No curto prazo todos estaremos mortos: apontamentos críticos sobre o novo consenso “keynesiano”
Quando aqueles que querem acelerar o trilho da barbárie diante da pandemia afirmam que “preservar as economias implica aceitar perdas de vida”, a despeito do caráter assassino e eugenista de tal proposição, eles não deixam de expressar de forma distorcida uma “verdade”: sim, a lógica econômica de nossas sociedades, é cada vez mais a aceleração de um processo crescentemente hostil à vida.
Por Daniel Feldmann.
Um amplo consenso para uma economia de guerra
Agora “somos todos keynesianos”, diz o
adágio que ora volta em tempos pandêmicos. De fato, no Brasil e no
mundo, vem agora à tona um inusitado e curioso “Novíssimo Consenso
Macroeconômico” que aparentemente diverge bastante e em certos termos é
oposto ao “Novo Consenso Macroeconômico” que antes prevaleceu nas
últimas décadas dentro daquilo que se chama o mainstream entre
os economistas. Sintomático nesse sentido é o relatório do FMI
recém-lançado em abril de 2020. Nele, notam-se proposições que
claramente destoam das orientações que historicamente têm norteado o
Fundo e que não deixam de ecoar agora um sabor, por assim dizer,
keynesiano. A necessidade de uma poderosa expansão fiscal é recomendada
não apenas durante o atual confinamento forçado, mas deve prosseguir
também em seguida quando o movimento de pessoas puder finalmente
retornar. Mais ainda, para evitar crises no balanço de pagamento, os
países mais frágeis estariam autorizados a instituir controles de
capitais tal como Keynes sugerira em Bretton Woods, assim como também
tais países poderiam em certos casos decretar moratória de suas dívidas
externas fazendo eco aqui à crítica de Keynes ao “absolutismo dos
contratos”.1
Tem-se então que o cenário muito adverso
tende a aparar arestas e reaproximar antigos desafetos. Unindo gregos e
troianos – esquerda com direita, ortodoxos com heterodoxos,
desenvolvimentistas com liberais, sindicalistas com capitalistas – o
novíssimo consenso aponta para a convergência de uma ação decidida dos
Estados nacionais diante da catástrofe econômica e social. Há nuances, é
claro, como sempre, mas todos convergem para a evidência óbvia de que
confiar na volta espontânea de uma normalidade dos mercados seria nada
menos que suicídio. Não faltam também, em todos os campos do espectro
ideológico, a metáfora militar de que “estamos em guerra”. Daí também a
consequência de que, como resposta à guerra, há de se dar plenos poderes
para o Estado. Este último, surgido historicamente na modernidade
europeia em grande medida como produto das guerras intestinas que
assolavam aquele continente, tem que ser hoje de novo lançado ao ataque e
deve usar sua munição pesada na forma de trilhões para mitigar o
colapso. Ou ainda, para os mais otimistas, deverá o Estado no médio
prazo reorganizar as bases de um capitalismo que há muito tempo já não
funcionava direito. Neste sentido, inclusive, não é mera coincidência
que por aqui os militares brasileiros desejem sair na frente, querendo
atropelar o ministro Guedes com o assim chamado “Plano Marshall” ou
“Plano Pró-Brasil” de investimentos públicos para a retomada econômica…
O keynesianismo salvacionista e o mito da normalidade
Mas o que de fato significa esta ampla e
eclética união de pessoas com comportamentos e posicionamentos políticos
tão díspares? E ligado à questão anterior, estaríamos de novo vivendo
em tempos efetivamente keynesianos? De um lado, temos os keynesianos de
sempre que argumentam, sem esconder um orgulhoso triunfalismo, que
finalmente teriam vencido a batalha das ideias.2
Nessa leitura dos fatos, aqueles que outrora o descartavam ou mesmo o
repudiavam, estariam agora se curvando à maior justeza e inteligência
das ideias de Lord Keynes. Claro que nessa chave de
argumentação nem todos os antigos liberais que, virando a casaca,
estariam de fato honestamente convencidos. Haveria também aqueles que,
por mero oportunismo enganador ou por pura impotência diante da
hecatombe imediata, seriam apenas provisoriamente keynesianos. Ou seja,
haveria também os recém-convertidos que agora defendem a ação pesada do
Estado, apenas para posteriormente voltarem com a cantilena de
austeridade e da importância dos “fundamentos” macroeconômicos para
quando tivermos o retorno das boas condições “sanitárias” da economia.
Todavia, o que sugerimos aqui é que
reduzir a questão sobre possíveis “vencedores” e “perdedores” do debate
intelectual está longe de ser um caminho profícuo para o entendimento
das questões de fundo que estão em jogo. Nos explicamos. Aquilo que
aparece na superfície como a volta do keynesianismo – seja nas medidas
já adotadas como as que têm sido propostas de forma comum por
economistas outrora inimigos – em essência diverge profundamente dos
pressupostos históricos, políticos e institucionais que animaram as
posições e propostas práticas vindas do próprio Keynes para reformular e
melhor impulsionar o capitalismo. Estamos diante, portanto, de
“keynesianismo”, que deve ser expresso entre aspas. Para além disso e
mais importante, a questão de fundo aqui vai bem além da constatação de
um flagrante anacronismo3
mas reside em esclarecer a funcionalidade concreta do que de forma
enganosa tem-se chamado hoje de um retorno a Keynes. Afinal este último,
ao seu tempo, propôs uma solução contínua para as crises baseada no
ativismo e coordenação estatais, solução esta que viria a ser duradoura e
factível no pós-guerra nos países centrais justamente porque ela andava
de par com um amplo processo de reprodução ampliada e valorização dos
capitais.4 Já o que hoje o que está em curso, como veremos, é muito mais uma tentativa desesperada de se “comprar tempo” (para falar como Wolfgang Streeck)
que ganha grande semblante de legitimidade por se apresentar como única
e inescapável saída para se preservar minimamente a renda e evitar
ainda maior destruição. E não poderia ser diferente pois o que a
covid-19 escancarou é uma crise profunda e perene do capitalismo que já
era transmitida mundo afora muito antes do vírus. Aqui os “fatos
estilizados” são as décadas de baixo crescimento e o estancamento dos
investimentos produtivos de longo prazo, o que leva inclusive alguns
(mas apenas alguns) economistas do antigo mainstream
reconhecerem a vigência de uma “estagnação secular”. Já o que está muito
longe de ser consensual é o fato de que em meio a crises conjunturais
cada vez mais frequentes desde os anos 1970, se sobrepõe uma longeva
crise estrutural cuja solução passa longe seja do voluntarismo estatal
keynesiano, seja das decantadas virtudes da economia de mercado. E esse
ponto é decisivo: nada mais falso do que a ideia de que estaria em curso
meramente uma crise das diferentes maneiras de se tentar regular,
estimular ou conduzir o capitalismo. A coisa é muito mais complicada,
como voltaremos a abordar mais à frente, na medida em que a longa crise
tem origem no próprio movimento do capital.
