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domingo, 17 de janeiro de 2021

Edito novamente o ensaio já aqui publicado pois recebi a informação de que não está disponível. Além disso constatei numa segunda leitura que existiam gralhas a corrigir

 

As categorias fundamentais da Teoria de Marx

 

            «[]sem uma sólida fundamentação filosófica não há ciência da natureza nem materialismo que possa suportar a luta contra a investida das ideias burguesas e o restabelecimento da conceção burguesa do mundo. Para sustentar essa luta e levá-la com pleno êxito até ao fim, o cientista deve ser um materialista moderno, um partidário consciente daquele materialismo que é representado por Marx, isto é, deve ser um materialista dialético.», V. I. Lénine, O Materialismo Militante.

«Qualquer crítica que contribua para tornar mais vigorosa e consciente nossa luta de classe para a realização de nosso objetivo final merece nosso agradecimento. Mas uma crítica procurando retroceder nosso movimento, fazê-lo abandonar a luta de classe e o objetivo final – tal crítica, longe de ser um fator de progresso, só seria um fermento de decomposição.» Rosa Luxemburgo, Liberdade Crítica.

 

Engels sobre Marx:

«Das muitas descobertas importantes com que Marx inscreveu o seu nome na história da ciência, podemos pôr em evidência apenas duas.

A primeira é o revolucionamento, por ele completado, em toda a conceção da história mundial. Toda a visão da história até aqui repousava sobre a representação de que era de procurar os fundamentos últimos de todas as mudanças históricas nas ideias, que mudam, dos homens, e que, de todas as mudanças históricas, de novo, as políticas seriam as mais importantes, dominando toda a história. De onde vêm, porém aos homens as ideias e quais são as causas motoras das mudanças políticas, por isso nunca se tinha perguntado.» (…) «Ora, Marx demonstrou que toda a história até aqui é uma história de luta de classes, que em todas as múltiplas e complexas lutas políticas se trata apenas da dominação social e política de classes da sociedade, da manutenção da dominação pelo lado das classes mais antigas, da conquista da dominação pelo lado das classes recentemente ascendentes. Mas, porque nascem e continuam a existir estas classes?» (…) «A segunda descoberta importante de Marx é o esclarecimento [Aufklärung] definitivo da relação de capital e trabalho, por outras palavras, a demonstração de como, na sociedade atual, no modo de produção capitalista existente, se completa a exploração [Ausbeutung] do operário pelo capitalista

Engels, ainda, afirma, na Introdução do seu livro «Do socialismo utópico ao socialismo científico», que as duas grandes descobertas de Marx foram: o materialismo histórico e a teoria científica da mais-valia. Ora, sabemos bem como as suas opiniões eram corroboradas pelo seu amigo Karl Marx.

 

A mais importante descoberta científica de Marx é a do processo de acumulação do capital. Do Livro Primeiro de O Capital («a apropriação da mais-valia») ao Livro Terceiro (a acumulação do ponto de vista da DISTRIBUIÇÃO), passando pelo Livro Segundo (CIRCULAÇÂO DO Capital), Marx expõe o processo de acumulação do capital. Este processo faz toda a história do capitalismo.

 Interpretar e rever

Marx tem sido alvo de acusações que se tornaram rotineiras, sendo vulgar que académicos adiantem as acusações sem sequer as desenvolver e comprovar. São elas: os escritos marxianos incorrem em ambiguidades na formulação das teses, de contradições lógicas, de economicismo, determinismo, positivismo…um elogio enfático ao progresso civilizacional trazido pelo capitalismo e até pelo colonialismo…Por outro lado, são-lhe colocados regularmente outros problemas: Em que pé ficou a filosofia no Marx da maturidade, qual o grau de autonomia das super estruturas (Estado, Ideologias,etc.), e a interrogação a mais complexa na minha opinião: na Teoria marxiana o que é realmente a dialética? É a hegeliana, embora completamente invertida? É exclusivamente um método lógico de investigação e exposição, ou traduz “leis” imanentes da natureza? Como se constata, são acusações que são feitas igualmente a Engels, à sua contribuição autónoma à fundação da Teoria.

Não podemos tratar de toas estas questões num único artigo. Ficará para uma próxima oportunidade. Entretanto, fica o repto aos investigadores portugueses, particularmente aos jovens que elaboram as suas dissertações de mestrado, para que façam escolhas no alfobre destas interrogações bem intencionadas e nas acusações mal intencionadas. Limitar-me-ei a responder por postulados: Marx não perfilha as teses do positivismo da sua época, que foi uma ideologia do progresso contínuo e sempre revolucionário da burguesia iluminista e capitalista, o qual cria somente na ciência (tal como era então conhecida, atente-se!) e rejeitava a filosofia; Marx não foi um determinista pelo que confiava no papel revolucionário do proletariado para derrubar o capitalismo, portanto, na práxis; Marx escreveu a sua obra-prima, O Capital, o que não faz dele um economista, nem a importância que ele atribuiu às forças de produção (economia e técnicas) fazem dele um economicismo que tratasse as “super estruturas” como mero epifenómeno. Marx pode não ter sido claro e cristalino em diversas ocasiões na sua vida tão atribulada,porém aqueles que querem encontrar nele esses defeitos encontrá-los-ão de certeza, porque nas antigas estalagens espanholas os viajantes também encontravam sempre o que levavam…

Com que critérios inquestionáveis podemos afirmar que a nossa interpretação do marxismo é a única verdadeira? Poderemos eventualmente convencer outrem de que a nossa interpretação não é falsa, contudo como podemos afirmar que é a única e a última? Todas as teorias, sobretudo após o desaparecimento dos seus autores legítimos, são passíveis de interpretações diversas, exceto se afirmarem falsidades. Algumas interpretações verificaram-se erróneas, mas só muito poucos autores publicaram honestamente autocríticas. O marxismo corrente contém ideias de Marx quando comprovadamente nos textos que legou e ideias que não estão nos seus escritos, tais como as elaboradas por ENGELS (em vida de Marx ou não), Lenine, Lukács, Gramsci, para falar apenas de alguns dos mais importantes continuadores. O marxismo não é um -este ou aquele- mas diversos. O marxismo que designamos por marxismo-leninismo é recusado por várias correntes marxistas. Não há um único Marx, neste exemplo, mas vários. Com profundas repercussões políticas.

Todas as contribuições inovadoras devem ser incorporadas no marxismo (pense-se em Lenine, Gramsci, Lukács, entre muitos outros) salvo se negarem ou evacuarem teses indiscutivelmente marxianas, as que se encontram nos textos e são congruentes com a sua vida e obra. Nestes casos, que exigem critérios consensuais, não há que recear ser-se alcunhado de “dogmático”, “marxista tradicional”, etecetera. Sejamos claros: que têm a ver com o pensamento de Marx teses que retiram à classe operária o seu lugar de classe potencialmente revolucionária, e até, segundo alguns, obsoletas as lutas de classes? Ou que as lutas contra o chamado “neoliberalismo” dispensam atualmente partidos políticos comunistas? Outros temas são muito mais complexos e têm dividido marxistas, isto é, aqueles muitos que não subscrevem de modo algum as teses revisionistas anteriores. Refiro-me a temas como: há uma dialética da natureza? A dialética é apenas método gnosiológico ou reflete a realidade social externa à mente? Há uma única causa nas crises económicas do capitalismo? Como organizar uma classe operária em franca diminuição numérica na Europa desenvolvida? E outros mais que não cabem aqui. Onde os escritos de Marx não são suficientemente explícitos, as controvérsias abundam.

Repare-se: o que torna mais rigorosa uma versão não é somente a leitura documental e a interpretação linguística, mas também a coerência e a congruência com que se deve avaliar determinadas teses do autor na unidade da sua obra (incluindo toda a correspondência trocada) e até da sua vida (no caso de Marx e de Engels, a prática das suas ideias- o intercâmbio entre a prática e as ideias- é de fundamental importância). E é também o caráter de verdade na relação dos escritos com os acontecimentos comprovados pelos métodos competentes. É aqui que costumam emergir versões completamente diferentes do pensamento de Marx. O outro caso tem sido a publicação de textos de Marx até então desconhecidos, o que nos permitiria até marcar “épocas” na interpretação das ideias marxianas. Portanto, uma coisa é tentar repetir textualmente as proposições de Marx (e mesmo aqui uma tradução para outra língua pode revelar-se errónea ou equívoca, como sucedeu com traduções pioneiras para o francês), outra é abrir caminhos novos. Aplicar a Teoria a épocas diferentes. Aqui reside o grau científico dos conceitos marxianos de Marx explicativos dos movimentos do capital, a potencialidade do seu método dialético, a justeza das categorias filosóficas materialistas. Não é a uniformidade que carateriza o mundo social sempre movediço. Uniformizar lembra fardas militares e clericais que se regulam pelas mais rígidas e conservadoras hierarquias de obediência. O que é universal é sempre a abstração maior, ainda que não seja, por isso, sinónimo de vacuidade. O concreto está empiricamente presente, porém não se dá unicamente pelos sentidos; temos de ser capazes de discernir qualidades num objeto que os olhos não vêm. Releia-se a Ideologia Alemã e surpreendamos-nos ainda com insuspeitados modos de ver. O que lá se escreve parecem agora proposições banais, pressupostos das ciências, e assim fossem para mais mundo; no seu tempo, foram descobertas ou formulações absolutamente revolucionárias. O facto de hoje deverem constituir verdades básicas, não significa que não se encontrem distorcidas em alguns cientistas sociais mui estudados nas academias.

Marx não era dogmático, nem Engels o foi, embora o primeiro tivesse sido muito mais teimoso que o afável amigo de sempre. Evoluiu, corrigiu-se e, quanto mais velho, mais exigente consigo próprio nos métodos e critérios. É preciso possuir muita capacidade de diálogo para quem, como Marx e Engels, tinham de, a partir do zero, conquistar a adesão de operários, muitos deles pouco instruídos, de intelectuais, de agitadores revolucionários anarquistas, para as suas ideias…Uma permanente lição que não devemos esquecer em tempos complicados. Sermos capazes de unir; no caso presente, convencer. E jamais desistir.

  No movimento comunista internacional cometeram-se graves erros: uniformizar, sufocar a diferença, a autonomia e a criatividade, dogmatizar, proibir, censurar, impor cultos e obediências. Refiro-me aos dirigentes dos estados e partidos comunistas, não aos revisionistas encartados ou dissimulados. Nem àqueles intelectuais, ditos “socialistas democráticos”, a piscar o olho à social-democracia ou, em casos verdadeiramente obscenos, financiados pela CIA. Unir, dialogar e tentar pacientemente convencer é necessário, contudo há limites na “abertura” das posições, isto é, nas cedências e nesse consenso suspeita. Não podemos acomodar posições que deixariam Marx indignado. Marx, por exemplo, pugnou por revoluções nacionais que se estendessem ao mundo todo, através de todas as vias que se considerassem ajustadas à adesão das massas sociais e ao sucesso do socialismo. Um movimento comunista internacionalista, e nada que se parecesse com cedências às utopias reformistas. Quanto ao resto, Marx não quis ser “marxista”, pois só os irremediavelmente sectários não mudam de culto, recitam e não se emendam. Marx exemplifica o criador que não parou de evoluir, corrigir e estudar. O conceito científico de Valor não se encontra nos Manuscritos de 1844 e na Ideologia Alemã. Muitas das páginas dos Manuscritos de 1844, embora muito belas e comoventes, estão imbuídas de um quase idealismo contemplativo que já não encontraremos nas obras posteriores. E porque isso tem de surpreender num jovem atento e ativo que iniciava o projeto de um mundo novo?

O Manifesto do Partido comunista foi redigido para os seus autores intervirem nas revoluções de 1845. Derrotadas, acaso perdera vigor e atualidade o mais poderoso texto do século XIX? Contudo, deve-se tomar como receituário religioso de verdades imutáveis fora da história? É claro que não.

De pesquisa em pesquisa, de acontecimento em acontecimento, Marx viu a solução de problemas onde os outros nem sequer viam problemas nenhuns. E ainda não vêm…

Fazer ciência e Filosofia é isso, exatamente isso. Que problema provocou a necessidade do conceito de praxis nas Teses sobre Feuerbach, ou de alienação política do cidadão, na Introdução da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel? Que essencialidade viu, sob as aparências da Mercadoria, que lhe permitiu forjar um conceito científico de Valor sobre a noção de mais-valia que outros já haviam detetado?

As derrotas de um determinado modelo de socialismo não refutaram a Teoria de Marx. Apesar das enormes transformações benéficas com repercussão mundial para as massas trabalhadoras, a economia da URSS nos seus últimos decénios, a partir de 1965, estagnou, por constrangimentos do modelo perseguido e por estrangulamentos por via externa, ao ponto de não se reconhecer quais as vantagens superiores do socialismo sobre o capitalismo. Esse legado negativo, sobretudo na esfera das liberdades políticas, tem prejudicado a adesão ao marxismo. Em um balanço crítico das vicissitudes que vem sofrendo o marxismo, depois de um prolongado sucesso, quem saiu mais prejudicado não foi Marx, mas Lenine. Na verdade o ataque principal, em que é difícil distinguir o adversário do inimigo pela argumentação utilizada, assenta nos fatos imputados ao dirigente da Revolução. À Revolução soviética no seu percurso conflituoso que teria gerado necessariamente a autocracia de Estaline. Direta ou indiretamente vem à baila o seu pensamento político e filosófico. Independentemente do fato de ninguém ser obrigado a simpatizar com a contribuição filosófica de Lenine, o que aproxima críticos por vezes muito diferenciados é a rejeição de partidos comunistas, porque são estes que podem ameaçar os patrões. Lenine, cabe dizê-lo neste artigo sobre Marx, não reviu a Teoria marxiana nos seus fundamentos, princípios e finalidades. Para sermos sucintos, o que ele fez foi defender a possibilidade de uma revolução proletária anticapitalista num vasto país atrasado, hegemonicamente camponês, que se assemelhava nesses aspetos ao próprio Terceiro Mundo. Contra Marx? Não. Marx admitiu claramente essa possibilidade. O problema é que nessas condições é muitíssimo mais difícil desenvolver um país (de modo independente e não capitalista, é claro). Era precisamente o que Marx pensava. Seria mais fácil numa economia industrial desenvolvida. Determinadas controvérsias parecem realmente inúteis e gratuitas. A menos que hajam outros determinantes…

A “nova” atualidade de Marx acontece devido à falência do chamado neoliberalismo porque não conseguiu impedir as crises conjunturais e, o que é mais preocupante, a persistente crise sistémica. Outros fatores se somam neste século cheio de perigos mortais. As lutas de classes estão acesas, tanto das classes trabalhadoras contra as políticas neoliberais na Europa e na América Latina, como, reactivamente, a contestação maciça das burguesias nacionais contra governos progressistas.

