De como não ler Marx ou o Marx de Sousa Santos

Por José Paulo Netto, via ODiário.info
Boaventura Sousa Santos, um sociólogo
erudito e prolixo, cultiva uma imagem progressista fundamentalmente
enganadora. A sua influência suporta-se em retórica em circuito fechado
no seio acadêmico, e em suposta sabedoria transcendente na arena do
circuito dos movimentos sociais. Neste ensaio, o comunista brasileiro
José Paulo Netto arranca-lhe a máscara.
Professor Doutor Boaventura de Sousa
Santos, doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale e
catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra é,
atualmente, a personalidade mais internacional dentre os intelectuais
portugueses vivos (mais conhecido do que ele, apenas o escritor
comunista José Saramago).
O renome de Sousa Santos não é fruto do
acaso: se tem a ver com a sua intervenção cívica no interior do campo
democrático e progressista, seja no marco de movimentos sociais, seja
noutros espaços políticos (comenta-se que, no seu segundo mandato
presidencial, Mário Soares o tinha como conselheiro pessoal), é
sobretudo resultado de um intenso e múltiplo exercício teórico e
analítico. Figura central na institucionalização da Sociologia no
Portugal pós-salazarista, pesquisador incansável e organizador
científico, Sousa Santos vem contribuindo significativamente no debate
contemporâneo das ciências sociais, percorrendo um leque temático
extremamente amplo, que envolve da discussão epistemológica à abordagem
renovada de complexos como os da cidadania e do Direito. Sua obra,
ensaística e sistemática, divulgada em revistas especializadas de vários
países (inclusive do Brasil, onde já fez investigações e tem estado com
freqüência) e em livros (publicados em vários idiomas), é ponderável –
cf., entre outros, Santos, 1988, 1989, 1990, 1991 e 1995a -, e carrega
uma marca muito peculiar: a erudição de que se satura vincula-se a uma
prosa clara, meridiana transparente, vinculação (diga-se de passagem
incomum no universo contemporâneo das ciências sociais) que, para além
dos seus méritos inerentes, garante-lhe uma comunicabilidade
excepcional. Prova incontestável desta qualidade foi o êxito de Pela mão
de Alice. O social e o político na pós-modernidade – livro que,
absoluto sucesso de vendas em Portugal [1], viu-se em seguida editado no
Brasil (Santos, 1995) [2].
Trata-se de um instigante conjunto de
ensaios, reunindo, ademais de trabalhos inéditos, estudos publicados em
periódicos (de vários países: Portugal, Brasil, Itália, Estados Unidos,
Uruguai) entre 1985 e 1993 – porém, se cada texto pode ser tomado em sua
singularidade, claramente demarcada pela imediata diversidade de
objetos (da realidade portuguesa à crise mundial da instituição
universitária, da relação Estado/sociedade civil às questões da
cidadania, subjetividade e emancipação, da função utópica à
pós-modernidade, da sociologia dos tribunais à globalização da
economia), nenhum deles é escrito de ocasião: todos expressam momentos
constitutivos da reflexão sistemática de Sousa Santos.
Esta reflexão sistemática incide sobre o
que o autor considera a transição paradigmática própria do fim do século
XX, envolvente de dois processos, naturalmente conectados: a transição
epistemológica (vale dizer: do paradigma da “ciência moderna” ao da
“ciência pós-moderna”) e a transição societal (vale dizer: entre
diferentes modos básicos de organizar e viver a vida em sociedade). Se o
primeiro de tais processos, que parece a Sousa Santos mais evidente e
explícito, ocupou-o predominantemente até a entrada dos anos 90, em Pela
mão de Alice … ele nos apresenta os resultados iniciais de suas
pesquisas sobre o segundo. Tais resultados, diz-nos o autor, “apesar de
fragmentários, têm alguma consistência global”, resumindo “a
investigação e a reflexão que foram sendo feitas ao longo dos últimos
anos” (Santos, 1995: 9).
Vê-se, pois, que este é um livro de
importância particular na dinâmica intelectual do autor – e, nele, a
discussão do legado de Marx tem uma relevância específica, ainda que o
espaço a ela dedicado seja dos mais econômicos [3]; entretanto, e a
despeito dessa economia, Sousa Santos julga haver procedido aí a um
balanço geral da proposta de Marx” (idem: 243) e, já por isto,um
“balanço” merece especial cuidado.
Uma leitura muito simplória do marxismo
Pela mão de Alice … compreende três
partes: na primeira, intitulada Referências, Sousa Santos, em dois
compactos capítulos, faz “uma reflexão sobre das referências teóricas
que têm pautado a [sua] investigação” (idem:10). Na segunda, Condições
de inteligibilidade, composta de quatro capítulos, o centro é a “análise
de alguns dos aspectos da crise da modernidade enquanto paradigma
societal” (idem, ibidem). Enfim, na terceira parte, Cidadania,
emancipação e utopia, ordenada também em quatro capítulos, “a análise
combina-se com a prospectiva” (idem: 11).
A riqueza temática do livro, já
assinalada, distribui-se equilibradamente pela segunda e terceira partes
e de modo tão orgânico que ao leitor mais atento pode mesmo escapar o
fato de elas se constituírem de ensaios originalmente autônomos – o que,
além do mais, testemunha a coerência intelectual de Santos, bem como
atesta sua castigada artesania formal.
Mas é indubitável a importância da
primeira parte, com seus dois densos e econômicos capítulos. Se o sugere
o próprio título (Referências), comprova-o o sentido que Sousa Santos
lhes confere: sobre o primeiro (“Cinco desafios à imaginação
sociológica”), diz o autor que, nele, “formulo algumas das minhas
perplexidades analíticas perante as transformações sociais neste final
do século e enuncio as vias por que se podem traduzir em motivos de
criatividade sociológica” (idem: 10); quanto ao segundo (”Tudo que é
sólido se desfaz no ar: o marxismo também?”), Sousa Santos não é menos
direto – afirma ele:
“No segundo capítulo, procedo a uma
avaliação do marxismo enquanto tradição teórica da sociologia com o
objetivo de distinguir as áreas ou dimensões em que continua atual, e
eventualmente mais atual que nunca, daquelas em que está desatualizado e
deve, por isto, ser profundamente revisto, senão mesmo abandonado”
(idem, ibidem).
Parece inteiramente legítimo inferir,
então, que a “avaliação” efetuada por Sousa Santos determina a sua
posição relativamente a incorporar, e em que medida, ou não as
referências marxistas ao seu instrumental heurístico e/ou,
eventualmente, às suas prospecções sócio-interventivas (como veremos
adiante, Sousa Santos sustenta a diferencialidade do estatuto dessas
duas operações). Ora, a “avaliação” em tela, Sousa Santos realiza-a em
dois movimentos diversos: o primeiro consiste em um excurso sobre a
história do marxismo [4] e o segundo numa interlocução com o que se lhe
afigura o núcleo central da obra marxiana. Comecemos pelo primeiro
movimento.
