Žižek: “Coringa” e o grau zero da revolução
A elegância do filme novo do Coringa é justamente a ausência da passagem crucial do impulso autodestrutivo a um “novo desejo” por um projeto político emancipatório. Assim, nós, os espectadores, somos convocados a preencher essa lacuna.

Por Slavoj Žižek.
* TEXTO ENVIADO DIRETAMENTE PELO AUTOR PARA SUA COLUNA NO BLOG DA BOITEMPO. A TRADUÇÃO É DE ARTUR RENZO.
Os críticos não souberam muito bem como
categorizar o novo filme do Coringa: seria ele uma mera peça de
entretenimento (como toda a série de filmes do Batman), um estudo
aprofundado da gênese da violência patológica, ou um ensaio de crítica
social? Partindo de uma perspectiva mais radical de esquerda, o cineasta
Michael Moore leu Coringa
como uma “peça muito oportuna de crítica social e uma ilustração
perfeita das consequências dos atuais males sociais da América”: afinal,
ao investigar a transformação de Arthur Fleck em Coringa, o filme traz à
tona o papel dos banqueiros, o colapso da saúde pública e o abismo
entre os ricos e os pobres. Contudo, para Moore, Coringa não apenas retrata essa América, como também levanta uma “questão desconcertante”: e se um dia os despossuídos decidirem revidar?
Antes mesmo do filme ter sido lançado, a
mídia já alertava o público de que ele poderia incitar a violência. O
próprio FBI especificamente advertiu que Coringa poderia inspirar atentados por parte de clowncels, um subgrupo de Incels obcecados por palhaços como o Pennywise, de It,
e o próprio personagem do Coringa, da DC Comics. Até agora, contudo,
não houve nenhum relatos de violência inspirada pelo filme. Ainda para
Moore, mais do que sentir-se incitado à violência, ao final da sessão,
você, o espectador “agradecerá esse filme por tê-lo conectado a um novo
desejo – não o de fugir à saída mais próxima para salvar a própria pele,
mas, ao contrário, o de se erguer e lutar, e focar sua atenção no poder
de não-violência que você carrega em suas mãos todos os dias.”
Mas será que o filme realmente funciona
assim? O “novo desejo” que Moore menciona decerto não é o desejo do
próprio Coringa – ao final do filme, o protagonista se encontra inepto, e
suas irrupções violentas não passam de explosões impotentes de raiva,
exteriorizações de sua impotência básica. É preciso ainda uma mudança
adicional de postura subjetiva para que se passe das explosões do
Coringa e se torne capaz de “se erguer e lutar e focar sua atenção no
poder de não violência que você carrega em suas mãos todos os dias”.
Quando você se torna consciente desse poder, pode renunciar à violência
corporal brutal. E o paradoxo é que você se torna verdadeiramente
violento (no sentido de apresentar uma ameaça ao sistema existente)
somente quando renuncia a violência física. Isso não significa que o ato
do Coringa constitui um beco sem saída a ser evitado – a lição de Coringa é que nós precisamos atravessar esse grau zero a fim de nos despirmos das ilusões que inerentes à ordem existente.
Entre outras coisas, nossa imersão no mundo sombrio de Coringa
nos cura das ilusões e simplificações do politicamente correto. Nesse
universo, não se pode levar a sério a ideia de que o consenso mútuo a
uma relação sexual a torna verdadeiramente consensual. O
“discurso do consenso” é em si uma enorme farsa. Trata-se de uma
tentativa ingênua de aplicar uma linguagem arrumadinha, inteligível e
igualitária de justiça social à esfera sombria, desconfortante,
implacavelmente cruel e traumática da sexualidade. As pessoas
não sabem o que querem, são perturbadas por aquilo que desejam e desejam
coisas que elas odeiam: odeiam seus pais mas querem fodê-los, odeiam
suas mães mas querem fodê-las, e assim por diante. Pode-se facilmente
imaginar o Coringa reagindo com uma risada excêntrica à alegação de que
“foi consensual, então não há problemas” – foi assim que sua mãe
arruinou sua vida…
Esse grau zero constitui a versão
contemporânea daquela que certa vez foi denominada a posição proletária,
a experiência daqueles que não têm nada a perder. Para citar nosso
protagonista: “Eu não tenho mais nada a perder. Nada mais pode me ferir.
Minha vida não passa de uma comédia.” É aqui que a ideia de que Trump
seria uma espécie de Coringa no poder ao encontra seu limite evidente.
