O Início de um Novo Debate: o Regresso da Estratégia
Daniel Bensaïd
Transcrição autorizada |
Primeira Edição: Este artigo aborda as
questões suscitadas pela discussão sobre estratégia revolucionária, que
podem ser encontradas no número de Março de 2006 da Critique
Communiste, revista teórica da LCR, e continuadas num seminário em Paris
ocorrido no passado mês de Junho. Participaram ainda, o Editor da
Critique Communiste Antoine Artous, militantes da LCR como Cedric Durand
e Francis Sitel, e Alex Callinicos do SWP (Socialist Workers Party)
Britânico. Os assuntos em debate vão desde a natureza da revolução
socialista até à atitude tomada em relação às forças antineoliberais
nãorevolucionárias em França[1].
Fonte: Associação Política Socialista Revolucionária.
HTML: Fernando A. S. Araújo
Fonte: Associação Política Socialista Revolucionária.
HTML: Fernando A. S. Araújo
Verificou-se, desde o início dos anos 80, um “eclipse do debate estratégico”, em contraste com as discussões suscitadas nos anos 70 pelas experiências no Chile e em Portugal (mais tarde na Nicarágua e América Central). A ofensiva neoliberal tornou os anos 80, na melhor das hipóteses, numa década de resistência social, marcada pelo carácter defensivo da luta de classes, mesmo nos casos — América Latina — onde a pressão democrática popular conduziu à queda de ditaduras.
O abandono da política encontrou expressão no que pode ser designado por “ilusão social” (uma analogia à “ilusão política” denunciada pelo Jovem Marx, relativamente aos que concebiam a emancipação política — direitos cívicos — como sendo a última palavra em termos de “emancipação humana”). Até certo ponto, existiu uma ilusão em relação à auto-suficiência dos movimentos sociais decorrente das experiências após Seattle (1999) e do primeiro Fórum Social Mundial de Porto Alegre (2001).
Simplificando, designo este fenómeno como o “momento utópico” dos movimentos sociais, que assumiu diversas formas: utopias baseadas na regulação dos mercados livres; utopias keynesianas; e acima de tudo utopias neo-libertárias, nas quais o mundo poderia ser mudado sem tomar o poder ou através da criação de contra-poderes (John Holloway, Toni Negri, Richard Day).
O ascenso das lutas sociais na América Latina converteu-se em vitórias políticas e eleitorais — Venezuela e Bolívia. Mas na Europa estas lutas foram derrotadas, com a excepção do movimento anti-CPE na França, não se tendo conseguido impedir a continuação das privatizações, das reformas da protecção social e o desmantelamento dos direitos sociais. A ausência de vitórias sociais causou mais uma vez a transferência de expectativas para soluções políticas (maioritariamente eleitorais), como demonstrou o exemplo italiano.[2]
Este “regresso da política” conduziu ao reavivar de debates acerca da estratégia. Exemplo disso são as polémicas à volta dos livros de Holloway, Negri e Michael Albert, bem como as diferentes avaliações do processo Venezuelano e da Administração Lula no Brasil, mas também a inflexão da orientação Zapatista ilustrada pela 6ª Declaração da Selva Lacandona e a “Outra Campanha” no México. As discussões em torno do projecto de um novo manifesto da LCR ou do Manifesto Anti-capitalista de Alex Callinicos[3] surgem no mesmo contexto. Assistimos ao fim da fase da grande recusa e da resistência estóica — o “grito” de Holloway face à “mutilação das vidas humanas pelo capitalismo”, slogans como “o mundo não é uma mercadoria” ou “o mundo não está à venda”. Necessitamos de ser específicos relativamente ao mundo “possível” e, acima de tudo, explorar como lá chegar.
Há estratégias e estratégias
As noções de estratégia e de táctica (mais tarde as de guerra de posição e de guerra de manobra) são termos militares importados para o glossário do movimento operário — acima de tudo pelos escritos de Clausewitz e de Delbruck. No entanto, o seu significado tem variado significativamente. Se inicialmente “estratégia” era a arte de vencer uma batalha, referindo-se a táctica a movimentos de tropas no campo de batalha; este conceito expandiu, temporal e espacialmente, abrangendo, desde guerras dinásticas a guerras nacionais; da guerra total à guerra global. Actualmente é possível distinguir entre uma estratégia global à escala mundial e uma “estratégia limitada” (a luta pela conquista do poder num território determinado). A teoria da revolução permanente delineou, de alguma forma, uma estratégia global. A revolução inicia-se à escala nacional (num país) e expande-se ao nível continental e mundial; ascende a um patamar decisivo com a conquista do poder político mas é prolongada e aprofundada por uma “revolução cultural”. Combina, portanto, acto e processo, acontecimento e história.Face a Estados potentes que possuem estratégias económicas e militares mundiais, esta dimensão da estratégia global é hoje ainda mais importante do que foi na primeira metade do século XX. Tal é demonstrado pela emergência de áreas estratégicas à escala continental e mundial. A dialéctica da revolução permanente (por oposição à teoria do socialismo num só país), por outras palavras, a imbricação das escalas nacional, continental e mundial, é mais estreita do que nunca. É possível tomar o poder num país (como na Venezuela e na Bolívia), mas a questão da estratégia continental torna-se imediatamente num assunto de política doméstica – como são as discussões na América Latina sobre a ALBA versus a ALCA(a), da relação com a Mercosur, com o Pacto Andino. De uma forma mais prosaica, na Europa, a resistência às contra-reformas neoliberais pode ser reforçada pela relação de forças ao nível nacional e por ganhos legislativos. Mas uma abordagem transitória das questões dos serviços públicos, impostos, protecção social, ecologia só pode ser desenvolvida a uma escala europeia.[4]
Hipóteses estratégicas
Aqui circunscrevo-me à questão que designei como de “estratégia limitada” – a luta pela conquista do poder à escala nacional. O contexto da globalização pode enfraquecer os estados nacionais e conduz à transferência de alguma soberania. Mas a dimensão nacional, que estrutura as relações de classe e associa território a estado, mantém-se a dimensão decisiva na escala dos espaços estratégicos. Coloquemos de lado as críticas de John Holloway e Cédric Durand[5] que nos atribuem uma visão “etapista” do processo revolucionário, segundo a qual conceberíamos a tomada do poder como a “pré-condição absoluta” para qualquer transformação social. Este argumento é, ou uma caricatura, ou advém da ignorância.Os conceitos de frente única, reinvindicações transitórias e de governo dos trabalhadores – defendidas não apenas por Trotsky mas também por Thalheimer, Radek e Clara Zetkin[6] – têm um objectivo preciso: visam associar acontecimento às suas condições preparatórias, revolução a reformas, objectivo a movimento. As noções gramscianas de Hegemonia e de “guerra de posições” operam sobre os mesmos propósitos.[7] A oposição entre Leste (onde o poder seria mais fácil de conquistar mas mais difícil de manter) e o Ocidente advém da mesma preocupação[8]. Nunca fomos admiradores da teoria do mero colapso do sistema.