De imediato, a consequência disso é que a
ideia de Keynes de que seria possível fomentar o bom desempenho da
máquina capitalista através dos “controles centrais” (Keynes,
1992, p. 288) sobre o sistema econômico dá lugar a redobradas tentativas
de se apagar incêndios e de se administrar de forma cada vez mais
caótica as crises que se sucedem. Mesmo uma eventual vacina para a
pandemia não poderá curar a doença sistêmica que decorre do fato de que
não há qualquer perspectiva de uma retomada minimamente sustentável da
valorização e da reprodução ampliada do capital. Soma-se a isto o fato
de que agora, diferentemente da crise em 2008, não deve mais haver o
impulso da economia chinesa que naquele período ajudou muito a
contra-arrestar a queda global generalizada. Diante de tal cenário, como
já vimos o prelúdio também quando da crise de 2008, exige-se muito e
não pouco Estado. Mas aqui há uma diferença decisiva no sentido do que
seria esse “muito Estado” de hoje em relação ao que ele fora antes na
era efetivamente keynesiana.
Na assim chamada “era de ouro do
capitalismo” – que diga-se de passagem só teve a aparência breve de algo
efetivamente reluzente para uma reduzida parte da humanidade – houve
até certo ponto um Estado planejador que “pelo alto” da
pirâmide social atuava como sustentáculo do avanço da acumulação
produtiva, no mesmo passo que a força de tal acumulação reforçava as
próprias condições de arbitragem e atuação da parte desse mesmo Estado.
Num quadro de expansão da valorização capitalista em que ainda havia uma
forte demanda por trabalhadores, este mesmo Estado podia “por baixo”
mediar nos países centrais a formação de sociedade salariais e uma
integração relativamente favorável das populações nos circuitos de
produção e consumo. Já o “mais Estado” de hoje, seria muito mais um Estado salvacionista
que deve crise atrás de crise realizar “por cima” intervenções de
emergência de forma a evitar a desvalorização e bancarrota dos capitais.
Enquanto isso, “por baixo”, esse mesmo Estado deve administrar a
devastação em curso no mundo do trabalho onde, inclusive nos países
ricos, a tônica é a precarização crescente dos que estão dentro
combinada com a superfluidade dos que estão fora. Daí que a “salvação”
deve advir de uma combinação de crédito e políticas sociais que amenizem
quando possível a absoluta ausência de assalariamento decente e estável
com políticas cada vez mais repressivas e securitárias que busquem
estabelecer o controle bio/necropolítico dos que não podem mais sob
nenhuma forma serem integrados.
O acima dito não é de pouca monta. Pois é isso que ilumina efetivamente o motivo pelo qual hoje o “keynesianismo” ganha ares de mainstream
e produz tal “unidade dos contrários” entre os economistas e políticos.
Dizer que vivemos agora um estado de exceção é correto apenas
parcialmente, pois é absolutamente questionável que a situação anterior
do mundo já não fosse de exceção, sobretudo para o “andar de baixo”.5
A novidade se encontra no reconhecimento oficial, institucional e
governamental de um estado de exceção que teve de ser autoimposto pelos
próprios Estados nacionais, não sem relutação inicial aqui e acolá.
Reconhecimento este que, mesmo que possa ainda ferir as suscetibilidades
de certos fanáticos do “livre-mercado”, é a condição sine qua non
da continuidade da máquina capitalista. Esta, atolada em incertezas
sanitárias e econômicas pode fazer que a previsão de Cristina Lagarde,
do FMI, de queda em 15% do PIB europeu, ou ainda que a previsão da OMC
de queda de 32% no comércio mundial se mostrem talvez perspectivas até
otimistas.
Se qualquer aparência de normalidade e
previsibilidade se torna insustentável, mesmo como retórica ardilosa e
hipócrita, o que resta apenas como carta na manga é a máxima
salvacionista de Keynes, esta sim absolutamente atual, de que é preciso
“salvar o capitalismo dos capitalistas”. E como o remédio estatal
obrigatoriamente há de ser muito maior e prolongado do que quando da
crise de 2008, é infinitamente melhor que se assuma de vez e sem
ambiguidades a necessidade do keynesianismo de salvação do que deixar
que o naufrágio corra solto em nome de outras ideias já muito
desbotadas. Ou seja, neste ponto, pode-se dizer que Keynes estava errado
em dizer que, ao fim ao cabo, são as ideias que sempre em última
instância nos governam: as ideias se tornam secundárias diante do
consenso em torno de um fatalismo curto-prazista imposto pelas
circunstâncias. Por isso mesmo, a já referida noção de uma vitória
intelectual dos keynesianos é falsa ou na melhor das hipóteses dúbia: de
um lado, de fato há sim o reconhecimento forçado da necessidade de
forte intervenção do Estado no sistema econômico, mas por outro lado tal
intervenção concretamente só pode ser uma gestão caótica e disruptiva
sobre uma massa falida. E aqui, mais uma vez, nos deparamos com outra
flagrante fratura com o mundo pensado pelo próprio Keynes. Este último
acreditava que uma combinação adequada de razão, valores corretos e
instituições adequadas bastaria para evitar as crises e o desmoronamento
da civilização capitalista.6
Mas a utopia de Keynes, que pareceu factível apenas no curto interregno
dos “trinta anos gloriosos” do pós-guerra nos países ricos – a saber a
utopia de um capitalismo estável e que também poderia combinar uma
relativa justiça social com um pujante desempenho econômico –, torna-se
hoje nada menos que uma quimera.
