Entrevista com Alain Badiou
Já faz anos, Alain Badiou é
considerado um filósofo dissidente. Se a sua constante referência à
Revolução Cultural Chinesa, perfeitamente assumida em “Petrogrado,
Xangai, as duas revoluções do século XX”, publicado em Agosto de 2018
pela La Fabrique, faz algumas pessoas se remoerem, ele não se
importa. E, com certeza, as células cinzentas do pensador se turbinam
mais do que nunca, como evidenciado por esta entrevista com The
Dissident.
The Dissident: Sua última obra “As Imanências das Verdades” (Fayard, 2018) é uma saga filosófica de incrível densidade!
Alain Badiou: Ele termina um ciclo que começou no início dos anos 80. O primeiro livro, “Teoria do Sujeito”,
foi publicado em 1982. Ele ainda está misturado à política daquela
época, mas ainda assim é uma nova curva filosófica. Em seguida, houve
essa trilogia: “O Ser e o Evento” (1988), “Lógica dos mundos” (2006) e, finalmente, “A imanência das verdades”, que completa uma sequência de cerca de quarenta anos.
Há interlúdios teatrais,
referências a Spinoza e Platão, teorias matemáticas, dos números
inteiros … Podemos falar então de um trabalho multidisciplinar?
Eu talvez não usaria essa palavra. A
filosofia sempre se misturou com tudo. Desde o início, ela falou sobre
teatro, política, ciência … É preciso distinguir minhas diferentes
atividades – eu sou um ativista político, um escritor de romance e de
teatro – da maneira pela qual a filosofia se serve desse conjunto. Ela o
considera como seu material de reflexão natural. Eu sou polivalente e
eu procuro reunir essas disciplinas no campo da filosofia.
Quem é esse “filósofo de Ahmed”,
uma espécie de Scapin suburbano que aparece em sua trilogia? Encontramos
sua gênese em 1984 sob o título de Ahmed, o sutil.
Eu fiz meu seminário de filosofia no
Théâtre de la Commune em Aubervilliers. Como eu queria, por razões
filosóficas, me referir ao teatro, ele tinha que estar presente, e não
apenas através de citações. Trabalhando em um palco, trouxe meu amigo o
diretor e ator Didier Galas, que desempenhou o papel de Ahmed. Ele
interpretou mini-peças. Em filosofia, somos levados a dar muitos
exemplos tirados da vida cotidiana, da história ou da arte. Isso me
permitiu incorporar esse exemplo, mostrando-o em vez de citá-lo.
Neste livro, o capítulo “Um
processo poético da finitude moderna” analisa René Char, em particular o
poema “A biblioteca está em chamas”. Como o trabalho dele te inspira?
Uma das grandezas de René Char é de ter
conseguido “poetizar” seu próprio engajamento. Ele é um dos grandes
poetas da Resistência. Ele era um quadro da resistência armada durante a
Segunda Guerra Mundial, sob o pseudônimo de “Capitão Alexander”. Vindo
do surrealismo, ele soube fazer poesia disso. Ele sempre me impressionou
pela força com a qual ele traduziu em linguagem poética alguns
elementos de sua experiência histórica e militante. É por isso que ele é
importante para mim. O teatro e a poesia não são diretamente
controlados pela filosofia. Eles me acompanham de forma anárquica e
existencial desde a minha juventude.
Shlomo Sand escreveu “O fim do intelectual francês”
(La Découverte, 2016) sobre um certo enfraquecimento do pensamento
francês. Você que é o filósofo francês mais lido do mundo, o que você
acha disso?
O julgamento feito da filosofia francesa
no último período é, na realidade, de caráter mais político do que
intelectual. Um pouco antes, mas especialmente no período pós-guerra, o
intelectual francês foi representado como “engajado”. É uma figura que
foi inventada na França. Este país tem sido um caldeirão de escritores
políticos radicais. Em Sartre, no lado comunista, mas também antes da
guerra pelo lado da extrema direita: Robert Brasillach, Louis-Ferdinand
Céline … A partir dos anos 80, uma boa parte dos filósofos franceses se
reuniu ao campo reacionário e conservador. Quando os estrangeiros dizem
que há um rebaixamento da intelectualidade francesa, eu lhes dou razão.