Trump definitivamente não atravessou esse grau zero. Ele pode até ser um
palhaço obsceno à sua maneira, mas certamente não é uma figura como o
Coringa – chega a ser um insulto ao Coringa compará-lo a Trump.
O modo de agir de Trump é certamente
obsceno, mas ele meramente traz à tona a obscenidade que constitui o
obverso da própria lei. Não há absolutamente nada de suicida dele se
gabar sobre como não respeita as regras do jogo: isso simplesmente
reforça a narrativa dele como o presidente valentão que, em sua missão
de alavancar os EUA no exterior, é constantemente importunado por elites
corruptas; faz parte da lógica de legitimação segundo a qual suas
transgressões seriam necessárias porque somente um sujeito disposto a
quebrar as regras é capaz de esmagar o poder do pântano de Washington.
Ler essa estratégia bem-planejada e bastante racional em termos de uma
pulsão de morte é mais um exemplo de como de fato são os próprios
liberais de esquerda que se encontram numa missão suicida, ao
alimentarem a narrativa de que eles estariam lançados numa encheção de
saco burocrático-jurídica enquanto o presidente estaria fazendo um bom
trabalho para o país.

No filme Batman: o cavaleiro das trevas
(2008), de Christopher Nolan, o Coringa é a única figura da verdade.
Ele deixa claro a finalidade de seus ataques terroristas a Gotham City:
eles cessarão assim que o Batman tirar sua máscara e revelar sua
verdadeira identidade. Mas então quem é esse Coringa que quer revelar a
verdade por baixo da máscara, convencido de que essa revelação provocará
a destruição da ordem social? Ele não é um homem sem máscara, pelo
contrário: trata-se de um sujeito plenamente identificado com sua
máscara, um homem que é sua máscara – não há nada atrás da
fachada, não há um “sujeito ordinário” por baixo de sua máscara. É por
isso que o Coringa não possui história pregressa e carece de motivação
precisa: pra cada um ele conta uma história diferente sobre a origem de
suas cicatrizes, debochando da ideia de que precisaria haver algum
trauma profundamente arraigado que justificaria suas motivações. Pode
parecer que o novo filme do Coringa visa precisamente fornecer uma
espécie de gênese social do personagem, retratando os eventos
traumáticos que o tornaram a figura que ele é. O problema é que milhares
de jovens garotos que cresceram em famílias arruinadas e foram vítimas
de bullying sofreram o mesmo destino, mas apenas um deles
“sintetizou” essas circunstâncias na forma da figura singular do
Coringa. Em um dos primeiros romances sobre Hannibal Lecter, a alegação
de que a monstruosidade de Hannibal seria o resultado de circunstâncias
infelizes é prontamente rejeitada: “Nada aconteceu com ele. Ele aconteceu.”
O Coringa torna-se o Coringa no exato
momento do filme em que ele diz: “Você sabe o que realmente me faz rir?
Eu costumava pensar que minha vida era uma tragédia. Mas agora me dei
conta de ela é uma porra de uma comédia.” Por conta desse ato, o Coringa
pode não ser moral, mas ele é definitivamente ético. É importante notar
o exato momento em que Arthur diz isso: quando, debruçado sobre o lado
do leito de sua mãe no hospital, ele pega seu travesseiro e o usa para
sufoca-la até a morte. O que, então, essa sua mãe representa? “Ela
sempre me diz para sorrir e apresentar um rosto feliz. Ela fala que eu
fui colocado aqui para espalhar alegria e risadas.” Ora, não é essa a
representação mais pura do que é o superego materno? Não é à toa que ela
o chama de Feliz, e não de Arthur.
Ao transformar-se no Coringa, Arthur se
livra das garras de sua mãe (matando-a) ao mesmo tempo em que se
identifica plenamente com o seu comando de rir. Sua propensão a
irrupções compulsivas e incontroláveis de riso é paradoxal: ela é muito
literalmente uma manifestação de extimidade (para usar o
neologismo de Lacan que funde as palavras intimidade e exterioridade).
Arthur insiste que ela forma o núcleo mesmo de sua subjetividade:
“Lembra que você costumava me dizer que minha risada era uma condição,
de que havia algo de errado comigo? Não é. Esse é o meu verdadeiro eu.”
