Honecker acusa
18.11.19
Erich Honecker [1]
1992
Franz-Josef Strauss [ministro das Finanças da RFA (1966-1969) e ministro da Defesa (1956-1962), entre outros cargos governamentais] escreveu nas suas memórias (p. 390): «Com a construção do muro, mesmo se tal foi feito de uma maneira pouco agradável para os alemães, a crise não só foi contida como, a bem dizer, encerrada». Duas páginas antes (p. 388), falava-se da existência do projeto de lançamento de uma bomba atómica sobre o território da RDA. […] …pois os mortos da economia de mercado tombam em nome do direito.
Não
irei dar a esta acusação e a este processo a aparência do direito de me
defender da acusação, manifestamente não fundamentada, de ter cometido
crimes de morte.
Qualquer
defesa seria desprovida de objeto, pois não me será dado assistir a
este vosso julgamento. A pena que pensais aplicar-me já não me atingirá.
Hoje toda a gente o sabe. Por essa razão, um processo contra mim é uma
farsa. É uma comédia política.
Ninguém
tem o direito na Alemanha Federal, incluindo na cidade testa-de-ponte
de Berlim Ocidental, de acusar os meus camaradas coarguidos, a mim
próprio ou qualquer cidadão da RDA, ou mesmo de os condenar por atos que
foram cometidos no cumprimento de ordens relevantes da autoridade do
Estado da RDA.
Se
tomo a palavra aqui é unicamente para prestar um testemunho em prol das
ideias do socialismo, em prol de um julgamento político e moral honesto
da República Democrática Alemã, Estado reconhecido no direito
internacional por mais de cem Estados.
Esta
República, qualificada a dado momento pela RFA como um Estado de não
direito, era membro do Conselho de Segurança da ONU, ao qual chegou a
dar o seu presidente e também o presidente da Assembleia-Geral da ONU.
Não
espero deste processo nem deste Tribunal um julgamento político e moral
equitativo sobre a RDA. Aproveito, todavia, esta comédia política para
levar o meu ponto de vista ao conhecimento dos meus concidadãos.
A
minha situação neste processo não é inabitual. O Estado de direito
alemão já acusou e condenou Karl Marx, August Bebel, Karl Liebknecht e
muitos outros socialistas e comunistas. O terceiro Reich continuou a
fazê-lo utilizando, em muitos processos, juízes saídos do Estado de
direito da República de Weimar. Eu próprio fui acusado num desses
processos. Após a destruição do fascismo alemão e do Estado hitleriano, a
RFA não precisou de procurar novos procuradores nem novos juízes para
processar judicialmente muitos comunistas, para privá-los de trabalho,
de pão, com a ajuda de tribunais de jurados, para expulsá-los dos
serviços públicos, com a ajuda dos tribunais administrativos, ou
persegui-los de outras maneiras.
Está
a acontecer-nos hoje aquilo que os nossos camaradas da Alemanha
Ocidental já conheceram nos anos 50. Desde há cerca de 190 anos que a
arbitrariedade é sempre a mesma. O Estado de direito da RFA não é um
Estado de direito, mas um Estado de direita.
Para
este processo como para outros, em que cidadãos da RDA estão a ser
julgados perante câmaras correcionais, sociais ou administrativas pelo
seu «apego ao regime», é preciso um argumento. Os políticos e os
juristas dizem que devemos condenar os comunistas porque não condenámos
os nazis. Devemos, desta vez, reparar o passado. Isso salta à vista de
muitos, mas não é senão um argumento de fachada. A verdade é que a
justiça alemã ocidental não podia sancionar os nazis, porque os juízes e
os procuradores não podiam sancionar-se a si próprios. A verdade é que a
justiça alemã ocidental deve o seu nível atual, julgue o que julgar,
aos nazis que tem nas suas fileiras. A verdade é que os comunistas,
cidadãos da RDA, são hoje perseguidos pelas mesmas razões que foram
sempre perseguidos na Alemanha. Só durante os 40 anos de existência da
RDA se produziu o inverso. E é esta falha que é preciso agora «reparar».
Tudo isto releva naturalmente do Estado de direito. Os principais
juristas deste país, quer sejam membros dos partidos do governo ou do
SPD, juram que o nosso processo releva de um procedimento inteiramente
normal, que não se trata de um processo político, de um processo
espetáculo. Prende-se os membros das mais altas instâncias do país
vizinho e diz-se que isso não tem nada a ver com política. Condena-se os
generais de um pacto militar adverso pelas suas decisões estratégicas e
diz-se que isso não tem nada a ver com política. Trata-se como
criminosos aqueles que ontem eram recebidos com honras de convidados do
Estado e como parceiros na preocupação comum de que nunca mais uma
guerra parta do solo alemão. Isso, ao que parece, também nada tem a ver
com política.
Acusa-se
os comunistas, que foram sempre perseguidos desde que apareceram na
cena política, mas hoje, na RFA, isso nada tem a ver com política.
Para
mim, e penso que para qualquer pessoa objetiva, isto é claro: este
processo é tão político quanto o pode ser um processo contra a direção
política e militar da RDA.
Negar
isto é enganar, é mentir. É mentir para enganar o povo uma vez mais.
Com este processo estão a fazer aquilo de que nos acusam. Estão a
livrar-se de inimigos políticos por intermédio do direito penal, mas
naturalmente perfeitamente dentro do quadro do Estado de direito.