Sempre insistimos no papel do “factor subjectivo” contra quer a visão espontaneista do processo revolucionário, quer do imobilismo estruturalista dos anos 60. A nossa insistência não é num “modelo” mas sim naquilo que designamos de “hipóteses estratégicas”.[10] Os modelos são para serem copiados; são instruções de uso. Uma hipótese é um guia para a acção que parte da experiência passada mas que é aberta, podendo ser modificada à luz de nova experiência ou de circunstâncias inesperadas.
Consequentemente a nossa preocupação não é de especular, mas de observar o que pode ser retirado da experiência passada — o único material à nossa disposição. Mas devemos sempre reconhecer que esta é necessariamente mais pobre que a do presente e do futuro. Os revolucionários correm sempre por conseguinte o risco que os militares dos quais se costuma dizer que têm sempre uma guerra de atraso.
O nosso ponto de partida é o das grandes experiências revolucionárias do século XX – a revolução russa, a revolução chinesa, a revolução alemã, as frentes populares, a guerra civil espanhola, a guerra de libertação vietnamita, Maio de 68, Portugal, Chile. Utilizamo-las para distinguir entre duas hipóteses principais, ou cenários: greve geral insurreccional e guerra popular prolongada. Estas comportam dois tipos de crise, duas formas de poder dual, duas maneiras de resolver a crise.
Relativamente à greve geral insurreccional, o poder dual assume uma forma predominantemente urbana, do tipo Comuna (não apenas da Comuna de Paris, mas também do Soviete de Petrogrado, das insurreições em Hamburgo em 1923, Cantão em 1927, Barcelona em 1936). O poder dual não dura muito tempo numa área concentrada. Consequentemente a confrontação conduz a uma rápida resolução, embora tal possa por sua vez conduzir a uma confrontação prolongada: guerra civil na Rússia, guerra de libertação no Vietname após a insurreição de 1945. Neste cenário a tarefa de desmoralização do exército e de organização dos soldados assume um papel importante. De entre as mais recentes e significativas experiências a este respeito são de destacar os comités de soldados em França, o movimento dos SUV (Soldados Unidos Vencerão) em 1975 em Portugal, e o trabalho conspirativo do MIR(b) no exército chileno em 1972-73.
No caso da estratégia de guerra popular prolongada, a questão é o poder dual territorial através de zonas libertadas e auto-administradas, que podem durar bastante mais tempo. Mao compreendeu estas condições já em 1927 aquando da publicação do seu panfleto “ Porque é que o poder vermelho pode existir na China?” e a experiência da República Yenan(c) demonstra como se concretiza.
De acordo com o cenário da greve geral insurreccional, os órgãos de poder alternativo são socialmente determinados por condições urbanas; de acordo com o cenário da guerra popular prolongada, estes são centralizados no (predominantemente camponês) “exército popular”.
Existe uma amplitude grande de variantes e de combinações intermédias entre estas duas hipóteses no seu tipo ideal. A Revolução Cubana tornou os focos de guerrilha numa articulação entre o grosso do exército rebelde e as tentativas de organizar e convocar greves gerais urbanas em Havana e Santiago.[11] A relação entre as duas foi problemática como pode ser observado pela correspondência de Frank Pais,(d) Daniel Ramos Latour e do próprio Che acerca das tensões entre “a serra” e a “planície”. Retrospectivamente, a narrativa oficial privilegiou a história épica do Gramna(e) e dos seus sobreviventes. Tal contribuiu para reforçar a legitimidade deste elemento no movimento 26 de Julho e do grupo Castrista, em detrimento de uma compreensão mais complexa do processo.
Esta versão simplificada da história converteu-se num modelo para a guerra de guerrilha camponesa e inspirou as experiências dos anos 60 no Peru, Venezuela, Nicarágua, Colômbia, Bolívia. As mortes de De La Puente e de Lobatòn no Peru (1965), Camilo Torres na Colômbia (1966), Yon Sosa e Lúcio Cabañas no México, Carlos Marighela e Lamarca no Brasil, a trágica expedição de Che à Bolívia, a quase aniquilação dos Sandinistas em 1963 e 1969, o desastre de Teoponte na Bolívia em 1970, marcam o fim deste ciclo.
As hipóteses estratégicas do PRT argentino(f) e do MIR chileno, fizeram maior uso, no início dos anos 70, do exemplo vietnamita da guerra popular (e, no caso do PRT, da versão mítica da guerra argelina de libertação). A história da Frente Sandinista até à sua vitória sobre a ditadura Somoza em 1979 mostra uma mistura de diferentes perspectivas. A tendência “guerra popular prolongada” de Tomàs Borge enfatizou o desenvolvimento de uma presença de guerrilha nas montanhas e a necessidade de um longo período de acumulação gradual de forças. A Tendência Proletariado de Jaime Wheelock insistiu nos efeitos sociais do desenvolvimento do capitalismo na Nicarágua e no fortalecimento da classe operária, embora retendo a perspectiva de uma acumulação prolongada de forças com vista ao “momento insurreccional”. A tendência “Terceirista” dos irmãos Ortega constituiu uma síntese das outras duas o que criou condições para a coordenação entre a frente sul e o levantamento em Manágua.