Justamente o paradoxo da situação atual é
que o reconhecimento da sua excepcionalidade de forma alguma tem
implicado o reconhecimento sério e consequente de algo que deveria ser o
ponto de partida de qualquer análise: não haverá qualquer volta futura
da “normalidade” econômica. Pegando como exemplo o breve relatório mais
recente do FMI (2020), contamos dez vezes em que a ideia de volta ao
“normal” ou à “normalidade” é citada. Já de nossa parte pensamos que o
mais correto é dizer que a anormalidade virou regra, não apenas porque
já não se vivia a normalidade antes, como também pelo fato de que o
pós-pandemia tende a aprofundar os antagonismos já postos.
Os mesmos remédios de contenção que hoje
são exaltados como imprescindíveis só podem recolocar e acelerar mais à
frente a dinâmica cega e infindável da produção pela produção, de
acumulação pela acumulação – dinâmica que diga-se de passagem não é
jamais questionada nem por keynesianos e nem por liberais –, que não
apenas é insustentável econômica e socialmente, como também é produtora
de mais destruição ambiental e do aumento do risco de novas pandemias.
Daí que se desnuda outro consenso, este mais tácito e implícito, a
saber, de que após a crise é possível vislumbrar um “novo normal”: gerar
empregos, crescimento, prosperidade, integração do conjunto das
populações nos fluxos econômicos, etc. Claro que, no que diz respeito às
formas pelas quais pode ser ensejado esse novo impulso, rompe-se o
consenso e as antigas diferenças reaparecem com força. Mas, apesar
disso, essas diferentes rotas para o futuro, sugerindo como meios seja
um maior ou seja um menor controle e coordenação estatal sobre o sistema
econômico, seguem o mesmo trilho sem futuro como fim: a retórica tão
persistente quanto anacrônica do progresso e do desenvolvimento.
Evidentemente, não se pretende dizer que o
que predomina entre os economistas em geral seja meramente a ignorância
quanto à impossibilidade de uma volta à “normalidade”. A questão é mais
complexa posto que reside na sublimação do fato de que são os limites –
externos e internos – do próprio do capital que inviabilizam hoje os
pressupostos de uma ciência que em suas diferentes roupagens não pode
prescindir da possibilidade de uma expansão e evolução incessantes do
sistema econômico. E ao vislumbrar um futuro onde ele não mais existe,
não há outra alternativa que não – implícita ou explicitamente – a
recaída no mito da normalidade.
Eutanásia planejada do rentista ou autodestruição suicida do capital?
A explicitação dos limites hodiernos do
capital pode também ser proficuamente abordada partindo-se de outro tema
também caro a Keynes. Este último, mesmo se também apontasse para a
necessidade de políticas monetárias para sustentar a atividade produtiva
diante de um capitalismo errático em si mesmo, não deixava de apontar
para a centralidade e maior relevância das políticas fiscais. Ora, o que
se observa com inaudita intensidade nos últimos tempos e que chega às
raias do absurdo agora com a crise da covid-19 em 2020 é a mobilização
gigantesca de instrumentos monetários diversos para se evitar um maior
colapso – emissão de dinheiro, compras massivas de títulos públicos e
privados, crédito farto, garantia de provimento de liquidez etc. Se é
verdade que também os instrumentos fiscais também são utilizados com
peso agora, por outro lado, é nítido que eles tendem, assim como em
2008, a serem ultrapassados em abrangência e volume pelos instrumentos
monetários, denotando uma hierarquia de políticas efetivamente aplicadas
pelos países oposta à aquela sugerida por Keynes.
Ora, isso denota uma mudança de fundo que
restringe sobremaneira a capacidade de domar racionalmente o sistema
econômico aventada por Keynes. Com a ruptura de qualquer relação do
dinheiro com o ouro a partir da decisão unilateral de Nixon em 1971 de
fim da conversibilidade do dólar, criaram-se as bases estruturais para a
expansão e garantia de salvamento dos capitais fictícios pelo Estado,
bases sem as quais o afundamento sistêmico já teria sido muito mais
agudo. Pois o que temos já há tempos é um capitalismo perenemente movido
pelo capital fictício, o que enseja por sua vez uma tentativa
permanente de inflação de ativos como forma de contra-arrestar a
fraqueza da acumulação produtiva e do “espírito animal” empresarial
keynesiano. Destarte, a expansão gigantesca do crédito e a valorização
artificial dos mais diferentes dos diferentes papéis de propriedade são
os verdadeiros motores sistêmicos contemporâneos, com toda instabilidade
que isso implica. Os breves e restritos impulsos recentes da atividade
produtiva na verdade acabam por ser movidos por tal desmesura fictícia
de capital e não o contrário como em outras épocas da história do
capitalismo.7
Assim, a ideia desde sempre nada crível
de que seria possível separar um capitalismo “bom” e produtivista de um
capitalismo “mau”, rentista e financista, hoje é ainda mais absurda.
Como diz Chesnais (2017b, p. 2), “a financeirização é a consequência
e não a causa do bloqueio da acumulação”. O ativismo monetário
crescente e as correspondentes bolhas financeiras deste século,
notadamente a partir da resposta do FED de Alan Greenspan à crise da
Nasdaq em 2000, são o corolário da necessidade imperiosa de se sustentar
a hipertrofia financeira como o verdadeiro modus operandi
sistêmico. Não por outros motivos todo o debate sobre regulamentação do
sistema financeiro vem se arrastando há tanto tempo e nada indica que
muito mais do que medidas cosméticas possam ser tomadas nessa seara.