Eles não precisavam daquilo que os “novos filósofos” representavam – que
não eram realmente nem novos nem filósofos. Outros países já possuem
conservadores domésticos. Não lhes interessa ter nossos neoliberais.
Felizmente, ainda existem exceções. Eu me dou este título!
Você também tem “seguidores”, como Alberto Toscano.
Sempre foi o status do filósofo engajado.
Eu mesmo fui da corte dos discípulos de Sartre. É alguém que fala com
todos e deixa um caminho. Este já era o caso de Sócrates. Discípulo é
uma noção filosófica um pouco inquietante, porque muitos deles são
futuros traidores.
Como você teve essa divisão com Sartre?
Eu nunca realmente rompi com Sartre. Nos
últimos textos que escrevi sobre ele, na época de sua morte, em 1980, e
depois disto, eu sempre reconheci sua grandeza. Eu me separei dele
filosoficamente bem cedo, desde o final dos anos 50, quando conheci o
estruturalismo, as novas obras de Michel Foucault, Louis Althusser,
Gilles Deleuze, Jacques Lacan … eu não pude mais atuar na fenomenologia
ou no existencialismo. Além disso, como Sartre continuava fiel a seus
compromissos políticos, permaneci perto dele desse ponto de vista. Eu
não tive que criticá-lo violentamente. Foi uma distância que foi feita
lentamente. Isso me levou aos meus escritos, que, sem dúvida, estão em
pólos opostos aqueles de Sartre.
Você data seus primeiros gracejos políticos ao contexto da guerra da Argélia.
Todas as pessoas da minha geração
iniciaram o seu compromisso político tomando posições sobre conflitos
coloniais. A guerra da Argélia, primeiro, e a do Vietnã, em seguida,
desempenharam um papel decisivo na mobilização de uma série de jovens
intelectuais. Precisamente sobre a questão da guerra argelina, eu era um
“vizinho” de Sartre. Ele se envolveu de uma maneira muito radical. Esta
situação foi extremamente brutal. Hoje podemos encontrar outros
exemplos no mundo. Mas neste caso precisamente, estava muito perto de
nós. Não vamos esquecer que um milhão de jovens franceses tiveram que
lutar na Argélia. Ocorreram atentados muito violentos. Tortura foi
usada. Aos 19 anos, participei das primeiras manifestações contra a
guerra argelina, que estavam longe de serem calmas. Apanhávamos
fortemente dos cassetetes. Sobretudo porque na época não estávamos bem
organizados. Ainda não sabíamos que era necessário ter uma cabeça
processional sólida. Nós íamos um pouco como ovelhas para o matadouro.
Isso também tem foi uma experiência da violência da qual o mundo é capaz
quando há interesses consideráveis em jogo. Isso forjou minha convicção
de que qualquer posição política real carrega uma parcela de
antagonismo. É preciso aceitar, mesmo que não seja uma obrigação, de
estar em ruptura com o mundo dominante. Eu não considero como
verdadeiros filósofos aqueles que estão na lisonja da ordem vigente.
Segundo você, o racismo e o colonialismo dessa época ainda estão ancorados nas mentalidades.
Toda a minha experiência mostra isso!
Quando vemos a rapidez com que os estereótipos anti-árabes,
anti-muçulmanos e anti-estrangeiros podem emergir, há uma impregnação
colonial que é ao mesmo tempo distante e muito forte. Até agora está no
inconsciente coletivo. Isso toma a forma de uma certeza, incrível para
mim, de que nosso mundo é superior a todos os outros. É óbvio que o
Ocidente, e isso quer dizer os últimos poderes expansionistas, se
considera – e é considerado pela maioria de sua população – a panaceia
da civilização moderna. Na realidade, é uma construção imperialista,
desigualitária, criadora de disparidades irreparáveis. Há uma violência
cega em igualar ao suprassumo da civilização algo que, em alguns
aspectos, é monstruoso.
Em 2005, para denunciar o destino das “minorias” na França, você escreveu uma tribuna no Le Monde. Isso foi em seguida a custódia do seu filho adotivo de origem congolesa.