Humberto Ortega resumiu as diferenças da seguinte forma:
“a política que consiste na não intervenção nos
acontecimentos, de acumular forças a partir do nada, é o que eu chamo de
política de acumulação passiva de forças. Esta passividade foi evidente
ao nível das alianças. Houve também passividade no facto de pensarmos
que poderíamos acumular armas, nos organizar, juntar recursos humanos
sem enfrentar o inimigo, sem a participação das massas.”[12]
Ele reconheceu que as circunstâncias afectaram os seus diversos planos:
“nós defendíamos a insurreição. O suceder de eventos
precipitou-se, as condições objectivas não nos permitiram grande
preparação. Na realidade, não podíamos dizer não a esta insurreição –
tal era a amplitude do movimento de massas que a vanguarda foi incapaz
de o dirigir. Não nos podíamos opor a esta torrente. Tudo o que podíamos
fazer era nos colocar à frente na esperança de a liderar e de lhe
conferir um sentido de direcção.”
Conclui:
“a nossa estratégia de insurreição sempre gravitou em torno das massas e não de um qualquer plano militar. Tal deve ser claro.“
Na realidade, possuir uma opção estratégica implica a definição de
prioridades políticas, de quando intervir, de que slogans utilizar. Tal
também determina a política de alianças.A narrativa de Mário Payeras sobre o processo na Guatemala[13] ilustra o regresso da floresta para a cidade e a mudança da relação entre as dimensões militares e políticas, do campo e da cidade, e a “Crítica das armas” (ou auto crítica) de Regis Debray em 1974, fornece uma descrição desta evolução durante os anos 60. Houve as aventuras desastrosas da Fracção Exército Vermelho na Alemanha, os Weathermen(g) nos Estados Unidos, para não falar da efémera tragicomédia da Esquerda Proletária(h) em França e das teses de July/Geismar(i) no seu inesquecível “A caminho da Guerra Civil” de 1969. Esta e outras tentativas de traduzir a experiência da guerra de guerrilha rural em “guerrilha urbana” tiveram um fim nos anos 70. Os únicos movimentos armados a durar foram das organizações que baseavam a sua intervenção em torno das lutas contra a opressão nacional (Irlanda, País Basco).[14]
Estas experiências e hipóteses estratégicas não são reduzíveis a uma orientação militarista. Elas são ordenadoras das tarefas políticas. Assim a concepção do PRT da revolução argentina como sendo uma guerra nacional de libertação implicou privilegiar a construção de um exército (ERP) em detrimento da auto-organização nos locais de trabalho e de moradia. Similarmente, a orientação do MIR de enfatizar, no quadro da “Unidade Popular”, a acumulação de forças (e base rural) conduziu à desvalorização da ameaça de um golpe de estado e acima de tudo à subestimação das suas consequências a longo prazo. Como claramente constatou Miguel Enriquez, secretário geral do MIR, após o falhanço do primeiro golpe de 29 de Junho houve um breve período favorável à formação de um governo de combate que poderia ter preparado um confronto de forças.
A vitória Sandinista em 1979 marcou sem dúvida uma nova fase. É pelo menos esta a opinião de Mário Payeras que enfatizou que na Guatemala (bem como em El Salvador) os movimentos revolucionários não foram confrontados por ditaduras fantoche mas sim por “conselheiros” de Israel, Taiwan e dos Estados Unidos em guerras de “baixa intensidade” e de “contra-insurreição”. Esta crescente assimetria tornou-se global com as novas doutrinas estratégicas do Pentágono e a declaração de guerra “ilimitada” contra o “terrorismo”.
Esta é uma razão pela qual (conjuntamente com a trágica hiperviolência da experiência Cambodjana, a contra-revolução burocrática na URSS e a revolução cultural na China) a questão da violência revolucionária se tornou num assunto divisor, mesmo tabu, quando no passado as sagas épicas do Gramna e de Che, ou os escritos de Fanon, Giap ou Cabral faziam a violência aparecer como inocente ou libertadora. O que agora assistimos é uma translação no sentido de uma estratégia assimétrica dos fracos e dos fortes, uma tentativa de sintetizar Lenin e Gandhi[15] ou orientar no sentido da não-violência.[16] No entanto o mundo não se tornou menos violento desde a queda do muro de Berlim. Seria prematuro e desfasado da realidade apostar numa “via pacífica”, que o século dos extremos, não veio a confirmar.
A hipótese da greve geral insurreccional
A linha orientadora desta hipótese estratégica nos anos 70 foi a greve geral insurreccional, que, na maioria dos casos, não tinha quaisquer semelhanças com as variantes de maoismo e de interpretações imaginárias da Revolução Cultural. É a hipótese da qual somos actualmente “órfãos” de acordo com Antoine Artous.(j) O que poderia ter tido ontem algum tipo de “funcionalidade” perdeu-se completamente. O autor não nega no entanto, a continuidade da relevância das noções de crise revolucionária e de poder dual. Esta hipótese necessita, ele insiste, de séria reformulação – uma que evite a sua dissolução no termo “ruptura” e em confusões conceptuais. Dois aspectos cristalizam a sua preocupação.Por um lado, Antoine insiste que o poder dual não pode ser totalmente situado no exterior das instituições existentes ou surgir subitamente a partir do nada sob a forma de um pirâmide de sovietes ou de conselhos. Poderemos, em tempos idos, nos ter rendido a esta visão ultra-simplificada dos processos revolucionários vertida nos grupos de estudo político. Mas tenho dúvidas sobre isso. Apesar de tudo, outros textos[17] rapidamente corrigiam essa visão que poderíamos ter. Poderemos até, em algum momento, ter ficado perturbados ou chocados com a ideia de Ernest Mandel de “democracia mista”(k) após ter reavaliado a relação entre os sovietes e a Assembleia Constituinte na Rússia. No entanto não é possível imaginar um processo revolucionário de outra forma que não seja através da transferência de legitimidade que confira preponderância ao “socialismo pela base” mas que interaja com formas de representação, principalmente em países com longas tradições parlamentares e onde o principio do sufrágio universal esteja firmemente enraizado.
Na prática, as nossas ideias evoluíram – como foi o caso, por exemplo, da revolução na Nicarágua. No contexto de uma guerra civil e de um estado de cerco, a organização de eleições “livres” em 1989 era discutível mas não questionámos o princípio. No entanto criticámos os Sandinistas por terem suprimido o “conselho de estado”,(l) que poderia ter constituído uma espécie de segunda câmara e ser um pólo de legitimidade alternativa à do parlamento eleito. Similarmente, apesar de numa escala mais modesta, o exemplo da dialéctica de Porto Alegre entre instituições municipais (eleitas por sufrágio universal) e as instâncias participativas, é algo que deve ser tido em consideração.