Sousa Santos traça o que se poderia
chamar, com excessiva boa-vontade, de uma sinopse crítica do
desenvolvimento do marxismo, do final do século XIX à década de 80 do
século XX, organizando-a em quatro períodos, aos quais oferece
tratamento bem diferenciado.
O primeiro cobriria os anos de 1890 a
1920, configurando o que “pode ser considerado a idade de ouro do
marxismo” (idem: 24) [5]; o autor crê, repetindo palmar constatação, que
“a riqueza da reflexão marxista tem obviamente a ver com a pujança do
movimento socialista neste período” (idem: 25). Ele destaca duas grandes
cisões do período: a política, inaugurada com o debate acerca das
proposições de Bernstein, e a epistemológica, sinalizada pelo
neokantismo dos austro-marxistas (aliás, bastante valorizados por Sousa
Santos), cuja “concepção cientista e sociologizante do marxismo foi
fortemente contestada [depois de 1917] por teóricos tão diversos como
Korsch, Lukács e Gramsci” (idem: 25-26) [6].
Os anos 30 e 40 constituem, na seqüência,
“um período negro para o marxismo” (idem: 26). A combinação
fascismo/stalinismo responderia, de um lado, pela difícil sobrevivência,
na clandestinidade e no exílio, dos austro-marxistas e da Escola de
Frankfurt e, de outro, pelo fim da reflexão teórica “com a liquidação de
Plekhanov, Bukharin, Riazanov, Trotsky” (idem, ibidem) [7]. No imediato
seguimento desta afirmação, Sousa Santos acrescenta, evidentemente
referindo-se ao marxismo no Leste europeu, que aquela reflexão teórica
nunca mais renasceu.
O terceiro período, conforme o sociólogo
português, envolveria os anos 50-70 – ele entende que, “a partir dos
anos 50, o pensamento marxista renasce com vigor, iniciando uma fase
brilhante que se prolonga até o final da 70″ (idem, ibidem).
Tangenciando os processos sociais que sustentam tal renascimento, Sousa
Santos aponta seus frutos nos países periféricos [8],” lista seus
desdobramentos nos países capitalistas avançados – com o desenvolvimento
de “uma sociologia marxista de muitos matizes”? [9] e de “uma
historiografia brilhante de inspiração marxista” (idem: 28) [10] e, na
área continental da Europa Ocidental, destaca que esse movimento se
expressa no “marxismo ocidental”, que se evidenciaria em “duas grandes
orientações”: a “teoria crítica da Escola de Frankfurt” e o “marxismo
estruturalista francês” (idem: 27) [11].
Finalmente, o quarto período, referido
aos anos 80, marcaria “a década o pós-marxismo”: para Sousa Santos, “a
solidez e a radicalidade do capitalismo ganhou [sic] ímpeto para
desfazer o marxismo no ar” (idem: 29). Depois e arrolar os debates que
lhe parecem os fundamentais do decênio [12], ele considera que ocorre
nos países centrais “a dissolução do marxismo”, enquanto, na periferia,
“a sociologia de inspiração marxista continuou a produzir reflexões e
análises valiosas” (idem:31) [13]. Arrematando, o autor constata que “o
perfil pós-marxista da década de 80 tem um traço fundamental: é
anti-reducionista, antideterminista e antiprocessualista” (idem, ibidem)
[14] perfil este que, destacando do “interior da teoria marxista” o
debate sobre “a tensão ou equilíbrio entre estrutura e ação”, acabará
por privilegiar, nestes anos, uma “leitura antiestrutural”, claramente
oposta àquela predominante na década de 60 (privilégio visível, por
exemplo, no marxismo analítico de um J. Elster) [15].
Aqui, Sousa Santos suspende o seu “breve
excurso pela tradição teórica marxista” (idem: 32), para depois
interpelando ao próprio Marx avançar no sentido de indagar se o legado
de Marx tem algum futuro. Trata-se mesmo de um breve excurso e seria
tolice, senão mesquinhez, reclamar do que “falta” numa sinopse que não
se alonga por mais de dez páginas. Com efeito, não teria o menor
cabimento exigir do autor o que ele não se propôs a oferecer Sousa
Santos não prometeu uma síntese histórico-crítica do marxismo,
absolutamente inviável, mesmo em suas linhas fundamentais, no espaço de
que se valeu e na direção dos seus interesses.
Todavia, ainda que nos situemos no
interior dos quadros dessa sinopse com seus limites explícitos, formais e
temáticos, não há como ladear o seu caráter tosco e insuficiente para
subsidiar mesmo a mais esquemática “avaliação do marxismo enquanto
tradição teórica da sociologia” (idem: 10). Realmente, como entender
que:
a) ao abordar a “idade de ouro”
(1890-1920), Sousa Santos não diga uma só palavra sobre os impactos da
Revolução Russa no movimento socialista, sem os quais a dinâmica da
reflexão teórica nos anos 20 (e não só) é incompreensível?
b) nessa mesma abordagem, Sousa Santos
não se atenha minimamente sobre o que representaram os trabalhos (que,
aliás, cita) de Korsch, Lukács e Gramsci, largando de mão, precisamente,
a base de grandes polêmicas dos anos 20 (e, também, não só deles),
cujos núcleos problemáticos percorreriam boa parte do marxismo
posterior? [16]
c) ao mencionar (nos anos 30-40) a razia
efetuada pelo stalinismo, Sousa Santos afirme que a reflexão marxista no
Leste europeu tenha sido ferida a ponto de “nunca mais renascer”,
equalizando tudo sob “o pesadelo stalinista” (idem: 26) e descurando por
completo certos desenvolvimentos particulares, como, por exemplo, na
Hungria e na Polônia e, ainda, nas então Iugoslávia e Tchecoslováquia?
[17]
d) com sua ênfase sociológica, Sousa
Santos não se refira absolutamente, ao cuidar do terceiro período (anos
60-70), à contribuição essencial que, nesta etapa e nesta área, foi
oferecida por Henri Lefebvre ou pelos marxistas italianos?
Observe-se que não estou, reitero,
questionando omissões – exceto na indagação contida em d) [18]
explicáveis e compreensíveis num “breve excurso”. O que coloco em causa
é, em a), um viés analítico que não contempla absolutamente nenhuma
dimensão do processo que, instaurando a fratura de maior magnitude no
movimento socialista, condicionaria largamente os rumos posteriores da
tradição marxista; em b), a incrível superficialidade no trato de
autores e obras emblemáticos e paradigmáticos dos dilemas da tradição
marxista a partir do primeiro pós-guerra; em c), uma afirmação
factualmente insustentável acerca do evolver do pensamento marxista no
interior dos países anteriormente ditos socialistas.