A atualidade de Marx nas academias burguesas, nos centros imperialistas, não nos deve enganar: é um Marx assético que sirva apenas para ajudar a compreender as contradições do sistema e, assim, a resolvê-las, como nos lembra o exemplo clássico de Joseph Schumpeter, senão mesmo de Keynes.

Há no entanto elementos de outro tipo, mais interessantes: sondagens e outros estudos evidenciam uma maioria de nostálgicos dos antigos regimes socialistas no Leste…

O século passado foi o tempo das revoluções comunistas e anticolonialistas; quando falharam, assistiu-se a um profundo refluxo. No início do novo século ainda parecia a muitos marxistas desiludidos que Marx necessitava de uma revisão de alto abaixo, atitude que costuma fazer resvalar para a social-democracia, que foi o que sucedeu. Ora, a social-democracia se deve alguma coisa a Marx é tê-lo abandonado.

A ofensiva contra o comunismo e o marxismo (de Marx e de Lenine) mantém-se desde a “Guerra Fria” através de cada vez mais sofisticados e monopolizados meios de propaganda (os que se disfarçam de “noticiários” e de “séries dramáticas” são os mais eficazes). Ora, nunca nos cansemos de esclarecer os trabalhadores: Marx não foi responsável por modelo algum de socialismo “real” e não vale a pena procurar nele soluções “prontas a vestir” para épocas posteriores que ele não podia obviamente profetizar. Este é o lado argumentativo fundamental do contra ataque; o outro, é desmentir o que há de falso na narrativa sobre as revoluções e sobre, particularmente, todo o horrendo cortejo de crimes que dizem ter sido cometidos. Importa continuar a defender os imensos benefícios e progresso para as classes trabalhadoras desses países e do mundo capitalista trazidos pela Grande Revolução de Outubro. E devemos dizê-lo agora: introduzidos igualmente pelo Partido comunista chinês.

O começo de uma exposição do marxismo pode começar pelo mais universal (embora não necessariamente como o mostrou Marx com a exposição de O Capital iniciada pela mercadoria), pelas categorias mais gerais que constituem o fundamento, a essência das essências, a totalidade das totalidades, ou seja, fundam. Refiro-me à ontologia materialista e à gnosiologia dialética correspondente. Portanto, à Filosofia. É por esta ordem que interpreto a Teoria de Marx. E interpreto-a em consonância com as posições de Engels, as quais, ao contrário de outros marxistas, não repudio. O marxismo fundacional é obra de ambos. Também para Engels o materialismo filosófico expõe o fundamento material universal da história natural e social, e Marx não o censurou.

 Desprezar, remeter pejorativamente para “narrativas” metafísicas a ontologia, a corrente do materialismo dialético, são interpretações que corrompem absolutamente a Teoria marxiana. Pode-se não aprovar uma dialética da natureza porque não é isso que abala as bases, o que não se pode é excluir a ontologia, o materialismo, sem consequências. Nessas interpretações que em próximo artigo poderemos elencar, aquela que se apresentou com mais força influência é a que afirma que as posições filosóficas de Marx foram por ele abandonadas na época em que se dedicou à investigação económica e, daí o passo seguinte da argumentação, Marx fez a ciência que nos legou e que é o único legado que importaria preservar. Em primeiro lugar a ciência que Marx nunca abandonou desde a juventude das Teses sobre Feuerbach e a Ideologia Alemã, é a ciência da História, mas entendendo ciência não a disciplina particular da historiografia, sim a conceção de que tudo que é social está sujeito à historicidade onde a ideia de totalidade assume particular importância; em segundo lugar, Marx não era ubíquo e, portanto, dedicando-se à pesquisa na Biblioteca Britânica, não conseguia realizar duas tarefas ao mesmo tempo (Marx era prodigioso nas intuições, mas insaciável na leitura de documentação); essa tarefa, e podemos falar em uma divisão do trabalho, coube a Engels que, qual gigante, conseguiu dominar toda a ciência do seu tempo, dando conta quase diariamente por cartas desse trabalho a Marx na dezena de anos que este entregou à Biblioteca de Londres. Tais factos e documentos poder-se-ão apresentar e analisar nas comemorações do nascimento de Engels no próximo ano. A Filosofia, portanto, foi desenvolvida por Engels. A Teoria marxiana é eminentemente filosófica ou, se preferirmos, nela a filosofia –o materialismo dialético e o materialismo histórico- não está de costas voltadas para a ciência. Por isso é impossível arrumar Marx numa única categoria: sociólogo, historiador, filósofo, economista, político…É certo que John Stuart Mill, o mais famoso pensador liberal do século, também não é facilmente classificável. Mas é precisamente essa a característica forte das mundividências filosóficas. Nesse aspeto o liberalismo não se distingue do marxismo. O que os separa é que o primeiro, na sua veemente crença na bondade do capitalismo procura creditá-lo como o modo mais natural de se viver (trabalhar, produzir, distribuir), mais feliz disse-o Mill, enquanto o marxismo acha que o que é natural é o fim inescapável do capitalismo.

  A filosofia marxista é composta por uma ontologia que afirma a dependência do ser social em relação ao ser físico e biológico, do qual emergiu o primeiro. Esta é tese básica dos materialismos. Não é apenas do materialismo de Marx. Há que acrescentar algo mais que distinga este do materialismo evolucionista ou darwinista contemporâneo.

  É uma conceção global, no sentido ontológico, gnosiológico e epistemológico, a qual afirma a existência independente de determinados objetos investigados pelo pensamento, exercendo algum tipo de ação externa sobre o sujeito cognoscente.  

   Ela é um materialismo prático (ou da práxis), que afirma e investiga o papel constitutivo da ação transformadora do homem na produção/reprodução dos modos de vida coletivos e individuais, sendo por isso a mudança consciente e voluntária uma caraterística forte das sociedades humanas.

  Ela é um materialismo histórico, que afirma o primado causal do modo de produção e de reprodução da vida natural humana, ou, de um modo mais geral, do processo de trabalho no desenvolvimento da história humana, inserido num determinado regime de propriedade privada dos meios de produção.

  E é um Materialismo dialético, que reconhece a existência de contradições antagónicas e não antagónicas no ser social e o seu papel motriz nas lutas de classes.

 As distinções não são divisões separadas e estanques, mas interdependentes. Ser, conhecer, agir. Contudo, sem estabelecer hierarquias de tipo moral ou dedutivo, Todas as áreas dos saberes, no marxismo, apoiam-se numa base fundacional, em termos universais e originais, numa ontologia materialista.

Pois é: logo alguns se apressarão a classificar esta interpretação das ideias de Marx como “ortodoxa”. Ou mais maliciosamente, “engelsiana”. Não há, a meu ver, possibilidade alguma de negar a concordância de Marx, nos últimos dez de vida, com o chamado “ontologismo” de Engels, através de documentos escritos. O marxismo é irrefutavelmente o conjunto do materialismo histórico e do materialismo filosófico. Lenine, entre outros, compreendeu isso muito bem e corroborou com o seu amplo contributo. Aqueles que recusam a base ontológica materialista, como Gramsci por um lado, e Lukács e Mészáros por outro, ou, personalizando a coisa, rejeitam (os dois últimos) a contribuição singular de Engels, não deixam de ser marxistas por isso. Avançam com bons argumentos teóricos e não se impediram de uma vida militante insuspeita. O que eu julgo, e é apenas o que julgo pela minha cabeça, é que uma “ontologia social” à maneira de Lukács e Mészáros, ou uma “filosofia da práxis” à maneira de Gramsci, afiguram-se-me milagres inexplicáveis da espécie humana se não tiverem uma sustentação ontológica. Por palavras mais rudes: é uma acrobacia aérea a modos do idealismo.

Na filosofia de Marx ocupa papel central a negação da autonomia absoluta das ideias, ou seja: do pensamento, do espírito, o que se queira. Isto é materialismo filosófico e também científico. Não significa que Marx (e Engels) tivesse negado alguma vez o poder do pensamento, a realidade das ideias e o papel influente delas (doutrinas religiosas, filosofias, ciências, artes, o Direito, etc.) no processo histórico, o que seria quase um disparate inconcebível, ou que a práxis (a atividade social) fosse desprovida de cultura (outro disparate), ou que das ideias não nasçam ideias, umas boas, outras más. Age-se com a cabeça, mesmo quando nos falta a solução mais racional. Não há mecanicismo algum ( NOTA: aliás, quem o diz acerta mal, porque, em boa verdade, os materialistas do século dezoito não eram atomistas à maneira primitiva e ingénua de Demócrito, para o qual as ideias eram partículas materiais que vinham de fora para dentro) e Marx desprezava a tese de que o cérebro segrega o pensamento como o fígado segrega a bílis. A tese materialista básica tem sido alvo de intermináveis e, por vezes, perfeitamente escusadas, senão mesmo maldosas, controvérsias. Na realidade, não se trata apenas de questões que envolvem postulados científicos controversos, mas também de filosofia política. Este é para os anti marxistas o alvo. Marx não veio para contemplar o real, veio para demonstrar que uma outra realidade é possível porque é necessária, dar uma teoria ao mal-estar, dotar os trabalhadores de um projeto, fornecer à luta dos trabalhadores de todo o mundo um destino racional: a completa erradicação de qualquer forma de dominação económico-social de seres humanos por outros seres humanos. É assim que entendo o comunismo de Marx e Engels: a máxima autonomia individual que permitirá o desenvolvimento integral das capacidades de cada um.

 

 Escreveu Marx no Prefacio a O Capital: «o fim último desta obra é desvendar a lei económica do movimento da sociedade moderna» 

Num artigo que tem de ser breve, não podemos listar com clareza suficiente para cada conceito o respetivo problema e contexto. Sim, Marx discutiu ideias contra ideias, leu teorias de outros que aproveitou (o socialismo, as classes e a luta de classes, a mais-valia e o valor-trabalho, o papel do proletariado) ou refutou; contudo, foi também o encontro com fatos observados (o célebre roubo da lenha que ele denunciou, a brutal exploração de crianças e mulheres em fábricas e minas dantescas tão bem descrita no livro juvenil e genial de Engels, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra ) que o iluminou, terreno empírico onde ele viu problemas e descobriu causas, ou pressentiu-as muito cedo. As categorias que vamos expor não brotaram simplesmente da coxa de Zeus como Atena. Assim costumam pensar os filósofos do idealismo. Marx foi influenciado e nem tudo que escreveu era da sua exclusiva invenção. E isto até é bom: mostra que os profetas não são inspirados por deuses, mas frutos de contextos e de influências.

 Categorias e conceitos

 

As categorias são conceitos universais que pretendem exprimir as nossas relações cognitivas e práticas com o mundo e connosco mesmos; possuem uma dimensão e um alcance ontológico, nomeando aspetos do Ser, através de uma tomada de consciência gnosiológica, isto é, dizendo o seu sentido do ponto de vista do conhecer. Para Marx são formas do Ser, determinações da existência, não são puras “essências lógicas”, nem “determinações do intelecto”, como quer o idealismo. Temos de distinguir uma categoria geral, universal, como a de Matéria, que se refere à natureza objetiva que não se rege por intenções, interesses materiais, conflitos entre quem trabalha e quem se se apropria dos excedentes, por finalidades e finalismos, de modalidades de expressão de realidades que têm a ver com a sociabilidades entre os seres humanos, por exemplo “todo o trabalho produtivo tem uma finalidade consciente e voluntária: produzir excedentes”. A categoria de “os fins” (teleologia) indica a transformação da natureza com o fim de produzir bens e que, ao mesmo tempo, modela o comportamento. Os fins postos pelo entendimento não são meros epifenómenos da nossa condição biológica; não é só o Objeto (a natureza) que transforma o homem (originou o homem, e este é em primeiro lugar e em último lugar, um ser natural), o Sujeito também transformou profundamente a natureza ambiente (ao ponto de a destruir, de colocar em perigo a sua própria existência). Estes fatos evidentes confirmam, na minha opinião, o conteúdo dialético do materialismo marxiano-engelsiano. Para que serve aqui uma lógica unilinear?

 É nas Teses sobre Feuerbach que devemos começar a procura das categorias (filosóficas) fundamentais. O novo materialismo fundado na categoria da prática ou da atividade. O subjetivo como construção do mundo objetivo histórico-social. A sociabilidade, a ação social no grupo, nas classes, sem a qual não haveria subjetividade e personalidade. E o objeto-objetividade (externalidade) interpretado gnosiologicamente como mundo humanizado.

Algumas categorias não parece distinguirem-se dos conceitos científicos (ou usados nas ciências experimentais particulares), por exemplo a categoria modal de causalidade, mas possuem um alcance mais abstrato, geral. No marxismo constituem a lógica dialética. Por exemplo, responder à pergunta: o que é, refere apenas o objeto atual, ou também é real a sua possibilidade imanente de vir a ser algo mais, algo diferente? A mesma interrogação de outra forma: o que é encontra-se em devir?