Há
outros elementos que levam a pensar indubitavelmente que este processo
persegue fins políticos. Por que razão o chanceler federal, por que
razão o senhor Kinkel, antigo chefe dos serviços secretos, depois
ministro da Justiça e a seguir ministro dos Negócios Estrangeiros da
RFA, estavam tão empenhados em me trazer a todo o custo para a Alemanha
para me entregarem em Moabit [2], onde já tinha estado durante o período
de Hitler? Por que razão o chanceler federal me deixou partir para
Moscovo e depois exerceu pressões sobre Moscovo e o Chile para que me
entregassem, e isto contra todas as normas do direito internacional? Por
que razão os médicos russos tiveram de falsificar o diagnóstico que
eles próprios haviam feito sobre o meu estado de saúde? Por que razão
nos expõem ao povo, a mim e a camaradas meus cuja saúde não é melhor que
a minha, como antigamente os imperadores romanos expunham os seus
prisioneiros?
Não
sei se tudo isto se pode ainda explicar de um modo racional. Talvez se
aplique aqui o velho ditado: «Quem quer afogar o seu cão, diz que ele
tem raiva». É evidente para qualquer um que aquelas figuras políticas da
RFA que me solicitaram audiências ou que se congratularam por poder
receber-me em suas casas, não são poupadas por este processo. O facto de
haver gente que morreu no muro [de Berlim], de eu ter sido presidente
do Conselho Nacional de Defesa, secretário-geral e presidente do
Conselho de Estado da RDA, de ser a figura política viva do mais alto
nível que tem a maior responsabilidade por este muro, é do conhecimento
de todas as crianças, na Alemanha e fora dela. Há, portanto, duas
possibilidades: ou esses senhores políticos da RFA procuraram
intencionalmente, voluntariamente e mesmo avidamente o contacto com um
assassino, ou então admitem e têm até prazer em que inocentes sejam
acusados de homicídio. Nenhuma destas possibilidades os honrará. E não
há uma terceira. Aquele que tiver em conta este dilema, de ser de uma
maneira ou de outra uma pessoa sem carácter, ou é cego ou visa um fim ao
qual atribui mais valor do que à preservação da sua honra.
Supondo
que nem o senhor Köhl nem o senhor Kinkel, nem todos esses senhores
ministros-presidentes e dirigentes políticos dos partidos políticos da
RFA, são cegos (o que em todo o caso não posso excluir), o único
objetivo político deste processo não pode ser senão a intenção de
desacreditar totalmente a RDA, e assim o socialismo na Alemanha.
Aparentemente, a derrota da RDA e do socialismo na Alemanha e na Europa
não lhes basta. Desta época e o que ela mostrou – durante a qual os
operários e os camponeses tiveram o poder – é preciso destruir tudo o
que não seja tragédia ou crime. A vitória da economia de mercado (como
hoje se chama eufemisticamente ao capitalismo) e a derrota do socialismo
devem ser totais. Querem, como disse Hitler diante de Stalingrado, «que
este inimigo nunca mais possa levantar-se». Os capitalistas alemães
tiveram sempre tendência para a totalidade.
O
propósito deste processo, de matar novamente o socialismo considerado
já morto, é revelador da apreciação que o senhor Köhl, o governo e a
oposição da RFA fazem da situação.
O
capitalismo condenou-se à morte com esta vitória, tal como Hitler se
condenou à morte com as suas vitórias militares. O capitalismo está numa
situação sem saída ao nível mundial. A escolha está entre o caos
ecológico e social e o abandono da propriedade privada dos meios de
produção, ou seja, o socialismo. Ambas as soluções significam o fim do
capitalismo. Mas para os dirigentes da RFA o socialismo parece ser o
perigo maior. Este processo, tal como todas as campanhas contra a
memória da defunta RDA, ou o facto de a estigmatizarem como um «Estado
de não direito», servem para protegê-los.
A
morte não natural de qualquer pessoa do nosso país sempre nos
consternou. A morte junto ao muro [de Berlim] não só nos tocou
humanamente, como também politicamente nos causou dano. Desde 1971 que
assumo a responsabilidade política principal pelo facto de se ter
disparado, no cumprimento das diretivas em vigor sobre o uso de armas de
fogo, sobre aqueles que queriam passar sem autorização a fronteira
entre a RDA e a RFA, fronteira entre o Pacto de Varsóvia e a NATO.
É
seguramente uma pesada responsabilidade. Explicarei mais tarde porque a
assumi. Aqui, no momento de determinar os objetivos políticos deste
processo, não posso deixar de assinalar os meios pelos quais este
processo visa denegrir a RDA. Esses meios são os mortos junto ao muro.
São evocados para conferir a este processo, como a outros que já tiveram
lugar, uma dimensão mediática. Falta falar nos guardas fronteiriços da
RDA assassinados. Nós vimos, e vós em primeiro lugar também vistes, como
se venderam fotos de mortos sem o menor respeito nem o menor pudor. É
assim que se faz política e que se cria um ambiente. Cada morto é
utilizado, ou melhor, manipulado, na luta que os possidentes travam para
preservar a sua propriedade capitalista. Pois é só disso que se trata
no combate contra o socialismo. Os mortos devem provar o carácter
desumano da RDA e do socialismo e desviar a atenção da miséria de hoje e
das vítimas da economia de mercado. Tudo isto se faz democraticamente,
legalmente, cristãmente, humanamente e para o bem do país. Pobre
Alemanha!