O problema que na realidade enfrentamos não é o da relação entre democracia territorial e democracia no local de trabalho (a Comuna de Paris, os Sovietes e a Assembleia Popular de Setúbal em Portugal em 1975 eram estruturas territoriais), nem sequer a relação entre democracia directa e democracia representativa (todas as formas de democracia são parcialmente representativas). O problema é o de como a vontade geral é formada.
A maioria das críticas ao modelo de democracia soviética dirigidas pelos Euro-comunistas(m) ou por Norberto Bobbio(n) é dirigida à sua tendência para o corporativismo: uma soma (ou pirâmide) de interesses particulares (paroquiais, do escritório e local de trabalho), ligados por um sistema de mandatos, não permitiria a criação de uma vontade geral. A subsidiariedade democrática possui também as suas limitações. Se os habitantes de um vale se opuserem à passagem de uma estrada ou se uma cidade for contra a existência de um centro de recolha de resíduos (de forma a transferir o problema para os seus vizinhos), então terá necessariamente que existir algum tipo de arbitragem centralizada.[18] Nos nossos debates com os Eurocomunistas sempre insistimos na necessária mediação (e pluralidade) de partidos de forma a que pudesse emergir uma síntese de propostas e contribuir para a formação da vontade geral a partir de pontos de vista particulares. Os nossos documentos programáticos progressivamente incorporaram a hipótese geral de uma dupla Câmara. Mas nunca nos aventurámos em especular sobre minúcias institucionais - os pormenores práticos mantém-se abertos à experiência.
A segunda preocupação de Antoine Artous, designadamente a patente na sua crítica de Alex Callinicos, baseia-se na asserção de que a abordagem transitória deste termina no limiar da questão do poder. Esta ficaria por resolver por algum pouco convincente deus ex machina,(o) supostamente por um levantamento de massas espontâneo e pela emergência generalizada de democracia do tipo soviético. Apesar da defesa das liberdades políticas figurar claramente no programa de Callinicos, este não faria qualquer tipo de exigência de natureza institucional (por exemplo, a exigência de representação proporcional, uma assembleia constituinte ou uma câmara única, ou uma democratização radical). Cédric Durand, por outro lado, parece conceber as instituições como meras intermediárias para estratégias autónomas de protesto. Tal, na prática, pode-se reduzir a um compromisso entre a “base” e o “topo” – por outras palavras, de lobbying dos primeiros em relação aos segundos, mantendo-se tudo intacto.
Na realidade existe, entre os protagonistas desta controvérsia, acordo com os pontos fundamentais inspirados pela “Catástrofe Iminente” (Panfleto de Lenine editado no Verão de 1917) e pelo Programa de Transição da Quarta Internacional (inspirado por Trotsky em 1937): a necessidade de reivindicações transitórias, a política de alianças (frente única) a lógica de hegemonia e da dialéctica (e não antinomia) entre reforma e revolução. Estamos portanto contra a ideia de separação entre um programa mínimo (anti-neoliberal) e programa máximo (anti-capitalista). Permanecemos convencidos que um anti-neoliberalismo consequente conduz ao anti-capitalismo e de que os dois se encontram interligados pela dinâmica da luta.
Podemos discutir a formulação exacta das reivindicações transitórias em função da relação de forças e dos níveis de consciência existentes. É fácil chegar a acordo relativamente às questões da propriedade dos meios de produção, comunicação e troca – quer seja em relação ao sector público da educação, património comum da humanidade, ou à crescentemente importante questão da socialização do conhecimento (por oposição à propriedade intelectual privada). Similarmente, é fácil concordar em explorar vias de socialização dos salários através de sistemas de protecção social como um passo para o enfraquecimento do sistema salarial como um todo. Finalmente, em oposição à generalização do mercado abrimos outras possibilidades de extensão do âmbito da gratuitidade, não apenas serviços, mas de bens básicos de consumo (desta forma des-mercantilizando).
A questão mais complicada da dimensão transitória é a do “governo dos trabalhadores”. Esta dificuldade não é nova. Os debates tidos durante o quinto congresso da Internacional Comunista (1924) sobre a Revolução Alemã e os governos sociais-democratas/comunistas na Saxónia/Turíngia (Verão de 1923) demonstram isso. Estes revelam uma ambiguidade por resolver das fórmulas saídas de congressos anteriores da Internacional Comunista e da amplitude de interpretações que podem suscitar quando levadas à prática. Treint(p) sublinhou no seu relatório que
“a ditadura do proletariado não cai do céu; necessita
de ter um início e o governo dos trabalhadores é sinónimo do inicio da
ditadura do proletariado.”
No entanto ele denunciou a “saxonização” da frente única:
“A entrada dos comunistas num governo de coligação
com pacifistas burgueses de forma a prevenir uma intervenção contra a
revolução não estava errada em teoria, mas governos como os do partido
Trabalhista conduzem a que a “democracia burguesa encontre eco dentro
dos nossos partidos”.
Smeral (Checoslovaco) declarou no debate sobre a actividade da Internacional:
“no que diz respeito às teses do nosso Congresso de
Fevereiro de 1923 sobre o governo dos trabalhadores, quando as
elaborámos, estávamos convencidos que estavam de acordo com a linha
defendida no quarto congresso. Foram adoptadas por unanimidade. Mas “que
querem dizer as massas quando se referem a um governo dos
trabalhadores? Em Inglaterra pensam no Partido Trabalhista, na Alemanha e
em outros países onde se verifica uma decomposição do capitalismo, a
frente única significa que comunistas e sociais democratas, em vez de
lutarem uns contra os outros quando a greve eclode, marcham lado a lado.
Para as massas o governo dos trabalhadores tem o mesmo significado e
quando usamos esta fórmula imaginam um governo unido de todos os
partidos operários.”
Smeral continua:
“que profundas lições nos ensina a experiência na
Saxónia? Acima de tudo, isto: não é possível ultrapassar um conflito
inicial – existe um caminho a percorrer.”