Este ambiente de extrema fragilidade é o que está por trás de
intervenções de última instância e cada vez mais ousadas dos Bancos
Centrais, bem como do aparente paradoxo da manutenção constante de taxas
de juros extremamente baixas ou mesmo negativas. A socialização das
perdas e a garantia de intervenções massivas de proteção por parte das
autoridades monetárias como vemos agora em 2020 são a pré-condição para
se evitar o desmonte das pirâmides de dívidas interligadas, bem como
para se evitar uma brusca desvalorização dos ativos que sustentam toda a
arquitetura capitalista.
A justiça aqui exige dizer que Keynes anteviu com muita perspicácia ao seu tempo a possibilidade de algo como o cenário atual:
“Os especuladores podem
não causar dano quando são apenas bolhas num fluxo constante de
empreendimento; mas a situação torna-se séria quando o empreendimento se
converte em bolhas no turbilhão especulativo. Quando o desenvolvimento
do capital em um país se converte em subproduto das atividades de um
cassino, o trabalho tende a ser malfeito”
(Keynes, 1992, p. 168).
(Keynes, 1992, p. 168).
Por outro lado, era estranha a Keynes a
ideia de que essa subordinação do capitalismo à lógica de um cassino
poderia ser algo permanente e irreversível como hoje. Ao contrário,
Keynes se esmerava na realização de um capitalismo em que as paixões
destrutivas do “amor ao dinheiro”8
fossem contidas através de uma paulatina “eutanásia do rentista”. Tal
eutanásia consistia na eventualidade de uma situação em que, a partir de
estímulos e cuidados racionais do Estado, haveria um tal aumento do
estoque de capital frente às necessidades sociais que faria com que a
demanda por novos investimentos fosse extremamente baixa. Como tal
hipotética situação acabaria com a escassez do capital, a remuneração
pela sua mera posse (a taxa de juros) tenderia a zero, minando assim as
bases do rentismo. Tal utopia de Keynes, cuja inspiração remonta ao seu
admirado John Stuart Mill, consistia na transformação do capitalismo em
um sistema totalmente voltado à satisfação de um consumo abundante das
sociedades, uma espécie de estado estacionário benfazejo em que não
haveria mais a necessidade frenética de acumulação de bens de capital
para a produção de consumo futuro, assim como toda a renda seria
canalizada para os agentes efetivamente “produtivos” (trabalhadores e
empresários) na medida em que sumiria a figura do rentista ocioso.
Deixemos de lado aqui a crítica de que é
impossível a existência de um capitalismo baseado na mera “reprodução
simples” das necessidades de consumo, posto que o capital justamente não
é feito para atender “necessidades sociais”, mas sim para seguir seu
movimento tautológico de reprodução ampliada em que a valorização do
valor é único objetivo a ser perseguido. Ora, se de um lado nos
deparamos hoje com um rebaixamento progressivo das taxas de juros, isso
não tem em absoluto a ver com uma afinal bem sucedida “eutanásia
planejada” do rentismo. Justo ao contrário, o que se observa é uma
ampliação em escala como em escopo do rentismo. Pois para além do fato
de tal tendência à zeragem atual das taxas básicas de juros não se dar
forma homogênea para os diferentes agentes econômicos em função de
avaliações de risco e spreads ainda muito diferenciados, mesmo
uma taxa de juros bem reduzida deve agora remunerar um estoque crescente
de dívidas públicas e privadas. Mais ainda, o “amor ao dinheiro” que
não se aventura diretamente na produção de mercadorias hoje não é
correspondido apenas através da remuneração na forma de juros pela
cessão da mera posse de capital monetário, mas também é enormemente
correspondido pelos ganhos de capital obtidos com o aumento artificial
do próprio preço dos ativos em questão (ações, títulos de longo prazo,
imóveis, etc.) endossados pelos juros no chão e pelos quantitative easing virando rotina.9
Tal novo ordenamento, para usar de novo a
terminologia de Streeck, trata-se por certo de se “comprar tempo” com a
injeção de dinheiro e crédito. Mais importante ainda, trata-se de uma
tentativa de adiantar o futuro, isto é, de sustentar um tipo de
capitalismo que busca através de uma montanha crescente de capital
fictício antecipar ao máximo a acumulação presente de dinheiro, tendo
como lastro um processo de criação real de valor futuro que pode nunca
vir a ocorrer. Trata-se, portanto, de um gigantesco processo de
simulação da valorização capitalista que vem tentar substituir a
escassez da própria substância do capital: o valor. Longe de uma
gradativa anulação do rentismo e do “amor ao dinheiro” de Keynes, temos
ao contrário como condição de sobrevivência do próprio modo de produção
capitalista a radicalização de um lógica em que o capital tende a se
autonomizar de si mesmo, pleiteando a sua auto-expansão sem passar pelas
vicissitudes do processo de extração de mais-valor através da
exploração do trabalho vivo. Daí que uma crítica à ortodoxia econômica
que tem ressurgido nesses tempos com a defesa dos poderes quase
ilimitados do Estado de instituir e manipular a criação de símbolos
monetários, como por exemplo nos debates em torno da Modern Monetary Theory,
elide o principal, a saber, que a criação de “dinheiro sem valor” na
expressão de Robert Kurz não apenas não pode suspender a contradição de
fundo do capitalismo desde século XXI como, ao contrário, é produto
direto dessa mesma contradição.10
Contradição em processo, como dizia Marx11,
que faz com que antinomia entre valor de uso e valor já presente na
forma mais simples de mercadoria seja elevada à enésima potência hoje.