As categorias filosóficas referem-se à relação cognitiva com o objeto. O que é que é? O que é a Matéria em geral, criadora de tudo que existe? Qual é a relação social básica do homem enquanto ser natural: o trabalho? A sexualidade- estrutura familiar? As categorias filosóficas conseguem expressar, ou refletir, características gerais, propriedades ou qualidades, do próprio objeto (o que é externo ao sujeito e que este observa, manipula e trabalha, usa e transforma), e os produtos da mente (artísticos, práticas festivas e religiosas) não são exceção. Portanto, não se opõem sempre ao pensamento realista científico e aos métodos empíricos, tendo sido o berço destes métodos; o pensar filosoficamente não é incompatível nem muito diferente do pensamento científico. Olhamos para o céu estrelado hoje com o olhar que a ciência nos deu e pensamos filosoficamente na sua origem, no seu porquê, na sua pura materialidade, na nossa existência singular e coletiva. Para quê desvincular o que esteve historicamente muitas vezes, o melhor das vezes, vinculado?

   As categorias filosóficas marxianas possuem objetividade, não são meras especulações ou “infalsificáveis” como defendeu Popper e o cortejo de repetidores liberais e agora pós-modernos. Tanto a mais geral de todas, a Matéria, a qual exprime a realidade independente e anterior à existência do ser humano, como as categorias transhistóricas de Trabalho, de Ideologia…A filosofia marxista possui um grau de objetividade que o idealismo filosófico não consegue alcançar, porque ela se casa bem com a prática (as atividades e as relações sociais concomitantes), essa categoria filosófica fundamental tão menosprezada pelo idealismo clássico. E, por isso, uma fonte dos seus enunciados falsos. Porque tem de ser “infalsificável” o grande enunciado marxiano de que os modos de produção (segundo a definição de Marx evidentemente) compõem em boa parte uma lógica do processo histórico por todo o percurso das sociedades humanas?

As categorias são posições, noções, juízos, diferentes expressões do ser, por meio de que podemos investigar e explicar o que observamos, e intervir. A mundividência materialista-histórico-dialética distribui o ser em duas camadas: O Ser geral- a Matéria- e o ser social, sendo que o Ser geral (universal) – a Matéria- possui o primado ontológico e cronológico. As categorias são formulações próprias da atividade filosófica, de âmbito geral, portanto, distintas dos conceitos que são noções próprias das ciências particulares que estudam objetos particulares, determinado campo de fenómenos.

Quais são esses conceitos gerais que estão no núcleo científico da historiografia, ou que não estando só diminuem o alcance científico desta?

O conceito de Modo de produção (combinação mais ou menos contraditória de forças de produção e relações de produção) dos bens consumidos por uma sociedade. Suporta a exigência de estudar-se uma determinada realidade, genética e ontologicamente, para que se fique a conhecer qual o modo de produção determinado e determinante de uma dada formação económico-social (outro conceito! Fundamental neste a divisão do trabalho), qual a profundidade da dinâmica das contradições que o percorre. Com base nesse conhecimento torna-se mais compreensiva a estrutura de classes dessa sociedade.

Modo de produção, formação económico-social, estrutura de classes.

 Metodologicamente pouca diferença faz começar-se pela base para explicar a divisão conflitual de classes ou começar por esta e chegar-se às bases. Por conseguinte, as categorias filosóficas e os conceitos científicos exprimem realidades mutáveis precisamente porque são históricos. Conceitos científicos tais como os da mercadoria força de trabalho, valor e mais-valia, taxa de exploração, feitiço da Mercadoria e alienação do trabalhador, aplicam-se exclusivamente à formação económico-social capitalista, exprimem realidades, fenómenos, que não existiam em anteriores sociedades. Tal significa que outros conceitos não se podem aplicar a essas sociedades? Não. O conceito de modo de produção, por exemplo, aplica-se a essas sociedades.

Determinados conceitos só conservam validade enquanto subsistir esta sociedade capitalista porque surgiram com ela e servem como explicação. Outros conceitos subsistem para além do momento e da época, porque se fixam numa esfera de grande abstração. Contudo, é necessário distinguir conceitos abstratos marxianos de outros conceitos abstratos: por exemplo, a definição que Aristóteles nos legou de Justiça – definição muito correta- pode aplicar-se a todas as sociedades, porém não pode explicar obviamente as caraterísticas concretas da justiça/injustiça da sociedade capitalista.

Defendo aqui, estribado nos textos de Marx e nas sínteses rigorosas apresentadas por Engels para explica-los, uma Teoria científica e filosófica que compreende uma ontologia geral (materialismo dialético) e uma ontologia social (o materialismo histórico), que explica a cientificamente a essência o movimento do capital e que justifica a necessidade de revoluções socialistas rumo ao comunismo. É esta totalidade que defendo. Totalidade dialética com a qual se articulam dados científicos atuais e enunciados filosóficos numa mundividência.

  O marxismo, na medida em que respeite o corpo científico das categorias e conceitos cuja aplicação se encontra sobretudo em O Capital, não foi “falsificado” por teorias, métodos ou práticas. A sua atualidade é demonstrável sem dificuldades intransponíveis, porque acolhe as transformações que as sociedades têm sofrido. É uma doutrina aberta que não teme ajustar-se. Portanto, as categorias e conceitos que vamos aqui apresentar, nomeadamente económicos, não se aplicam somente ao século XIX, como querem fazer-nos crer os intelectuais da antiga e da nova “Guerra Fria”. As coisas não mudaram assim tanto.

Na medida em que considerarmos que a vertente filosófica da Teoria marxiana – onto-gnosiológica – se articula logicamente com o nível científico da crítica social, então o materialismo histórico e dialético é atual e não dispensável. Afirmo mais: o chamado “neoliberalismo” veio atualizar O Capital e as ciências particulares (da natureza e sociais) vieram confirmar o materialismo. Para alguns marxistas faz sentido que a parte filosófica, ontológica, particularmente a categoria de matéria, seja separável do resto da Teoria marxista e até excluída. É um erro. A Teoria fica decapitada. A ontologia materialista sustenta a Teoria social. E o materialismo histórico, a ontologia do ser social (o trabalho produtivo e outras categorias), confirma a materialidade do mundo e da vida.

Não se tenha receio de defender, demonstradamente, que Marx forjou conceitos científicos; que, por conseguinte, o marxismo contem uma teoria científica sobre o capitalismo exposta em O Capital. Neste sentido, e apenas neste sentido, Althusser estava certo e podemos compreender a justeza do livro de Engels, Do socialismo utópico ao socialismo científico. Contudo, em O Capital há também uma filosofia. Manifesta e latente à maneira dos sonhos. É uma crítica da Economia Política burguesa, que é, ela própria, uma obra política. O materialismo histórico e dialético está lá bem, e recomenda-se.

Os adversários costumam recorrer um argumento para tentar refutar a teoria de Marx: a crença deste na inevitabilidade do socialismo; alguns leram nos seus textos uma suposta teoria do colapso iminente. Quem quer ver o que procura, sempre encontra. Quanto ao primeiro argumento diga-se que Marx demonstrou que o capitalismo conduzia à ruína do pequeno empresário, à exploração dos assalariados, à concorrência feroz, ao agravamento de contradições internas nacionais e internacionais; portanto, eram inevitáveis crises, revoltas e revoluções, porque nada é eterno. Quanto a segundo, uma coisa é o desejo de Marx, aquilo porque lutou na prática para precipitar (como fazemos todos nós, comunistas), e que admitiu perfeitamente que uma profunda crise do capitalismo (não previu a data e o local) podia, e devia, ser aproveitada pelo proletariado para derrubar o capital. Sem dúvida. A derrota de 1845, o triunfo de Luís Bonaparte em 1851, a repressão sangrenta sobre a Comuna em 1871, não vieram refutar coisa alguma, por maior que tivesse sido a surpresa de Marx. Vieram confirmar a importância decisiva da política, das lutas de classes. A categoria marxista de Revolução, exposta pela primeira vez em O Manifesto do Partido Comunista, (que, mais tarde, Engels desenvolveu no Anti-Dühring) o que diz, e aqui não se nega, é que só uma revolução derrubará o capitalismo, e essa revolução ou é socialismo ou não é. 

  Os conceitos científicos económicos marxianos são, na sua força objetiva irrefutável, observações  de relações sociais transpostas pelos sentidos para a mente de cada indivíduo, traduzidas e elaboradas pela memória, imaginação, linguagem conceptual, símbolos e outros recursos lógicos. A mais-valia enquanto termo linguístico é produto da consciência, contudo exprime um fenómeno real. Os capitalistas sabem isso perfeitamente e não precisou de nenhum curso superior e denuncia-o com se queixa de que não pode pagar salários mais altos sob pena da empresa ir à falência. Pois. Correm pelos palcos académicos burgueses conceções que garantem que tudo que se diz é tão “cultural”, subjetivo e relativo, que não admiraria que dissessem que o dinheiro, sendo coisa abstrata, é apenas uma realidade atmosférica na cabeça do rico. Sim, é delírio, mas na cabeça do pobre.

  Isto nada, mas mesmo nada, tem que ver com o fato de que conceitos económicos forjados e empregues por Marx somente são verdades na medida em que subsistam as relações económicas capitalistas. Algumas leis históricas só são leis para um determinado desenvolvimento das forças de produção. Melhor dito: leis tendenciais.

Categorias do ser social- trabalho, base, infra e supraestruturas, finalidade (teleologia), classe, ideologia, consciência, alienação, possibilidade, atividade-práxis, liberdade.

Categorias gnosiológicas- abstrato/concreto, universal/particular/singular, reflexo-tradução/reprodução/representação, contradições antagónicas e secundárias, contrários-oposição, reciprocidade, unidade de contrários, negação da negação, superação; substância/forma

 

Devemos seriar níveis no Ser, entendida esta categoria (a Matéria do mundo) na sua máxima generalidade – distribuir o ser- as categorias que exprimem o conteúdo e as formas. A Matéria, no sentido filosófico primeiro ou ontológico, é a composição do universo (Natureza) inseparável das formas como se manifesta e se auto cria e se destrói; composição a que nada se acrescenta que não seja material; é nesse sentido que dizemos que é o Todo ou Totalidade máxima, admitindo que este universo é finito. Dizemos por isso que há dialeticidade da forma e do conteúdo; que há no universo possibilidades reais (um fim inexorável, emergência de outras vidas inteligentes) e possibilidades formais (podemos falar de potencialidade atualizada ou apenas virtual, sendo que o virtual pode possuir uma dimensão real); os saltos qualitativos e as emergências (uma qualidade nova ou uma forma diferente que emerge da complexidade dinâmica dos fenómenos naturais). Categorias com as quais o método dialético trabalha e que expressam fenómenos objetivos.

 Não existe um só materialismo, mas vários. O materialismo evolucionista é agora absolutamente dominante após o refluxo do marxismo na segunda metade do século passado. Ele próprio não é homogéneo, ainda que o neodarwinismo seja o denominador comum. Convinha de todo que se aprofundasse o diálogo entre evolucionistas e dialéticos, até porque entre os primeiros há cientistas a quem não repugna designar como dialéticos determinados fenómenos da química e da biologia. De resto, os marxistas, sendo materialistas, também eles se dividem em adeptos de uma dialética da natureza e os que o não são de todo. Há aspetos fundamentais que no materialismo separam marxistas dos evolucionistas: era absolutamente claro para Marx que a cultura, a proeza humana de produzir os meios do seu sustento e os meios dos meios, é uma rutura com a biogénese, ou melhor: é uma sociogénese. É com este significado que usamos a expressão ontologia do ser social, que devemos a Lukács, e apenas com este significado; não com o significado, que é seguramente de Lukács, de desconsideração pelo materialismo dialético, aquela ontologia que ele censurou em Engels.

Entre a natureza não humana e a espécie animal humana introduziu-se uma descontinuidade. Esta asserção é tipificadamente dialética (no caso, materialista dialética) e dá substância às categorias fundamentais de Marx e Engels. Pela pena de Marx podemos conhecê-las nas Teses sobre Feuerbach. Não há continuidade linear, erro em que incorrem evolucionistas, por culpa do seu reducionismo. Se formos pesquisar as suas posições políticas descobrimos sem surpresa que são em grossa maioria politicamente conservadores. Uma coisa não leva à outra automaticamente, contudo é de assinalar. Outra diferença com os evolucionistas nossos contemporâneos passa precisamente pela noção que fazem de uma evolução lenta e gradual (nos darwinistas mais ortodoxos). Ora, a conceção de Engels, a qual Marx não corrigiu, é a de na natureza também se verificar mudanças bruscas, os famosos saltos qualitativos. Exemplos extraídos da Química ilustram perfeitamente estes fenómenos naturais: aumento na quantidade produzem mudanças qualitativas (surgem, por exemplo, novos minerais, metais, ou outras substâncias). Esta categoria tornou-se central numa conceção dialética da natureza; não a de mudança ou até de desenvolvimento, porque estas também são defendidas pelos evolucionistas. Importa insistir: para o marxismo as leis da matéria ou natureza não podem ser todas elas transpostas para as sociedades humanas. Em primeiro lugar, porque aqui funciona também a práxis (o trabalho produtivo e inventivo), a subjetividade (razão, vontade, intenção, ação; a planificação e a prevenção), as relações sociais. Em segundo lugar, porque as leis da matéria não se aplicam a todas as suas formas, embora existam aquelas que são mais gerais do que outras; as leis naturais não são absolutas, mas relativas (conforme os princípios da Relatividade de Einstein). Em terceiro lugar, não afirmamos de modo nenhum que as categorias da dialética são as únicas que explicam os movimentos da matéria ou natureza; afirmamos que existem fenómenos para cuja explicação as categorias da dialética são auxiliares indispensáveis. Na medida em que a espécie humana é, literalmente, uma espécie viva substancialmente idêntica a qualquer outra (diferenciando-se pelos graus de complexidade e autonomia), não deve surpreender que categorias dialéticas que se constatam nas sociedades humanas (as quais, não deixam, por isso, de ser sociedades de animais), se encontrem também noutros fenómenos da matéria. A questão torna-se controversa neste ponto: na matéria ou natureza os acontecimentos ou movimentos são automáticos (não vale dizer “mecânicos”, como alguns críticos escrevem, porque podem ser químicos e biológicos), não conscientes, conduzidos por um certo “fatalismo”, enquanto nas sociedades humanas intervém a consciência e a vontade, isto é, a autotransformação e a cooperação consciente. É um forte argumento a que os marxistas têm respondido de modos contrários entre si. As prioridades deste artigo e a sua extensão não me permitem desenvolver mais o tema.