Em suma, a minha crítica não incide sobre
as escolhas, os cortes, enfim a seleção a que Sousa Santos obrigou-se
pela natureza sinótica do seu “breve excurso”: o que é débil e frágil é o
tratamento teórico-crítico que conferiu ao objeto desse excurso do qual
resulta uma leitura vulgar e muito simplória da tradição marxista.
Resultado não só injustificável, quando se conhece o talento do autor e
se reconhece a riqueza do objeto, mas sobretudo inepto para fundar
qualquer apreciação séria do legado marxiano no século XX.
Mas o traço de vulgaridade que recobre
todo esse primeiro movimento da “avaliação” de Sousa Santos não pode ser
posto na conta de um eventual deslize do autor ele me parece remeter a
algo mais substantivo, a que retornarei adiante. Por agora, ocupo-me do
segundo movimento de Sousa Santos, quando ele se dirige ao próprio Marx.
O Marx de Sousa Santos: receita nova, pudim velho
Sousa Santos interpela a obra de Marx num
espaço em que, de novo, há que conceder excessivamente à capacidade de
síntese do autor, uma vez que não gasta mais de treze páginas com objeto
de tamanha magnitude a partir da “condição do presente” (idem: 33). Já
assinalei que, para Sousa Santos, essa condição se caracteriza por uma
dupla transição paradigmática, a epistemológica e a societal e é nessa
dupla dimensão que ele apreciará a obra marxiana.
No campo dos que sustentam a exaustão do
“paradigma da Modernidade”, Sousa Santos distingue (numa operação que,
aliás, se encontra em outros analistas) duas concepções diferentes: de
um lado, há aqueles para os quais o exaurimento da Modernidade significa
o colapso final de suas promessas, de quaisquer objetivos
transistóricos, com as práticas sociais das sociedades contemporâneas
não tendo mais qualquer alternativa está aqui o “pós-modernismo
reconfortante ou de celebração” (idem: 35), seguramente portador do
neoconservadorismo outrora denunciado por Habermas; doutro, localizam-se
os que arguem a Modernidade seja cultural, seja sociopoliticamente,
verificando “que as promessas da Modernidade, depois que essa deixou
reduzir suas possibilidades às do capitalismo, não foram nem podem ser
cumpridas (idem, ibidem), porém demandando uma nova epistemologia e uma
nova socialidade tem-se aí o “pós-modernismo inquietante ou de oposição”
(idem, ibidem), no qual Sousa Santos se vê inscrito. É claro que, para o
“pós-modernismo de celebração”, não se põe o problema de um projeto
societário distinto ao do capital (nele, a história chegou,
fukuyamamente, ao fim); assim, a dupla dimensão da transição
paradigmática só se coloca para a vertente “inquietante”.
Curiosa, mas explicavelmente, a distinção
entre as duas vertentes Sousa Santos assevera, expressamente, que são
antagônicas (idem, ibidem), posição que está longe de ser inteiramente
fundada [19] se esbate inteiramente no nível da teoria do conhecimento
quando se trata de apreciar Marx. Segundo Sousa Santos, para o
“pós-modernismo de celebração”, “o marxismo nada tem a contribuir”
(idem, ibidem); mas, também para o próprio autor, “no plano
epistemológico, o marxismo pouco pode contribuir para nos ajudar a
trilhar a transição paradigmática” (idem, ibidem). Tem-se, aqui, um
“antagonismo”… relativo! A explicação reside, a meu ver, não apenas num
viés irracionalista que permeia ambas as posições, [20] mas na
concepção, de fato esposada pelos dois “pós-modernismos”, do “paradigma
da ciência moderna” com que operam [21].
O conceito de paradigma, se pode ter
alguma valia quando se trata de abordar o desenvolvimento das ciências
que têm por objeto a realidade do ser natural, enferma de inteira
imprestabilidade quando é deslocado para a apreciação do evolver do
conhecimento do ser social (recorde-se, aliás, que o responsável pela
divulgação do conceito no conhecido A estrutura das revoluções
científicas, Kuhn (1972), mostrou-se muito cético quanto à sua
aplicabilidade nas ciências sociais, consideradas por ele como
“pré-paradigmáticas”) [22]. Ora, Sousa Santos desenvolve urna elaborada
versão do “paradigma da ciência moderna” que estende tranquilamente da
análise das “ciências duras” às ciências sociais e, nessa translação,
tal “paradigma” se converte num instrumento de redução indiferenciada
que equaliza todo o século XIX, enfiando no mesmo saco da “ciência
moderna” seja a lógica hegeliana, o sistema categorial de Marx ou as
tipologias durkheimianas (Weber, naturalmente, tem aí um enquadramento
difícil, até porque, na corrosiva ironia de Mészáros [1996: 198 e ss.], é
um homem para todas as estações). Nesse reino de absoluta
indiscriminação, praticamente toda construção teórica (insista-se nesta
qualificação: teórica) do século XIX, e não só, é subsumida na razão
puramente instrumental e, pois, repugna à “sensibilidade pós-moderna”,
seja ela “reconfortante” ou não.
A determinação fundamental da qual parte Sousa Santos para interpelar Marx situa-se neste marco. Afirma o autor:
“Marx demonstrou uma fé
incondicional na ciência moderna e no progresso e racionalidade que ela
poderia gerar. Pensou mesmo que o governo e a evolução da sociedade
podiam estar sujeitos a leis tão rigorosas quanto as que supostamente
regem a natureza, numa antecipação do sonho, mais tarde articulado pelo
positivismo, da ciência unificada” (idem, ibidem).
Este é o Marx de Sousa Santos — um positivista avant la lettre,
um pré-Durkheim edulcorado por uma perspectiva “utópica” (e de um
“utopismo” insuficientemente radical’) [23], este é o Marx que, com a
facilidade viabilizada pelo desprezo à textualidade e à documentação,
todos os pós-modernos consideram um personagem do Jurassic Park.
Para esse gênero de consideração
reducionista e equalizadora, as reiteradas e enfáticas notações
marxianas sobre o caráter tendencial e histórico das leis
histórico-sociais (sistematicamente constitutivas do pensamento de Marx e
explicitadas, pelo menos, a partir da Miséria da filosofia) são
desimportantes. É desimportante que a determinação da “ciência única” a
história apareça num contexto (a célebre passagem de A ideologia alemã)
onde está subjacente a problemática da humanização da natureza [24].
Igualmente, a complexa noção marxiana de progresso é convenientemente
vinculada às concepções positivistas de determinismo e evolução, como se
nota no conjunto da “avaliação” de Sousa Santos aqui devemos nos deter
minimamente.