Segue em marcha a tendência suicidária do próprio capital que mina as
bases sobre as quais ele mesmo se assenta. Mais precisamente, é o
próprio desenvolvimento histórico da produção capitalista que faz com
que ao mesmo tempo que o trabalho vivo se torne cada vez mais obsoleto
para a produção de riqueza material, esta mesma produção só pode ter
sentido na medida em que permita a expansão do mais-valor que depende
desse mesmo trabalho vivo. A partir das transformações técnicas impostas
pela concorrência que impõem cada vez mais automação e racionalização
do processo produtivo, o capital tende então expulsar cada vez mais
trabalho produtor de valor solapando assim a base de sem a qual não pode
seguir seu movimento de expansão.
O sentido mais profundo e incontornável
da crise em curso, portanto, reside no fato de que o ímpeto incessante
da valorização do valor tem tornado cada vez mais obsoleta e restrita a
própria fonte da valorização, ao mesmo tempo em que todo o metabolismo
social precisa ainda obrigatoriamente passar pelo filtro dos critérios
abstratos-quantitativos desse mesmo valor. Instaura-se, portanto, uma
verdadeira corrida contra o tempo, em que se busca acelerar o presente
de forma alucinada através de mecanismos de compensação que buscam em
vão compensar a ausência completa de um horizonte de futuro12.
Mecanismos presentistas estes, em que se enquadram não apenas a assim
chamada financeirização sem fim como também a selvageria neoliberal
travestida de “empreendedorismo” e “valorização do capital humano” no
funil cada vez mais apertado do mercado de trabalho, assim como o
crescimento de variadas práticas de “acumulação por despossessão”13
em que o capital, diante do bloqueio de seu processo autogerado de
reprodução ampliada e valorização, se esmera em se apropriar e
monopolizar diferentes fontes de renda futura externas a si mesmo. Já os
Estados nacionais, que não podem jamais por si mesmos criar valor de
forma a promover a volta de uma acumulação “normal” de capital, vão se
tornando cada vez mais os organizadores e fiadores desses mecanismos
devoradores do presente.
Daí o veredito: é precisamente tal
tendência fetichista e autodestrutiva do capital como “sujeito
automático” que elimina a sua própria substância o fator que também
erodiu para sempre a própria “substância” dos arranjos econômicos e
sociais efetivamente keynesianos. Pois quando, para usar de novo uma
formulação de Chesnais (2017), é o próprio capital que encontra limites
intransponíveis “à medida que a penúria de mais-valia se enraíza, se torna estrutural,
não há mais qualquer plausibilidade para os antigos horizontes
keynesianos de um processo racionalmente organizado de expansão da
acumulação produtiva e de integração salarial das populações. E é
precisamente por isso que, justo ao contrário do que esperava Keynes, a incapacidade econômica do capital em produzir mais valor redobra o afã para que ele se afirme cada vez mais como puro direito jurídico de propriedade,
reforçando o rentismo em lugar de eliminá-lo. Por isso mesmo, aquilo
que fora o cerne do keynesianismo como uma visão de mundo histórica só
pode hoje consistir em pura aparência cujo conteúdo é o inverso do que
se advoga. A antiga capacidade keynesiana de plasmar, moldar e conduzir
as relações econômicas numa perspectiva ascensional, dá lugar hoje a um
processo de descida ladeira abaixo em que aquilo que aparenta ser a ação
autônoma e discricionária do Estado no fundo nada mais é que sua
arraigada heteronomia e descontrole. Assim, o Estado atua tão somente
como um bombeiro diante de um incêndio em constante expansão.
Incêndio em expansão
Pois mesmo que hoje qualquer cenário
prospectivo esteja marcado por profunda incerteza, as perspectivas do
que vem a ser o pós-pandemia sugerem um incêndio econômico, social e
político certamente ainda mais alargado. A própria ideia que vem à tona
de que o neoliberalismo seria o grande derrotado na atual situação é
precipitada, para dizer o mínimo. Se entendermos o neoliberalismo, não
como uma mera política ou orientação de política econômica, mas sim em
linha com Pierre Dardot e Christian Laval (A nova razão do mundo)
como uma racionalidade que governa os sujeitos pelo princípio da
concorrência, nada autoriza que teremos mais à frente o seu fim. O
contrário disso é bem mais provável, se pensarmos o neoliberalismo como
a própria forma de sociabilidade de um capitalismo em crise. É de se
prever, assim, o reforço de dispositivos cada vez mais duros de seleção e
de exclusão (principalmente de exclusão) das pessoas como consequência
de uma reprodução social que tende a tornar cada vez mais supérfluos e
descartáveis os seres humanos.
Aliás, um dos efeitos já visíveis da
pandemia mundo afora é a intensificação da substituição de trabalhadores
por robôs e a aceleração da introdução de mecanismos ligados à
indústria 4.0, não sem a alegação de “responsabilidade sanitária” de que
isso vai de acordo com o desejo generalizado de empregados e
consumidores de isolamento social.14
Ao mesmo tempo, o cenário atual pode servir como fonte de maior
legitimação do casamento já em curso entre neoliberalismo e
autoritarismo, na medida que se reforçam as práticas de controle,
vigilância e punição que agora podem ser justificadas não mais contra um
inimigo distante (como fora no caso da “guerra às drogas” ou do
terrorismo), mas sim diante de um vírus que potencialmente está em todos
e todas. Em suma, o neoliberalismo que, ao contrário do que se pensa,
sempre atuou em sintonia e dependeu dos Estados Nacionais, não apenas
tende a continuar bem vivo no pós-covid-19 como tende a salientar ainda
mais o seu componente punitivo, aproveitando-se do cenário de maior
culto à segurança e do processo de agravamento da crise social que se
desenrola.