As estatísticas oficiais estão aí. Se
você é negro ou árabe, tem vinte vezes mais chances de ser parado na rua
do que se você é branco. Há uma segregação de fato em nossa sociedade
entre “cidadãos respeitáveis” e aqueles que não são. Ser identificado
como tendo feições estrangeiras controla essa disparidade. Isso irriga
toda a nossa sociedade de uma forma intolerável.
Durante a emissão de Le Gros Journal de Mouloud
Achour, você se encontrou com Assa Traoré. Com o comitê Adama, ela
denuncia a violência policial, após a morte de seu irmão em uma
delegacia de Persan-Beaumont em 2016. É possível uma junção entre os
bairros populares e as classes privilegiadas das quais você faz parte?
Eu acho que é perfeitamente possível. É
uma questão de vontade. Trabalhei durante anos em fraternidade com
trabalhadores africanos que viviam em lares Adoma, com suas próprias
regras … e sua miséria. Eu não tive nenhuma dificuldade com essa
população, que, muitas vezes, me conhece um pouco por causa da
televisão. Em minhas lutas políticas, as pessoas com as quais
confraternizo pertencem à facção intelectual da juventude mobilizada por
essas questões ou a esse próprio segmento desprivilegiado. É deste lado
que tenho amigos e companheiros de ação. Meus inimigos, aqueles que me
injuriam permanentemente, são pessoas bastante bem estabelecidas, com
suas vitrines na rua.
Em seu livro “On a Reason de se
révolter” (Temos razão em se revoltar) (Fayard, 2018), você descreve
como, em maio de 1968, teve uma experiência fundadora, conhecendo os
trabalhadores da fábrica de Chausson em Reims, a cidade em que dava aula
naquela época..
No nível sensível, esta é minha principal
experiência de maio de 1968. A partir daí, percebi que dois mundos –
que eu me representava como separados – poderiam ir além desse
paradigma. Embora sendo marxista e reconhecendo a importância do mundo
do trabalho, isso era algo muito distante do professor de filosofia que
eu era então, em Reims. Em 1968, percebi que os professores podiam, como
nós o fizemos, marchar pela fábrica de Chausson. Pouco a pouco, nós nos
fizemos ser aceitos. Os trabalhadores mais jovens vieram conversar
conosco. Depois, houve reuniões emocionantes na cidade entre
intelectuais, estudantes e trabalhadores. Com o apoio de ativistas e
estudantes. Um fundo de solidariedade na fábrica foi criado. A barreira
de classe não é tal que não se possa construir um projeto político e
fraterno. Foi um momento decisivo da minha existência. Eu permaneci fiel
ao que aconteceu durante essa sequência.
Mais tarde, você lecionou na Universidade Paris-Vincennes , que era uma vanguarda em termos de ideias.
Foi uma universidade muito particular, um
campo de experimentação desde os primeiros anos, em 1969-1971, até os
anos 80. Todos os grupos políticos tinham seus representantes. Os cursos
em si foram transformados em reuniões. Nós ocupamos a faculdade por um
sim ou por um não. Houve brigas com a polícia. Nós fomos às delegações
nas fábricas. Nós íamos conversar com os professores das escolas
suburbanas. Ela foi, por um tempo, um caldeirão militante. Em algum
momento, houve uma recuperação e uma “estabilização”. A experiência
intelectual foi extraordinária porque Gilles Deleuze, Michel Serres,
François Châtelet, Michel Foucault … ensinaram lá. Era do lado da
universidade o que eu vivi na fábrica em Reims. Existe uma circulação
entre os dois.
Quando vemos o Parcoursup e o
desmantelamento de uma certa ideia da universidade aberta a todos,
deveríamos nos basear nesse tipo de proposta?
Seria muito bom se referir a isso. Mas a
situação infelizmente não é mais a mesma. Hoje, esse tipo de prática é
cada vez mais difícil de implementar. Dois fatores operaram, fazendo com
que, a partir da década de 1980, houvesse uma seqüência longa,
incrivelmente reativa e contra-revolucionária, que mudou a situação.
