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sábado, 16 de novembro de 2019

Líder da primeira grande revolta de escravos do mundo atlântico, Amador conseguiu ter nas mãos a ilha de São Tomé durante vinte dias. Hoje é reconhecido como herói nacional
TEXTO ARLINDO MANUEL CALDEIRA, COM JOANA BELEZA ILUSTRAÇÃO JOÃO CARLOS SANTOS
Implantada nas ilhas de São Tomé e Príncipe na segunda década do século XVI, a indústria açucareira baseava-se essencialmente no trabalho dos escravizados africanos (podiam ser cerca de trezentos em cada engenho), sujeitos, quase sempre, a ritmos de trabalho muito exigentes e, se os não cumpriam, a castigos desumanos. Não admira por isso que se sucedessem as fugas individuais ou em grupo para o interior da ilha e que, de vez em quando, eclodissem revoltas dos trabalhadores dos engenhos.
A mais conhecida e a maior dessas rebeliões teve lugar em 1595 e, ao contrário do que é habitual em situações históricas semelhantes, conhecemos o nome do seu líder principal: Amador, escravo de um tal Bernardo Vieira. Na memória lendária da gente de São Tomé e Príncipe, e até a nível oficial, Amador surge muitas vezes cognominado “rei dos Angolares”. No entanto, parece hoje seguro que os Angolares, uma minoria étnica com uma longa história de resistência ao domínio colonial, não são vistos nem achados neste acontecimento. O certo é Amador se ter autointitulado, ou ter sido chamado, capitão-general e rei, o que significava ter poder para libertar os escravizados.
Postal do quinto aniversário da independência da República de São Tomé e Príncipe com a efígie imaginada de Amador
Postal do quinto aniversário da independência da República de São Tomé e Príncipe com a efígie imaginada de Amador
As fontes que chegaram até nós esclarecem-nos que se tratou de uma revolta iniciada pelos “escravos crioulos”, isto é, nascidos já na ilha e, logo, com maior conhecimento dela. Mas foi grande e entusiástica a adesão de outros escravizados.
O levantamento durou vinte dias, entre 9 e 29 de julho. Durante esse período, os revoltosos foram praticamente donos da ilha, tendo queimado 60 a 70 engenhos, considerados, com alguma razão, como a fonte material dos seus males. O alvo eram, contudo, os homens brancos e mulatos livres e o objetivo final a conquista da capital, que significaria a capitulação da ordem colonial na ilha.
A cidade de São Tomé foi atacada por duas vezes, a última das quais a 28 de julho, com cerca de dois mil e quinhentos indivíduos, armados de flechas e azagaias, mas também com armas de fogo. Travou-se então uma autêntica batalha campal em que saiu vitorioso o lado dos colonos, numericamente inferior, mas forte na sua artilharia, no uso inesperado da cavalaria e com maior experiência militar. Do lado dos insurrectos, houve centenas de baixas (200 segundo uma das fontes, 500 segundo outras) e foram, de imediato, enforcados pelos colonos e seus aliados os que, no calor da refrega, se deixaram apanhar vivos.
Amador conseguiu escapar e refugiou-se no mato, numa parte remota da ilha. Cerca de quinze dias depois, denunciado por um dos seus sequazes, foi capturado. Não demoraria a ter lugar o cerimonial macabro do “castigo exemplar”. Amador, depois de arrastado por um cavalo em cima de uma pele de boi, foi decepado, enforcado e esquartejado, sendo os seus despojos expostos em quatro lugares públicos.
Alguns dos seus capitães e outros acusados de envolvimento ativo na insurreição foram também sujeitos a mortes infamantes. Mas muitos dos revoltosos - quatro mil, diz uma das fontes, contabilizando também as mulheres e seus filhos -, aproveitando uma amnistia do governador da ilha, voltaram, calcula-se com que amargos de boca, para os seus senhores, que, desconfiados, mas sem alternativa à vista, acabaram por aceitar o seu regresso ao trabalho.
A rebelião fracassou, mas a memória desse ato de resistência acabou por perdurar no tempo, sendo hoje Amador reconhecido como herói nacional da República de São Tomé e Príncipe. 

O artigo sobre Amador é o segundo de uma série de 12 biografias de resistentes, que pretende chamar a atenção do grande público para personagens, ou grupos de pessoas, cujos combates num passado remoto são pouco conhecidos. E, no entanto, as resistências que estas pessoas “sem voz” fizeram ao longo da História são fundamentais para compreendermos os processos de transformação social.
Estes artigos enquadram-se num projeto de investigação europeu intitulado “RESISTANCE, Rebeliões e resistência no Impérios Ibéricos, séculos XVI-1850”, coordenado por Mafalda Soares da Cunha no CIDEHUS, Universidade de Évora, e conta com a parceria da Casa da América Latina e do Expresso.
O autor deste artigo é Arlindo Manuel Caldeira, do CHAM — Centro de Humanidades da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
in EXPRESSO, 16/11/2019

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