Aliás, diga-se de passagem, os gastos com
armas e tecnologias de segurança, que como alertou Ellen Wood (2014)
têm crescido enormemente após o fim da guerra fria ao contrário do que
diziam os apologetas das economias de mercado quando da queda do Muro de
Berlim, persistem hoje como promissora frente de expansão de
investimentos coordenados entre governos e grandes empresas. Tal como na
época do “keynesianismo realmente existente” do pós-guerra em que por
trás da prosperidade dos países ricos estava o impulso que transformou o
mundo numa literal bomba-relógio com o crescimento do complexo
militar-industrial estadunidense15,
a mesma sina apocalíptica continua em andamento e de vento em popa,
como atestam as recentes provocações nucleares entre Putin e Trump. A
sustentação da demanda efetiva que em tese para Keynes poderia depender
de dispositivos inofensivos como “cavar buracos no chão” (Keynes, 1992, p. 173) ou a “construção de pirâmides” (idem, p.111) nos fatos tem se escorado na produção de valores de uso muito mais perigosos.
Ademais, voltando mais uma vez ao tema
mais diretamente “econômico”, é preciso ver que as políticas de
austeridade ora suspensas com as medidas de combate econômico à crise
não estão exatamente em oposição ao agora dominante keynesianismo
salvacionista. Ou, melhor dizendo, a própria administração da crise em
curso, a própria necessidade de se “comprar tempo”, exigem diferentes
combinações no tempo e no espaço de medidas por vezes austeras e de
medidas por vezes expansionistas. Tal contradição, longe de ser fruto de
uma mera confusão ideológica, é a contradição – sem possibilidade de
qualquer síntese que a supere – do próprio objeto que se pretende fazer
continuar funcionando: o capital. Pois se hoje a austeridade é esquecida
nos fatos, nem por isso é correto dizer que o ativismo e gastos
estatais continuarão dando o tom daqui para frente. Daqui em diante
persistirá ainda com mais força a pressão para que os Estados “abram
espaço” para os dispositivos de acumulação por despossessão cada vez
mais dominantes hoje em dia: privatizações, concessões, assim como
transferências de atividades estatais, previdência e serviços públicos
para o setor privado.
Ao mesmo tempo, a debilidade congênita da
atividade econômica mina a capacidade arrecadatória dos governos
pressionando por aumentos em suas dívidas. E, mesmo que a conjuntura
atual tenha forçado um enorme aumento das dívidas públicas que era
considerado impossível antes pelos campeões da austeridade, nem por isso
é lícito crer que o endividamento estatal crescente pode ser continuado
ad infinitum sem maiores consequências. Se o endividamento
público é uma forma de “comprar tempo” nem por isso deixa de ser
colocada a questão de quanto tempo afinal poderá ser comprado. Afinal,
diante da arquitetura extremamente frágil do capital fictício que
circula pelo mundo, os títulos públicos são tidos como último “porto
seguro” da riqueza financeira. Aliás, porto nem tão seguro assim, tendo
em vista que quando da eclosão do pânico financeiro em meados de março
deste ano o FED se viu logo constrangido a sustentar a liquidez de
agentes que não estavam conseguindo sequer vender os próprios títulos
americanos. Por isso mesmo, tem-se a manutenção de arraigada
esquizofrenia que oscila ora entre a exigência de se abrir os cofres
salvando os mercados, e ora com a exigência de se insistir com a
austeridade. Para além disso, não se pode esquecer que a necessidade de
se continuar concedendo isenções e subvenções fiscais ao capital diante
de uma concorrência global ainda mais encarniçada também conspira a
favor da manutenção de uma austeridade elitista em detrimento de gastos
sociais.
E aqui chegamos também num outro dilema
das relações internacionais decorrente da crise pandêmica. A pirataria
nacionalista em torno da caça de equipamentos de proteção e tratamento
da doença que envolveu Estados Unidos, Europa e China é a expressão
cristalina que estamos a anos-luz da perspectiva de qualquer coordenação
internacional. Lembremos que para Keynes, a coordenação internacional
era a condição primária para que os governos pudessem efetivar políticas
domésticas. Ao mesmo tempo, uma eventual renacionalização de cadeias
produtivas ou “desglobalização” que tem sido aventada recentemente, não
significa nem de longe que estaríamos de volta a um fechamento dos
capitais em torno de seus espaços econômicos nacionais de origem. O
nível de entrelaçamento econômico global do capitalismo não autoriza tal
marcha à ré na história. Na realidade, o que poderia acontecer é muito
mais um recuo para dentro das fronteiras apoiado pelos Estados com o
objetivo de melhor enfrentar a guerra da concorrência global, sobretudo
entre EUA e China. Assim, a “desglobalização” seria, na realidade, um
passo atrás para se dar dois passos à frente no caráter predatório da
globalização, com consequências extremamente deletérias para países
periféricos. Pois como salienta alguém que está longe de ser um crítico
do capitalismo, Nouriel Roubini (2020), este processo tende a
incrementar a destruição de postos de trabalho em países para onde a
produção fora antes deslocalizada, com a subsequente centralização nos
países de origem de atividades cada vez mais sofisticadas e
automatizadas que geram, por sua vez, pouquíssimos empregos.
