«O Século Português", Fernando Rosas, Francisco Louçã, João Teixeira Lopes, Andrea Peniche, Luís Trindade, Miguel Cardina, Tinta da China, Lisboa, 2020.
Um conjunto de textos que pretendem analisar e expor sinteticamente aspectos fundamentais da formação-social capitalista portuguesa. Importa ler. Reflectir, admitir e criticar. É atraente porque trata da nossa história ainda contemporânea, porque é de leitura fácil, porque muito do que lá se diz é objectivo e não temos com que contrariar. Os seus autores, de resto, conquistaram indiscutível autoridade científica nas áreas em que se movem.
Pois bem.
Quanto a isso nada a contestar, bem pelo contrário.
O busílis é quando chegamos à dezena de páginas do texto do historiador F. Rosas onde opina sobre a Revolução Portuguesa de 1974/1975 e o seu termo com o chamado "golpe novembrista". Aí perde a credencial científica (embora a ciência historiográfica não seja igual à da Física...) e entra na opinião. Assim, opina sobre o papel do PCP de um modo completamente pejorativo responsabilizando-o pelos motivos que causaram a divisão do MFA e provocaram o golpe do "Grupo dos Nove"; afirma mesmo, sem provas documentais (não as assinala em rodapé), que o PCP quis travar a Revolução e somente no cume desta é que interveio. Ou seja : o historiador emérito do Estado Novo perde as estribeiras e defende o papel que ele próprio desempenhou na Revolução como um dos chefes de um partido que fez do PCP o "inimigo principal". Esse papel, sim, está amplamente e há muito tempo demonstrado. Ora, desempenhado esse papel fica-se (fico eu e outros mais estou convencido) com esta interrogação capital: quem realmente deu mais motivos ás divisões do MFA e ao seu controlo pelo "Grupo dos Nove"? Quem mais assustou as camadas sociais intermédias? Não teriam sido os "esquerdistas" maoístas? Não teria sido o MRPP, um partido provocatório objectivamente, que mais serviço prestou à contrarevolução das "camadas sociais intermédias"? Tem ele, historiador, provas de que o PCP (Álvaro Cunhal como o autor insiste em pessoalizar) pretendeu instaurar um regime "totalizante" (??) - "de cima para baixo", "à margem de qualquer verdadeiro escrutínio democrático"? Se foi "travão" dos gloriosos propósitos da espontaneidade popular (guiada, evidentemente, pelos maoístas) a qual quereria (?) um regime político "revolucionário" indeterminado (a tal "República Popular"? Até na própria China da época os maoístas ortodoxos já não sabiam como orientar-se), que "comunismo" quereria então o PCP? Provavelmente quis apoiar uma genuína Revolução Democrática e Nacional que conquistasse o máximo possível (tão irreversível quanto possível) nos caminhos rumo ao socialismo. Conquistas muitas que acabaram por ficar plasmadas na Constituição, como reconhece o historiador. Um largo sector empresarial público, em especial, contra a vontade de muitos maoístas "antiburocráticos"...Qual foi o papel histórico dos "esquerdistas"? Foi juntarem-se ao movimento de classe contra o que se dizia ser "uma nova ditadura" pretendida pelo PCP. As suas acções aventureiras (como determinadas greves extemporâneas), as suas agressões verbais, a desordem das suas divisões em múltiplos partidos e facções, os objetivos completamente utópicos de muitos dos seus incautos seguidores que sonhavam com o paraíso para um país real e profundo que não conheciam de todo, contribuíram para o 25 de Novembro. O inimigo principal (expressão usada pelo autor F.R.) -o PCP e o seu projeto de Revolução Democrática e Nacional- foi-o para os esquerdistas e para o PS de Mário Soares aliado às forças sociais e políticas mais reaccionárias do país de então. Para os esquerdistas, todos eles, o inimigo principal não foram as hostes fascistas, o terrorismo fascista, a intervenção da CIA a pedido de Soares. O resto é treta.
Em conclusão: assim muito dificilmente a historiografia suporta algum estatuto científico...
É claro que opinei tomando como objetivo aquilo que julgo ainda ser objetivo. Não sobre o carácter e a intenção de muitos dos intervenientes, tanto do lado do PS e do lado do "esquerdismo" (de resto, muito conflituoso entre si próprio), como do lado dos militantes, dirigentes e simpatizantes do PCP. Ninguém fica isento de culpas, erros, abusos e excessos. Porém, é necessário distinguir-se o essencial do acidental. E, acima de tudo, não difamar-se, como se fez e continua a fazer-se, Álvaro Cunhal acusando-o de querer instaurar uma ditadura quando, na verdade, ele foi um dirigente pragmático, leninista, que preservou o partido de aventuras suicidas. Por isso, ele foi respeitado, o PCP foi respeitado, pelos operacionais do 25 de Novembro.
Eu mesmo nos anos sessenta, anos da minha adolescência e juventude, naveguei nos céus translúcidos das utopias. O entusiasmo optimista com que se escreviam os livros que nos chegavam com mil cuidados da França e da América Latina galvanizava-me. Muito mais, mas mesmo muito mais, que o caldo requentado, cheirando a estagnação e monolitismo, que sentia na propaganda da URSS e dos regimes que ela dominava. Quando, afinal, viria a sentir muita mais tristeza e até estupefacção quando esse mundo gigantesco ruíu.
É necessário acrescentar desenvolvida e empiricamente este dado fundamental para se entender o colapso do chamado PREC e o golpe militar do 25 de Novembro: o boicote internacional económico e político ao Portugal da aliança Povo-MFA, ao Portugal do controlo operário e das vastas nacionalizações. Boicotada a economia real (o comércio, os investimentos, etc.), proibidos os empréstimos e encerrado os circuitos do capital, a Revolução, isolada e sufocada internacionalmente, estava perdida e o "Grupo dos Nove" interveio, não para a salvar obviamente, mas para a travar (para Mário Soares e a Direita, para a esmagar). Esse bloqueio teve como chefe-de-fila Mário Soares o seu grupo de fiéis e como pretexto (para a opinião publica e pequeno burguesa) a "desordem" conduzida pelos "maoístas".
Na URSS, em 1976, país onde eu realizava um mestrado, altos especialistas de política internacional avisaram: "Ireis ter a social-democracia por muitos anos! O que conquistastes, se o conseguirdes conservar boa parte, já será um grande feito para o vosso povo heróico!" (Referiam-se sobretudo à Reforma Agrária).
Não tivemos a social-democracia, mas o cavaquismo. Não tivemos a "normalização democrática", mas a contrarevolução. Sem uma ditadura fascista. Bastou uma democracia modelada pela grande burguesia.
E porque é que a maior parte dos atentados bombistas terroristas da extrema direita fascista ocorreram depois do 25 de Novembro?
E porque a grandíssima parte desses atentados (excepto contra indivíduos da própria rede fascista) foi contra as sedes do PCP e não contra os grupos ou partidos maoístas? Quem era o "inimigo principal" (para não dizer único) e o que tinha ele feito que tanto ódio assassino provocou nos fascistas (abençoados e estimulados pela Santa Igreja, como sempre na nossa História)?
Porque o PS de Mário Soares forjou um partido "esquerdista" (AOC) para provocar a confusão?
Qual era realmente o programa escrito do MRPP?
Sem comentários:
Enviar um comentário