A resposta de Ruth Fischer(q)
foi a de que a concepção de um governo de trabalhadores como uma
coligação de partidos operários significaria a “liquidação do nosso
partido”. No seu relatório sobre o fracasso da Revolução Alemã Clara Zetkin argumentava:
“No que concerne à questão de um governo dos operários e camponeses não posso aceitar a declaração de Zinoviev
que afirma que este é simplesmente um pseudónimo, um sinónimo, ou outro
tipo de homónimo, para a ditadura do proletariado. Tal pode ser
correcto para a Rússia mas não o é para países onde o capitalismo
floresce. Consequentemente o governo dos operários e camponeses é a
expressão política de uma situação onde a burguesia não se consegue
manter sozinha no poder, e em que o proletariado não se encontra ainda
em posição de impor a sua ditadura”.
De facto Zinoviev
definiu como “o objectivo elementar de um governo dos trabalhadores” o
de armar o proletariado, controlo operário sobre a produção, revolução
fiscal…Seria possível continuar a citar outras contribuições. Mas a impressão que se obtêm é a de uma enorme confusão que é a expressão de uma contradição real e de uma dificuldade em resolver o problema, apesar de ter surgido numa situação revolucionária ou pré-revolucionária. Seria irresponsável fornecer uma solução universalmente válida; no entanto, podem ser combinados três critérios de forma a avaliar a participação num governo de coligação com uma perspectiva transitória:
a) a questão da participação surge numa situação de crise ou pelo menos de um significativo ascenso nas mobilizações sociais, e não no vazio;
b) o governo em causa deverá estar comprometido com o início de uma dinâmica de ruptura com a ordem estabelecida. Por exemplo – e de forma mais modesta que a exigência de Zinoviev do armamento da classe operária – de uma reforma agrária radical, “incursões despóticas” no domínio da propriedade privada, a abolição de privilégios fiscais, uma ruptura com as instituições como as da quinta república em França, Tratados Europeus, Pactos militares, etc;
c) Finalmente, que a relação de forças permita aos revolucionários assegurar que, mesmo que não consigam garantir que os não-revolucionários no governo cumpram as suas promessas, estes paguem um elevado preço pelo seu incumprimento.
À luz destes critérios a participação no Governo Lula no Brasil(r) afigura-se como tendo sido um erro:
a) nos últimos 10 anos, com a excepção do movimento dos sem-terra, os movimentos de massas encontram-se em refluxo;
b) A campanha eleitoral de Lula e a sua “Carta aos Brasileiros” anunciava claramente uma politica social-liberal, hipotecando por antecipação o financiamento da reforma agrária e do programa “fome-zero”;
c) Finalmente, a relação de forças dentro do partido e do governo era tal, que com um semi-ministério da agricultura não era uma questão de apoiar o governo “como a corda sustenta o enforcado”, mas de como um fio de cabelo que não poderia sustê-lo. Posto isto, e tendo em conta a história do país, a sua estrutura social e a origem do PT, optamos por não tornar esta questão numa de princípio (embora tenhamos expresso oralmente as nossas reservas aos camaradas acerca da participação e alertámo-los para os perigos). Preferimos acompanhar a experiência de forma a elaborar um balanço com os camaradas, em vez de dar lições à distância.(s). [19]
Sobre a questão da ditadura do proletariado
A questão do governo dos trabalhadores traz-nos inevitavelmente para a questão da ditadura do proletariado. Uma conferência da LCR decidiu por maioria de mais de dois terços remover a sua menção dos estatutos. Foi uma decisão justa. Hoje em dia o termo ditadura mais facilmente convoca as ditaduras militares ou burocráticas do século XX do que a venerável instituição Romana de poderes de emergência temporários devidamente mandatados pelo Senado. Desde que Marx considerou a Comuna de Paris como “a forma política acabada” desta ditadura do proletariado, seríamos melhor compreendidos utilizando a referência da Comuna, Sovietes, conselhos ou auto-gestão, do que nos mantendo presos a uma palavra fetiche que a história converteu numa fonte de confusão.Pelo exposto, não conseguimos ainda resolver a questão levantada pela fórmula de Marx e a importância que lhe atribuiu na sua célebre carta a Kugelman. Em termos genéricos, a “ditadura do proletariado” tem tendência a ser associada à imagem de um regime autoritário e vista como um sinónimo de ditaduras burocráticas. Mas para Marx esta era uma solução democrática para um velho problema — o exercício pela primeira vez por parte da maioria (proletária) de poderes de emergência, que até agora tinham sido exercidos por uma virtuosa elite como o Comité de Segurança Pública, no caso da Revolução Francesa — mesmo que o Comité em questão tenha emanado da Convenção e pudesse ser responsabilizado por esta. No tempo de Marx o termo “ditadura” era muitas vezes contraposto ao de “tirania”, que era utilizado para designar despotismo.
A noção de ditadura do proletariado tinha também um significado estratégico, muitas vezes levantado nos debates tidos nos anos 70 após o seu abandono pela maioria dos partidos eurocomunistas. Marx percebeu claramente que o novo poder legal, como expressão de uma nova relação social, não poderia nascer se o velho se mantivesse: entre duas legitimidades sociais, “entre dois direitos iguais, é a força que decide”. A revolução implica portanto uma transição imposta por um estado de emergência. Carl Schmitt(t), leitor atento da polémica entre Lenine e Kautsky, percebeu perfeitamente o que estava em causa quando fez a distinção entre “ditadura comissarial”, cuja função no estado de crise era de preservar a ordem estabelecida, e de “ditadura soberana”, que inaugurava uma nova ordem pela virtude de um poder constitutivo.[20] Se esta perspectiva estratégica, independentemente do nome que lhe seja dado, se mantém válida então dai derivam necessariamente uma série de consequências sobre a forma como o poder é organizado, sobre legitimidade, sobre o funcionamento dos partidos, etc.