Deixemos como apontamento a sinalização das seguintes categorias dialéticas, devidas a Engels, que nos ajudam a compreender a natureza: conexão e as relações de ação recíproca entre os fenómenos (a quântica mostra a conexão entre partículas separadas por distâncias astronómicas), desenvolvimentos descontínuos de complexidade crescente através de mudanças qualitativas bruscas, movimentos opostos que podem traduzir-se por equilíbrios, pela eliminação de um dos polos ou corpos ou pela destruição de ambos, emergências da matéria que se movem na direção da flecha do tempo por força da entropia e que, portanto, possuem uma história, história dentro de uma história maior (a história da Vida na Terra e a história descontínua dos primatas bípedes; a história do nossos universo, com uma origem e um fim).

 

  Retomemos Engels: foi ele nas suas obras Origem da Família, da Propriedade privada e do Estado e Dialética da Natureza (textos inacabados estes, apontamentos que deixou na gaveta para se dedicar inteiramente à edição dos Livros de O Capital que a morte inesperada de Marx interrompera), que esclareceu e firmou essa tese importante da Teoria de Marx e dele. Hoje sabemos que a espécie humana em certa medida dominou a seleção natural (protegeu os mais débeis por exemplo) contrariamente a todos os restantes seres vivos. Sabemos hoje muito mais do que soube o espírito enciclopédico que foi Engels para o seu tempo. Talvez saibamos o bastante para ligarmos o homem à sua natureza, a matéria de que é feito todo, a matéria de que ele é a expressão pensante, libertando-nos de reducionismos que não vêm que o homem construiu uma “segunda natureza”, as relações sociais, que o tornaram distinto no planeta. Dominando com a técnica aqui e acolá a natureza hostil para sobreviver e, agora, ponde em perigo a sobrevivência de ambas as coisas. Nos meados do século XIX Marx e Engels já defendiam o que atualmente é verdade corriqueira: a espécie homo sapiens sapiens (senão mesmo as que se distinguiram) rompeu de certo modo com a prisão ao meio ambiente, num processo que ainda não terminou. No entanto, convém que não exagerarmos na fundura desse corte: não se encontrou em parte nenhuma uma entidade que não fosse composta de ingredientes naturais ou materiais. O “Espírito”? Uma coisa é dizer-se que possuímos, como humanos sociais, uma vida interior e capacidades neurais para imaginarmos o que não existe, outra coisa é separar-se Ser, isto é, Matéria, de uma “coisa” chamada Pensamento. Na verdade, ou se é materialista ou não se é. O agnóstico discípulo de Kant não é materialista mesmo que o afirme. Nada existe para além das infinitas formas que a matéria assume. E isto não é reducionismo. Sê-lo-ia se não compreendêssemos que sem sociabilidade ou relações sociais não formaríamos pensamentos, pois até as sinapses neurais disso necessitam…Somos seres agentes acima de tudo, esta uma afirmação vincadamente marxiana. Somos e temos sido capazes do melhor e do pior, gozando portanto de autonomia face ás forças naturais cegas e automáticas, capazes de fazer a nossa própria história ao contrário dos símios. Como coletividades, independentemente de certa maneira das leis da seleção natural, e até contra, na medida em que criámos modos de protecção dos mais débeis ao longo de progressos lentos mas desigualitários mas ainda assim profundos na protecção das famílias e das crianças, nos casamentos e regras de parentesco, etc., na medicina, no Estado Social. Somos seres autodeterminados. E esta é uma afirmação coerente em quem trouxe a categoria da atividade social ou práxis para a cena da filosofia e das ciências sociais. Antes de tudo somos corpos, necessitamos de outras matérias para nos conservarmos vivos, que fomos capazes de produzir. A consciência é corpórea, isto é, uma função do corpo e neste da sua parte cerebral, a precondição de toda teoria da subjetividade é aceitarmos e partirmos nas nossas elucubrações da existência destes seres necessitados no mis banal sentido do sensual e do fisiológico e do emocional. Tal como todos os seres vivos extraímos do meio ambiente natural o que podemos através de um metabolismo que deixou de ser puramente natural e cego, para se converter em mediação social coletiva, o trabalho e, num processo dialético, corelações que foram estruturando as comunidades aldeãs e, depois, citadinas. Fomos capazes de reunir e armazenar e transmitir informações cada vez mais complexas em função dos modos de produzir e distribuir. A codificação sonora e escrita, a linguagem condição decisiva da nossa evolução autónoma, e que, na teoria marxiana e engelsiana, mostra bem como se adiantaram às ciências da primeira metade do século. Como seres vivos, unidades complexas combinadas de células e, cromossomas, etc., usamos energia, consumimos energia das estrelas, produzimos energia para outros vivos, benéfica e maléfica…Pensar é uma necessidade material. A subjetividade, a pessoa ou a personalidade, é uma construção social. Até os sentidos! Eis aqui postulados inseridos na totalidade coerente de uma conceção geral do mundo e da vida afirmada já nos anos quarenta do século XIX (estão na Ideologia Alemã e nas Teses sobre Feuerbach, no essencial). Corpo e espírito não são entes ou entidades diferentes, nem sequer o espírito é ente nenhum. É uma criação dos idealistas da Grécia e dos padres que se lhes seguiram. Só existe o corpo. Dotado na nossa espécie de um complexo sistema nervoso que nos faz sentir a dor e chorar sobre o passado. Os golfinhos são tão dotados como nós e se não constroem cidades e se fuzilam una aos outros é porque não encontraram vantagem alguma para além dos paraísos em que viviam até há pouco…A nossa biologia foi e é ainda o cimento da nossa excecional sociabilidade. E estas pré-condições constituem a ontologia materialista. Perceberam-no e escreveram-no fora de qualquer posição positivista comteana Que não é, aliás, materialista mas agnóstica) e muito antes de A Origem das espécies, de Charles Darwin. O que nos diferencia dos evolucionistas contemporâneos não é somente a anterioridade, mas aquilo em que eles teimam em errar: na deficiente ou mesmo incapacidade, mercê do seu naturalismo unilateral, de valorizar e até entender nalguma casos (na Psicologia por exemplo) que a fonte das ideias e das relações está na externalidade, ou seja, na formação económico-social em que vivemos.

Categorias do ser social- Podemos emparelhá-las porque é assim que aparecem: propriedade comunal/propriedade privada; formação económico-social/divisão do trabalho; divisão do trabalho/ estamentos e classes sociais; modo de produção /forças e relações de produção; trabalho/ força de trabalho; valor de uso/valor de troca; Mercadoria-Valor; trabalho concreto/trabalho abstrato; exploração- taxa de mais-valia/capital, acumulação/concorrência; composição orgânica do capital /lei tendencial da queda da taxa de lucro; concentração/centralização; infra/supraestruturas; contradições/oposições; finalidade/meios-mediações; ideologia/filosofia e ciência; consciência/alienação; liberdade/dominação-Estado. Categorias transhistóricas: formações económico-sociais, Trabalho, divisão social do trabalho, modo de produção, Trabalho, Estados, Ideologias, formas de dominação, grupos sociais; cooperação; família e/ou parentesco; linguagem; consciência social (ênfase nos conteúdos sociais da atividade mental).

Categorias gnosiológicas- abstrato/concreto, universal/particular/singular, reflexo /tradução/reprodução.

Não vou expor evidentemente todas estas categorias (de resto, não as listei todas). Escolhi algumas noções sem critérios de maior ou menor importância, porque todas elas se revestem da mesma importância (as causas não são mais importantes que os efeitos, porque estes são amiúde importantes causas de acontecimentos históricos). Algumas são gerais e, por isso, contêm outras.

 O que é o materialismo?

No seu significado ontológico (o Ser enquanto Ser) é uma conceção filosófica que afirma a dependência unilateral do ser social em relação ao ser biológico (e, mais geralmente, ao ser físico) e a emergência do primeiro em relação ao segundo. Esta é a explicitação do materialismo no seu significado geral e ontológico. Dado que esta definição aplica-se a todas as conceções materialistas contemporâneas, o materialismo construído por Marx e Engels vai mais longe: utiliza o método dialético porque considera a existência real de relações tipificadamente dialéticas em determinados fenómenos naturais e, particularmente, nas relações sociais. Daí a designação de materialismo dialético, o que o distingue do materialismo naturalista ou darwinista. De seguida podemos distinguir:

Um materialismo epistemológico (gnosiologia), que afirma a existência independente e a atuação transfactual de pelo menos alguns dos objetos do pensamento científico; a possibilidade de conhecimentos verdadeiros é-nos garantida, juntamente com outros critérios metodológicos, por um materialismo prático (práxico), que afirma o papel constitutivo da ação transformadora do homem sobre o meio-ambiente produzindo/reproduzindo as formas sociais que constituíram e vão constituindo as sociedades, transformando-se ao mesmo tempo os indivíduos. Neste âmbito conserva-se o modo dialético de explicar as coisas na medida em que a dialética pensada corresponde ou traduz a dialeticidade do real social.

Por fim, o materialismo histórico afirma o primado causal do modo de produção dos homens (e das mulheres) e de reprodução de seu ser natural (físico), ou, de um modo mais geral, do processo de trabalho no desenvolvimento da história humana. Contrariamente a teses de marxistas da atualidade defendemos o carácter transhistórico do Trabalho, muito embora seja certo e importante dizê-lo que o trabalho abstrato é próprio do modo de produção capitalista logo que entrou na sua fase mercantil industrial. O materialismo histórico fundado por Marx (com Engels já em A Ideologia Alemã) releva a base económica das sociedades, tal como era e é notório no capitalismo, contudo não lhe destina sempre um papel determinante nos acontecimentos sob qualquer circunstância; não há determinismo económico ou economicismo no materialismo histórico; a confusão deve-se à ênfase que Marx e Engels atribuíram, e bem, às condições de vida dos seres humanos pelo trabalho, pela exploração do trabalho, etc. Controverter estas teses bem explícitas nos textos de Marx desde a sua juventude e maduramente esclarecidas em O Capital, como têm feito alguns simpatizantes do marxismo, deve-se a um certo apego estreito de vista ao Prefácio de Para a Crítica da Economia Política, sem ter em conta obras anteriores e posteriores, esclarecimentos de Marx e Engels em prefácios e correspondência, e a uma certa incapacidade para compreender a obra e o homem na sua totalidade e congruência. Aqueles que atacam o marxismo e censuram o pretenso determinismo, o que querem é atacá-lo seja desta maneira ou doutra.

 As distinções não são divisões separadas com absoluta autonomia, mas interdependentes, digo mais: todas as áreas dos saberes dependem da ontologia materialista (a que chamei ontologia primeira ou geral), contra a opinião de muitos marxistas. Tenho como certo que renunciar a uma ontologia materialista- o materialismo dialético - é rever e contrariar o pensamento de Marx e que Engels desenvolveu. Sobre isso não se chegará jamais a um consenso entre as posições opostas que separam os marxistas. Contudo, devemos conhecer os argumentos de todas as partes, conhecer os manuscritos de Marx e Engels conforme vão sendo editados, estudar sempre as ciências e conhecer claramente as consequências políticas das nossas opiniões sobre o tema em discussão. E isto também é marxismo. Marx hesitou, reviu, evoluiu? Certamente. Importa saber em quê, porquê e quando. Idêntico raciocínio aplica-se a Engels: hesitações, contradições lógicas, ambiguidades, nos temas fraturantes da filosofia, ciência, dialética. Passou o tempo em que se lia, amiúde, a seguinte conclusão perentória: Lenine fez a síntese, disse o que era marxismo e o que era revisionismo, e está dito. Lenine foi um intérprete lúcido e rigoroso, certamente; porém, não conheceu obras de Marx e Engels só publicadas posteriormente; além disso, quando escrevia e publicava estava movido por imperativos de urgência política bem direcionados e quase que podíamos distinguir os temas e as escolhas conforme os períodos marcantes do percurso do partido até à revolução e à construção do Estado socialista (o exemplo bem ilustrativo é o livro O Estado e a Revolução, disparando as armas da crítica para várias direções). Os problemas que hoje enfrentamos não são todos eles iguais, de modo algum, aos que Lenine conheceu. O que nos cabe fazer é saber aplicar os instrumentos que Marx, Engels e Lenine, nos transmitiram, às novas e muito complexas situações que atravessamos, criar novas categorias e desenvolver as que se encontravam apenas num estado latente. Para tanto não basta lermos o Manifesto para ficarmos a conhecer o que temos agora pela frente…

   

Modo de produção

Qual é o conceito científico transhistórico de Marx pelo qual finalmente compreendemos que a história possui uma lógica interna que não é divina nem puramente especulativa, nem um confuso emaranhado de chefes, guerras e impérios que se sucedem?

É o conceito científico de modo de produção. Este conceito axial que traçou os rumos da moderna historiografia esta exposto em Para a Crítica da Economia Política, Prefácio, 1859. 