Primeiro, há um caráter ideológico: depois da contraofensiva
personificada pelos novos filósofos e liberais de todos os tipos, esse
pensamento reacionário tornou-se hegemônico em larga escala. Depois,
existe uma desindustrialização implacável da França. Deve ser lembrado
que todas essas fábricas em que eu intervi junto com os trabalhadores
não estão mais lá hoje: Chausson em Reims e Gennevilliers, Rhône-Poulenc
em Vitry-sur-Seine, Renault em Boulogne-Billancourt … Ali existia uma
verdadeira central de trabalhadores. Por anos, tenho trabalhado com
essas pessoas de muito perto. Não houve ali um recuo político. Mas esses
lugares desapareceram, pura e simplesmente. Este tecido industrial
periférico das grandes cidades foi destruído. E, finalmente, o país não é
mais o mesmo. O “panorama político possível” mudou. Atualmente, a
questão dominante é a das relações com os principais movimentos
populacionais. Um proletariado nômade se desenvolveu vindo da África, do
Oriente Médio ou da Ásia. É com estes últimos que se deve tentar
renovar os vínculos políticos.
Diante do problema dos
refugiados, a esquerda está profundamente dividida entre o
internacionalismo do tipo da NPA e o protecionismo defendido por Chantal
Mouffe ou pela França insubordinada. Qual é a sua posição?
Hoje, é impossível pensar em qualquer
problema político importante senão em escala global. As consequências a
serem tiradas do ponto de vista organizacional são outro debate … Se não
localizarmos o cursor neste nível, não entenderemos a situação. Não é
totalmente falso dizer que não há mais trabalhadores na França. Por
outro lado, em nível global, nunca houve tantos trabalhadores no mundo
que agora. Simplesmente, eles estão todos na China, Bangladesh, Camboja,
Brasil ou Romênia. Há uma má interpretação séria da situação
político-social, no sentido amplo, vendo-a apenas através do buraco de
fechadura da França. Há quarenta anos, neste país, havia um tecido
social completo, com camponeses e trabalhadores em grandes fábricas. Os
movimentos do capitalismo globalizado nos obrigam a pensar como ele. Se
você não estiver na mesma escala que o seu oponente, você irá cair! O
proletariado de hoje é um vasto proletariado nômade tratado do ponto de
vista da imigração ou dos migrantes. Na realidade, o que está em jogo
são as relações de classe em escala planetária. Isto implica, pelo
menos, priorizar as relações internacionais e ter uma posição sobre esse
proletariado nômade que atravessa o nosso país ou quer se estabelecer
aqui. Eu amo as perguntas que dividem! Aqueles que alcançam consenso
raramente são as certas. É a principal questão política que divide, de
maneira confusa. As posições à esquerda não estão claras. Afinal, o que
poderia ser uma organização do proletariado nômade? Estamos longe de ter
resolvido esse problema. Mas é preciso colocá-lo. O cenário estratégico
da política é global. Nisso, o capitalismo tem uma boa vantagem porque
está instalado confortavelmente neste cenário.
Há uma imagem romântica de que
maio de 68 que seria apenas “uma revolução da moral”. No entanto, o fato
de Emmanuel Macron não o ter recuperado parece provar que ele continua
subversivo …
Maio de 1968 mantém essa virtude de não
ser completamente “digerível” pelas autoridades. Nicolas Sarkozy, que é
sempre mais sincero que os outros, disse: “Temos que terminar com o Maio de 68! “Isso
teve o mérito de ser claro. E isso significava que, para ele, ele ainda
estava lá e não havia sido liquidado o suficiente. Continua sendo um
símbolo negativo para os reacionários por duas razões principais. Por um
lado, foi uma excepcional experiência radical, em particular por este
momento muito perigoso para a ordem estabelecida de ligação efetiva
entre intelectuais e trabalhadores. E, por outro lado, havia a mudança
da moral, a liberação sexual, um modo de vida que desafiava a família
geral e o conservadorismo familiar e social geral dos “reacionários
ranzinzas”. Nós não podemos tirar isso dele. É isso que faz dele um
evento divisor.
Em Petrogrado Xangai, as revoluções do século XX,
você assume a revolução cultural chinesa, incluindo as centenas de
milhares de mortes. Você não é o último a se inspirar nela?