O fulcro desta “avaliação” encontra-se numa passagem de Pela mão de Alice
situada fora do capítulo que é objeto do meu rápido exame polêmico, mas
que subsidia e complementa admiravelmente. Nela, Sousa Santos afirma,
com a sua prosa sempre clara e inequívoca, que
“o erro de Marx foi
pensar que o capitalismo, por via do desenvolvimento tecnológico das
forças produtivas, possibilitaria ou mesmo tornaria necessária a
transição para socialismo. Como se veio a verificar, entregue a si
próprio, o capitalismo não transita para nada senão para mais
capitalismo. A equação automática entre progresso tecnológico e o
progresso social desradicaliza a proposta emancipadora de Marx e
torna-a, de fato, perversamente gêmea da regulação capitalista” (idem:
243).
Nesta passagem, a única referência
verdadeira é a que diz respeito a que, do movimento do capitalismo,
entregue a si mesmo, só pode derivar mais capitalismo como, aliás,
sobejamente o sabia Marx (não fosse por outra razão, ele considerava a
organização da vontade política dos proletários absolutamente
indispensável para a transição socialista e, conseqüente com esta
convicção, foi um incansável organizador dos trabalhadores); todo o
resto da passagem é falso:
1. não se pode sustentar seriamente, a
partir de uma leitura rigorosa de Marx, a hipótese de um desenvolvimento
“automático”, “natural” e/ou “espontâneo” da força produtiva engendrada
pelo “desenvolvimento tecnológico”. De 1847 a 1867 (passando pelas
longas disquisições dos Gründrisse…), Marx insistiu suficientemente em
que o caráter revolucionário do capitalismo designação, aliás, pouco
utilizada por ele no que toca ao desenvolvimento das forças produtivas
vincula-se às lutas entre capital e trabalho: é esse antagonismo
radical, cuja solução socialmente progressista depende do nível de
consciência e intervenção sociopolítica dos trabalhadores, que leva o
capital à inovação científico-tecnológica. Vê-se como o Marx real se
distingue do Marx de Sousa Santos: nas mãos deste, o primeiro teórico
socialista a pensar o condicionamento sociopolítico do desenvolvimento
científico-tecnológico se converte num vulgar apologista do
“determinismo tecnológico”;
2. leitura similar desautoriza
liminarmente imputar a Marx uma pretensa “equação automática entre o
progresso tecnológico e o progresso social”. Bem ao contrário, no
conjunto da obra marxiana o que é enfaticamente destacado é que, nos
quadros de uma sociedade dinamizada por contradições de caráter
antagônico, o desenvolvimento social (que, isto me parece incontroverso,
para Marx supõe desenvolvimento de forças sociais produtivas) implica
sistematicamente componentes de barbarização [25]. A noção de progresso
no Marx dos textos autógrafos, ao contrário do que nos propõe a visada
de Sousa Santos, contempla sempre, numa ordem social como a capitalista,
uma contraface que a divorcia de qualquer visão unidimensional.”
Por isto, seja a “fé incondicional na
ciência moderna”, que Sousa Santos atribui a Marx, seja a “fraternidade”
que vê entre sua proposta de emancipação e a regulação capitalista
mostram-se, tal como as concebe o ilustrado sociólogo lusitano,
completamente insustentáveis.
Sumario, antes de prosseguir. No marco da
transição paradigmática, do ponto de vista epistemológico, Marx e, no
fim das contas, segundo Sousa Santos, isto vale para qualquer
pós-modernismo, seja o “reconfortante”, seja o “inquietante” se desfez
no ar. Cabe avançar, então e, como vimos, esse avanço só tem cabimento
para o pós-modernismo esposado por Sousa Santos, isto é, o “inquietante”
para a consideração de Marx do ponto de vista da transição societal. No
capítulo de Pela mão de Alice … de que me ocupo, Sousa Santos afirma
que, ao contrário do que ocorre no interior do “pós-modernismo de
celebração”, para a sua posição pós-moderna cabe interpelar a Marx,
posto que ao “pós-modernismo de oposição” torna-se
“essencial a ideia de
uma alternativa radical à sociedade atual, e Marx formulou, mais
coerentemente que ninguém, uma tal alternativa. A questão está, pois, em
saber em que medida a alternativa de Marx, que é tão radicalmente
anticapitalista quanto é moderna, pode contribuir para a construção de
uma alternativa assumidamente pós¬moderna” (idem: 36).
Um crítico inscrito ainda no “decadente”
paradigma moderno poderia indagar se vale a pena, para Sousa Santos,
debruçar-se sobre a prospecção societal de um analista cujos
referenciais teórico-metodológicos o anacronizam face da transição
epistemológica pois é este, justamente, o caso de Marx para o sociólogo
de Coimbra. Mas o problema não se coloca para Sousa Santos: como
antecipei rapidamente, ele também aqui se opõe às “ciências sociais da
modernidade”, que, de acordo com ele, tenderam a situar num mesmo campo
gnosiológico as operações de explicação/compreensão da sociedade e de
detecção da direção da transformação social; conseqüentemente, o autor
acredita que “a sociologia [sic] de Marx é, em geral, coerente com a
utopia [sic] de Marx, mas não se confunde com ela” (idem, ibidem).
Assim, Sousa Santos se põe a buscar a resposta sobre a eventual
atualidade de Marx para uma alternativa societal.
E fá-lo questionando a contribuição de
Marx em três “áreas temáticas: processos de determinação social e
autonomia do político; ação coletiva e identidade; direção da
transformação social” (idem, ibidem). Nas “três áreas”, que a reflexão
de Sousa Santos procura explorar (idem: 33-45), a “avaliação” procedida
pouco salva além de um Marx utópico (aliás, repita-se, insuficientemente
utópico…):
1. no que tange aos processos de
determinação social, para além de protocolares reverências ao tônus da
análise marxiana, Sousa Santos considera (sem deixar aqui de mão o
“determinismo” e o “evolucionismo”) que ela enferma de um insustentável
“reducionismo econômico” (idem: 38). É claro que, tomando a teoria
social de Marx como uma teoria fatorialista (o “econômico”, o
“político”, o “cultural”) e, em resumidas contas, é assim que Sousa
Santos a visualiza (idem, ibidem), fica relativamente fácil tergiversar e
escamotear a concreta análise marxiana das determinações
econômico-políticas que é simplificada em termos de
“base/superestrutura”. Evidentemente, para argumentar em torno desse
“reducionismo econômico”, Sousa Santos elude o rico arsenal heurístico
que Marx apurou ao largo de seu itinerário de pesquisa (se, para um
pós-moderno, compreende-se que totalidade cheire a “totalitarismo”, é
menos compreensível a nenhuma alusão ao conceito, aliás operativo, de
formação econômico-social);
2. quanto ao nó ação coletiva e
identidade, a problematização de Sousa Santos (idem: 39-42) é pertinente
e merece uma análise cuidadosa, que não cabe nos limites desta nota
polêmica. Ainda que se discorde da sua interpretação sociopolítica
acerca do protagonismo da classe operária no processo de transformação
da ordem burguesa e da sua apreciação sobre a precisão das antecipações
de Marx quanto ao destino das classes no evolver do capitalismo, as
questões que coloca referentes tanto à ênfase marxiana nas classes como
princípio “explicativo” e como princípio “transformador” são
inegavelmente legítimas e instigantes [27], na medida em que assinalam
dilemas ainda em aberto e para os quais o recurso a Marx freqüentemente
se revela uma forma de ladear o impostergável exame de realidades novas
[28];
3. no que se refere à direção da transformação social, Sousa Santos anota que a
“ideia de Marx de que a
sociedade se transforma pelo desenvolvimento de contradições é
essencial para compreender a sociedade contemporânea, e a análise que
fez da contradição que assegura a exploração do trabalho nas sociedades
capitalistas continua a ser genericamente válida. O que Marx não viu foi
a articulação entre a exploração do trabalho e a destruição da natureza
e, portanto, a articulação entre as contradições que produzem uma e
outra” (idem: 44 – grifo não original; cf., supra, notas 24 e 25).