Todo o modo de produção é uma combinação de forças de produção e relações de produção. As forças de produção (força de trabalho, técnica, matérias-primas, etc.) não causam mecanicamente relações sociais, determinam-nas, isto é, conferem caraterísticas específicas e influenciam a sua criação (na Baixa Idade Média, após a Peste Negra, ao aumento da oferta de “jornaleiros” em troca de um salário, marcam o advento do capitalismo). A evolução das forças e das relações está na sua interdependência e influência recíproca; assim brotarão inevitavelmente contradições entre ambas; as relações acabarão por entravar o desenvolvimento das forças produtivas, seja pelo nível dos salários e pela exploração, seja pela orientação dos investimentos que depende do lucro, das políticas económicas do Estado burguês, etc. O fraco desenvolvimento económico sob a ditadura fascista de Salazar, colhido por profundas contradições entre as forças e as relações de produção, em que os latifúndios e o caráter terrorista do regime exerciam a sua profunda influência, ilustram este tema.  A evolução de cada modo de produção, o amadurecimento das suas contradições antagónicas, determinam o rumo próprio dos acontecimentos. O processo histórico é, fundamental e genericamente, a mudança de modos de produção.

 

RELAÇÕES DE PRODUÇÃO

O ser humano ao trabalhar produtivamente criou nessa atividade determinadas relações. As possibilidades tecno-materiais de produzir e acumular excedentes desempenharam o papel decisivo na formação de sempre novas sociedades. Todos os indivíduos que ocupam um determinado lugar e desempenham um determinado papel no processo de produção estabelecem entre si, quer queiram ou não, relações. Relações não só estritamente económicas (pagamento de um salário em troca de um determinado tempo de trabalho) mas inclusivamente jurídicas (legislação do trabalho, direitos e deveres recíprocos) e políticas (o Estado intervirá com a força de que tem o monopólio e a legalidade, contra os trabalhadores) e ideológicas (todo o sistema de ideias que as escolas e os meios de propaganda “noticiosa” difundem permanentemente, justificando como “naturais” as relações de exploração e desigualdade). Compõem com a divisão social do trabalho as diferentes classes sociais do sistema, as suas diferenças antagónicas (as relações entre aqueles que se sentem explorados e os que são percecionados como exploradores geram revoltas sociais que conduzem, mais tarde ou mais cedo, ao desabamento da antiga ordem económico-política) e não antagónicas. As relações sociais capitalistas expandem-se dentro da nação e para além desta, acabam por dominar outros modos de produção, forças de produção atrasadas e regimes de propriedade e troca não capitalistas. A compra compulsiva é atualmente um meio de expropriação de propriedades dos povos e dos camponeses pobres; formas de neocolonialismo vieram substituir com vantagens financeiras e políticas o colonialismo clássico.

As relações sociais de produção capitalistas impuseram-se e impõem-se pelo poder, pela capacidade de um grupo de indivíduos se apropriar pelo roubo ou pela troca em dinheiro das terras e de outros meios de produção e necessitarem de comprar uma mercadoria especial: a força de trabalho dos pobres. As relações sociais capitalistas de produção permitem e exigem a reprodução ampliada, isto é, a acumulação de capital e, mais depressa ou mais devagar, o desenvolvimento das forças materiais de produção. Forças de produção atrasadas e relações sociais de produção avançadas podem provocar alterações de regime político com vista à expansão das primeiras.

Forças de produção

 Os utensílios, as máquinas ou o progresso tecnológico, constituem elementos característicos da produção capitalista. Os avanços técnicos estão sujeitos a ritmos desiguais entre os países. Este exemplo, assim como as patentes, os entraves sempre colocados pela concorrência, a submissão da tecno-ciência, técnicos e cientistas às ordens do capital, criam obstáculos sérios a um progresso que não é contínuo ao contrário do que parece aos marxistas que empolam demasiado as tecnologias da produção capitalista.

Posto isto também vale acrescentar que não é a máquina, a tecnociência abstrata sem capitalistas que é responsável pela degradação do meio ambiente e dos seus equilíbrios; como é de todo evidente não são as máquinas que conspiram. É o modo de produção de mercadorias, de acumulação de capital, da concorrência feroz; nem sequer esse “Capital automático” sem mãos humanas e responsabilidade criminal de que agora falam alguns marxistas místicos. É sobretudo o capital monopolista. Portanto, determinadas forças de produção estão sempre ligadas a determinadas relações sociais que as entravam ou, pelo contrário, as impelem. Esta é a chave-mestra para abrir os três Livros de O Capital.

A principal força produtiva é e sempre foi no passado mais remoto a força de quem trabalha com os meios de produção então disponíveis, fosse o arado de madeira, seja a robótica. A divisão do trabalho, a organização do processo produtivo em suma, não nos dá automaticamente a totalidade da formação económico-social em concreto. As técnicas revolucionadas pelo capital são evidentemente necessárias no presente, sem escamotear os graves prejuízos, e sê-lo-ão para o socialismo. Dependem do conhecimento, da habilidade, etc., mas não saberíamos a partir da simples vestígios arqueológicos entender qual o tipo de sociedade no seu todo. Para isso é preciso algo mais. O simples moinho de vento não nos diz de imediato o que era a corveia ou o dízimo e as complexas vassalagens. Esse algo são as relações sociais sob as quais se processa a atividade produtiva. O que importa é a ideia de que o desenvolvimento das forças produtivas não basta para compreender o quadro geral de uma formação económico-social. Na realidade, nem sequer em parte alguma existiu uma sociedade, por mais atrasada, onde existissem meios de produzir e trabalho para as utilizar e nada mais que isso. O trabalho, a necessidade de produzir, tem existido sempre e continuará a existir em qualquer sociedade futura. Mas os meios de produção (os utensílios, as invenções, as matérias-primas, a forma de processar a energia), o próprio trabalho, nunca existiram, não existem e não existirão nunca independentemente de determinadas relações que se estabelecem entre os indivíduos na divisão do trabalho e do regime da propriedade, no processo orgânico da produção e da distribuição. Esta é porventura a primeira ideia evidente que nos toma se refletirmos nestas questões quando observamos o Trabalho em todas as civilizações. Poderá ter sido a primeira ideia evidente que tomou a mente de Marx também, porque é a partir dela que tudo o mais vem em seguida. Relações sociais, a sua grande categoria filosófica e, especificamente, as determinantes relações de produção.

Os utilizadores dos meios de produção podem operar em equipas, cooperativamente, é o que tem sucedido desde os primórdios. Mas a interrogação que devemos fazer é «quem controla o quê?». Há alguém que é o proprietário dos meios de produção? E esse mesmo é quem fica com os resultados? ? E de que regime de propriedade (comunal, cooperativa, privada, estatal), que tipo de proprietário (individual, acionistas, administração de capitalistas)? Portanto, qual a relação deste(s) indivíduos(s) com os trabalhadores e os meios de produção? É por aqui que tudo começa. Quem inventa e fabrica os meios técnicos ou quem deles se apropria pela força ou pela troca, é quem os utiliza? As tecnologias nas sociedades capitalistas são mercadorias e os bens que elas podem auxiliar a produzir são mercadorias, a força de trabalho é uma mercadoria, a propriedade é mercadoria, as relações entre quem trabalha e quem manda representam objetivamente relações sociais de dominação pela força bruta ou pela coerção ideológica. Não é verdade que Marx explicasse o processo histórico através exclusivamente das forças de produção, das técnicas em particular. A categoria de modo de produção não sobrevaloriza um dos elementos do par dialético, ainda que Marx aqui e ali enfatize a importância do desenvolvimento das forças de produção e o revolucionamento das técnicas. Nos países socialistas logo a seguir à tomada do poder, muito atrasados e necessitados de bens com urgência, é natural que se tenha enfatizado o desenvolvimento das técnicas e de todos os meios de produção. Mas basta referir a imperativa planificação central da economia para estarmos logo a falar de relações sociais. Trabalho, Técnica, tudo isto tem que ver com essas práticas sociais tão diversas, com as quais se foi dominando o meio ambiente, dividindo as funções e os poderes, produzindo/reproduzindo as leis.  

Na ontologia do ser social falemos, pois, do Trabalho.

O TRABALHO

Sob o capitalismo os produtos do trabalho regra geral não são fabricados para uso imediato, são fabricados para serem mercadorias sim; então, adquirem uma propriedade particular. Esta propriedade não resulta da utilidade específica dessa mercadoria, nem da qualidade particular do trabalho utilizado na sua produção (ainda que a “marca” e a publicidade influenciem fortemente o consumidor). Esta propriedade depende da quantidade de trabalho utilizado na produção de cada mercadoria, desde que o trabalho utilizado na sua produção tenha sido efetivamente um trabalho de utilidade social. Assim, diferentes trabalhos assemelham-se uns com os outros, o que significa que existe um algo neles que os assemelha. E esse algo pode ser medido: a qualidade pela quantidade. O dinheiro. O dinheiro, esse equivalente universal, vem ocultar o carácter social do trabalho. Um dos enigmas do capital. Marx decifrou-o. Aparentemente (que é o que costuma contar) tudo se deve aos empresários, ao seu trabalho e amor pelo risco e à capacidade virtuosa do capitalismo. Nada mais falso.

O capitalismo explica-se fundamentalmente pelo modo como produz e troca mercadorias. Ou seja: é na exploração económica dos trabalhadores que vendem a força de trabalho que reside a base historicamente original e sempre principal da acumulação do capital. O capitalismo é um processo específico de acumulação de capital que toma a forma de dinheiro. Não se produz para trocar valores de uso por outros valores de uso concretos, mas para fazer dinheiro e mais dinheiro que é, de certa maneira, uma coisa completamente abstrata. Acumulação de dinheiro. Essa “coleção imensa de mercadorias” (Marx) só visa uma finalidade: obter dinheiro num movimento irracional, devorador de seres humanos e de matérias-primas. Temos aqui a explicação primeira do conceito de infraestrutura económica e material, quando queremos entender o sistema capitalista. E começamos a entender que muitas coisas decorrem daqui como se este fosse o solo envenenado que faz brotar plantas carnívoras.

EXPLORAÇÃO

Ocupa o alfa e o ómega da Teoria de Marx a exploração de uma classe social por outra. A extração do trabalho excedente. A propriedade privada dos meios de produção. A desigualdade do lucro e do salário. O lucro, no fundamental, na origem, que deriva da extração da mais-valia, que se torna propriedade do capitalista. Esta apropriação é sempre coerciva, podendo não ser mais violenta desde que o trabalhador não proteste. Na sua expressão jurídica, o grau e o modo da exploração não são imutáveis, tanto podem aumentar como diminuir, tudo dependendo das lutas de classes e do interesse dos capitalistas (das crises e da concorrência); além disso, a coerção começa no facto do trabalhador não ter outra remédio para sobreviver, mais a sua família, senão vender a sua força de trabalho a um indivíduo estranho; coerção para que o trabalhador trabalhe mais do que o tempo necessário à produção de mercadorias imprescindíveis à reprodução da sua força de trabalho. Num sentido abstrato a categoria de exploração é transhistórica, existe há muito tempo, mas a exploração económica de uns indivíduos por outros não é imanente à espécie: nas tribos de caçadores-coletores não havia, no socialismo não há se realmente for socialismo. A forma de exploração estrutura basicamente as sociedades de classes. No esclavagismo não há qualquer velamento, no capitalismo há. A guerra da secessão nos Estados Unidos ilustra claramente essa distinção no que respeita à escravatura e à vitoriosa “libertação” dos negros. Tem sentido falar-se de Progresso quando nos damos conta que a exploração do homem pelo homem sempre existiu, e existe, com diferentes formas? Saque dos excedentes, das riquezas produzidas por outros, opressão dos vencidos.

Da exploração resultam as lutas de classes, dos explorados contra os exploradores. Não resultam, porém, de modo automático, fatal; regimes de exploração e dominação duraram milénios, nalguns casos soçobraram guerras de rivais ou cataclismos; e as lutas de classes não se circunscrevem a grandes confrontos explosivos; os acontecimentos – os movimentos da história- não resultam apenas de confrontos entre duas classes vincadamente opostas: a dos explorados contra os seus exploradores, e as grandes mudanças, mais lentas, não se devem apenas a essas lutas de classes antagónicas na história do mundo. Aliás, não houve em boa verdade uma história universal (conceção eurocêntrica hegeliana).

Uma grave mutilação do marxismo é evacuar, com argumentos falaciosos, o conceito de exploração; o que fica, não é Marx. O que fica não é a luta das classes e grupos sociais que se sentem explorados por patrões, tratados desigualmente pelo Estado amigo dos patrões, e se revoltam. Os ideólogos “liberais sempre se esforçaram por velar a exploração, por recusar a lógica matemática da taxa de mais-valia, servindo-se da retórica de que o trabalhador só trabalha se quiser, que é livre de vender o seu trabalho, que escolheu ser operário e não capitalista, que não é tão inteligente como o seu patrão, que é feliz porque faz o que gosta de fazer, que pode sempre negociar o salário através de sindicatos livres na “Concertação social”, etc. O salário mínimo em Portugal é dos mais baixos e indignos da UE, tal como o salário médio.

A análise e exposição da realidade factual da exploração no modo de produção capitalista, ontem e hoje, da brutal desigualdade, está vertida nos três Livros de O Capital. Economistas burgueses, muito poucos, como Ricardo, haviam chegado às margens do enigma, só aí. Marx decifrou. Porque não se trata apenas de descobrir a verdade. Trata-se de ter a coragem de extrair dela as consequências.

 

Exploração e mais-valor

A exploração é a taxa de mais-valia que os capitalistas conseguem extorquir. A organização económico-política capitalista dedica-se à produção de valor. A sua finalidade é extorquir mais-valia (mais-valor) aos seres humanos que produzem essas mercadorias que, assim, transportam valor. Mais-valor é o que o trabalhador não recebe no seu salário e o capitalista abocanha. Portanto, trata-se de pura exploração do homem pelo homem e não de uma lei da espécie humana em que os mais “empreendedores” governam os menos inteligentes ou menos instruídos (o patronato português é muito menos instruído que a massa de trabalhadores e dos menos instruídos da UE)…São estruturas de dominação autoproduzidas pelo sistema e que se reproduzem continuamente, sob formas menos violentas nuns casos, ou por regimes de terror como a ditadura fascista de Salazar.