Mas, precisamente como tal, ela é externa a ele e à sua personalidade,
passando a ser experimentada como um objeto parcial autonomizado que ele
não consegue controlar e com o qual ele acaba se identificando
plenamente. O paradoxo aqui é que na configuração edípica tradicional é o
nome-do-pai que permite que um indivíduo escape das garras do desejo
materno; com o Coringa, a função paterna está completamente fora do
horizonte, de forma que o sujeito só pode superar a mãe através de uma
sobre-identificação com seu comando superegóico.
No final do filme, vemos o Coringa como
um novo líder tribal, mas desprovido de qualquer programa político, uma
pura explosão de negatividade. Em seu diálogo com o apresentador de
televisão Murray Franklin, Arthur insiste duas vezes que sua performance
não é política. Referindo-se a sua maquiagem de palhaço, Murray o
pergunta no camarim: “Qual é a desse rosto? Quer dizer, você é parte dos
protestos?” A resposta de Arthur: “Não, eu não acredito em nada
daquilo. Eu não acredito em nada. Só pensei que seria bom para o minha
performance.” E, de novo, na frente das câmeras: “Eu não sou político.
Só estou tentando fazer com que as pessoas riam.” Não há esquerda
militante no universo do filme, trata-se apenas de um mundo achatado de
violência globalizada e corrupção. Os eventos de caridade são retratados
pelo que são: se a Madre Teresa estivesse lá ela certamente
participaria no evento beneficente organizado por Thomas Wayne, um
passatempo humanitário dos ricos privilegiados. Contudo, é difícil
imaginar uma crítica mais estúpida de Coringa do que a queixa
de que ele não retrata uma alternativa positiva à revolta do Coringa. Só
imagine um filme feito nessa linha: uma história edificante sobre como
os pobres, desempregados, desprovidos de qualquer rede de apoio de saúde
pública, vítimas de gangues de rua e brutalidade policial etc.,
organizam greves e protestos não-violentos a fim de mobilizar a opinião
pública – uma nova versão, não-racial, de Martin Luther King Jr… Seria
um filme extremamente enfadonho, desprovido dos excessos alucinados do
Coringa que tornam o filme tão atraente para o público.

Aqui chegamos ao xis da questão. Como
parece evidente a um esquerdista que tais greves e protestos
não-violentos constituem a única maneira de proceder (isto é, exercer
uma pressão eficiente sobre aqueles que estão no poder), será que
estamos diante de uma simples lacuna entre lógica política e eficiência
narrativa? Isto é, numa formulação mais grosseira: será que apesar de politicamente constituirem um impasse, narrativamente as irrupções brutais como as do Coringa dão uma história interessante? Ou
será que não haveria também uma necessidade política imanente na
postura autodestrutiva encarnada pelo Coringa? Minha hipótese é de que é
preciso atravessar o grau zero autodestrutivo representado pelo Coringa
– não literalmente, mas é preciso que ela seja experimentada ao menos
como uma ameaça, uma possibilidade. Só assim é possível romper com as
coordenadas do sistema existente e vislumbrar algo realmente novo.
Em sua interpretação da derrocada do
Comunismo no Leste Europeu, Habermas se provou ser o fukuyamaista de
esquerda por excelência, silenciosamente aceitando que o horizonte
liberal-democrático existente seria o melhor possível, e que, embora
devamos buscar torná-lo mais justo etc., não devemos desafiar suas
premissas básicas. É por isso que ele acatou justamente aquilo que
muitos esquerdistas viam como a grande falha dos protestos
anticomunistas no Leste Europeu: o fato de que eles não eram motivados
por quaisquer novas visões de futuro pós-comunista. Para Habermas, as
revoluções no centro e leste europeus não passavam daquilo que ele
denominava revoluções “retificadoras” ou “recuperadoras”: o objetivo
delas era fazer com que as sociedades do centro e leste europeus
atingissem aquilo que as do oeste europeu já possuíam, isto é,
reintegrar a normalidade da Europa Ocidental. No entanto, a onda de
protestos em curso em diferentes partes do mundo tende a questionar esse
próprio quadro – e é por isso que figuras tipo “coringa” as acompanham.
Quando um movimento questiona os elementos fundamentais da ordem
existente, seus fundamentos normativos básicos, é quase impossível que
se tenha apenas protestos pacíficos desprovidos de excessos violentos.
A elegância de Coringa reside em
como a passagem crucial do impulso autodestrutivo a um “novo desejo”
por um projeto político emancipatório se encontra ausente da trama.
Assim, nós, os espectadores, somos convocados a preencher essa lacuna.
in blog da BOITEMPO
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