Nos anos 70 – é bastante distante, mas
afinal continuamos a falar sobre a Revolução Francesa e a Comuna de
Paris – muitos intelectuais reivindicaram a Revolução Cultural
Chinesa. As razões pelas quais eles “se arrependeram” devem ser
cuidadosamente examinadas. Todo o mundo lia o Beijing information. Não
devemos acreditar que descobrimos gradualmente os horrores da Revolução
Cultural. Todo mundo sabia que havia grande violência, os guardas
vermelhos, destacamentos de trabalhadores … grupos maoístas inteiros,
como a Esquerda Proletária (criado em 1968, NDLR) até tentaram
imitar essa violência. Sua linha política, na minha opinião
completamente falsa, era também de colocar chapéus de burro nos
capatazes, de atacar os patrões e os despir … A Revolução Cultural foi o
paradigma revolucionário de todos aqueles que a reivindicaram. Eles se
tornaram os renegados daquilo que eles tinham sido. Eles tomaram essa
revolução como um contraste, ao falar dela como fizeram os “incríveis”
do fim da Revolução Francesa: orgias sangrentas, atrocidades em todos os
lugares … As revoluções sempre foram desacreditadas ao serem relegadas
ao caos mortal.
O que elas também foram em parte …
Eu permaneço fiel ao que foi, em seu
conteúdo político, a Revolução Cultural. Eu estou absolutamente
consciente de que ela falhou. Uma parte de sua violência foi
desnecessária e excessiva. Episódios deste tipo existem em todas as
revoluções. A Revolução Francesa teve seu período de terror
anárquico. Os massacres de setembro foram horríveis. Tenho a sensação de
manter um julgamento calmo e equilibrado sobre a Revolução Cultural, em
comparação com os amargos partidários de sua destruição histórica. Que
não haveria nada para tirar disso, que seria um episódio atroz. Pelo
contrário, é uma sequência política fundamental. Esta é a primeira
tentativa na história de mudar um regime comunista a partir de dentro,
não por repressões e expurgos, mas pela liberação do movimento de massa
estudantil, primeiro, e trabalhador em seguida (18 de agosto de 1966, Ed). De certa maneira, eu conservo o significado e o valor que ela tinha para todos na época.
Você declarou que a violência da Revolução Cultural Chinesa foi menor que a da ordem capitalista desde o seu advento.
Quando falamos de violência, devemos nos
referir a dois critérios: primeiro, que a violência raramente é boa e
que deve ser evitada. É um julgamento moral, eu o adoto. Se pudermos
conseguir os objetivos sem usá-la é muito melhor. Eu sou preciso sobre o
fato de que não é algo que me encante. O segundo aspecto é que a
violência às vezes é inevitável quando o que você está lidando é uma
questão de conflito. Seus oponentes não hesitam em usá-la quando se
sentem acuados. Então você tem que estar preparado. Minha doutrina é que
a violência legítima é geralmente defensiva. Isto é, tenta proteger os
poucos ganhos ou orientações que são seus. No mundo tal como ele é, me
parece impossível ser sistematicamente contra a violência.
Sua relação com a Revolução
Cultural Chinesa lhe rendeu protestos de seu colega filósofo Daniel
Bensaid. Você prestou homenagem à ele na Mutualité em 2010.
Eu sempre tive boas relações com ele. Ele
me criticou, incluindo minha filosofia. Ele disse que eu era um
“teórico do milagre”. Eu tinha muita estima e amizade por ele. Ele é o
que podemos fazer de melhor no trotskismo.
Você boicota as eleições. O que
você diz para aqueles que dizem que com o recuo identitário que trouxe
Donal Trump e Jair Bolsonaro, a extrema direita pode tomar o poder em
2022.