A exploração assenta numa série encadeada de categorias num quadro lógico em que uma causa gera um efeito e este gera uma causa do efeito seguinte: força de trabalho convertida em mercadoria, dinheiro na posse de um indivíduo interessado em fazer dinheiro com um negócio, compra de uma mercadoria especial, salário como valor de troca, mais-valia que corresponde ao tempo de trabalho não pago (que é quase todo), trabalho concreto/trabalho abstrato, divisão do trabalho, classes e subclasses, concorrência, expansão mundial do capitalismo, crises e guerras, colonialismo, imperialismo, etc.

VEJAMOS DE SEGUIDA UMA CATEGORIA IMPORTANTE DO MARXISMO: a Práxis.

É a atividade produtiva e reprodutiva que carateriza a espécie humana e a diferenciaram há centenas de milhar de anos das outras espécies vivas. Pela prática a nossa espécie (outras desapareceram) transformou os lugares, adaptou-se fisicamente e criou relações sociais aptas, fez-se a si própria. E isto é pura dialética! Marx utilizou a expressão atividade, raramente a expressão práxis. São várias e diferentes as práticas ou atividades que englobam as culturas humanas (práticas de formação e preservação dos grupos, a divisão do trabalho, as práticas agrícolas, as práticas festivas e religiosas, a prática da guerra). A ciência possui igualmente uma dimensão prática, que é a experimentação e a técnica. A própria filosofia somente se aproxima da verdade relativa quando não descola das práticas sociais. Os marxistas não costumam descurar a investigação das práticas que distinguem e preservam as tradições, as comunidades, os pequenos grupos, as identidades adquiridas ou atribuídas, os intercâmbios, os locais de residência, a geografia, etc. Tendo sido Marx a relevar o papel da prática, da atividade produtiva, não excluía obviamente as práticas que decorriam direta ou indiretamente das primeiras, sem utilizar causalidades mecânicas: a atividade política e as suas instituições, as instituições culturais e os cultos religiosos, as festas, os espetáculos…  

 

Apesar da sua relevância, como no-la mostram as Teses sobre Feuerbach e a Ideologia Alemã, e do papel que sempre esta categoria (a atividade) desempenhou na constituição, no significado objetivo e verdadeiro das categorias e conceitos marxianos (observe-se a prática da produção para se elaborar teorias mais ajustadas das transformações da vida), o critério da verdade por meio da práxis social não pode por si só provar ou refutar determinadas conceções teóricas complexas. Em certos casos é a matemática que prova, ou uma elaboração dedutiva sofisticada. Quando se diz: a prova do pudim é comê-lo! É uma afirmação que se aplica e bem a certos casos, não a outros. A Ideia comunista, chamemos-lhe assim a um projeto singular, não foi refutada por determinadas experiências práticas derrotadas. Talvez essas experiências não fossem aplicações corretas da teoria…As grandes teorias filosóficas e científicas, como precisamente a Teoria de Marx e de Engels nem são “segregações biliares” da prática, em esta dissolve em ácido as grandes construções intelectuais. A atividade humana é pensada, mais ou menos consciente, e os pensamentos, quando expressam verdades, necessitam de nascer de fora, pela atividade da observação, da manipulação e do fabrico.

Pouco depois da redação das Teses, o termo práxis foi abandonado por Marx. O que passa a marcar a investigação é o termo atividade social produtiva essa ação que produz toda a história humana. Assim, o marxismo é uma filosofia da atividade humana; abrange em primeiro lugar o trabalho, em seguida tudo que está compreendido pelo conceito de modo de produção e que já referimos. O termo práxis vem do grego e em Aristóteles significa atividade humana nobre, para a atividade produtiva reserva o termo poiésis (subalterna, como era de esperar). Portanto, Marx passa a preferir o termo alemão Tätigkeit- atividade que produz alguma coisa no mundo real. Na versão materialista de Marx, a atividade produz ao mesmo tempo, na história humana de cada sociedade diferente,  o seu produtor mesmo.

 Em Marx de A Ideologia Alemã e das Teses o termo praxis é completamente positivo, benéfico para o homem. É este sentido que o marxismo herda do seu fundador. Porém, não é praxis ou práticas sociais do homem a exploração do homem pelo homem, as guerras, os genocídios, as lutas sociais e os colapsos de civilizações inteiras causadas pelo homem? Certamente que sim. O trabalho que produz bens para consumo próprio ou para troca de outros bens tal como se executa há milénios, é uma prática social, assim como o é, no capitalismo, a exploração do trabalho vivo produtivo, a mercantilização de tudo que forneça lucro, e a colonização da vida quotidiana que os marxistas deviam estudar nas áreas académicas da sociologia e da psicologia social.

 

VALOR

 

NAS SOCIEDADES MERCANTIS, DE ONTEM OU DE HOJE, O Valor É UMA CARATERÍSTICA FUNDAMENTAL. O QUE É ENTÃO O VALOR?

É uma relação social de produção. O valor não é uma coisa, não é o próprio bem em concreto, o qual, certamente, possui um determinado valor de uso que atrairá o comprador. Tratamos aqui de mercadorias. Ora, na indústria (noção genérica) capitalista todos os bens são bens destinados ao mercado para serem trocadas por dinheiro. Qual é o seu Valor? É um valor criado no processo de produção delas, isto é, pelo trabalho humano. O valor de troca é uma relação: a quantidade que se pode trocar de valores de uso contra um certo número de valores de uso de outra espécie. Que há de comum que os torna equivalentes e passíveis de serem trocados uns pelos outros? É serem produto do trabalho humano. O trabalho concreto que produz um almoço no restaurante ou uma bicicleta? Não. O que há de comum é o trabalho abstrato, o trabalho humano em geral. A força de trabalho humano. Cada mercadoria representa uma parte do tempo de trabalho socialmente necessário. A grandeza do valor é determinado pela quantidade de trabalho socialmente necessário para a produção de determinada mercadoria. O valor é, assim, uma relação entre pessoas e não entre coisas.

Mais-valia é o valor acrescentado, é a fração do valor produzido pelos assalariados que é apropriado pelos proprietários dos meios de produção utilizados pelos trabalhadores. A mais-valia é distribuída pelos capitalistas da banca sob a forma dos juros dos empréstimos concedidos aos capitalistas industriais e é reinvestida uma outra parte contida na soma total dos lucros obtidos nas vendas (descontada a porção para consumo próprio e nos dividendos). A mais-valia não pode provir da circulação das mercadorias, porque estas só conhecem a troca de equivalentes, nem pode provir de um aumento dos preços porque as perdas e os lucros recíprocos dos compradores e vendedores equilibrar-se-iam. A mais-valia é um fenómeno social médio generalizado, universal no capitalismo, e não de um fenómeno particular isolado ou individual.

Para obter a mais-valia um burguês com dinheiro precisou de uma mercadoria à venda no mercado (outrora os mercados eram ao ar livre, como ainda se verifica em vários países do Médio Oriente e em África, e já foi em Portugal e nas colónias), dotada da propriedade de gerar valor. Ao ser consumida como valor de uso, cria valor. Qual é o valor da força de trabalho? Tal como outra qualquer mercadoria o seu valor é determinado pelo tempo de trabalho necessário para a sua produção, isto é, pelo custo de manutenção do trabalhador-produtor e da sua família. Comprada a mercadoria força-de-trabalho, o endinheirado burguês fica com o direito (podendo ser ou não formalizado por uma qualquer forma de contrato escrito) de consumi-la durante x horas.

  As diversas correntes marxistas debatem-se com um problema, a saber: o sector terciário- comércio-serviços produz mais-valor? É que ele atualmente ocupa a maior parte da economia e dos assalariados! A tendência correta é para falar dos trabalhadores no sentido amplo que a expressão abrange: todos aqueles e aquelas pessoas que a troco de um salário vendem a sua força de trabalho a detentores de capital, seja na indústria, no comércio ou nos serviços. Na verdade, devia-se falar sem distinção entre comércio e serviços, pois quando estes são escolas e hospitais privados tudo isso são negócios do comércio. São explorados esses trabalhadores por conta de outrem, que não trabalham nas fábricas, dominados e quantas vezes oprimidos, seguramente alienados, em Portugal auferindo dos salários mínimos e médios mais baixos da União Europeia, receosos do desemprego, que têm engrossado a abstenção nas eleições, contudo não produzem mais-valor nos termos da exploração fabril em boa parte dos casos. No entanto, não produzem mercadorias as empregadas dos supermercados que cozinham as refeições takeway? Muitos outros exemplos poderíamos elencar. Estas considerações parecem ultrapassar a conceção de proletariado exposta no Manifesto; contudo, julgo que podemos encontrar em O Capital uma perspetiva que dá conta na altura da sua redação das grandes transformações que estavam a sofrer as sociedades capitalistas do ocidente desenvolvido. A classe operária que a Teoria marxiana admite abrange os trabalhadores manuais e os trabalhadores intelectuais e técnicos de nível inferior (quadros administrativos e técnicos, empregados), o que deve somar uma percentagem imensa da população mundial. Tenha-se em conta as diferenças entre determinadas camadas do proletariado de países europeus e as condições miseráveis de vida na Índia, na Nigéria, na América Latina.

Assim, devemos alargar o conceito de proletariado para incluir todos aqueles e aquelas que são assalariados de nível inferior do setor privado. Uma empregada do comércio vende necessariamente mais mercadorias em dinheiro muito superior ao seu salário. Trabalha, portanto, muito mais horas do que aquelas pagas e essa diferença é embolsada pelo comerciante sob a forma de mercadorias que a empregada vendeu (registou, embalou, etc.). Deste modo utilizamos o termo trabalhadores assalariados (o que já é uma redundância) para todas as maiorias exploradas por uma minoria de capitalistas e de gestores e burocratas bem pagos que os servem. É esse povo que nestas semanas se apoderam das ruas e praças e deixam o imperialismo preocupado.Mas estaria muito mais se essas massas revoltadas no Chile, na Colômbia, na França…tivessem a conduzir as suas reivindicações objetivos socialistas revolucionários e partidos comunistas poderosos.

A que se assiste não é à morte da classe operária,mau grado a sua diminuição flagrante no capitalismo desenvolvido, antes à proletarização das camadas intermédias e da pequena burguesia tradicional. O que se assiste é ao aumento exponencial nas últimas décadas do proletariado vindo das camadas sociais camponesas espoliadas nos países emergentes da Ásia ou no aumento da classe operária na China. A tendência não é para o “aburguesamento” do proletariado e das camadas intermédias , ainda que no plano ideológico as coisas sejam bem complicadas, mas, objetivamente, isto é, no nível dos rendimentos e na relação com as despesas de consumo, no controlo dos meios de produção e de distribuição, no crédito e no endividamento, assistimos ao empobrecimento de largas camadas na Europa e por todo o planeta.  

 

         

O dinheiro é o equivalente geral. Portanto, abstrato, universal. O capitalismo generalizou esta mercadoria que veio permitir a troca generalizada de mercadorias. Trabalho abstrato, equivalente universal abstrato. E é o dinheiro que fornece o poder todo, todo o cinismo e toda a crueldade. O dinheiro, forma tipicamente capitalista mercantil, encobre e dissimula o carácter social dos trabalhos parciais. O abstrato dissimula o concreto. Os mortos dissimulam os vivos.

Tudo se passa num processo de produção submetido às regras do MERCADO, o lugar de distribuição e troca. O Mercado capitalista distingue-se de outras formas de mercado precedentes ou presentemente dominadas, pois troca-se o que foi produzido por uma força de trabalho assalariada; o trabalhador-produtor que consome os valores de uso dos meios de produção de que ele não é proprietário, nem sequer é proprietário da sua energia física e intelectual, pois que a vendeu. Desloca-se para o “seu” proprietário (no período de, no mínimo, oito horas por dia) com um transporte que ele comprou a um capitalista. Quando adoece é tratado por um SNS; se este não existir ou funcionar muito mal, vai pagar a cura nos hospitais privados através de uma companhia de seguros que lhe desconta o preço na conta de um banco privado…

Os mercados são hoje dominados pelo capital na maior parte do mundo, não em todo ele, e isto vale salientar para contrariar atitudes fatalistas O socialismo conforme vá desenvolvendo-se em todas as esferas, elimina a existência deste tipo de mercado. A formação dos preços obtém-se e obter-se-á por outras formas que não pela anarquia da produção.

Sem Trabalho não há mercado. Ele é a mediação do homem com a natureza, origem da humanidade e das civilizações, da propriedade privada e do estado, das guerras e sua ligação com a riqueza social que constituem os excedentes e os recursos para obtê-los, produção material das condições de vida, produção de meios técnicos. Uma vez mais se verifica, se quisermos ver sem óculos fumados, a articulação dialética entre vários fatores! No modo de produção característico do capitalismo, das modernas sociedades de mercado, o trabalho, sendo uma categoria transhistórica, assume um carácter particular, como mercadoria peculiar que despende força de trabalho que é o seu valor de uso. Possui uma natureza objetal material, é uma relação social.

As relações de valor constituem a forma particular assumida pelas relações sociais capitalistas. Essa forma é a mercadoria. Daí Marx começar a sua exposição por esta. É a forma que aparece

O Trabalho é, assim, o metabolismo (meta-bolis= transforma a matéria) do homem com a natureza externa (o seu meio ambiente concreto), semeia e colhe, transforma pedaços da natureza em matérias- primas para a indústria, introduz ao mesmo tempo as trocas. Só vale falar de trabalho imbuído numa determinada forma social. O capital é a forma que se apropria da substância trabalho. Fora isso não é nada, assim como trabalho assalariado e mercadoria.