Eis por que, segundo Sousa Santos, entre
outras razões, a “utopia” que atribui a Marx é insuficientemente radical
e, pois, inadequada para subsidiar a transição paradigmática societal
esta exige a “utopia ecológica e democrática” (idem: 43), com a qual se
alinha o autor [29].
Ao fim de sua “avaliação”, Sousa Santos
nos oferece um Marx que, referência das ciências sociais (aqui, não se
esqueça, a impostação é sociológica) e objeto de evidente respeito e
simpatia, não passa pelo crivo crítico do “pós-modernismo de oposição”
também no território sociopolítico, enfermado que está seu pensamento de
“determinismo”, “evolucionismo” e “reducionismo”. E, emblematicamente,
não se concede ao infeliz Marx qualquer benefício de dúvida ou
ambiguidade sequer a existência de tensões internas no seu pensamento,
como as explorou, por exemplo, Alvin W. Goudner: Sousa Santos
provavelmente considera como residuais possíveis ambiguidades ou tensões
na obra marxiana [30].
Ora! o fato é que, à parte aqueles
respeito e simpatia, a leitura de Marx por Sousa Santos, aparentemente
sofisticada e reveladora de interesses analíticos renovados, apresenta
resultados extremamente similares aos já centenariamente divulgados pela
grossa maioria dos cientistas sociais que, entre outras coisas,
notabilizam-se pela sua plena integração ao establishment. Correndo o
risco de cometer uma indelicadeza formal, a leitura de Marx por Sousa
Santos pode ser caracterizada como uma receita nova – com ingredientes
como Modernidade, paradigma etc. que culmina na feitura de um pudim cujo
gosto se conhece há muito determinismo, evolucionismo, reducionismo
econômico. Os habituados aos velhos confeitos da Teoria Sociológica de
terno e gravata sabem que as guloseimas oferecidas por N. Timasheff não
tinham outro sabor.
Em síntese: uma análise incompetente
Não é necessária nenhuma argúcia especial
para concluir, a partir dessa “avaliação do marxismo enquanto tradição
teórica da sociologia”, ou deste “balanço geral da proposta de Marx, que
a contribuição marxiana e/ou marxista para o enfrentamento da
“transição paradigmática” contemporânea configura um aporte pouco mais
que medíocre Sousa Santos não o diz expressamente, mas há passagens, em
Pela mão de Alice…, das quais se pode inferir que o pobre Marx, para
além da sua “utopia” (que, como vimos, nem suficientemente “radical” é)!
Não tem serventia maior que Weber e Durkheim [31].
É preciso deixar muito claro que são
secundárias, a esta altura, as opiniões e apreciações de Sousa Santos
sobre Marx e a tradição marxista; que ele, como todos e qualquer um de
nós, é livre para emitir quaisquer juízos de valor sobre ambos, seja
enquanto cidadão, seja enquanto intelectual – papéis que, como sabemos,
se entrecruzam sem se confundir. Mas parece não haver muita dúvida de
que o papel do intelectual exige modos de argumentação mais rigorosos
para validar tais juízos. E é exatamente aqui que se põe o problema da
“avaliação” de Sousa Santos: a sua análise da teoria marxiana é de todo
incompetente para fundar uma interpretação que dê conta, minimamente, da
fecundidade ou não daquela teoria para enfrentar os grandes desafios
contemporâneos. Com efeito, o Marx de Sousa Santos justifica a tese de
que,
“se a modernidade se
torna hoje mais do que nunca problemática, o marxismo será mais parte do
problema que defrontamos do que da solução que pretendemos encontrar”
(idem: 35).
Entretanto, já salientei quão distintos são o Marx de Sousa Santos e o Marx real, verificável nos textos autógrafos.
Com franqueza, repito: independentemente
dos limites a que se impôs, a análise que, em Pela mão de Alice…, Sousa
Santos nos oferece de Marx e sua tradição é uma análise incompetente: se
apanha alguns elementos significativos e lacunas reais da teoria
marxiana (como indiquei), repete lugares-comuns insustentáveis (dos
quais o mais tolo é a acusação acerca do “reducionismo”).” faz
afirmações completamente absurdas (como aquela sobre “a equação
automática entre progresso tecnológico e progresso social”) e elude
convenientemente importantes tematizações marxianas (como as referidas à
relação sociedade/natureza). Presta, com isto, dois enormes desserviços
à investigação: de um lado, reforça preconceitos ignorantes em face da
teoria marxiana; de outro, não contribui para que a pesquisa identifique
o que, nessa teoria, efetivamente perdeu atualidade e validez. No fim
das contas, é quase inacreditável que um intelectual do nível e da
qualidade de Sousa Santos que, por outra parte e como assinalei,
revela-se capaz de análises finas e sugestivas possa nos apresentar um
Marx tão deformado e empobrecido e um marxismo tão miserável.
Mas quando um autor competente como Sousa
Santos tanto se expõe numa análise assim incompetente, há que buscar
razões de fundo para isto.
Se se podem invocar causas e motivos de
ordem episódica e pessoal (pressa em publicar textos? passageira
ausência de autocrítica?), eles não parecem procedentes em referência a
um acadêmico responsável como o pesquisador em tela. Aqui deve haver
algo mais substantivo que meras idiossincrasias, mais relevante que um
ou outro preconceito, mais importante que um controle maior ou menor
sobre tal ou qual obra de Marx. E quer-me parecer que o busílis da
questão (para retomar a expressão tão cara ao velho Florestan) reside no
tratamento teórico-crítico que Sousa Santos dedica a Marx e à tradição
marxista.