O processo eleitoral sempre foi um
benefício para a extrema direita. Nós devemos questioná-lo. Mesmo Hitler
assumiu o poder em 1933 após eleições regulares. Nós nunca vimos os
comunistas ganharem eleições nacionais. Não parece que as urnas permitam
aos movimentos comunistas radicais revolucionários da extrema esquerda a
realmente chegar ao poder. Em 1981, houve uma ficção deste estado de
coisas com a eleição de François Mitterrand. Ao final de dois anos,
percebemos que era a continuação da ordem anterior. Por outro lado, a
extrema direita subiu ao poder. E isso vai acontecer de novo! Por
quê? Porque esse tipo de sufrágio não é feito para mudar a sociedade. É
um sistema consensual, em que todos aceitam as regras. Se esse é o caso,
é porque ele é conforme a ordem dominante existente.
Por quê?
Eu não entendo como as pessoas continuam a
pensar que as eleições são um lugar livre para determinar a direção
básica de um país. Como o ex-ministro da Informação, Alain Peyrefitte,
disse acertadamente na época da eleição de Mitterrand: “As eleições são feitas para mudar o governo e não a sociedade.” Ele
disse a verdade porque é uma regra que sobre a qual todo mundo se põe
de acordo. Isso significa que os líderes de nossa sociedade, que todos
sabem ser um pequeno núcleo de grandes capitalistas, não aceitariam
eleições que não servissem a eles. Quando as coisas aquecem um pouco
demais, quando o risco é muito grande, eles se juntam à extrema direita
como seu último bastião. Não é extraordinário afirmar que as eleições
são um sistema consensual em que a burguesia imperialista prospera. Eu
não acho que elas já tenham servido para qualquer outra coisa. Nos
Estados Unidos, podemos eleger Donald Trump, mas nunca um
comunista. Isso é verdade em todo lugar. O sistema eleitoral parlamentar
foi inventado pelo imperialismo inglês e criticado por Rousseau no
século XVIII. Ele explica muito bem porque a eleição não é
democracia. As grandes potências capitalistas e imperialistas
construíram suas fortunas sobre ela. O sinal de que um poder alcançou um
grau de desenvolvimento e considerável influência está no fato de
adotar esse sistema. Eu acho que os chineses dirão que a eleição é
melhor do que o sistema centralizado que eles têm atualmente. Ele
permite que eles acumulem capital muito rapidamente. Mas, um dia ou
outro, a pequena burguesia chinesa pedirá alguma satisfação e
liberdade. Eles vão adotá-la porque criaram um “capitalismo de alto
nível”. A política dita “revolucionária” não tem nada a ver com
eleições. Em certas circunstâncias, pode ser interessante se apresentar
às disputas. Mas é uma evidente aberração acreditar que ela pode chegar a
uma política “revolucionária”.
Em 2015, no show Contre-courant que Aude Lancelin apresentava na época no Médiapart, você conheceu Jorge Lago, gerente de assuntos internacionais do Podemos. O que você acha da sustentabilidade desse movimento?
Nós vemos bem que eles são inteiramente
prisioneiros do jogo eleitoral. A experiência do Syriza deve ser
suficiente. Este partido se tornou na Grécia o gestor dos imperativos
capitalistas. A tal ponto que hoje o governo de Tsipras põe na prisão
aqueles que permaneceram militantes ativos. Há coisas terríveis
acontecendo neste país. Eles bombardeiam os grupos que tentam se opor
aos leilões dos imóveis. Esta se tornou a atividade mais suculenta do
capitalismo grego sob a direção da Europa. O Podemos não está
em todo lugar. A questão é se esse partido deve ou não se aliar aos
socialistas. É um movimento interessante de agitação ideológica. Mas, do
ponto de vista político, o Podemos continua sendo um componente do sistema dominante.
Como você explica a discrepância
entre a impopularidade de Emmanuel Macron e a estima de alguns
intelectuais de qualidade (Régis Debray, Edgar Morin …)?
Eu analiso Macron como um subproduto da
tradição bonapartista na França. Quando o sistema partidário tradicional
está em perigo, desequilibrado, ela faz surgir um homem, uma figura
singular que constituirá imediatamente seu próprio aparato. Ele se
beneficia dessas circunstâncias para se estabelecer no poder. Napoleão Ier,
ele mesmo, terminou com um golpe militar as lutas internas entre
aqueles saídos da Revolução. Napoleão III, por sua vez, terminou com os
“distúrbios” do ano 1848. Diante da impossibilidade de um acordo entre
monarquistas e democratas, ele resolveu a questão “de cima”.