Sempre que os produtos do trabalho são fabricados não para uso imediato mas, sim, para venda como mercadorias, adquirem uma propriedade particular. Esta propriedade não resulta nem do matéria--prima, nem da utilidade específica dessa mercadoria, nem tão-pouco da qualidade particular do trabalho utilizado na sua produção (ainda que a “marca” e a publicidade influenciem fortemente o consumidor). Esta propriedade depende pura e simplesmente da quantidade de trabalho utilizado na produção de cada mercadoria, desde que o trabalho utilizado na sua produção tenha sido efetivamente um trabalho de utilidade social. Assim, diferentes trabalhos assemelham-se uns com os outros, o que significa que existe um algo neles que os assemelha. E esse algo pode ser medido: a qualidade pela quantidade. O dinheiro. O dinheiro, esse equivalente universal, que vem para possibilitar as trocas, mas também para ocultar o carácter social do trabalho. E este não é o menor dos grandes enigmas do capital. Marx decifrou-o, porém cento e cinquenta anos depois ainda os burgueses preferem falar do que oculta, não do que é ocultado. Aparentemente (que é o que costuma contar) tudo se deve aos empresários, ao seu trabalho e amor pelo risco e à capacidade virtuosa do capitalismo. Nada mais falso.

O Trabalho abstrato é o Tempo de trabalho socialmente necessário para a produção das mercadorias. É ele que gera Valor e não o capital. O Valor possui uma dimensão quantitativa do Valor (que serve para a medida do tempo de trabalho socialmente necessário) e qualitativa.

Marx sempre sublinhou o caráter penoso do trabalho em todas as sociedades de exploração do trabalho do homem pelo homem.

 No capitalismo o trabalho converte-se, por causa do modo de produção, numa atividade rotineira, mecânica, estranhada, fragmentada, vigiada, sob regime de emprego precário, em que impera o receio pelo despedimento; trabalho em que o operário individual não fabrica o objeto na sua totalidade; em que os meios não lhe pertencem e se quiser adquirir o produto tem que o comprar…ou seja: continuar a submeter-se a essa atividade para que possa adquirir o que necessita para viver. O trabalho, como se costuma dizer, é uma obrigação.

O paradoxal é que esta atividade, tantas vezes penosa, quase sempre com graves prejuízos para a saúde do trabalhador (fabril ou não), converte-se no sentido da vida e na identidade do próprio: matéria das suas conversas e convívios sociais, dos seus sonhos e pesadelos, dos seus projetos de mudança, do seu status. Todavia, desde os longínquos tempos em que o assalariado surgiu, irromperam as insurgências sociais modernas e é disso que trata o Manifesto do Partido comunista. O mundo do trabalhador assalariado, portanto explorado, é o mundo do capital, onde este se reencarna e se disfarça, e onde o único crucificado é, por exemplo, a trabalhadora têxtil do Bangladesch. Encerrando-se a época da dominação do capital, desaparecerá a figura do trabalhador assalariado por conta de um proprietário privado. Terá de desaparecer o trabalho abstrato que o mercado capitalista criou.

Marx tinha, portanto, uma conceção negativa do trabalho dentro do capitalismo, onde o conceito de trabalho abstrato é fundamental para compreendermos o mal-estar. Não é somente o mal-estar que provoca o caráter penoso do trabalho, mas a perda das potencialidades que o trabalhador merecia desenvolver e não desenvolve; esta maior abrangência da categoria alienação e trabalho para a esfera psicológica, médica e antropológica tem instigado o interesse de notáveis investigadores. Os problemas são sérios e incluem o chamado síndrome de burnout, e devemos incluir não só os operários fabris, também outras camadas e profissões por conta de outrem. Desafia também os marxistas para os debates rigorosos e não utópicos sobre o que é, pode ser, o trabalho nas economias socialistas. O trabalho permanecerá nas sociedades comunistas, porém sob formas não alienadas, e esse é o traço forte dessa comunidades a construir depois do pesadelo do trabalho forçado em milhares de anos de “pré-história”.

  As diversas correntes marxistas debatem-se com um problema, a saber: o sector terciário- comércio-serviços produz mais-valor? É que ele atualmente ocupa a maior parte da economia e dos assalariados! A tendência correta é para falar dos trabalhadores no sentido amplo que a expressão abrange: todos aqueles e aquelas pessoas que a troco de um salário vendem a sua força de trabalho a detentores de capital, seja na indústria, no comércio ou nos serviços. Na verdade, devia-se falar sem distinção entre comércio e serviços, pois quando estes são escolas e hospitais privados tudo isso são negócios do comércio. São igualmente explorados esses trabalhadores por conta de outrem, dominados até se sentirem oprimidos; seguramente alienados das finalidades de atividades que acabam por odiar, auferindo dos salários mínimos e médios mais baixos da União Europeia; receosos do desemprego e que, por isso, aceitam tudo, inclusivamente o emprego precário; que têm engrossado a abstenção nas eleições… Contudo não produzem mais-valor nos termos da exploração fabril em boa parte dos casos. Interroguemos: não produzem mercadorias as empregadas dos supermercados que cozinham as refeições takeway? Os trabalhadores que das estufas de legumes e frutas? Os pescadores que recolhem o peixe no alto mar? Os trabalhadores que montam os espetáculos para milhares de expectadores nos quais tudo se traduz por mercadorias? Muitos outros exemplos poderíamos elencar. Estas considerações parecem ultrapassar a conceção de proletariado exposta no Manifesto; contudo, julgo que podemos encontrar em O Capital uma perspetiva que dá conta na altura da sua redação das grandes transformações que estavam a sofrer as sociedades capitalistas do ocidente desenvolvido. A classe operária que a Teoria marxiana define abrange os operários manuais e os operários “cerebrais” (operários qualificados ou técnicos que produzem bens transacionáveis).Tenha-se em conta as diferenças entre determinadas camadas do proletariado de países europeus e as condições miseráveis de vida na Índia, na Nigéria, na América Latina. Mais de noventa por cento da população mundial são trabalhadores, a grande maioria assalariados. Ou seja: a grande maioria da humanidade vende a sua força de trabalho para sobreviver e a maioria desta maioria é pobre ou vive no limiar da pobreza. O marxismo não é uma teoria somente para os trabalhadores europeus ou norte-americanos. Marx estudou e escreveu lúcidos textos sobre povos colonizados mostrando-nos a profunda contradição entre os progressos que os colonizadores introduziam e as destruições bárbaras que provocavam.

Assim, devemos alargar o conceito de proletariado para incluir todos aqueles e aquelas que são assalariados de nível inferior do setor privado. Uma empregada do comércio vende necessariamente mais mercadorias em dinheiro muito superior ao seu salário. Trabalha, portanto, muito mais horas do que aquelas pagas e essa diferença é embolsada pelo comerciante sob a forma de mercadorias que a empregada vendeu (registou, embalou, etc.). Deste modo utilizamos o termo trabalhadores assalariados (o que já é uma redundância) para todas as maiorias exploradas por uma minoria de capitalistas e de gestores e burocratas bem pagos que os servem. É esse povo, ao qual se juntam os filhos estudantes e os professores que os ensinam, que se apoderam das ruas e praças e fazem cair governos. E distinguimos os operários como sendo aqueles que produzem bens transacionáveis e, por isso, a quem é extraída a mais-valia com a qual se processa a acumulação de capital; mais-valia que é depois distribuída pelas diferentes esferas e setores da distribuição, das rendas e da finança. Este operariado constitui um grupo social que designamos ainda por classe, dado que desempenham o papel de produtores assalariados, idêntico, na esfera da produção das mercadorias, quer tenham ou não consciência de classe, quer divirjam ou não os seus salários e as condições de trabalho, isto é, quer sejam operários de uma multinacional alemã protegidos por um poderoso sindicato metalúrgico, quer labutem nas fabricas infectas do Paquistão. O marxismo confia na força potencial que esta classe carrega, na possibilidade real de revoltas e revoluções quando se organizam e se consciencializam dos seus direitos (neste momento em que escrevo vastas massas populares continuam a ocupar as ruas de Santiago do Chile, do Equador, da Bolívia, da Colômbia; derrotadas ou não, as lutas de classes voltaram, porque sempre cá estiveram. O marxismo não confia exclusivamente na classe operária assim definida (sector da produção), mas os operários marxistas confiam também na força potencial, na capacidade de luta e protesto, dos empregados de escritórios, do comércio, dos serviços; em suma: do novo e vasto proletariado, de todos os que vendem-a-sua-força-de-trabalho. Sem estes, sem a participação das camadas sociais intermédias (quadros técnicos médios e superiores, intelectuais que produzem os chamados “bens imateriais” – realmente materiais -, mercadorias culturais), sem determinadas frações da nova pequena-burguesia esmagada pelo grande capital, uma revolução não se faz nem vai avante. Para isso, não é com objetivos imediatos de coletivização da propriedade privada pequena e média que terá apoio para vencer e convencer.

IDEOLOGIA

O que é ideologia segundo Marx?

São os pensamentos dominantes que exprimem em preconceitos, perceções e ideias, as condições materiais sociais e históricas dominantes e que têm servido desde a sua origem para justificar, impor e mascarar as relações sociais de exploração, como sucedeu e ainda sucede com a religião, os preconceitos racistas, xenófobos, etc. a cultura operária com as suas idiossincrasias tão marcada nos bairros operários dos tempos idos, em Portugal e noutros países europeus, vai extinguindo-se com a transformação das periferias, nas quais hoje germinam outras ideologias. O que domina no mundo em geral é a ideologia burguesa, ainda que ela mesma não seja homogénea em toda a parte e as classes subordinadas conservem elementos de tradição, religiões, hábitos linguísticos e modos comuns de interpretar as relações e comportar-se.

Com as categorias marxianas, ainda que submetidas a evoluções, a História passa a ser interpretada sobre linhas racionais que podem permitir deduções científicas baseadas nos documentos escritos que necessitam de ser decifrados, porque, à semelhança da consciência, ocultam um “inconsciente social”. A historiografia, os historiadores, sociólogos, antropólogos e outros cientistas sociais, não podem desprezar estas perspetivas criadas por Marx. Estão bem visíveis nos escritos juvenis, no “ajuste de contas” que é a Sagrada Família, no trabalho a duas mãos da Ideologia Alemã, nesse admirável texto que é o Manifesto do Partido Comunista, no Prefácio famoso de Para a Crítica da Economia Política, de 1859, nos Elementos Fundamentais Para a Crítica da Economia Política, de 1858, os agora celebrado Grundrisse, e em diversas páginas redigidas para O Capital, particularmente no chamado Livro Quarto. Por estas razões, não têm sido poucos os eminentes historiadores não marxistas concordantes com a riqueza desta categoria histórica marxiana. Tema que regressa com força à literatura internacional, depois da “travessia no deserto” experienciada pelo marxismo e pelos marxistas nos finais do século passado.

Falamos de ideologia, não no sentido curto de doutrina política, sim desta espécie de “mentalidade” composta de interesses, simbologias, de idiossincrasias marcadas por interesses de classe, interesses muito mais coletivos e comuns a grandes grupos do que se apresentam à primeira vista, conscientes ou não. Poderíamos falar aqui, se espaço houvesse, da formação do indivíduo, da personalidade e, coerentemente, deveríamos desde logo ter em conta a determinação social externa (a externalidade da subjetividade, sem a qual a segunda não se formaria na criança) essa atmosfera (hábitos, perceções, inclinações, atitudes, simpatias/antipatias, preconceitos) que impregnam os nervos, o coração e a mente de cada indivíduo singular. A pessoa que deve quase tudo que sente e pensa, à sociabilidade. Ver-se-ia que ninguém hoje escapa à pregnância, por exemplo, dos poderosos e planetários meios de comunicação (escolas, opinião pública fabricada pelos media, “cultura industrial” (nomeadamente grande parte do cinema e dos conteúdos televisivos, “filosofices” menores de como ter sucesso ou de “ajuda”, etc.), que competem com o antigo poder absoluto das religiões. O marxismo não desdenha o indivíduo singular, a formação da personalidade, o meio social concreto, como poderia fazê-lo? O que separa a ética, entendida filosoficamente, de Marx e Engels, do individualismo teorizado pelo alemão Stirner, ou do liberalismo (do qual Stirner é, no fundo, um avatar) é a tese lógica e claríssima de que o indivíduo é um ser social. A vida individual e a vida genérica do homem não são diferentes; podem é mostrar-se separadas e até opostas sob a dominação da ideologia burguesa. Não é uma conceção ética individualista, egoísta, porque se baseia no facto originário da sociabilidade da espécie humana, da comunicação e da cooperação. O que nos conduz às teorias dos grupos, às complexas classes sociais modernas, aos sistemas globais, fortemente integradores e simultaneamente excludentes como se mostram as novas sociedades capitalistas, à evolução contemporânea da extremada divisão do trabalho, à valorização atribuída atualmente às minorias e às solidariedades, etc., etc.

Ideologias são, deste modo, representações mentais e culturais (signos, símbolos, imagens) constituídas por interesses que nos identificam face aos outros e pelos quais nos guiamos nesta imensa ditadura da burguesia, misturando contraditoriamente nossos interesses genuínos com interesses dos nossos exploradores. Valores (valorizações de bom ou mau, que atribuímos às coisas e às pessoas) criados pela classe que domina a economia e a cultura da sociedade e em que acreditamos ou não, que vão mudando (como dizem os versos de Luís de Camões) e com os quais nos relacionamos com a estrutura de poderes. De uma maneira geral agimos através da mediação de juízos de valor. Os teóricos burgueses da economia sabem há muito que a psicologia social atravessa o mundo complexo das mercadorias. Em O Capital, Marx subentende a noção de ideologia quando nos explica a função do dinheiro, símbolo e equivalente universal; ou quando nos explica o feiticismo da mercadoria.

Mesmo nas sociedades contemporâneas nem todo o trabalho é penoso e “estrangeiro”. Refiro, por exemplo, os tempos livres nos quais o trabalhador pode escolher uma atividade prazenteira e livre. Como marxista eu questiono: escolheu livremente? Na verdade, esse tempo livre está cada vez mais colhido pelo mercado que lhe “oferece” serviços que ele procura amiúde através de publicidade paga ou a pagar no preço final…. Quase tudo é já mercadoria nas sociedades desenvolvidas. Resta-nos reconhecer nas atividades artísticas, comunitárias e cooperativas (por exemplo em países da Ásia e da América Latina), um potencial de independência material e espiritual. Não pensamos somente aquilo que as burguesias querem que pensemos e não há hoje uma única forma de pensar alternativa. O projeto de uma sociedade comunista em Marx, desde a juventude dos Manuscritos de Paris, até às fórmulas sublimes de O Capital, não foi alheio ao conhecimento das experiências positivas da humanidade: cooperativas, velhas e novas experiências de comunas, a liberdade artística transgressora, etc. Existem atualmente formas e conteúdos diversos de crítica à ideologia burguesa. O marxismo é seguramente a crítica mais radical.