Vamos
aos factos. Os procuradores da cidade testa-de-ponte [Berlim Ocidental]
acusam-nos de sermos criminosos de delito comum e assassinos. Como,
pelos vistos, não matámos pessoalmente nenhuma das 68 pessoas cuja morte
nos é imputada no ato de acusação, como, pelos vistos, também não
ordenámos nem provocámos o seu assassinato, a acusação, na página 9 do
ato de acusação, imputa-nos o facto de:
«(…)
Enquanto secretário do Conselho Nacional Para as Questões de Segurança,
junto do Comité Central do PSUA, ter ordenado a transformação das
instalações fronteiriças em volta de Berlim [Ocidental] e das
instalações de proteção em direção à República Federal da Alemanha, de
maneira a impedir o seu atravessamento».
Mais
adiante, o ato de acusação censura-me por, em 17 reuniões do Conselho
de Defesa, realizadas entre 29 de Novembro de 1969 e 1 de Julho de 1983,
ter participado nas seguintes decisões:
– Instalar novas minas (note-se que a palavra «novas» mostra que as tropas da URSS já tinham instalado outras anteriormente);
– Melhorar o sistema de segurança da fronteira, melhorar o treino de tiro das tropas de fronteira;
– Impedir pela força o atravessamento da fronteira;
– Ter declarado pessoalmente, em 3 de Maio de 1974, «que devíamos usar as armas de fogo sem concessões», o que aliás é falso;
– Ter aprovado o projeto de lei sobre a proteção das fronteiras, promulgado em 1 de Maio de 1982.
As
acusações que me são feitas, que nos são feitas, referem-se, portanto, a
decisões do Conselho Nacional de Defesa [CND], isto é, decisões de um
órgão constitucional da RDA. O objeto do processo é, por conseguinte, a
política da RDA e os esforços feitos pelo CND para preservar e defender a
RDA enquanto Estado. Esta política tem, pois, de ser transformada em
crime ao longo deste processo. Pretende-se, portanto, marcar a RDA com o
ferrete do «Estado de não-direito» e qualificar de criminosos todos
aqueles que a serviram. O julgamento de dezenas de milhares e mesmo
centenas de milhares de cidadãos da RDA, já evocado pela
Procuradoria-Geral, é o fim último deste processo, caminho já aberto
pelos «processos piloto» contra guardas fronteiriços, assim como por
numerosos outros processos discriminatórios contra cidadãos da RDA, em
câmaras civis, sociais ou administrativas, ou ainda por decisões
administrativas. Não se trata, portanto, apenas da minha pessoa ou dos
demais aqui presentes. Trata-se de muito mais. Trata-se do futuro da
Alemanha, da Europa e mesmo do mundo inteiro, o qual, com o fim da
guerra-fria e o «novo pensamento», parecia que seria relançado sob
melhores auspícios. Aqui não só se prolonga a guerra-fria como se
pretende colocar a primeira pedra de uma Europa dos ricos. É preciso
novamente aniquilar definitivamente a ideia da justiça social. É para
isso que deve servir a nossa qualificação como assassinos.
Sou
a última pessoa a opor-me a medidas de ordem moral ou judicial para
julgar ou condenar figuras políticas. Mas três condições devem ser
cumpridas:
– As medidas devem ser previamente formuladas com exatidão;
– Devem ser válidas de forma equitativa para todas as figuras políticas;
– A decisão deve caber a um tribunal que esteja acima dos partidos, ou seja, não composto de inimigos nem de amigos do arguido.
Por
um lado, tudo isto me parece evidente, mas, por outro lado, tal não é
ainda realizável no mundo atual. Vós que formais hoje este tribunal,
sois o tribunal dos vencedores julgando os vencidos. É a expressão da
relação de forças existente, mas não é um ato que se possa reclamar de
um qualquer direito. Isto, por si só, seria suficiente para demonstrar
que a acusação é um ato de não-direito. No entanto, como não receamos em
absoluto a confrontação, mesmo no pormenor, vou mostrar-vos em pormenor
o que a acusação não diz, quer seja intencionalmente ou por falta de
discernimento.
Como atrás já citei, a acusação começa o elenco cronológico dos atos que nos censura com as seguintes palavras:
«Em
12 de Agosto de 1961, o arguido Honecker, enquanto secretário do
Conselho Nacional Para as Questões de Segurança, junto do Comité Central
do PSUA, ordenou a transformação das instalações fronteiriças em volta
de Berlim Ocidental e em direção à República Federal da Alemanha, de
maneira impedir o seu atravessamento».
Esta
visão histórica das coisas diz tudo. O secretário do Conselho Nacional
Para as Questões de Segurança, junto do Comité Central do PSUA, ordenou
um acontecimento de impacto histórico mundial. Isto consegue ultrapassar
a ironia dos cidadãos da RDA que consideravam a RDA como «a maior RDA
do mundo». Se ainda hoje Enno von Löwenstein apresenta a RDA como «um
grande país» para tornar a vitória da RFA ainda maior, este «avançado
direito» do jornalismo alemão não tenta, no entanto, elevar a RDA ao
nível de «grande potência». Isso é uma das prerrogativas da «autoridade
mais objetiva do mundo», quero dizer, da Procuradoria-Geral. Cada um faz
o que pode para se ridicularizar perante a história.
A
verdade é que a construção do muro foi decidida numa reunião dos
Estados do Pacto de Varsóvia, em 5 de Agosto de 1961, em Moscovo. Nesta
aliança de Estados socialistas, a RDA era decerto um membro importante,
mas nunca teve uma posição dominante. O tribunal deveria sabê-lo, isto
não necessita de ser provado.
Dado
que, como já disse, nunca matámos ninguém com as nossas mãos, nem
ordenámos diretamente a morte de ninguém, a construção do muro, a sua
realização e a aplicação da interdição de sair da RDA sem autorização
são consideradas como atos assassinos. E tudo isto, dizem, não tem nada a
ver com política. A jurisprudência alemã permite que isto aconteça.