Esta posição bonapartista foi compartilhada pelo general de Gaulle.
Foi ele quem unificou na aparência as
facções absolutamente opostas da Resistência durante a Segunda Guerra
Mundial. A resistência era em grande parte liderada pelos comunistas,
era importante não deixá-los no poder. Macron é a mesma coisa … em menor
grau. Ele intervém no momento em que há uma crise simultânea da
esquerda e da direita. A esquerda foi decomposta. Os comunistas são
inexistentes. O Partido Socialista perdeu toda a credibilidade no
exercício do poder. A direita não está indo bem porque não pode regular
sua relação com a extrema direita. O Rassemblement National tem
agora uma grande base, com possibilidades objetivas de aceder ao
poder. Diante desta dupla crise do sistema parlamentar como um todo,
estamos fazendo o que sempre fizemos. Um bom homem cria seu partido, sua
panelinha, e se declara “acima dos partidos”. Como De Gaulle em seu
tempo. Macron começou dizendo que ele não era nem de esquerda nem de
direita. Isso coloca o problema de saber onde ele está! Na minha
família, existem muitos “pró-Macron”, como éramos para De Gaulle ou
Napoleão III. Existe essa ideia de que nada mais pode funcionar. Esta é
uma aliança amplamente negativa: “Se não é ele, o que vai ser? Algo pior! “
Daí esta segunda volta das eleições presidenciais do ano passado …
Era preciso ser por Macron senão, horror,
era Marine Le Pen! Basicamente, na opinião pública, Macron é
constituído por uma negação e não de uma adesão. Sua política é um
ajuste ao capitalismo globalizado. Temos que privatizar tudo, acabar com
a Seguridade social. Fazer como na América. Do ponto de vista do país, é
“a impossibilidade de qualquer outra coisa”. Isso é o que faz sua força
e sua fraqueza. Na medida em que ele age, nós somos forçados a julgá-lo
por suas ações e não apenas pelo fato de que não existe outra
coisa. Como suas medidas são uma série ilimitada de lixo, ele perturba
os aposentados por causa de seus ataques, os enfermeiros da EHPAD, os
provinciais por causa do sistema de grandes cidades, os coletes amarelos
por causa do combustível … As pessoas percebem que seu programa de
americanização a um ritmo acelerado da França lhes custará caro. Apesar
disso tudo, subsiste o lado negativo do seu público, a ideia de que não
há outra coisa. Toda uma fauna intelectual diz que não pode ser nem
Marine Le Pen nem Jean-Luc Mélenchon, que seriam os dois extremos. É
muito engraçado porque não vejo nada de muito extremista em Mélenchon.
Na linguagem midiática, há uma
suposta porosidade entre o populismo de esquerda da esquerda e à direita
da direita. O livro de Ugo Palheta, A Possibilidade do Fascismo (La Découverte, 2018), postula que este amálgama beneficia, de fato, a extrema direita.
Eu acho essa história de populismo
extremamente estranha. É uma palavra-valise que ronda, um rótulo
desfavorável que grudamos. Não é porque o establishment rotula alguém de
populista que isso vai me esclarecer algo sobre quem ele é. Isso me
informa unicamente que não queremos isso no sistema dominante. O termo
“populismo”, tal como ele é como usado, implica que se alguém se importa
demais com o ponto de vista das pessoas, teremos ideias reacionárias e
inadmissíveis. É uma consideração estranha. De baixo, parece-me que
aqueles que chamam de “populismo” o que eles chamam de “extremos” estão
em uma posição de desconfiança para com o povo. Enquanto, ao mesmo
tempo, reivindicam a grande soberania popular da nossa República. Existe
uma obscuridade semântica. O que essa palavra significa exatamente? São
todas as opiniões que desagradam a oligarquia. Por quê? Porque ela se
importa com o que as pessoas dizem? Porque ela está pedindo mais
“voluntariado” do povo? Para mim, o populismo é um esconderijo-miséria
de coisas suspeitas.
Marine Le Pen é descrita na mídia como “populista”.