Dediquei estes largos parágrafos à questão da IDEOLOGIA porque atualmente, mais do que nunca, as representações mentais favoráveis à classe dominante difundem-se por meios nunca vistos na história do mundo e são mais pregnantes e nefastos provavelmente do que nos períodos mais recentes, na minha opinião. Poderosos catalisadores da submissão. Obstáculo da aceitação das ideias rebeldes, subversivas, marxistas sobretudo. Formas de pensar que refletem as condições materiais e que têm servido desde a sua origem para ratificar, favorecer ou mascarar as relações sociais de exploração, como sucede com o papel da religião em largas zonas do globo onde as vidas são absolutamente miseráveis. A cultura operária com as suas idiossincrasias tão marcada nos bairros dos tempos idos, já quase se extinguiu na Europa do “neoliberalismo”; desaparecidos esses bairros, foram substituídos por megacidades das periferias onde habita a solidão e a exclusão social e se inventam modos de entreajuda e sociabilidade desprezados pelas elites moralistas e pelas polícias, mas que devemos compreender.

ALIENAÇÃO

ALIENAÇÃO

Marx utilizou o termo estranhamento (estranho, entfremdung), já nos textos de juventude. Alienação (se bem julgo, tradução francesa que todos herdámos) é essa perda do sentido humano (=ser genérico), a que o influente filósofo materialista Ludwig Feuerbach não fora alheio. O produto e a atividade tornam-se estranhos para o operário na indústria capitalista. A origem dessa espécie de doença não diagnosticada como tal mas cujos efeitos são-no, está na propriedade privada capitalista e na descrição do trabalho como atividade penosa e resultava da observação que Marx e Engels faziam justamente das condições terríveis impostas ao proletariado nos países europeus onde o capitalismo industrial se implantava e se desenvolvia.

Em O Capital a alienação refere a separação absoluta dos produtores diretos e as suas condições de trabalho; o trabalhador que se aliena (isto é, perde o sentido de ser genérico como Marx escrevera na juventude) é alienado pelo tipo e condição do trabalho na empresa privada, seja qual for o trabalho e a empresa (está na moda a empresa onde se trabalha em “família”, todos “colaboradores” com interesses comuns; estratégias para aumentar a produtividade, isto é, a taxa de mais-valia, a que já chamámos exploração).

Marx tem, portanto, uma conceção negativa do trabalho, onde o conceito de trabalho abstrato é fundamental para compreender esse estranhamento ou alienação. Não é somente o mal-estar que provoca o caráter penoso do trabalho, mas a perda das potencialidades que o trabalhador merecia desenvolver e não desenvolve; esta maior abrangência da categoria alienação e trabalho para a esfera psicológica, médica e antropológica tem instigado o interesse de notáveis investigadores. Os problemas são sérios e incluem o chamado síndrome de burnout, e devemos incluir não só os operários fabris, também outras camadas e profissões por conta de outrem. Desafia também os marxistas para os debates rigorosos e não utópicos sobre o que é, pode ser, o trabalho nas economias socialistas.

Com o progresso técnico, os novos métodos de gestão e organização empresarial, a alienação tende a diminuir. Nas empresas de ponta já não tem sentido falar-se em alienação. Eis o que se ouve e lê agora.

  É mera utopia capitalista. Elucubrações de pseudo-marxistas. Há de facto mudanças importantes na organização capitalista da produção, porém não alteram as relações de produção, o fator principal que origina a alienação do trabalhador: a separação do trabalhador relativamente aos meios de produção que utiliza e ao produto do seu trabalho. O trabalho assalariado não é livre, ainda que a pílula possa ser dourada e o trabalhador mais bem pago e labore em condições mais confortáveis. Em muitos casos atualmente é precário (nos EU pode ser despedido liminarmente). Os canteiros floridos, o parque verde para acalmar do burnout, a “cenoura” dos prémios e participação nas ações foi mais “chão que deu uvas”, as crises o demonstram. A tentativa para não deixar diminuir a taxa média de lucro é que comanda todas as operações. Tal como no passado o trabalho vivo não deixou nem deixa de ser alienante mesmo que este ou aquele trabalhador festeje o natal com a “empresa-família” onde as câmaras de vigilância não são propriamente enfeites natalícios. Afirmo mais: atualmente a alienação é mais larga e profunda dada a fragmentação da classe, a complexa divisão do trabalho, a introdução das mais complexas tecnologias (a máquina que comanda o trabalhador, os seus ritmos, os seus pensamentos), a força do trabalho abstrato, o isolamento profissional e social dos assalariados. Os efeitos estão à vista na extrema debilidade da consciência de classe nos países desenvolvidos. A vaga recente de suicídios no Japão e numa determinada fase do crescimento da nova China, são indícios concludentes. Acresce paradoxalmente o medo do desemprego, que conduz à submissão necessária, exemplificada por aquele dito recente «mais vale um mau emprego do que nenhum».

Estar alienado é, literalmente, separar-se de algo. No capitalismo é ser expropriado das suas propriedades ou qualidades individuais, da sua independência e capacidade criativa (como existiu nos artesãos), da posse objetiva daquilo que produz e dos meios, é ser excluído, ou ameaçado de ser, da própria sociedade. Assim, a alienação abarca graus diversos, mas nunca é meramente sentimental e subjetiva. Tem raízes no modo de produção de mercadorias assente no trabalho assalariado.

  Discussões recentes sobre o conceito (noutras alturas fora mesmo eliminado com manifesto erro e prejuízo) conduzem alguns marxistas a fazer do feitiço (“fétiche” na tradução francesa que se impôs) da mercadoria o único termo com que se deve compreender a alienação. Marx não substituiu a teoria da exploração pela teoria da alienação- são questões complementares mas diferenciadas- nem substituiu a alienação pela feiticização da mercadoria. O conteúdo que as traduções passaram para o termo comum de alienação, esse conteúdo está presente nos três Livros do Capital, quer Marx escreva “alienação”, quer não a nomeie. São os meios de produção que estão separados=alienados do trabalhador que provocam a alienação deste, subentendidas aos outros fatores organizacionais do trabalho contemporâneo.

  O tema e o termo tem sido centro das polémicas entre marxistas, porque era e é necessário compreender porque não se revoltava e aderia ao socialismo a classe operária norteamericana ou britânica. Nos anos sessenta eram os camponeses que pegavam em armas no “Terceiro Mundo” para combaterem o imperialismo. Quem era a classe naqueles continentes, ou os grupos sociais minoritários no Ocidente desenvolvido com um proletariado relativamente bem pago e “integrado”, que vinham realizar aquilo que competia à classe operária? Foi assim, hoje de novo com novos temas-velhos temas, novas minorias-velhas minorias. Marx e Engels já observavam diferenças entre o proletariado e outras camadas sociais no juvenil Manifesto, e, seguidamente, Marx em O dezoito do Brumário de Luís Bonaparte. Neste livro Marx concluiria que os camponeses – não os jornaleiros ou o proletariado dos latifúndios do Alentejo!- não eram na França uma classe social, e não eram confiáveis. Na Europa, a ocidente, não se enganou. Na Revolução soviética não foram os camponeses que lideraram a construção do socialismo (embora a princípio apoiassem a distribuição da terra) como todos sabemos e com todas as consequências gravosas. Atualmente constituem uma minoria residual na Europa. Há que escolher qual a classe, ou classes, que são mais capazes de conduzir e realizar o socialismo. Marx e Engels escolheram. Podemos e devemos proceder a algumas adaptações e extensões, contudo mudar o essencial é deixar cair o marxismo.

  Ou toda a classe operária está alienada (=submetida) e então a tarefa de um partido operário revolucionário e até dos sindicatos é demasiado demorado ou mesmo condenado ao fracasso, ou não exageremos: a alienação não é fatalidade universal como o é o pecado original…São as relações de produção capitalistas que alienam, (mesmo os operários mais conscientes acham o seu trabalho penoso, talvez até ainda mais penoso), porém tal estranhamento converte-se dialeticamente num salto qualitativo que conduz à revolta contra o sistema. É certo que a alienação generalizou-se com os grandes meios de difusão, e manifesta-se nas “distrações” com que os trabalhadores – todos nós- nos entretemos.

As mudanças positivas das sociedades capitalistas contemporâneas como sejam na gestão dos recursos humanos ou no emprego da robotização, não vêm alterar as bases do capitalismo que determinam a exploração e, portanto, a alienação, tal como a relativa emancipação da mulher não veio libertar completamente as mulheres trabalhadoras. Por outro lado, não bastará aos países que se orientam para o socialismo, a extinção da dominação da propriedade privada capitalista, para a alienação se dissolver no ar. Uma condição objetiva fundamental há de ser a participação efetiva dos trabalhadores nos rumos do seu país, da sua democracia, das suas vidas. Participação que se exerce apenas por representantes administrativos, sobretudo se forem cargos não submetidos a sufrágio. A perda de controlo é a alienação moderna. A conquista do controlo será, presumo eu, a desalienação.

 

 

Fetichismo. Feiticismo. Feitiços

Não se trata apenas do feitiço que a mercadoria- as coisas- exercem sobre os consumidores, mas, sobretudo, do modo deformado, invertido, como os capitalistas explicam a sua sociedade e o seu modo de produção mercantil. Naturalizam as relações de produção e mistificam a sua origem. A forma mais evoluída da feitização é quando o próprio trabalhador se transforma, à sua força de trabalho, em mercadoria.

Em O Manifesto diz-se que a burguesia trouxa a exploração aberta, não disfarçada pela ilusão religiosa, cavaleiresca. Mas a burguesia substituirá essas ilusões por novas, tão ou mais eficazes. Por exemplo, a ilusão jurídica. É velada a relação de desigualdade na propriedade “legítima” dos meios de produção e é velada a exploração na compra e venda “livres” da força de trabalho. A ilusão jurídica é corroborada pela feitização da mercadoria, isto é, pela conversão de relações puramente sociais entre pessoas por relações entre coisas. O fenómeno da feitização brota no processo de produção e manifesta-se na realização da mais-valia, no mercado onde o dinheiro faz a sua entrada gloriosa. Mas eu alargaria o fenómeno, com raízes nas relações de produção, para a ação mágica exercida pelas mercadorias sobre os consumidores, desfalcando o pouco dinheiro que possuem. Há que produzir e logo vender! A concorrência é feroz, de morte. Torna-se imperativo publicitar através da palavra, de valores, de imagens, de referenciais, de autoridades.

Por estes aspetos, a feiticização não é o mesmo fenómeno da alienação. O burnout (esta “sociedade do cansaço”) não é provocado por nenhum feitiço (o que, de resto, é uma imagem alegórica religiosa a que Marx recorreu). Feitiço é literalmente um fenómeno religioso, místico, ou de magia negra. Não se reduz a uma pura ilusão visual ou ficção puramente mental, porque é auto-convicção com ação da materialidade da vida social sobre a subjetividade. É no mercado que se manifesta ou se torna real. O bruxedo existe, o que não existe são as bruxas…

Feiticismo em alguns autores marxistas contemporâneos converteu-se numa operação intelectual que inverte a ordem das coisas na explicação. A superfície, o fenómeno, é apresentado como a essência. A aparência pertence à essência, é a sua forma, a sua manifestação. Todavia, não é a essência. A feiticização-forma possui um conteúdo. Esse conteúdo é a mercantilização absoluta literalmente.

É o advento das “sociedades de consumo”. O “feitiço” provocado pelas entidades abstratas e exercido pela mercadoria relaciona-se com a ideologia enquanto consciência falsa, “invertida” e traduz-se pela reificação. De modo que estas diversas categorias se relacionam estreitamente.

«De onde brota, pois, o caráter enigmático do produto de trabalho logo que ele assume a forma-mercadoria? Manifestamente dessa própria forma. A igualdade dos trabalhos humanos adquire a forma coisal [sachliche] da igual objetividade de valor dos produtos de trabalho, a medida do dispêndio de força de trabalho humana pela sua duração temporal adquire a forma de magnitude de valor dos produtos de trabalho, e, finalmente, as relações entre os produtores, nas quais são confirmadas aquelas determinações sociais dos seus trabalhos, adquirem a forma de uma relação social entre os produtos de trabalho. É apenas a relação social determinada entre s próprios homens que toma aqui para eles a forma fantasmagórica de uma relação de coisas. Assim, para encontrarmos uma analogia temos de nos escapar para a região nevoenta do mundo religioso. Aqui, os produtos da cabeça humana parecem figuras autónomas, dotadas de vida própria e estando em relação entre si próprias e com os homens. O mesmo se passa no mundo das mercadorias com os produtos da mão humana. Chamo a isto feiticismo, que se cola aos produtos de trabalho logo que eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias. Este caráter de feitiço do mundo das mercadorias brota, como a análise precedente já mostrou, do carácter social peculiar do trabalho que produz mercadorias.» Marx, O Capital, Livro Primeiro, Tomo I, cap. 4, O caráter de feitiço da mercadoria e o seu segredo 

O que significa, julgo eu, que enquanto existir trabalho abstrato que produz mercadorias das quais o produtor está completamente separado no ato de produção e na esfera da circulação, e que comandam a vida, há feiticismo e alienação. Aí a emancipação do proletário ainda não chegou.

P.S. Num próximo artigo abordarei outras das categorias da obra teórica de Marx: essência, finalidade, liberdade, socialismo, comunismo.

J. A. Nozes Pires

Torres Vedras, escrito entre Janeiro e Outubro de 2019

 

 

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