Nas páginas de Pela mão de Alice… o que é
fundante na análise que Sousa Santos faz da teoria marxiana (e da
tradição marxista) é uma concepção convencionalíssima da obra de Marx,
que teria criado, “ainda que de modo não sistemático, uma nova teoria da
história, o materialismo histórico” (idem: 36), a partir do qual se
viabilizariam cortes científicos e ideais particulares donde Sousa
Santos possa referir-se à “sociologia” e à “utopia” de Marx, como
poderia referir-se a uma “filosofia”, a uma “economia” etc. Ou seja: a
concepção de Sousa Santos projeta sobre a obra marxiana a divisão das
“ciências sociais oitocentistas”, apanhando nela os recortes
teórico-científicos que mais lhe convêm (no caso, a ênfase numa
“sociologia”). Está claro que, com este procedimento, o que não se
resgata da teoria social de Marx é justamente aquilo que lhe é mais
visceral e medular: seu caráter unitário e totalizante/totalizador,
embasado numa ontologia do ser social – a partir da crítica da economia
política historicamente constituído no mundo do capital.
O procedimento é tão velho quanto a
própria sociologia (como disciplina científica institucionalizada). E
vem sendo histórica e sistematicamente reiterado (inclusive por
marxistas) mas nada disto o torna legítimo, ainda que coberto de
créditos acadêmicos. Que os sociólogos (bem como outros cientistas
sociais especializados) dos mais diversos matizes tenham se inspirado em
Marx e/ou nele recolhido indicações teóricas e analíticas e que, no
interior mesmo da tradição marxista, se tenham gerado correntes
sociológicas não afeta a substância da questão que, como Lukács indicou
já em 1923, consiste na relação de excludência entre a teoria marxiana
da sociedade burguesa e o discurso de uma ciência social especializada
qualquer. Numa formulação mais precisa, o mesmo Lukács (1968, cap. VI)
esclareceu o fulcro da questão: o estatuto original da sociologia
repousa no corte entre relações sociais/relações econômicas, com a
explicação sociológica das primeiras prescindindo da análise das
segundas (que, então, se remetem a outra ciência especializada, a
economia) [33]. Ainda que os praticantes do que Florestan chamou de
“sociologia crítica” (ou “radical”) tenham e venham procurando romper
com este corte e esta procura é sensível em Sousa Santos [34], o quadro
estrutural-categorial próprio da reflexão sociológica (como de qualquer
ciência social especializada) os compele a encontrar na crítica da
economia política e na crítica das relações econômicas empiricamente
dadas quando muito as famosas (e engelsianas) “determinações em última
instância”.
Sousa Santos, indiscutivelmente, é um
sociólogo “crítico” (ou “radical”) e, como todos os sociólogos
“críticos”, procede sobre a estrutura categorial própria à sociologia
donde a inapreensão do caráter unitário da teoria social marxiana com a
(pres)suposição dos seus níveis “sociológicos”, “econômicos”, “utópicos”
etc., posto que a pense à moda das “ciências sociais oitocentistas”
(idem: 38). É por esta razão que ele pode fazer um “balanço” do marxismo
como tradição sociológica sem discutir minimamente o estado da crítica
da economia política marxista (que, obviamente, é matéria da “economia”,
não da “sociologia”) [35]. É esta a razão que faz este “olhar
sociológico” converter a teoria social de Marx numa enciclopédica teoria
fatorialista do “econômico”, do “social”, do “político” etc.. E é
evidente que, sob tal luz, as determinações complexas, bem como os seus
igualmente complexos sistemas de mediações, que articulam a totalidade
concreta que é a sociedade burguesa passam a oferecer o espaço ideal
seja para a construção reflexiva de determinismos simplistas, seja para a
postulação, também puramente reflexiva, de autonomias relativas
(”regionais”?) que terminam por se hipostasiar [36], Assim, é óbvia a
dificuldade para recuperar, no plano do pensamento, as concretas
interdeterminações e mediações entre os vários níveis, instâncias e
esferas constitutivos da sociedade – dificuldade que, às vezes, se
converte mesmo em impossibilidade [37].
É este trato sociológico da teoria
marxiana que responde substantivamente (ainda que não exclusivamente)
pela flagrante debilidade do “balanço geral” com suas conseqüências na
decorrente “avaliação” que, em Pela mão de Alice, Sousa Santos exercita
pobre e esquematicamente. Trato que está longe de comprometer a Marx e à
tradição (teórico-prática) a ela afeta. Antes, pela enésima (mas não
última) vez, comprova que o “olhar sociológico”, ao vestir a obra de
Marx com a mesma sobrecasaca de Durkheim e Weber, comporta-se diante
dela como o verme drummondiano que, partilhando da “alegria de zombar
dos mortos”,
só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava
que rebentava daquelas páginas
(Andrade, 1977: 105).
que rebentava daquelas páginas
(Andrade, 1977: 105).
Notas:
[1] Publicado pela Afrontamento (Porto)
em 1994, 0 livro esgotou a primeira edição em Maio e a segunda em
Setembro, fazendo com que a editora colocasse no mercado a terceira em
Novembro.
[2] Todas as citações que farei de Pela mão de Alice… serão extraídas dessa edição.
[3] Embora as referencias a Marx e a
tradição marxista estejam presentes em varias passagens, esta discussão,
como se verá, ocupa somente um capítulo do livro, 0 segundo (Santos,
1995: 23-49).
[4] A alusão ao marxismo não implica a
existência de “um cânon marxista. Não há uma versão ou interpretação
autorizada do que Marx verdadeiramente disse ou quis dizer. Não há uma
ortodoxia a que se tenha de prestar lealdade incondicional, nem
inversamente fazem muito sentido protestos de renegação ou abjuração
[…]. Numa pincelada de sociologia do marxismo pode dizer-se que
canonização e ortodoxia são próprios de universos de conhecimento que se
pretendem diretamente conformadores da prática social como é o caso,
por exemplo, da teologia ou da psicanálise” (idem: 33). Parece claro
que, aqui, a noção de ortodoxia nada tem a ver com o sentido que Lukacs,
no primeiro ensaio de História e consciência de classe (que Sousa
Santos conhece), Ihe atribuiu.
[5] Sousa Santos reproduz aqui,
literalmente, a apreciação de Kolakowski, para quem “o periodo da
Segunda Internacional (1889-1914) pode ser denominado, sem exagero, a
idade de ouro do marxismo” (Kolakowski, 1982: 9).
[6] Aqui, Sousa Santos simplesmente
remete às obras desses três autores (em referencias bibliográficas que
suprimimos nesta citação), com um comentário esquemático, ao qual
retornaremos adiante, de exatas seis linhas (idem: 26).
[7] E inteiramente falsa essa menção a
Plekhanov: o “pai do marxismo russo” não foi liquidado, mas faleceu num
hospital finlandês em 30 de Maio de 1918.