O que eu vejo como reacionário e perigoso
em Marine Le Pen não é ela que seja populista. Isso não significa
nada! Ela não é populista, mas identitária. Sua lógica é petainista:
trabalho, família, pátria. É totalmente diferente. O culto das
identidades na política sempre esconde, de uma forma ou de outra, o
fascismo, mais ou menos religioso ou nacionalista. É sempre baseado em
identidades, mas não aquela do povo. Este não é uma identidade. É um
grupo de pessoas. Em um povo, há sempre várias identidades diferentes. É
preciso se livrar da palavra populista e dizer exatamente o que está
sendo criticado por essa ou aquela orientação. Marine Le Pen alega uma
identidade francesa absolutamente misteriosa. A França é um país com uma
identidade indefinível. De outro lado, que a extrema esquerda fale de
soberania e dos interesses do povo, porque não. É a tradição dela. Neste
ponto, podemos dizer que Robespierre e Saint-Just eram
populistas. Mélenchon é ainda menos perigoso.
Suas conferências e as de Jacques
Rancière estão lotadas. Que terceira via você vê entre o capitalismo e o
stalinismo totalitário e burocrático?
Há 30 anos, estamos em um período de
contra-revolução global. Não apenas o poder conservador está totalmente
sujeito ao capitalismo globalizado, mas essa política quer desfazer o
que foi adquirido anteriormente. Naquela época, o Partido Comunista era
poderoso e havia intelectuais revolucionários e comprometidos. Macron
está trabalhando agressiva e sistematicamente para derrotar essas
conquistas. Ele não é o único no mundo. Nos Estados Unidos, Donald Trump
está tentando erradicar os poucos átomos dispersos do progressismo
persistente. Nestas condições, o campo que quer definir outro caminho
deve ser lúcido. A situação é desfavorável. Eu diria mesmo que estamos
em um período de recomeço. Os ensinamentos mais básicos do marxismo
devem ser disseminados novamente, revisados, discutidos. Nós devemos
criar escolas para lhes transmitir.
Onde estamos segundo você?
Quase no estágio em que estava o desafortunado Karl Marx quando escreveu vigorosamente o Manifesto do Partido Comunista, em 21
de fevereiro de 1848. Na época, o Partido Comunista de que ele falava
era representado quase que somente por ele e por Friedrich Engels. Hoje,
a prioridade é ideológica e experimental: existem questões políticas
dentro das quais podemos experimentar novos módulos que entram em
conflito aberto com a ordem dominante? Na França, é a questão do
proletariado nômade. Eu não uso “migrante” porque não é sua
identidade. O conflito existe. As coisas acontecem, anarquicamente, como
sempre é o caso no começo. Devemos conectar os experimentos a um exame
cuidadoso, prolongado e sistemático do marxismo, mas também às
tentativas revolucionárias do século XX como um todo. O que realmente
aconteceu em Petrogrado e Xangai? Que balanço nós tiramos? Que
formulação nos permite evitar os fracassos destas empreitadas? É um
trabalho gigantesco! É necessário combinar experiências enraizadas em
situações com esse vasto exame coletivo do balanço geral do socialismo
durante o século e meio de sua existência. Não há senão que fazê-lo.
Finalmente, você tem outros ensaios no forno?
Eu estou em um período que não é muito
claro. Eu poderia dizer a mim mesmo, aos 81 anos, que estou na idade da
aposentadoria. O único problema é que não é tanto o meu temperamento. Do
ponto de vista da construção filosófica, tenho a impressão de que não
irei além daquilo que realizei. Minha trilogia forma um conjunto
completo. Eu também posso fazer estudos especiais, por exemplo, em
números reais. Mas estes são exercícios em uma área muito limitada. Eu
me coloco essa questão de um homem idoso, de fazer uma biografia, não
pessoal, mas política. Há um arco entre a França da guerra argelina e a
de Macron. Muitas coisas aconteceram entre os dois que eu posso dizer do
meu jeito: o que foi para mim entrar na política durante o drama
colonial, ao fim da IV República? Em seguida, houve o meu envolvimento
no seio do Partido Social Unificado (PSU), maio de 68, as experiências
do maoísmo … a situação atual. Isso parece que pode interessar as
pessoas!
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