Uma
autarquia dirigida pelo PCP pode contratar os serviços do genro do
secretário-geral do partido? Qual é a fronteira entre o nepotismo e o
direito de familiares de políticos manterem relações com instituições
públicas? O genro de um primeiro-ministro não se pode relacionar com o
Estado? E o do Presidente da República? Tendo em conta que a CDU não
dirige assim tantas câmaras e que Jorge Bernardino não parece, pelo seu
currículo, ser um fornecedor incontornável, talvez o bom senso mandasse
que não se candidatasse a trabalhar com uma autarquia dirigida pelo
partido que o sogro lidera. E se ele próprio for militante do PCP, a
cautela deveria ser ainda maior. Se não for pela defesa da imagem do
Estado, que seja para não prejudicar o seu partido.
Ainda
assim, é bom ser rigoroso. Antes de tudo, a comparação que o PS local
fez com uma velha acusação ao seu mandato em Loures é, para dizer o
mínimo, forçada. Uma autarquia ter negócios com um familiar de um
dirigente do partido que tem a presidência da câmara, quando esse
dirigente nem sequer tem qualquer função nessa entidade pública, não é a
mesma coisa que um presidente da câmara contratar a mulher, a filha,
dois cunhados e a nora. Haja um bocadinho de decoro.
Também
seria importante a TVI ter algumas informações importantes que, na
realidade, fragilizam a relevância da história. Que Jorge Bernardino foi
escolhido depois de uma consulta prévia a mais duas empresas, como a
lei exige, tendo sido ele quem apresentou os preços mais baixos. Que
aquilo que na peça é resumido a mudar umas lâmpadas, uns casquilhos e
uns cartazes corresponde a garantir a manutenção permanente de 438
abrigos de paragem, incluindo a substituição de publicidade
institucional. Não é pago à peça. Que recebe pelos 438 abrigos menos do
que outra empresa recebia por 271 (quando Jorge Bernardino apenas
garantia a manutenção de 153). Que o aumento do valor pago a Jorge
Bernardino, apresentado como suspeito, resulta desta passagem de 153
para 438 abrigos. E, acima de tudo, que não estamos a falar de um
salário ou de uma avença para um biscateiro mas da contratação de um
serviço externo, o que inclui todas as despesas associadas e não apenas a
mão de obra. A comparação com o salário do presidente da câmara é
idiota. A ninguém passaria pela cabeça comparar o salário do
primeiro-ministro com o que o Estado paga a um fornecedor pelos seus
serviços.
Descontado o que a
peça da TVI não nos quis contar, que esvaziaria parte do assunto, e
parecendo que todos os procedimentos legais foram cumpridos, restava o
incómodo ético de um familiar do líder de um partido manter relações
comerciais com uma câmara dirigida por esse partido. Cada um decidirá
até onde leva os seus pruridos, mas seguramente isto não permite o
escândalo que se instalou. Pelo menos não me lembro de igual reação
perante as relações que o genro do ex-Presidente Cavaco Silva foi
mantendo com o Estado, seguramente bem mais relevantes (nos valores e no
impacto) do que a manutenção de uns abrigos.
A
melhor forma de combater a mentira (ou a meia-verdade) é a verdade. Foi o
que fez o comunicado da Câmara Municipal de Loures. A pior forma é
apelar a uma excecionalidade vitimizadora para cerrar fileiras, sem
gastar uma linha a esclarecer os factos. Foi o que fez o PCP. Esteve bem
Bernardino Soares, esteve mal o PCP, esteve péssima a TVI
Sendo altamente improvável que o presidente da câmara não tenha dado todos estes esclarecimentos ao jornalista (eles estão no site da autarquia),
fica a dúvida: porque ficámos sem saber estes “pormenores” sobre a
relação contratual entre o genro de Jerónimo de Sousa e a Câmara
Municipal de Loures? Porque se eles tivessem sido apresentados a coisa
não se ia vender tão bem. E este é um dos problemas do jornalismo
mercantilizado: quanto melhor for o produto menor o seu valor comercial.
Dito tudo isto, a reação do PCP
não podia ter sido pior. Em vez de remeter para os esclarecimentos da
Câmara de Loures, que me parecem rigorosos, preferiu antecipar-se e vir
com a velha acusação de “anticomunismo”, num comunicado carregado de
adjetivos, onde até o combate ao fascismo vem à baila, banalizando-o da
pior forma. Infelizmente, esta reação não é nova. Já aconteceu em
circunstâncias em que o PCP não tinha razão. Ela não resulta apenas do
sentimento momentâneo de injustiça (que outros partidos já sofreram),
mas da ideia instalada na Soeiro Pereira Gomes de que pôr em causa a
seriedade de um comunista é um crime de lesa-majestade.
O
PCP está tão sujeito ao escrutínio democrático como qualquer outro
partido. Não goza de maior presunção de inocência que todos os outros,
nem tem de ser visto como se fosse tributário de algum tipo de
superioridade moral. Os dirigentes do PCP são tão honestos e tão
desonestos como os de qualquer outro partido. Quem conhece as autarquias
dirigidas pelo PCP sabe que lá pode encontrar tantos casos de
favorecimentos e irregularidades como em qualquer outro lado. Assim
sendo, o PCP não tem de reagir a notícias que considera injustas como se
elas tivessem uma natureza diferente de qualquer outra investigação
pouco rigorosa. Não há qualquer razão para imensas notícias mal feitas
sobre o PS, o PSD, o CDS ou o BE serem apenas mau jornalismo e uma
notícia injusta sobre o PCP ser anticomunista feito “a par da conhecida
promoção da extrema-direita e da reabilitação de Salazar e do regime
fascista”. E a vitimização é absurda. Na realidade, pela discrição
pública que mantêm e o mito de que são mais sérios do que os outros, os
autarcas e dirigentes do PCP até são menos escrutinados do que os dos
outros partidos.
A melhor
forma de combater a mentira (ou a meia-verdade) é a verdade. Foi o que
fez o comunicado da Câmara Municipal de Loures. A pior é apelar a uma
excecionalidade vitimizadora para cerrar fileiras, sem gastar uma linha a
esclarecer os factos relevantes. Foi o que fez o PCP. É uma falta de
respeito pelos seus eleitores. Como se a expressão “anticomunismo”
chegasse para que não haja mais perguntas. Esteve bem Bernardino Soares,
esteve mal o PCP, esteve péssima a TVI.
NOTA:
Sim, tenciono escrever sobre o que aconteceu no Bairro da Jamaica e na
Avenida da Liberdade. Não, não o tenciono fazer sem perceber o que
realmente aconteceu num e noutro lado. E comunicados da PSP não me
chegam – não acredito no jornalismo oficioso. Um vídeo viral também não.
Não, não parto do princípio de que a população do bairro teve razão.
Não, também não parto do princípio de que a polícia agiu bem. E não, não
acho que este debate, para ser mais do que uma crónica sobre um
episódio, possa passar ao lado do que é o Bairro da Jamaica e porque é
que ele existe num país do primeiro mundo. Nunca me colocarei no lugar
do burguês assustado com a invasão dos bárbaros. Que ignora a revolta
para exigir o sossego que quem vive no Jamaica nunca teve. Mesmo que eu
seja um burguês e até me assuste às vezes. Porque ver os invisíveis que
se amontoam em lugares por onde nem sequer alguma vez passámos é o dever
de quem quer ser justo. Para os ver não precisamos de dividir o mundo
entre bons e maus. Basta desejar mais do que a popularidade fácil. Por
isso, cheira-me que esse texto vai esperar pelo fim de semana.
Sem comentários:
Enviar um comentário