater a mentira (ou a meia-verdade) é a verdade. Foi o que fez o comunicado da Câmara Municipal de Loures. A pior é apelar a uma excecionalidade vitimizadora para cerrar fileiras, sem gastar uma linha a esclarecer os factos relevantes. Foi o que fez o PCP. É uma falta de respeito pelos seus eleitores. Como se a expressão “anticomunismo” chegasse para que não haja mais perguntas. Esteve bem Bernardino Soares, esteve mal o PCP, esteve péssima a TVI.
NOTA: Sim, tenciono escrever sobre o que aconteceu no Bairro da Jamaica e na Avenida da Liberdade. Não, não o tenciono fazer sem perceber o que realmente aconteceu num e noutro lado. E comunicados da PSP não me chegam – não acredito no jornalismo oficioso. Um vídeo viral também não. Não, não parto do princípio de que a população do bairro teve razão. Não, também não parto do princípio de que a polícia agiu bem. E não, não acho que este debate, para ser mais do que uma crónica sobre um episódio, possa passar ao lado do que é o Bairro da Jamaica e porque é que ele existe num país do primeiro mundo. Nunca me colocarei no lugar do burguês assustado com a invasão dos bárbaros. Que ignora a revolta para exigir o sossego que quem vive no Jamaica nunca teve. Mesmo que eu seja um burguês e até me assuste às vezes. Porque ver os invisíveis que se amontoam em lugares por onde nem sequer alguma vez passámos é o dever de quem quer ser justo. Para os ver não precisamos de dividir o mundo entre bons e maus. Basta desejar mais do que a popularidade fácil. Por isso, cheira-me que esse texto vai esperar pelo fim de semana.

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