Porém, ela não resistirá ao julgamento da história, nem ao discernimento
das pessoas sãs de espírito. Esta jurisprudência mostra simplesmente,
uma vez mais, qual é a sua origem, quais são as suas fontes de
inspiração, e para onde a Alemanha está em vias de caminhar.
Todos
os que tinham à época responsabilidades no Pacto de Varsóvia, entre os
quais eu, tomaram esta decisão política de comum acordo. Não o digo para
enjeitar ou atirar a responsabilidade para cima de outros, digo-o
simplesmente porque foi assim e não de outro modo, e mantenho que esta
decisão, à época, em 1961, foi justa e que continuou a ser justa até ao
fim da confrontação entre os Estados Unidos e a URSS. Ora é precisamente
esta decisão e as convicções em que assentou que são o objeto deste
processo. É preciso ser cego ou fechar de propósito os olhos sobre os
acontecimentos do passado para não reconhecer que este processo é um
processo de vencedores contra vencidos, para não reconhecer que ele
implica uma manipulação da história com fins políticos. Se considerais
que esta decisão política foi errada e me imputais a responsabilidade
penal pelos mortos no muro, então dir-vos-ei que a decisão que
considerais justa teria tido milhões de mortos como consequência. Esta
era, e continua a ser, a minha convicção e suponho que é também a dos
meus camaradas. Estamos perante vós por causa desta decisão. Mas é por
causa da vossa convicção política oposta que nos ireis condenar.
Como
e porquê tivemos de construir o muro? Isso não interessa à Procuradoria
Geral. O ato de acusação não refere este aspeto. As causas e as
condições da construção do muro são escamoteadas e o encadeamento dos
acontecimentos históricos é rompido arbitrariamente. Erich Honecker
construiu o muro e manteve-o, ponto final. Veja-se o simplismo com que o
jurista alemão ocidental vê e relata a história. O essencial é colar ao
comunista a etiqueta de criminoso e condená-lo como tal. Sobre este
aspeto é possível que todos os alemães saibam como chegámos à construção
do muro e por que razão se fez fogo. Mas na medida em que a acusação
age como se a natureza do socialismo fosse a de construir muros e abater
pessoas, e como se indivíduos criminosos como eu e os meus camaradas
fossem disso responsáveis, devo, embora não seja historiador,
recapitular a história que conduziu à construção do muro.
A
origem remonta há muitos anos. Tudo começou com o surgimento do
capitalismo e do proletariado. O início imediato da miséria da história
alemã dos tempos modernos é o ano de 1933. Como é sabido, em 1933 muito
alemães votaram livremente no NSDAP [3], e em Hindenburg, presidente do
Reich. Este último, eleito livremente em 1932, designou de forma
inteiramente democrática Hitler para o cargo de chanceler do Reich.
Seguidamente os predecessores políticos dos atuais partidos do poder,
com exceção do SPD, aprovaram a lei que conferiu plenos poderes
ditatoriais a Hitler. Apenas os comunistas alertaram antes destas
eleições que «votar Hindenburg é votar Hitler e votar Hitler é votar na
guerra». No momento da votação dos plenos poderes, os deputados
comunistas já tinham sido excluídos do Reichstag. Numerosos comunistas
foram presos ou estavam na clandestinidade. A queda da Alemanha começa
nesta altura com a proibição dos comunistas.
Assim
que Hitler se tornou chanceler do Reich, a Alemanha assistiu ao seu
primeiro milagre económico. O desemprego diminuiu, vendiam-se cupões
Volkswagen e a alma efervescente do povo alemão conduziu-o a perseguir
ou a assassinar os judeus. O povo alemão, na sua maioria, estava feliz e
contente.
Quando
eclodiu a II Guerra Mundial e as fanfarras retumbaram para anunciar as
vitórias relâmpago sobre a Polónia, a Noruega, a Dinamarca, a Bélgica, o
Luxemburgo, a França, a Jugoslávia e a Grécia, o entusiasmo deixou de
ter limites. O coração de quase todos os alemães vibrava pelo seu
chanceler, pelo maior führer de todos os tempos. Raros eram aqueles que
pensavam que o Reich milenário só iria durar 12 anos. Em 1945, quando
tudo ficou em ruínas, o mundo inteiro não pertencia à Alemanha,
contrariamente à profecia do célebre canto nazi, mas era a Alemanha que
pertencia aos aliados. Foi dividida em quatro zonas. A liberdade de
circulação foi abolida. Nesta época, os aliados ainda não falavam de
«direitos humanos». Não havia liberdade de residência nem sequer para os
emigrantes alemães que, como Gerhart Eisler [4], queriam regressar dos
Estados Unidos à Alemanha.
Na
altura, os Estados Unidos tinham planos (como o plano Morgenthau [5],
por exemplo) para dividir definitivamente a Alemanha em vários Estados. A
propósito de tais planos, Stáline disse: «Os Hitler passam, o povo e o
Estado alemão ficam». A unidade da Alemanha desejada pela URSS não pôde
ser mantida. A Alemanha ficou dividida por muito tempo, na sequência da
guerra-fria desencadeada pelos EUA, em 1947, através da constituição da
bizona, depois trizona, da reforma monetária separada e, finalmente, com
a fundação da República Federal, em maio de 1949. Esta divisão, como
prova a cronologia, não foi obra de comunistas, mas, pelo contrário, foi
feita pelos aliados ocidentais e por Konrad Adenauer [6]. A criação da
RDA foi uma sequência temporal lógica à criação da RFA. Desde então
passaram a existir dois estados alemães lado a lado. No entanto, a RFA
não desejou reconhecer a RDA e coexistir a seu lado pacificamente. Viria
a reivindicar por várias vezes o direito de representar sozinha toda a
Alemanha, todos os alemães. Com a ajuda dos seus aliados, impôs um
embargo económico à RDA e tentou isolá-la económica e politicamente. A
política conduzida pela RFA em relação à RDA era da ordem de uma
agressão não armada. Foi a forma que a guerra-fria tomou no solo alemão.