No curto prazo todos estaremos mortos
A famosa frase de Keynes de que no “longo
prazo todos estaremos mortos”, ao contrário do que pode parecer à
primeira vista, não significava em absoluto que ele fosse autor
desinteressado do futuro (Dostaler, 2007, p. 154). O que Keynes de fato
queria dizer era que, caso os controles adequados fossem adotados no
curto prazo, seria possível antever no futuro a abundância econômica e o
bem-estar generalizado das populações. Aliás, a preocupação de Keynes
com o longo prazo é patente em vários textos, como por exemplo em seu
conhecido “Perspectivas econômicas para nossos netos”. Ligado a isso
está o fato de que, dos economistas importantes, Keynes provavelmente
tenha sido o que mais se preocupou com a política como arena de
entendimento para a construção de consensos duradouros. Ele era, por
excelência, o homem da persuasão, do convencimento, das negociações, que
buscava construir alicerces permanentes de sustentação da civilização
burguesa, a qual ele nunca negou ser a sua. É sintomático que justamente
nos dois momentos mais críticos em que tal civilização esteve ameaçada
nas duas grandes guerras, Keynes tenha emergido como o arauto de
propostas políticas de longa duração e amplitude, ao contrário de
limitar-se a um “curto prazismo” pragmático que se atribui
equivocadamente a ele.16
Daí que seja forçoso constatar então que
se hoje a perspectiva de futuro dá lugar a uma gerência cada vez mais
estreita do presente, isto é, se a política é cada vez mais reduzida a
um “no curto prazo todos estaremos mortos”, é a própria política no
sentido que o próprio Keynes pensara que se esvazia. O keynesianismo
salvacionista, ironicamente, não deixa de ser também a negação da
política no sentido original forte keynesiano. Assim, a questão zero que
deveria se colocar ao debate econômico seria justamente o como se deve
fugir deste beco sem saída. Evidentemente, não se trata niilisticamente
de rechaçar tout court medidas que o Estado deve tomar diante
da pandemia, e menos ainda de deixar de combater para que elas sejam
pautadas dentro de um espírito de mínima equidade social. Mas tampouco é
uma postura séria deixar de ver que se não é este o momento que deve
suscitar um amplo debate no sentido de uma revisão e superação de todas
os pressupostos das formas de vida e as relações sociais que geraram a
atual hecatombe, melhor seria então entregar os pontos de vez. Nesse
sentido, é plenamente dotado de sentido o chamado de Latour (2020) para
que agora, e não num futuro remoto, nos debrucemos para pensar e agir em
prol de outras formas de produzir e de se consumir que apontem para
além dos imperativos econômicos vigentes. Também é deveras pertinente a
constatação de Latour de que “após cem anos de um socialismo que se
limitou a pensar a redistribuição dos benefícios da economia, talvez seja o momento de inventar um socialismo que conteste a própria produção”.
Como exercício de tal invenção, o conjunto de perguntas que Latour
elenca ao final de seu artigo poderia ser um rico ponto de partida para
se iniciar o debate.
Acrescentamos ainda que tais imperativos
econômicos devem ser confrontados, pois que são a grande ameaça para a
humanidade, na medida em que anulam e se sobrepõem como um poder cego e
inconsciente a todas as necessidades humanas de uma vida boa e
conscientemente determinada. Ou, dito de outra forma, tais imperativos,
que via de regra a ciência econômica ainda tem como a sua própria
“normalidade” epistemológica, selecionam como critério de viabilidade
social concreta apenas aquelas atividades que passem pelo crivo cada vez
mais exigente e destrutivo da rentabilidade monetária abstrata do
capital. Na boa fórmula de Moishe Postone (2017), o grande desafio deste
século XXI é nos defrontarmos com o que ele chama de “anacronismo do
valor”, a saber, fazer com que todo potencial de atividade humana
constituído de forma alienada ao longo da modernidade capitalista possa
ser reapropriado de fato pelas pessoas, deixando assim de ser pautado
pela lógica impessoal de dominação social imposta pela forma valor,
forma esta cada vez mais obsoleta. O que está na ordem do dia, portanto,
é como instituir a perspectiva do Comum,
de uma organização e reapropriação da vida que parta diretamente das
próprias pessoas e suas necessidades, suplantando o atomismo que mantém a
guerra de todos contra todos e que faz com que o próprio conceito de
sociedade perca cada vez mais o sentido.
Alguém poderia contra-argumentar que tudo
isso é utópico. Pode ser. Mas em tempos como os atuais, o realismo
precisa ser utópico e, partindo dos movimentos e lutas sociais em curso,
pensar alternativas que alarguem nossa imaginação muito além de uma já
impossível “normalidade”. E se tomarmos a sério o enfrentamento dos
pressupostos da catástrofe de nosso tempo, o que se propõe aqui é de
certo bem mais realista do que falso realismo supostamente “pragmático”
das visões de mundo liberais, keynesianas ou desenvolvimentistas que
ainda se busca repaginar. E com uma vantagem decisiva, a saber, a de
encarar de frente a dicotomia atualmente tão discutida entre economia e
vida, dicotomia esta que tem sido discutida muitas vezes de forma
equivocada e unilateral a nosso ver. Quando aqueles que querem acelerar o
trilho da barbárie diante da pandemia afirmam que “preservar as
economias implica aceitar perdas de vida”, a despeito do caráter
assassino e eugenista de tal proposição, ela não deixa de expressar de
forma distorcida uma “verdade”: sim, a lógica econômica de nossas
sociedades é cada vez mais a aceleração de um processo crescentemente
hostil à vida.
A força da extrema-direita hoje se deve
muito ao fato dela dar forma e voz para o ressentimento e a pulsão de
morte que se desprendem da realidade econômica demolidora de nossas
sociedades. Daí que, independentemente de nossas boas intenções, a ideia
de que se pode reafirmar a vida sem a transcendência da lógica
econômica em si – isto é sem colocar em cheque o movimento que faz da
vida mero objeto do capital que permanece como o verdadeiro sujeito –,
estaremos sendo na melhor das hipóteses voluntaristas (e muito mais do
que Keynes já fora ao seu tempo) e na pior delas estaremos alimentando, à
despeito de nossas vontades subjetivas, o fim de linha que já está em
curso. Que se suplante então as verdadeiras causas que conspiram para
que no curto prazo todos estejamos mortos.
Notas
1 Keynes rechaçava o “absolutismo dos contratos” (1972, p. 56), isto é, a ideia de que dívidas e contratos financeiros fossem considerados sagrados e não pudessem ser revisados nem mesmo em situações excepcionais.