[8] Rememorando, a esta altura, o impacto
do maoismo, a argúcia de Fannon e a “teoria da dependência”, de
Fernando Henrique Cardoso et alii.
[9] Sousa Santos arrola, aqui, inúmeros
analistas, entre os quais Mills, Poulantzas, Miliband, Touraine, E. O.
Wright, G., Theborn, Marcuse, R. Williams, Habermas e Bourdieu.
[10] Neste passo, Sousa Santos evoca
Braudel, Hobsbawm e Thompson. Entre a “sociologia” e a “historiografia”,
menciona ainda uma “investigação sociológica histórica de grande
criatividade”, lembrando os trabalhos de B. Moore Jr. e I. Wallenstein.
[11] Esta passagem do texto de Sousa
Santos é particularmente equivoca; de um lado, referir o “marxismo
ocidental” como próprio deste período (anos 50-70) é, para dizer o
mínimo, uma tolice historiográfica. De outro, situar, como ele a faz,
Lucien Goldmann no marco do “marxismo estruturalista francês”, “devedor
da reflexão filosófica de Althusser e da antropologia de Levi-Strauss”
(idem: 27), é ignorar completamente a concepção goldmanniana de
estruturalismo genético.
[12] Curiosamente, a autor anuncia a
relevância de quatro dentre os debates importantes da década, mas, ao
discrimina-los, menciona cinco (idem: 30) incidentes sobre: 1) processos
de regulação social nas sociedades capitalistas avançadas (Aglietta,
Brender, Boyer); 2) processos de formação e de estruturação das classes
nas sociedades capitalistas, considerando as novas classes e seus
lugares contraditórios (E. O. Wright); 3) primazia ou não da economia,
das relações de produção ou das classes na explicação dos processos de
transformação social (Offe, M. Mann, N. Mouzelis, 1. Sckopol, p. Evans);
4) natureza das transformações culturais do capitalismo (F. Jameson);
5) avaliação do desempenho politico dos partidos socialistas e
comunistas e, em geral, do movimento operário europeu (W.Korpi, A.
Przeworski).
[13] Sousa Santos ilustra: “A título de
exemplo, refiram-se os estudos sobre os novos movimentos sociais e sobre
os processos de transição democrática na América Latina e os estudos de
sociologia histórica sobre o contexto colonial e pós-colonial da Índia
[…]” (idem: 31).
[14] É interessante observar que Sousa
Santos identifica dois “pós-marxismos”: o da década de 80, aí referido, e
o da década anterior, “pós-estruturalista […], fortemente tributário de
Foucault e da reflexão teórica na lingüística, na semiótica, na teoria
literária e mesmo na psicanálise” (idem: 31).
[15] A propósito da “articulação
ação/estrutura tal como ela foi se constituindo e transformando na
tradição marxista”, Sousa Santos (idem: 32) realça a crítica a “mais
aguda e mais inovadora”, oriunda da “sociologia feminista” e a recusa
“dessa dualidade no seu todo”, expressa na obra de E. Laclau e C. de
Mouffe, Hegemony and Socialist Strategy. Toward a Radical Oemocratic
Politics (London, Verso, 1985); num passo posterior, Sousa Santos sugere
sua discrepância com esses dois autores (idem: 37).
[16] Mencionamos atrás (nota 6) que, com
eles, Sousa Santos gasta seis linhas; vale a pena transcrever sua
notação: “Convergiam estes pensadores na ideia de que a conversão do
marxismo numa ciência positiva desarmava o seu potencial revolucionário.
As raízes do marxismo eram hegelianas e faziam dele uma filosofia
crítica, uma filosofia da práxis, mais virada para a construção de uma
visão libertadora e emancipadora do mundo do que para uma análise
sistemática e objetiva da sociedade capitalista” (idem: 26). Deixando de
lado as substantivas diferenças entre os três autores, o que Sousa
Santos não assinala concretamente é o conteúdo antipositivista e
anti-reducionista que especialmente Lukács, batendo forte contra o
marxismo vulgar da Segunda Internacional, introduz no debate; a ausência
dessa sinalização contribui para explicar por que Sousa Santos parece
ignorar que o combate aos vários reducionismos (de natureza econômica,
notadamente) surge precisamente nos anos 20, bem antes de qualquer
“pós-marxismo”; sua chave, formulou-a Lukács na frase de abertura do
ensaio sobre Rosa Luxemburgo (1921): “É o ponto de vista da totalidade e
não a predominância das causas econômicas na explicação da história o
que distingue de forma decisiva o marxismo da ciência burguesa” (Lukács,
1965: 47).
[17] É assombroso, para quem se preocupa
com o desenvolvimento da sociologia, a ausência, aqui, da menor
referência aos autores da Escola de Budapeste, reunidos em torno de
Lukács (quando se sabe, ademais, que Sousa Santos conhece os trabalhos
de Agnes Heller, Ferenc Féher e G. Markus), aos empenhos de um S.
Ossowsky – sem falar de nenhuma alusão ao grupo Práxis e a Kosik.
[18] Mas, nesse caso específico, as duas
omissões são verdadeiramente graves – se um sociólogo culto não pode
deixar de considerar a obra multifacética de Lefebvre, nenhum balanço,
por mais sumário que seja, do marxismo nos anos 50-70 pode ser levado a
sério se não consigna a produção peninsular da época (quanto aos
italianos, Sousa Santos limita-se a protocolares citações de Labriola e
Gramsci).
[19] Para um pensador marxista
contemporâneo, essa distinção já convencional (”pós-modernismo de
celebração/pós-modernismo de oposição”l no interior do “campo
pós-moderno” é inteiramente desprovida de fundamentação (Mészáros, 1996:
27-70).
[20] Muito mais evidente no caso do
“pós-modernismo reconfortante”. Parece-me que Sousa Santos recusaria de
plano esta observação, que não posso desenvolver aqui; contudo, uma
análise mais cuidadosa de seu pensamento ao qual, como ele mesmo
reconhece, não é alheia a influência de Heidegger (idem: 76) apontaria
este viés, presente inclusive em não poucas passagens de Pela mão de
Alice… (cf. esp. as notações sobre “Conhecimento e subjetividade”, pp.
328 e ss.).
[21] Sousa Santos debateu amplamente a questão em Santos (1989).
[22] O próprio Habermas, cuidadoso como
sempre, já advertira que este é um “conceito que só se pode aplicar com
certas reservas às ciências sociais” (Habermas, 1988, I: 157, nota).
[23] Numa passagem de Pela mão de Alice…,
discutindo o “pilar da emancipação” do projeto da Modernidade, no
“período do capitalismo liberal” (século XIX), Sousa Santos considera
que “o socialismo dito utópico é, nos seus objetivos, mais radical que o
socialismo dito científico” (p. 83).