Foi esta política que conduziu ao muro.
Depois
da entrada da RFA na NATO, a RDA juntou-se ao Pacto de Varsóvia. Deste
modo, os dois Estados alemães enfrentavam-se pertencendo a duas alianças
militares hostis.
Pela
sua população, pelo seu poderio económico, pelas suas relações
internacionais e económicas, a RFA era em muitos domínios superior à
RDA. A RFA, ajudada pelo Plano Marshall e obrigada a indemnizações de
guerra menores, suportou um fardo menos pesado relativamente às
consequências da guerra. Tinha mais riquezas naturais e um território
mais vasto. E utilizou esta superioridade face à RDA em todos os
domínios, em particular, prometendo vantagens materiais aos cidadãos da
RDA que abandonassem o seu país. Muitos foram os que sucumbiram à
tentação, e fizeram o que os políticos da RFA esperavam: «Votaram com os
seus pés». Depois de 1945, o êxito económico atrairia tanto os alemães
como aconteceu a partir de 1933.
A
RDA e os seus aliados do Pacto de Varsóvia passavam por uma situação
difícil. A política do «roll back» [7] parecia estar a surtir efeito na
Alemanha. A NATO preparava-se para estender a sua influência até ao Oder
[8]. Esta política colocou a Alemanha, em 1961, numa situação de tensão
que punha em risco a paz mundial. A humanidade estava à beira de uma
guerra nuclear. É, pois, nesta situação que os Estados do Pacto de
Varsóvia decidem construir o muro. Ninguém tomou esta decisão de ânimo
leve. Não só o muro separava famílias como era também sinal de fraqueza
política e económica do Pacto de Varsóvia em relação à NATO, que só
podia ser compensada por meios militares.
Reputadas
figuras políticas reconheceram, fora da Alemanha, mas também na RDA,
que a construção do muro desanuviou a atmosfera mundial. Franz-Josef
Strauss [9] escreveu nas suas memórias (p. 390): «Com a construção do
muro, mesmo se tal foi feito de uma maneira pouco agradável para os
alemães, a crise não só foi contida como, a bem dizer, encerrada». Duas
páginas antes (p. 388), falava-se da existência do projeto de lançamento
de uma bomba atómica sobre o território da RDA. Na minha opinião, nem o
Tratado Fundamental, nem Helsínquia, nem a unidade da Alemanha teriam
sido possíveis se o muro não tivesse sido construído ou se tivesse sido
destruído antes do fim da guerra-fria. Por tudo isto penso que não
cometi nenhum crime, e os meus camaradas também não, nenhuma infração,
nem jurídica, nem política ou moral, quando aprovei a construção do muro
e mantive essa decisão.
Poderá
assinalar-se de passagem, numa história da Alemanha, que numerosos
alemães, tanto no Oeste como no Leste, desejam de novo, hoje, o muro.
Mas
é preciso também interrogarmo-nos sobre o que teria acontecido se nos
tivéssemos comportado como a acusação desejaria, ou seja, se não
tivéssemos construído o muro e se tivéssemos autorizado toda a gente a
sair da RDA e, agindo desta forma, se tivéssemos abandonado a RDA, em
1961. Basta ter presente o que se passou na Hungria, em 1956, ou na
Checoslováquia, em 1968. Da mesma forma, em 1961, as tropas soviéticas
presentes teriam intervindo na RDA. Na Polónia, Jaruzelski também
decretou o estado de emergência, em 1981, para evitar uma tal
intervenção.
Tal
sucessão de acontecimentos, que naturalmente decorreria do ato
político, jurídico e moral que nos é reclamado pela acusação, levantaria
o risco de eclosão de uma terceira guerra mundial. Não queríamos, não
podíamos, nem tínhamos o direito de correr um tal risco. Se isso, aos
vossos olhos, é um crime, a história vos julgará, a vós e ao vosso
julgamento. Mas isso não terá em si grande significado. Em
contrapartida, o que terá significado é o facto de que o vosso
julgamento constitui o sinal para a reabertura de velhas frentes de
confrontação, em vez de as fechar. Em face da ameaça crescente de
catástrofe ecológica mundial, vós reivindicais-vos da velha estratégia
da luta de classes dos anos 30, e da política que fez a reputação da
Alemanha desde Bismarck.
Se
nos condenais pela nossa decisão política de 1961 a 1989, e suponho que
o fareis, pronunciareis um julgamento desprovido da menor base
jurídica, um julgamento parcial e em total desprezo pelas convenções
políticas e procedimentos de países que, enquanto estados de direito,
gozam do vosso profundo respeito. Não quero nem posso enumerar aqui
todas as decisões políticas, tomadas no decurso destes 28 anos, que
protegeram vidas humanas, pois não quero abusar do vosso tempo nem da
vossa sensibilidade. Não quero tão pouco lembrar aqui todo esse passado,
mas apenas evocar o que se segue.