2 E aqui eles seguem a assertiva de Keynes que fecha sua Teoria Geral e que afirma serem as ideias mais poderosas que os meros interesses: “Mas, à parte esta disposição de espírito peculiar à época, as idéias dos economistas e dos filósofos políticos, estejam elas certas ou erradas, têm mais importância do que geralmente se percebe. De fato, o mundo é governado por pouco mais do que isso. Os homens objetivos que se julgam livres de qualquer influência intelectual são, em geral, escravos de algum economista defunto. Os insensatos, que ocupam posições de autoridade, que ouvem vozes no ar, destilam seus arrebatamentos inspirados em algum escriba acadêmico de certos anos atrás. Estou convencido de que a força dos interesses escusos se exagera muito em comparação com a firme penetração das idéias. […] Cedo ou tarde, são as idéias, e não os interesses escusos, que representam um perigo, seja para o bem ou para o mal.” (KEYNES, 1992, p. 291).
3 Que fique claro que o anacronismo ao qual nos referimos não se refere à boa parte das análises de Keynes e dos economistas por ele influenciados para pensarmos o funcionamento do capitalismo contemporâneo. Neste plano há sem dúvida contribuições úteis e importantes. Já o que consideramos sem dúvida totalmente anacrônico é todo o arcabouço keynesiano de propostas para se domar e ordenar tal capitalismo nos dias de hoje. O que ficou para trás na história é o keynesianismo como “visão de mundo” que contemplava uma dada configuração não apenas econômica, mas também política, social e mesmo cultural do capitalismo. Em outras palavras, se temos reflexões informadas por Keynes que podem seguir sendo válidas, a ideia de uma “nova era keynesiana” é fantasiosa, mesmo que se busque propor atualizações e reformulações em relação ao que foi a antiga era keynesiana.
4 Sobre as condições particulares e os limites da era keynesiana do pós-guerra, persiste como fundamental o trabalho de Mattick (1978)
5 Sobre isto ver Menegat (2020)
6 Keynes reiteradamente afirmava tal confiança, como por exemplo, quando criticava os que “enormemente superestimam a significância do problema econômico. O problema econômico não é difícil de resolver. Se você o deixar comigo, eu cuidarei dele” (Keynes apud Dostaler, p.93).
7 Ver sobre isso a ideia de um “capitalismo invertido” em Lohoff e Trenkle (2014) em que os autores apontam para o papel condutor e não meramente reativo do capital fictício em relação ao movimento da produção, ou ainda Brenner (2003) com sua argumentação sobre um “keynesianismo do mercado de ações” como decisivo para a economia estadunidense.<
8 Keynes criticava os excessos do individualismo eixado na exagerada paixão pelo dinheiro e o considerava uma séria ameaça à própria à manutenção da própria sociedade moderna baseada no indivíduo e sua propriedade privada. Ver, entre outros, Keynes (1978a)
9 Ver, por exemplo, Rogoff (2020) e sua proposta da manutenção por quanto tempo for necessário de taxas de juros nominais largamente negativas para se tentar reanimar a produção e para preservar também o valor de dívidas e títulos financeiros.
10 Longe de ser um mero símbolo das trocas, como quer a teoria econômica ortodoxa, ou uma convenção estatal manipulável, como defendem muitos economistas heterodoxos, o dinheiro no capitalismo é o meio e o fim do único elo possível em uma sociabilidade fragmentada, baseada em decisões privadas e não-coordenadas. E esta sociabilidade não tem como base a mera posse de dinheiro como tesouro, nem tampouco sua utilização para satisfazer o consumo. Em última análise, trata-se de uma sociabilidade estruturalmente antagônica e dominada pelo movimento incessante que deve fazer de uma dada quantidade de dinheiro, mais dinheiro, isto é, o movimento que deve fazer do dinheiro, capital. Por isso, mesmo que a emissão de moeda para gastos públicos e transferências possam ajudar a minorar os efeitos sociais e econômicos de uma crise como a atual, é absolutamente ilusório que isso consista em qualquer solução duradoura para os dilemas postos. A coordenação e manipulação pela sociedade do dinheiro não pode abolir a dinâmica fetichista do capital que faz com que, em seguida, seja o próprio movimento do dinheiro que volte a coordenar e manipular a sociedade.
11 “O próprio capital é a contradição em processo, [pelo fato] de que procura reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo que, por outro lado, põe o tempo de trabalho como única medida e fonte da riqueza.” Karl Marx, Grundrisse (São Paulo, Boitempo, 2012), p. 28.
12 Ver Paulo Arantes, O novo tempo do mundo (São Paulo: Boitempo, 2014).
13 Usamos este útil conceito, mas de uma forma que talvez não corresponda exatamente ao sentido dado por seu autor original, David Harvey (2010). Cremos, que, para maior clareza, a acumulação por despossessão deve ser contraposta conceitualmente à acumulação “normal” por assim dizer, isto é, a reprodução ampliada do capital. Enquanto nesta última o capital se repõe a partir de si, isto é, a partir do movimento de sua própria lógica interna, na acumulação por despossessão o capital buscará se externalizar, isto é, tomar para si recursos e novas fontes de acumulação até então não possuídas por ele. Assim, para além dos dispositivos da acumulação primitiva de capital descritos por Marx, o conceito contemporâneo de Harvey deve ser alargado com outros dispositivos como propriedade intelectual, privatizações, concessão de atividades antes controladas pelo setor público ao setor privado, expansão da renda oriunda da terra, imóveis e recursos naturais, subsídios e isenções fiscais, corrupção, etc. Discordamos de Harvey na medida em ele parece equiparar de forma direta o processo de financeirização aos dispositivos de despossessão. Em si e por si, o capital financeiro se desdobra da divisão funcional interna ao capital em que parte do mais-valor gerada pela reprodução ampliada se transfigura na forma de juros. Por outro lado, é certo que a financeirização alimenta novas formas de despossesão como aquisições de empresas no mercado de capitais, drenagem de juros do Estado e das famílias, expansão das diferentes formas de renda, tomada de ativos a partir de inadimplência de crédito, etc.
14 Ver sobre este tema, BBC (2020)
15 Ver sobre isso Anders (2013) e Marcuse (2015)
16 Sobre as propostas de Keynes para reconstrução da ordem capitalista na sequência da Primeira e Segunda Guerra Mundial, respectivamente, ver Keynes (2002) e Keynes (1978b).
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