A actualidade (ou o contrário) de uma abordagem estratégica
A noção de “actualidade da revolução”(u) tem um duplo significado: um sentido amplo (“a época de guerras e revoluções”) e um sentido imediato e conjectural. No momento defensivo em que o movimento se encontra, tendo recuado durante mais de vinte anos na Europa, ninguém poderá reclamar a actualidade da revolução num sentido imediato. Por outro lado, seria arriscado e não de somenos importância eliminar a sua perspectiva dos horizontes da nossa época. Talvez Francis Sitel tenha tido a intenção de utilizar esta distinção na sua contribuição para este debate. Se procura evitar “uma visão animadora da actual relação de forças” do momento actual e prefere “uma perspectiva para a acção que enforme as lutas presentes sobre os resultados necessários dessas mesmas lutas”, então não existe grande motivo para divergência. Mas uma ideia susceptível de debate é a de manter o objectivo da conquista do poder “como um símbolo de radicalismo mas admitir que a sua realização se encontra actualmente longe dos nossos horizontes.”Para ele a questão do governo não se encontra ligada à questão do poder, mas a uma “reivindicação mais modesta”, a de “protecção” contra a ofensiva neoliberal. O debate sobre as condições para a participação num governo não entra pelo portal monumental da reflexão estratégica, mas sim pela “porta estreita dos partidos amplos”. O nosso medo é que neste caso talvez já não seja um programa (ou estratégia) que oriente a construção do partido, mas sim a mera soma algébrica de um partido amplo que determine o que seja considerado como a melhor política partidária. A questão do governo seria reduzida como questão estratégica e transformada numa mera “questão de orientação” (que foi, de alguma forma o que aconteceu no Brasil). Mas a “questão de orientação” não se encontra desligada da perspectiva estratégica a não ser que se caía na dissociação clássica entre programa mínimo e programa máximo. E se “amplo” é necessariamente mais generoso e aberto que estreito e fechado, existem diversos graus de amplitude: o PT brasileiro, o Partido da Esquerda na Alemanha, o ODP na Turquia, o Bloco de Esquerda em Portugal, a Refundação Comunista em Itália, não são da mesma natureza.
“Os desenvolvimentos mais eruditos em matéria de estratégia revolucionária surgem como demasiado etéreos”, conclui Francis Sitel, “quando comparados com a questão do que fazer aqui e agora.” Certamente esta válida máxima pragmática poderia ter sido declarada em 1905, Fevereiro de 1917, Maio de 1936, Fevereiro de 1968, reduzindo assim a dimensão das possibilidades a um realismo prosaico.
O diagnóstico de Francis Sitel, bem como o seu consequente ajustamento programático, não se encontra naturalmente isento de implicações práticas. No momento em que a nossa perspectiva não se limita apenas à tomada do poder mas se encontra inscrita no processo mais longo de “subversão do poder”, teríamos de reconhecer que “o partido tradicional[21] que se concentra na conquista de poder é conduzido a se adaptar ao próprio estado” e consequentemente a “transmitir no seu interior mecanismos de dominação que minam a própria dinâmica emancipatória”. Uma nova dialéctica entre o político e o social teria que ser criada. Certamente, estas são as tarefas práticas e teóricas a que nos propomos, quando rejeitamos “a ilusão política” tanto quanto a “ilusão social”, ou retiramos conclusões de experiências negativas passadas (independência das organizações sociais em relação ao estado e aos partidos, sobre o pluralismo político, democracia interna dos partidos).
Mas o problema não reside na forma como o partido “adaptado ao estado” transmite os mecanismos estatais de dominação como nos casos profundos de burocratização, enraizados na divisão do trabalho. A burocratização é inerente às sociedades modernas: afecta sindicatos e organizações associativas no geral. De facto, a democracia partidária seria (por oposição à democracia plebiscitária, conduzida pelos media, da dita “opinião pública”), se não um remédio absoluto, pelo menos um dos antídotos à profissionalização do poder e à “democracia do mercado”. Tal é muitas vezes esquecido por aqueles que vêem no centralismo democrático uma máscara de centralismo burocrático. No entanto algum grau de centralização constitui uma condição necessária para a democracia e não a sua negação.
A ênfase na adaptação do partido ao estado encontra eco no isomorfismo (constatado por Boltanski e Chiapello no “Novo Espírito do Capitalismo”) entre a própria estrutura do capital e as estruturas subalternas do movimento operário. Esta questão da subalternidade é crucial e não pode ser evitada e nem facilmente resolvida: a luta salarial e o direito ao emprego (algumas vezes chamada de “direito ao trabalho”) é sem dúvida uma luta que se encontra subordinada (isomórfica) à relação capital/trabalho. Subjacente encontra-se o problema da alienação, fetichismo e reificação. Mas acreditar que formas fluidas de organização em rede e a lógica de grupos de afinidade (por oposição à lógica de hegemonia) escapam a esta subordinação constitui uma ilusão grotesca. Estas formas são perfeitamente isomórficas com a moderna organização do capital informacional, trabalho flexível, a “sociedade líquida”, etc. Tal não significa que as velhas formas de subordinação sejam melhores ou preferíveis às formas emergentes – apenas que não existe nenhum caminho perfeito que nos permita romper com o circulo vicioso da exploração e dominação.
Sobre o “partido amplo”
Francis Sitel receia que o facto de se falar do “eclipse” ou “do retorno da razão estratégica” signifique a exclusão de novas questões, e o regresso aos velhos temas e a termos de análise do tempo da Terceira Internacional. Insiste em “revisões fundamentais”, com vista à reinvenção, a “construir algo novo”, adequado às exigências do movimento operário. Sem dúvida. Mas não estamos a falar de uma tela em branco. Algumas novas formas de pensamento (ecologia, feminismo, guerra, direitos sociais) são genuínas. Mas muitas outras “novidades” da nossa época não são nada mais do que efeitos de moda (alimentando-se como qualquer moda de citações do passado), que reciclam velhos temas utópicos do século XIX e dos inícios do movimento operário.Tendo correctamente apontado que reformas e revolução constituem um par dialéctico na nossa tradição teórica e não uma oposição de termos mutuamente exclusivos, Francis Sitel adianta a previsão de que “um partido amplo será definido como um partido de reformas”. Esta é uma suposição. Mas é uma ideia especulativa e normativa por antecipação. E este não é seguramente o nosso problema.
Não necessitamos de colocar a carroça à frente dos bois e inventar entre nós um programa mínimo (de reformas) para um hipotético partido amplo. Necessitamos de definir o nosso projecto e o nosso programa. É com base neste ponto de partida que, em situações concretas e com aliados tangíveis, poderemos avaliar que compromissos são possíveis, mesmo que isso implique alguma perda de clareza, em troca de mais influência social, experiência e dinamismo. Tal não é novo. Participámos na criação do PT. Os nossos camaradas são activos enquanto corrente na Refundação Comunista. Têm um papel decisivo no Bloco de Esquerda em Portugal. Mas estas são configurações específicas e não devem ser todas agregadas numa categoria inclusiva denominada de “partido amplo”.