Em
1964, Kennedy, o presidente à época dos Estados Unidos, tomou a decisão
de enviar tropas para o Vietname para substituir as tropas francesas
derrotadas e conduzir, até 1973, uma guerra contra os vietnamitas, que
lutavam pela sua libertação, independência e pelo seu direito à
autodeterminação. Esta decisão do presidente dos Estados Unidos, que
constituiu um flagrante atentado aos direitos humanos e ao direito
internacional, não mereceu qualquer crítica da parte do governo da RFA.
Os presidentes Kennedy, Johnson e Nixon não foram levados a tribunal e a
sua honra não foi manchada por esta guerra. E, todavia, a nenhum
soldado dos Estados Unidos, a nenhum soldado vietnamita, foi dada a
liberdade de decidir se queriam ou não colocar a sua vida em jogo nesta
guerra injusta.
Em
1982, a Inglaterra enviou tropas contra a Argentina para manter as
ilhas Falkland no império colonial britânico. A «dama de ferro»
assegurou assim uma vitória eleitoral, mas mesmo depois da sanção das
urnas, a sua honorabilidade não foi posta em causa. O assassínio estava
fora de questão.
Em
1983, o presidente Reagan ordenou que as suas tropas ocupassem Granada.
Ninguém desfruta na Alemanha de uma consideração tão grande como o
presidente dos Estados Unidos. Ninguém pergunta se as vítimas desta ação
morreram no respeito da lei.
Em
1989, o presidente Bush deu ordem para capturar pela força o general
Noriega no Panamá. Milhares de inocentes no Panamá foram mortos nesta
ação. Também aqui nada veio manchar a honorabilidade do presidente dos
Estados Unidos. Também nunca foi questão de o acusar de crimes de morte
ou de homicídio. Esta enumeração poderia continuar até ao infinito.
Seria igualmente indecente evocar a atitude da Inglaterra na Irlanda…
Depois
do que fizeram as armas da República Federal aos curdos da Turquia ou à
população negra da África do Sul, colocaram-se, decerto, questões
retóricas, mas ninguém contou os mortos ou nomeou os culpados.
Apenas
referi Estados que são reconhecidos, em particular, como Estados de
direito, e não citei senão algumas das suas decisões políticas. Cada
qual pode julgar se estas decisões são comparáveis à decisão de
construir um muro na fronteira do Pacto de Varsóvia.
Direis
que não tendes o direito de julgar atos cometidos noutros países.
Direis que tudo isto não vos interessa. Penso, no entanto, que o
julgamento da história da RDA só pode ser pronunciado tendo-se em conta
os acontecimentos ocorridos noutros países, durante o período da sua
existência, no quadro da confrontação entre os dois blocos. Além disso,
penso que os atos políticos só podem ser julgados no espírito da sua
época. Se fechardes os olhos sobre o que se passou no mundo entre 1961 e
1989, não podereis pronunciar um julgamento justo. Mesmo se vos
limitardes à Alemanha e confrontardes as decisões políticas tomadas nos
dois Estados alemães, um balanço honesto e objetivo é favorável à RDA.
Aquele que recusa ao seu povo o direito ao trabalho e o direito à
habitação, como é o caso da RFA, conforma-se com o facto de que põe em
risco a vida de muitas pessoas que não encontram outra saída senão o
suicídio. O desemprego, os sem-abrigo, a droga, o roubo, a criminalidade
em geral são tudo consequências da escolha política da economia de
mercado. Mesmo decisões políticas a priori politicamente neutras, como o
limite de velocidade nas autoestradas, são consequência de uma
constituição, na qual quem tem a última palavra não são os responsáveis
políticos livremente eleitos, mas os magnatas da economia. Se a secção
de «criminalidade governamental» da Procuradoria-Geral deste tribunal
concentrasse a sua atenção neste assunto, eu teria rapidamente a
possibilidade, como antigamente, de apertar a mão aos representantes da
República Federal da Alemanha, só que desta vez em Moabit. Mas tal nunca
acontecerá, pois os mortos da economia de mercado tombam em nome do
direito.
Não
tenho competência para fazer um balanço da história da RDA. O momento
ainda não é chegado. O balanço será feito mais tarde por outros. Vivi
pela RDA. Tenho uma considerável responsabilidade na história da RDA,
particularmente desde 1971. Sou por conseguinte parcial, ainda para
mais, enfraquecido pela velhice e pela doença. Todavia, no final da
minha vida, tenho a certeza de que a RDA não foi criada em vão. Ela
mostrou que o socialismo é possível e pode ser melhor do que o
capitalismo. A RDA foi uma experiência não conseguida. Mas nunca a
humanidade abandonou a investigação de novos conhecimentos e novas vias
por causa de uma experiência falhada. Sem dúvida que ela falhou também
porque nós – refiro-me aos responsáveis dos partidos comunistas europeus
– cometemos erros que eram evitáveis. Sem dúvida que ela falhou na
Alemanha, entre outras razões, também porque os cidadãos da RDA, como
outros alemães antes deles, fizeram uma má escolha, e porque o
adversário nos era superior. As lições da história da RDA e de outros
ex-países socialistas servirão a milhares de pessoas de países ainda
socialistas e ao mundo de amanhã. Aqueles que dedicaram o seu trabalho e
as suas vidas ao serviço da RDA não viveram em vão. Cada vez mais
alemães de Leste constatarão que as condições de vida na RDA
penalizaram-nos menos do que os alemães do Oeste são penalizados pela
economia «social» de mercado, que as crianças da RDA nas creches, nos
jardins de infância, nas escolas cresciam mais felizes, menos receosas,
mais bem formadas e mais livres dos que as crianças da RFA nas escolas,
nas ruas e nos bairros dominados pela violência. Os doentes constatarão
que, apesar dos atrasos no plano técnico, eram tratados no sistema de
saúde da RDA como pacientes e não como objetos comerciais submetidos ao
marketing dos médicos. Os artistas compreenderão que a censura da RDA,
real ou imaginada, não lhes era tão hostil como a censura do mercado. Os
cidadãos sentirão que a burocracia da RDA, agravada pela corrida aos
produtos deficitários, não lhes tomava tanto do seu tempo livre como a
burocracia da RFA. Os trabalhadores e os camponeses constatarão que a
RFA é um Estado de empresários (quer dizer, de capitalistas) e que não
era por acaso que a RDA se chamava «Estado dos operários e camponeses».
