Líder
da primeira grande revolta de escravos do mundo atlântico, Amador
conseguiu ter nas mãos a ilha de São Tomé durante vinte dias. Hoje é
reconhecido como herói nacional
TEXTO ARLINDO MANUEL CALDEIRA, COM JOANA BELEZA ILUSTRAÇÃO JOÃO CARLOS SANTOS
Implantada
nas ilhas de São Tomé e Príncipe na segunda década do século XVI, a
indústria açucareira baseava-se essencialmente no trabalho dos
escravizados africanos (podiam ser cerca de trezentos em cada engenho),
sujeitos, quase sempre, a ritmos de trabalho muito exigentes e, se os
não cumpriam, a castigos desumanos. Não admira por isso que se
sucedessem as fugas individuais ou em grupo para o interior da ilha e
que, de vez em quando, eclodissem revoltas dos trabalhadores dos
engenhos.
A mais conhecida e a maior dessas
rebeliões teve lugar em 1595 e, ao contrário do que é habitual em
situações históricas semelhantes, conhecemos o nome do seu líder
principal: Amador, escravo de um tal Bernardo Vieira. Na memória
lendária da gente de São Tomé e Príncipe, e até a nível oficial, Amador
surge muitas vezes cognominado “rei dos Angolares”. No entanto, parece
hoje seguro que os Angolares, uma minoria étnica com uma longa história
de resistência ao domínio colonial, não são vistos nem achados neste
acontecimento. O certo é Amador se ter autointitulado, ou ter sido
chamado, capitão-general e rei, o que significava ter poder para
libertar os escravizados.
As
fontes que chegaram até nós esclarecem-nos que se tratou de uma revolta
iniciada pelos “escravos crioulos”, isto é, nascidos já na ilha e,
logo, com maior conhecimento dela. Mas foi grande e entusiástica a
adesão de outros escravizados.
O levantamento durou
vinte dias, entre 9 e 29 de julho. Durante esse período, os revoltosos
foram praticamente donos da ilha, tendo queimado 60 a 70 engenhos,
considerados, com alguma razão, como a fonte material dos seus males. O
alvo eram, contudo, os homens brancos e mulatos livres e o objetivo
final a conquista da capital, que significaria a capitulação da ordem
colonial na ilha.
A
cidade de São Tomé foi atacada por duas vezes, a última das quais a 28
de julho, com cerca de dois mil e quinhentos indivíduos, armados de
flechas e azagaias, mas também com armas de fogo. Travou-se então uma
autêntica batalha campal em que saiu vitorioso o lado dos colonos,
numericamente inferior, mas forte na sua artilharia, no uso inesperado
da cavalaria e com maior experiência militar. Do lado dos insurrectos,
houve centenas de baixas (200 segundo uma das fontes, 500 segundo
outras) e foram, de imediato, enforcados pelos colonos e seus aliados os
que, no calor da refrega, se deixaram apanhar vivos.
Amador
conseguiu escapar e refugiou-se no mato, numa parte remota da ilha.
Cerca de quinze dias depois, denunciado por um dos seus sequazes, foi
capturado. Não demoraria a ter lugar o cerimonial macabro do “castigo
exemplar”. Amador, depois de arrastado por um cavalo em cima de uma pele
de boi, foi decepado, enforcado e esquartejado, sendo os seus despojos
expostos em quatro lugares públicos.
Alguns dos
seus capitães e outros acusados de envolvimento ativo na insurreição
foram também sujeitos a mortes infamantes. Mas muitos dos revoltosos -
quatro mil, diz uma das fontes, contabilizando também as mulheres e seus
filhos -, aproveitando uma amnistia do governador da ilha, voltaram,
calcula-se com que amargos de boca, para os seus senhores, que,
desconfiados, mas sem alternativa à vista, acabaram por aceitar o seu
regresso ao trabalho.
A rebelião fracassou, mas a
memória desse ato de resistência acabou por perdurar no tempo, sendo
hoje Amador reconhecido como herói nacional da República de São Tomé e
Príncipe.
O artigo sobre Amador é o segundo de
uma série de 12 biografias de resistentes, que pretende chamar a atenção
do grande público para personagens, ou grupos de pessoas, cujos
combates num passado remoto são pouco conhecidos. E, no entanto, as
resistências que estas pessoas “sem voz” fizeram ao longo da História
são fundamentais para compreendermos os processos de transformação
social.
Estes artigos enquadram-se num projeto de
investigação europeu intitulado “RESISTANCE, Rebeliões e resistência no
Impérios Ibéricos, séculos XVI-1850”, coordenado por Mafalda Soares da
Cunha no CIDEHUS, Universidade de Évora, e conta com a parceria da Casa
da América Latina e do Expresso.
O autor deste
artigo é Arlindo Manuel Caldeira, do CHAM — Centro de Humanidades da
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
in EXPRESSO, 16/11/2019
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