A situação estrutural em que nos encontramos abre seguramente espaço à esquerda das organizações tradicionais do movimento operário (sociais-democratas, estalinistas, populistas). Existem muitas razões para esta oportunidade. As contra-reformas neo-liberais, a privatização do espaço público, o desmantelamento do estado social, a sociedade de mercado, puseram em causa as condições em que se baseavam as administrações populistas e sociais-democratas em alguns países da América Latina. Os partidos comunistas na Europa sofreram os efeitos da implosão da URSS ao mesmo tempo que erodiam as suas bases sociais adquiridas no período entre guerras e na fase da luta de libertação contra os nazis, sem ter ganho novas raízes. Existe de facto o que se pode apelidar de um “espaço radical”, que se exprimiu na emergência de novos movimentos sociais e de formações eleitorais. Esta é a base actual para um processo de construção e de reagrupamento.
Mas este “espaço” não é homogéneo e vazio, em que bastaria apenas ocupá-lo. É um campo de forças altamente instável, como foi demonstrado pela conversão da Refundação Comunista, em menos de três anos, de movimentismo lírico, no tempo de Génova e Florença,[22] a força de coligação governamental com Romano Prodi. Esta instabilidade advém do facto de as mobilizações sociais terem sofrido mais derrotas do que conquistado vitórias e de a sua ligação à transformação do panorama político se manter ainda distendida. Na ausência de vitórias sociais significativas, a esperança no “mal menor” (“todos menos Berlusconi, Sarkozy ou Le Pen!”) conduz, na ausência de uma mudança real, ao terreno eleitoral onde o peso da lógica institucional permanece decisivo (em França, o presidencialismo plebiscitário e um sistema eleitoral particularmente anti-democrático). É por isso que a simetria de um meio virtuoso entre um perigo oportunista e um perigo conservador é uma falsa perspectiva: não têm o mesmo significado e peso. Devemos saber ousar tomar decisões arriscadas (sendo o exemplo mais extremo o da revolução de Outubro)- mas devemos igualmente saber como ponderar o risco e calcular as probabilidades de forma a evitar o puro aventureirismo. Como o grande dialéctico Pascal afirmou, nós já estamos comprometidos – é preciso apostar. No entanto os frequentadores das corridas sabem que uma aposta de 2 para 1 é insignificante, e que uma aposta de 1000 para 1, apesar de poder ser o jackpot, é um tiro no escuro. A margem é entre as duas. E arriscar tem também as suas razões.
A evolução da direita para a esquerda de correntes como a Refundação Comunista ou o Partido da Esquerda mantém-se frágil (mesmo reversível) pela simples razão de os efeitos das lutas sociais ao nível da representação política serem ainda limitados. Esta evolução depende em parte da presença e do peso dentro destas de tendências ou organizações revolucionárias.
Para além de aspectos muito genéricos em comum, as condições variam enormemente, dependendo da história específica do movimento operário (por exemplo, se a social-democracia é totalmente hegemónica ou se subsistem partidos comunistas importantes) e da relação de forças dentro da esquerda. Os sistemas são determinados não só pela ideologia mas também por lógicas sociais. Estes não podem ser mudados sussurrando ao ouvido dos seus dirigentes, mas unicamente pela mudança real na relação de forças.
A perspectiva de uma “nova força” subsiste sendo uma fórmula algébrica actual (o que era verdade para nós antes de 1989-91 continua a sê-lo). A sua tradução para a prática não pode ser mecanicamente deduzida de formulas tão vagas e genéricas quando “partido amplo” ou “reagrupamento”. Encontramo-nos apenas no início de um processo de recomposição. O que conta para a abordagem desta situação são as nossas fronteiras programáticas e objectivos estratégicos. Esta é uma das condições que nos permitirá descobrir as formas de mediação organizacional necessárias e assumir riscos calculados. Dessa forma poderemos evitar nos atirar de cabeça numa qualquer aventura impaciente e nos dissolver na primeira combinação efémera que surja. As fórmulas organizacionais são na verdade muito variáveis, dependendo do caso de serem novos partidos de massas (como o PT no Brasil nos anos 80, apesar de ser um padrão pouco provável na Europa), cisões minoritárias da social-democracia hegemónica, ou ainda de partidos que poderemos ter anteriormente caracterizado como centristas (Refundação, cinco anos atrás), ou uma coligação de correntes revolucionárias (como em Portugal). Esta última hipótese mantém-se, contudo, como sendo a mais provável em países como a França, onde existe uma longa tradição de organizações como o Partido Comunista e de extrema-esquerda, e onde a sua fusão no curto ou médio prazo, sem a existência de um poderoso movimento social, é difícil de conceber.
Mas, em todo o caso, a referência a uma base programática comum, longe de constituir algo que obstaculize a reconstrução futura, é pelo contrário a sua pré-condição. As questões estratégicas e tácticas podem então ser hierarquizadas de forma a não se verificar uma ruptura por causa de um resultado eleitoral mais ou menos satisfatório. Poderemos discutir a base política sobre a qual faz sentido iniciar um debate político. Podemos aferir que compromissos nos permitem avançar e quais nos fazem recuar. Podemo-nos ajustar a formas de existência organizacional (quer seja a tendência num partido partilhado, parte de uma frente, etc.) dependendo dos nossos aliados e da flutuação das suas dinâmicas (da direita para a esquerda, da esquerda para a direita).