[24] Sousa Santos, justamente preocupado
com os desastres provocados pelo estatuto (com as suas incidências
prático-sociais) meramente objetual de que a natureza desfruta no
“paradigma da ciência moderna”, atribui a Marx concepção idêntica à
desta última, passando inteiramente por alto as páginas que, nos
Manuscritos econômico-filosóficos de Paris, ele dedicou à relação
sociedade/natureza.
[25] Apenas duas passagens, para atestar a
notação: “A um certo estágio da evolução das forças produtivas, vê-se o
surgimento de forças de produção e meios de comércio que, nas condições
existentes, apenas causam malefícios. Não são mais forças de produção,
mas de destruição […]”; “[…] As coisas chegaram hoje ao ponto em que os
indivíduos se vêem obrigados a se apropriarem da totalidade existente
das forças produtivas não só para se afirmarem, mas, sobretudo, para
resguardar a sua existência” (trechos de A ideologia alemã, in Marx,
1982, /11: 1120, 1122).
[26] Não cabe aqui mostrar como, nesse
aspecto, Marx é um herdeiro direto de Hegel, cuja noção de progresso é
diversa das “ilusões heroicas” da Ilustração do século XVIII.
[27] Noutro passo de Pela mão de Alice…
tematizando a “transformação não capitalista” da sociedade atual, Sousa
Santos faz uma observação que certamente o distingue de boa parcela dos
sociólogos contemporâneos: assevera que “se tal transformação não pode
ser feita só com o operariado, tão pouco pode ser feita sem ele ou
contra ele” (idem: 272).
[28] No exame dessas novas realidades,
fundamentalmente as que são postas pela crescente complexidade concreta
da ordem tardo-burguesa, algumas contribuições de Sousa Santos merecem
particular atenção – e muitas delas comparecem em Pela mão de Alice…
[29] A esta “utopia” – que, noutro
desenvolvimento, Sousa Santos chamará de heterotopia corresponderia o
“Paradigma Eco-Socialista” (idem: 336 e ss.). Quanto à noção de
socialismo de Sousa Santos, ela aparece lapidarmente quando discute as
“mini-racionalidades pós-modernas” (idem: 111).
[30] É fato que assinala umas poucas delas (cf., por exemplo, idem: 37-38, 241), mas não as explora minimamente.
[31] “Marx deve ser posto no mesmo pé que
os demais fundadores da sociologia moderna, nomeadamente Max Weber e
Durkheim. […] Apesar de se guardarem de uma tradução organizada das suas
idéias em processos de transformação social, Max Weber e Durkheim não
se coibiram de fazer previsões e de apontar direções desejáveis ou
indesejáveis de transformação social. O que os distingue de Marx é,
neste domínio, o íato de suas previsões se manterem dentro do quadro do
capitalismo […]. Porque se limitaram a prever variações do presente, Max
Weber e Durkheim falharam menos estrondosamente que Marx em suas
previsões. Mas, por outro lado, ao tentar prever mais longe e mais
radicalmente, Marx apresentou, talvez contra sua vontade, uma das
últimas grandes utopias da modernidade: é hoje claro que todo socialismo
é utópico ou não é socialismo” (idem: 33-34).
[32] O “reducionismo economicista” que
Sousa Santos atribui a Marx – expressa e obliquamente (idem: 36 e 120) –
é uma inteira ficção, como Mészáros, entre muitos, já demonstrou
sobejamente (Mészáros, 1993, parte 111).
[33] Recorde-se que Marcuse, no seu
estudo de 1941 – Razão e revolução. Hegel e o advento da teoria social
(Marcuse, 1969) -, pensa no mesmo compasso (desistoricização e
deseconomicização) a constituição da sociologia.
[34] Cf. esp. os dois últimos capítulos
de Pela mão de Alice… É de notar, porém, que, nessas páginas, o trato
dos processos econômicos é muito mais de natureza constatativa que
analítica.
[35] Certamente que, no seu “balanço”,
ele menciona Hilferding e um que outro “economista”; mas a contribuição
e/ou as polêmicas derivadas dos trabalhos, apenas para citar alguns
exemplos notáveis, de Varga, Crossmann, Sweezy, Baran, Dobb, Boccara e
Mandei seguramente lhe parecem pertencer a outro continente teórico.
[36] Prova-o, por exemplo, a própria
concepção que o sociólogo português vem apresentando da Modernidade.
Sousa Santos tem sabido evitar, ao longo de sua obra, a visão simplória,
chapada e apologética da Modernidade que comparece na maior parte dos
ideólogos pós-modernos. Muito especialmente, ele tem procurado, no plano
histórico-sistemático, discernir o Projeto da Modernidade do
capitalismo (idem: 76), inclusive investigando os rebatimentos do
evolver deste último sobre aquele projeto (idem: 80-93). É interessante,
assinale-se, na sua análise da Modernidade, a conexão que estabelece
entre o “pilar da regulação” e o “pilar da emancipação”, com seus
respectivos “princípios” e “lógicas de racionalidade” e com a expressa
admissão de que o projeto sociocultural moderno é “muito rico, capaz de
infinitas possibilidades e […] sujeito a desenvolvimentos
contraditórios” (idem: 77). Todavia, e como se verifica em praticamente
toda a literatura que tematiza a Modernidade de um ponto de vista
pós-moderno, Sousa Santos tem as maiores dificuldades para explicitar
concretamente tais “desenvolvimentos contraditórios”: no plano
crítico-analítico, acaba por caucionar um “paradigma da Modernidade”
inteiramente enquadrado pela lógica do capital – assim é que,
considerando os contemporâneos “problemas com que nos defrontamos”
(conversão dos problemas ético-políticos em problemas técnicos,
legitimidade da propriedade privada independentemente do seu uso,
obrigação política vertical do cidadão frente ao Estado, crença
produtivista no progresso), Sousa Santos não vai à caça das mediações
que propiciem articulá-los à dinâmica e à lógica atuais do capital, mas
vê na “base” de tais problemas … “quatro axiomas fundamentais da
modernidade”! (idem: 321). A tensão irresoluta nessa concepção de
Modernidade é indescartável: de uma parte, teoricamente, Sousa Santos
substancializa o Projeto da Modernidade, autonomizando-o das concretas
conexões que mantém com a ordem do capital e, de outra, analiticamente,
termina por estabelecer entre Modernidade e capitalismo uma relação
unívoco-funcional.
[37] Quanto a isso, são ilustrativas as
páginas que Sousa Santos dedica à análise da relação Estado/sociedade
civil, que ele pensa como “dualismo” (idem: 115 e ss.).
* José Paulo Netto é ensaísta, escritor e Professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro
** Apêndice do livro Marxismo impenitente – contribuição à história das ideias marxistas, Cortez Editora
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