As mulheres darão agora mais valor à igualdade de direitos, e ao direito
de dispor livremente do seu próprio corpo, que tinham na RDA. Após
contactarem com a lei e o direito na RFA, muitos dirão, tal como Bärbel
Bohley [10], que odeia os comunistas: «Nós queríamos justiça. Deram-nos o
Estado de direito». Muitos compreenderão também que a liberdade de
escolher entre a CDS/CSU, SPD e FDP, não é senão a liberdade de uma
falsa escolha. Reconhecerão que na vida quotidiana, em particular no
local de trabalho, tinham na RDA uma liberdade inigualável. Finalmente a
segurança, a segurança que a RDA, mais pequena e relativamente mais
pobre do que a RFA, garantia aos seus cidadãos, não será mais
considerada negligentemente, como algo natural, porque a vida de todos
os dias no capitalismo permite a cada um avaliar o seu verdadeiro valor.
O
balanço dos 40 anos de existência da RDA é completamente diferente do
quadro traçado pelos políticos e os média da RFA. O processo contra nós,
contra os membros do Conselho Nacional de Defesa da RDA, pretende
tornar-se num processo de Nuremberga contra os comunistas. Esta
iniciativa está votada ao fracasso. Na RDA não havia campos de
concentração, campos de gás, não havia condenações à morte por motivos
políticos, não havia tribunais do povo («Volksgerichtshof»), Gestapo ou
SS. A RDA não conduziu nenhuma guerra, não cometeu nenhum crime de
guerra, nem nenhum crime contra a humanidade. A RDA era uma Estado
antifascista consequente, que gozava de grande prestígio internacional
pelo seu empenhamento a favor da paz.
Este
processo contra nós, os «grandes da RDA», vem desmentir o ditado que
diz: «Enforcam-se os pequenos e deixam-se fugir os grandes». Assim, o
nosso julgamento deverá abrir caminho ao «enforcamento» dos pequenos. De
resto, até ao presente, não foram dadas provas de grande moderação.
Este
processo irá, pois, permitir a estigmatização da RDA como um Estado de
não direito. Um Estado dirigido por criminosos e homicidas como nós, não
pode ser senão um Estado de não-direito. Aqueles que lhe eram próximos,
cidadãos da RDA conscientes dos seus deveres, devem ser marcados com o
ferrete da infâmia. Um Estado de não-direito não pode ser dirigido e
apoiado senão por «organizações criminosas» como o MFS [Ministério da
Segurança de Estado], o PSUA, etc. A culpa coletiva e a condenação
coletiva devem substituir a responsabilidade individual, para dissimular
a ausência dos alegados crimes. Clérigos da RDA ligam o seu nome a uma
nova inquisição, a uma caça às bruxas dos tempos modernos. Milhões de
pessoas são assim rejeitadas sem piedade, excluídas da sociedade. Muitos
veem reduzidos os seus meios de subsistência ao estrito mínimo. Basta
ter estado inscrito como informador oficioso da STASI para sofrer a
morte civil. O jornalista denunciante é muito elogiado e
principescamente retribuído, ninguém se preocupa com as vítimas. O
número de suicídios é tabu. Tudo isto se passa com um governo que se diz
cristão e liberal, e com o consentimento e mesmo apoio de uma oposição
que merece tanto esse nome como o de social. Tudo isto se passa sob a
capa de um autointitulado Estado de direito.
Este
processo revela também a sua dimensão política enquanto processo contra
antifascistas. Num momento em que os neonazis berram nas ruas com toda a
impunidade, em que os estrangeiros são perseguidos e mesmo
assassinados, como em Mölln [11], o Estado de direito mostra toda a sua
força prendendo judeus que se manifestam e também perseguindo
comunistas. Para isso não falta dinheiro nem funcionários. Nós já vimos
isso uma vez.
Se
resumirmos o conteúdo político deste processo, ele representa a
continuação da guerra-fria, a negação do «novo pensamento». Ele revela o
verdadeiro caráter político desta República Federal. A acusação, os
mandados de prisão e a decisão deste tribunal de considerar a acusação
bem fundamentada estão no espírito da guerra-fria. As prisões
preventivas decididas por este tribunal remontam a factos de 1964. Desde
então o mundo mudou, mas a justiça alemã conduz processos políticos
como se Guilherme II ainda estivesse no poder. A justiça alemã superou a
fraqueza da política liberal que seguiu após 1968, e recuperou toda a
sua energia anticomunista. Trataram-nos de «cabeças duras» e
apontaram-nos a incapacidade de fazer reformas. Este processo mostra
onde realmente estão as «cabeças duras» e quem é incapaz de fazer
reformas. Para o exterior são particularmente flexíveis: vão nomear
Gorbatchov cidadão honorário de Berlim; esquecer-se-á graciosamente que
ele felicitou os guardas fronteiriços, deixando uma inscrição no seu
livro de honra. Mas internamente são «duros como o aço dos Krupp», como
se dizia da Wehrmacht, entre 1933 e 1945. Encontramos o antigo aliado de
Gorbatchov perante um tribunal. Gorbatchov e eu fazíamos parte do
movimento comunista internacional. É sabido que tivemos posições
diferentes sobre alguns pontos essenciais. No entanto, na minha opinião,
as nossas diferenças eram na altura menos importantes do que aquilo que
nos unia. Este processo contra mim não constitui um obstáculo para que o
chanceler federal e Gorbatchov continuem a tratar-se por tu. Isto é
também revelador.