Notas explicativas:
a) ALBA – Alternativa
Bolivariana para as Américas, proposta por Chavéz. ALCA – Área de Livre
Comércio das Américas, proposta pelos Estados Unidos. (retornar ao texto)
b) MIR – Movimento de Esquerda Revolucionária Chileno. (retornar ao texto)
c) Região remota da China dirigida pelos comunistas chineses desde meados dos anos 30 até à tomada de Pequim em 1949. (retornar ao texto)
d) Líder da resistência urbana em Cuba, morto em 1958 pouco antes da vitória da revolução. (retornar ao texto)
e) Barco utilizado pela guerrilha dirigida por Castro para desembarcar em Cuba no final de 1956. (retornar ao texto)
f) PRT – Partido Revolucionário dos Trabalhadores, secção argentina da Quarta Internacional com um grupo guerrilheiro, o ERP. (retornar ao texto)
g) Grupo de guerrilha formado
por uma cisão na SDS- Students for a Democratic Society, liderado por
Bernadine Dohn e Mark Rudd. (retornar ao texto)
h) Organização maoista francesa fundada em 1969. (retornar ao texto)
i) Serge July foi editor do
diário Liberation de 1974 até 2006, conduzindo-o desde o Maoismo até ao
“centro-esquerda” neoliberal; Alain Geismar, secretário do sindicato
SNE-Sup durante os eventos do Maio de 1968, outrora maoista, actualmente
Inspector Geral de Educação. (retornar ao texto)
j) Antoine Artous – editor da
Revista Teórica da LCR Critique Communiste. Bensaïd refere-se a um
artigo publicado nessa revista e mais tarde republicado pela
International Socialist Tendency no seu site. (retornar ao texto)
k) Isto é, uma combinação de parlamento com conselhos de trabalhadores. (retornar ao texto)
l) Um órgão composto por cerca
de 50 pessoas nomeadas pelos partidos políticos, pelos comités de defesa
Sandinistas, sindicatos, associações profissionais e organizações
privadas. (retornar ao texto)
m) Comunistas que romperam com o
Stalinismo no final dos anos 60, início dos anos 70 para se tornarem
parlamentaristas de esquerda. (retornar ao texto)
n) Norberto Bobbio – filósofo político italiano. (retornar ao texto)
o) Frase Latina – “Deus surgido da máquina”, isto é, emergência repentina de uma solução do nada. (retornar ao texto)
p) Albert Treint – líder da ala pró Zinoviev do Partido Comunista Francês em meados dos anos 20. (retornar ao texto)
q) Ruth Fischer – líder da
ultra esquerda do Partido Comunista Alemão nos anos 20. Posteriormente
tornou-se numa fervorosa adepta da Guerra Fria. (retornar ao texto)
r) Por membros da Democracia Socialista (DS), corrente pertencente à Quarta Internacional. (retornar ao texto)
s) Posição assumida por um elemento dirigente da corrente DS. (retornar ao texto)
t) Teórico legal alemão de direita, do período entre as duas guerras, aderiu ao Partido Nazi. (retornar ao texto)
Notas
[1] Estão disponíveis no site
da ESSF (Europe Solidaire sans frontières). Os textos de Artous e
Callinicos estão disponíveis em inglês no International Discution
Bulletin da International Socialist Tendency em www.istendency.net. (retornar ao texto)
[2] Esta foi a ênfase dada
por Stathis Kouvelakis em “The Triumph of the Political”, International
Socialism 108 (Autumn 2005). (retornar ao texto)
[3] Alex Callinicos, An Anti-Capitalist Manifesto (Cambridge, 2003). (retornar ao texto)
[4] Não irei mais longe sobre
este aspecto da questão. É um simples lembrete (ver a propósito as
teses propostas no debate organizado por Das Argument). (retornar ao texto)
[5] Durand parece nos
atribuir uma “visão etapista da mudança social” e “uma temporalidade da
acção social centrada exclusivamente na preparação da revolução como
momento decisivo” à qual opõe “um período histórico Zapatista e
alter-mundialista”??!!), ver Critique Comuniste 179. Para uma crítica
detalhada da abordagem de John Holloway ver Daniel Bensaïd, Un Monde à
changer (Paris, Textuel 2006); Planète altermondialiste (Textuel, 2006),
e em artigos em Contretemps. (retornar ao texto)
[6] No debate sobre o programa da Internacional Comunista até ao seu sexto congresso. (retornar ao texto)
[7] Ver Perry Anderson, “The antinomies of Gramsci”, New Left Review 100, 1997. (retornar ao texto)
[8] Ver os debates sobre a Revolução Alemã no quinto congresso da Internacional Comunista. (retornar ao texto)
[10] Como Antoine Artus nos relembra no seu artigo na Critique Comuniste. (retornar ao texto)
[11] apesar da simplificação do mito foquista, nomeadamente em Regis Debray, Revolution in the Revolution (London, 1967). (retornar ao texto)
[12] “A estratégia para a
vitória”, entrevista concecida a Marta Harnecker. Sobre a data marcada
para a insurreição Ortega respondeu: “porque uma série de condições
objectivas favoráveis emergiram: crise económica, desvalorização da
moeda, crise política. E porque após os acontecimentos de Setembro
constatámos que era necessário combinar simultaneamente e dentro do
mesmo espaço estratégico o ascenso das massas a nível nacional, a
ofensiva das forças militares na frente, e a greve nacional na qual os
empregadores se envolveram e na prática apoiaram. Se não tivéssemos
combinado estes três factores estratégicos a vitória não teria sido
possível. Tinha havido, em várias ocasiões apelos para uma greve
nacional, mas não tinha sido articulada com uma ofensiva das massas. As
massas estavam em ascenso, mas tal não tinha sido combinado com a greve e
ocorreu num momento em que a capacidade militar da vanguarda era
demasiado fraca. E a vanguarda tinha já infligido vários golpes ao
inimigo mas sem a presença dos outros dois factores.” (retornar ao texto)
[13] Mário Payeras, Los dias de la selva e El trueno en la cuidad. (retornar ao texto)
[14] Mário Payeras, Los dias de la selva e El trueno en la cuidad. (retornar ao texto)
[15] Tema de textos recentes de Balibar. (retornar ao texto)
[16] O debate sobre a não-violência na revista teórica da Refundação Comunista terá relação com esta orientação. (retornar ao texto)
[18] A experiência do
orçamento participativo ao nível do Estado do Rio Grande do Sul oferece
muitos exemplos concretos a este respeito: alocação de recursos,
hierarquização de prioridades, partilha territorial de recursos
colectivos, etc. (retornar ao texto)
[19] Estava em causa, a concepção da Quarta Internacional e a sua relação com as secções nacionais. (retornar ao texto)
[20] Ver Carl Schmitt, La Dictature (Paris, 1990). (retornar ao texto)
[21] Por “tradicional”
quererá Sitel se referir a partidos comunistas ou, mais amplamente, a
partidos sociais-democratas cujo objectivo é a conquista do poder
governamental por meios parlamentares? (retornar ao texto)
[22] Ver livro de Fausto
Bertinotti, Cês idées qui ne meurent jamais (Paris, Le temps des
Cerises, 2001), e uma crítica de Daniel Bensaïd, Un monde à changer
(Paris, Textuel, 2003) (retornar ao texto)
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