Chego ao fim da minha declaração. Fazei o que deveis.
[1]
Erich Honecker (1912-1994), membro da juventude comunista desde 1926,
estudou na Escola Internacional de Moscovo, onde integrou, em 1930, as
brigadas internacionais de operários, participando na construção de um
complexo metalúrgico na URSS. Entra nesse ano para o Partido Comunista
da Alemanha. Em 1937 é condenado a dez anos de reclusão num campo de
concentração nazi, sendo libertado em 1945. Em 1946 é eleito presidente
da União da Juventude Livre Alemã. Membro do Bureau Político do Partido
Socialista Unificado da Alemanha (1958), torna-se seu secretário-geral
em 1971. Em Dezembro 1992 é sujeito a julgamento, acusado pela morte de
68 pessoas que tentaram passar ilegalmente o muro de Berlim e por alta
traição. Todavia, devido ao seu estado grave de saúde é autorizado a
emigrar para o Chile, em cuja capital vem a falecer em Maio de 1994,
vítima de cancro. A presente declaração foi lida perante a 27.ª Câmara
Correcional do Tribunal Regional de Berlim, em 3 de Dezembro de 1992. A
tradução para francês, que nos serviu de base, foi realizada pelo Comité
Honecker de Solidariedade Internacional (França), e publicada na
revista do Partido do Trabalho da Bélgica, Études Marxistes, n.º 16,
1992. (N. Ed.)
[2]
Moabit é um bairro em Berlim onde está situado o Tribunal Criminal
Central (Kriminalgericht) e uma prisão que serviu de centro de detenção à
Gestapo. (N. Ed.)
[3] Sigla alemã do partido nazi (Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães). (N. Ed.)
[4]
Gerhart Eisler (1897-1968), membro do Partido Comunista
Austríaco-Alemão (KPDÖ) e depois destacado dirigente do Partido
Comunista da Alemanha, durante a República de Weimar. Exilou-se nos EUA
com a chegada de Hitler ao poder. Após a II guerra instalou-se na RDA.
(N. Ed.)
[5]
O plano Morgenthau, concebido por Henry Morgenthau Jr., na altura
Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, previa a divisão definitiva da
Alemanha em dois Estados independentes (Alemanha do Norte e do Sul), a
internacionalização das grandes regiões industriais e de mineração,
incluindo o Saar, o Ruhr e a Alta Silésia e a anexação de alguns
territórios por nações vizinhas. Toda indústria pesada seria desmontada
ou destruída. Na 2.ª Conferência do Quebec (Setembro de 1944), o
presidente Roosevelt e Morgenthau tentaram convencer o primeiro-ministro
Britânico a aceitar a proposta na íntegra. Winston Churchill fez-lhe
algumas alterações, mas aprovou-a na generalidade. Todavia, em breve,
com a conquista de Berlim pelo Exército Vermelho o plano caiu, pois a
URSS opunha-se à divisão da Alemanha. (N. Ed.)
[6]
Konrad Adenauer (1876-1967), político alemão democrata-cristão,
fundador da União Democrata Cristã (CDU), em 1945, foi o primeiro
chanceler da República Federal da Alemanha (1949-1963), cargo que
acumulou com o de ministro dos Negócios Estrangeiros da RFA, entre 1951 e
1955. (N. Ed.)
[7]
A política do «roll back» (reversão) designa um conjunto de ações
(incluindo intervenções militares) por parte de uma potência para forçar
a queda de um governo ou regime político num determinado país. (N. Ed.)
[8]
O Rio Oder, que nasce na República Checa, atravessa a planície da
Silésia e desagua no Mar Báltico, demarcando a fronteira entre a Polónia
e a Alemanha. (N. Ed.)
[9]
Franz-Josef Strauss (1915-1988), político democrata-cristão alemão,
ministro presidente da Baviera (1978-1988), foi ministro das Finanças da
RFA (1966-1969) e ministro da Defesa (1956-1962), entre outros cargos
governamentais. (N. Ed.)
[10]
Bärbel Bohley (1945-2010), artista plástica da RDA, várias vezes
premiada, assumiu-se como opositora ao regime socialista em 1983, tendo
sido expulsa nesse ano da Federação de Artistas (VBK). Depois da
reunificação foi julgada em vários processos por ter acusado
publicamente Gregor Gysi, dirigente do PDS (Partido do Socialismo
Democrático, herdeiro do PSUA), de ter sido informador da Stasi, a
polícia de segurança da RDA. Chegou a estar presa por se recusar a
retratar-se ou a indemnizar o visado. (N. Ed.)
[11] Mölln, cidade localizada no distrito de Lauenburg, estado de Schleswig-Holstein, no Noroeste da Alemanha. (N. Ed.)
Fonte: Para a História do Socialismo – http://www.hist-socialismo.com/docs/HoneckerTribunal1992.pdf, publicado em 2013/11/18, acedido em 2019/11/10.
Tradução do francês e edição por CN, 2013/10/23.
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