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sexta-feira, 21 de maio de 2021

As origens do capitalismo pelos dois impérios que o construíram

 

Pete Dolack *

A violência, a força e a coerção – exemplificadas no uso generalizado de trabalho escravo, de conquistas imperialistas de povos em todo o mundo e na implacável extração de recursos naturais – impregnam toda a história do capitalismo. A ascensão do capitalismo não pode ser entendida fora da escravidão, do colonialismo e da pilhagem. 

 

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Imagem de Marcel Strauß

Não é incomum que os críticos da política externa dos Estados Unidos, quer se sintam ou não livres para usar o termo “imperialismo”, se lamentem pelo mau funcionamento de um sistema anteriormente racional. Tais sentimentos são rotineiros nos liberais e dificilmente desconhecidos entre os social-democratas.

Esses sentimentos são, para qualquer pessoa que aprofunda o estuda da história, bastante a-históricos. A violência, a força e a coerção – exemplificadas no uso generalizado de trabalho escravo, de conquistas imperialistas de povos em todo o mundo e na implacável extração de recursos naturais – impregnam toda a história do capitalismo. A ascensão do capitalismo não pode ser entendida fora da escravidão, do colonialismo e da pilhagem. Para dar continuidade ao meu artigo anterior, discutindo como o domínio do mundo pelos EUA está enraizado no estrangulamento que Washington exerce sobre as instituições financeiras mundiais e na posse da moeda dominante, vamos realizar um exame mais aprofundado da história de como o capitalismo funciona, desta vez destacando o imperialismo e a violência.

A minha inspiração para esse exame é a minha recente leitura de Confessions of an Economic Hit Man [Confissões de um assassino económico], de John Perkins . O Sr. Perkins, para os não familiarizados com o seu livro, fornece um relato em primeira mão de como o governo dos EUA emprega a dívida, os emaranhamentos financeiros, os subornos, as ameaças e, finalmente, violência e o assassínio de líderes nacionais que não colocam as suas economias e recursos sob o controle de corporações multinacionais sediadas nos Estados Unidos. Isto não é surpresa para quem preste atenção, mas o livro tornou-se um best-seller improvável, o que significa que deve ter aberto muitos olhos, o que só pode ser um desenvolvimento positivo.

Mas, mesmo Perkins, que é implacável a tirar conclusões e não tem ilusões sobre o que ele e os seus colegas “assassinos económicos” estavam a fazer e em nome de quem, mostra uma certa ingenuidade. Ele fala repetidamente dos “ideais dos pais fundadores dos EUA” e lamenta que uma república dedicada à “vida, liberdade e busca da felicidade” se tenha metamorfoseado num império global. Dado o excelente serviço que prestou ao escrever o seu livro e o perigo físico em que se colocou para o publicar (adiou a sua escrita várias vezes, temendo possíveis consequências), o que menos quero é insinuar críticas ou levantar quaisquer acusações sarcásticas contra o Sr. Perkins. Aqui, a minha questão é a de que mesmo um forte crítico do imperialismo dos EUA com os olhos abertos pode alimentar ilusões sobre a natureza do capitalismo. A universal omnipresença da propaganda capitalista e a sua disseminação implacável em todos os meios de comunicação e institucionais concebíveis ainda deixa a maioria das pessoas com uma idealização melancólica de algum capitalismo inicial inocente ainda não contaminado por comportamentos antissociais e violência, ou por ganância.

Tão inocente capitalismo nunca existiu e não podia existir.

A terrível violência liderada pelo Estado, em doses maciças,  permitiu que o capitalismo se estabelecesse lentamente e depois se expandisse metodicamente a partir do seu início no noroeste europeu. Não foi à toa que  Karl Marx escreveu a famosa frase : “Se o dinheiro ... ‘veio ao mundo com uma congénita mancha de sangue numa face’, o capital veio a gotejar sangue e sujeira da cabeça aos pés, por todos os poros”.

Mercados à frente das pessoas desde o início

Embora o peso relativo que deveria ser dado aos dois lados da equação de como o capitalismo se enraizou na Europa feudal – os senhores feudais a empurrar os seus camponeses para fora da terra para abrir espaço para produtos agrícolas, ou o capital acumulado no comércio por comerciantes a crescer o suficiente para criarem os excedentes passíveis de serem convertidos em capital necessário para iniciar a produção numa escala maior do que a produção artesanal – provavelmente nunca venha a ser  definitivamente estabelecido (e os dois fatores básicos mutuamente reforçados), a força foi uma parteira crucial. Os senhores ingleses queriam transformar terras aráveis ​​em pastagens de ovelhas para aproveitar a procura de lã e começaram a demolir cabanas de camponeses para limpar a terra. Estas ações ficaram conhecidas como o “movimento de cerco”.

Expulsos da terra que cultivavam e barrados nos “comuns” (terras limpas nas quais pastavam gado e florestas nas quais forrageavam), os camponeses podiam-se tornar mendigos, arriscando-se a uma punição draconiana por isso, ou tornarem-se trabalhadores nas novas fábricas com salários lamentavelmente baixos e duradouras condições desumanas e de horários de trabalho. A brutalidade desse processo é vislumbrada neste relato do historiador Michael Perelman, no seu livro  The Invention of Capitalism [A invenção do capitalismo]:

“A simples expropriação dos comuns era uma condição necessária, mas nem sempre suficiente, para atrelar a população rural ao mercado de trabalho. Uma cruel série de leis acompanhou a expropriação dos direitos dos camponeses, incluindo o período antes de o capitalismo se ter tornado numa significativa força económica.

Por exemplo, começando pelos Tudors, a Inglaterra criou uma série de severas medidas para evitar que os camponeses se tornassem vagabundos ou recorressem aos sistemas de previdência social. De acordo com um estatuto de 1572, os mendigos com mais de quatorze anos deviam ser severamente açoitados e marcados com um ferro em brasa na orelha esquerda, a menos que alguém estivesse disposto a colocá-los ao seu serviço por dois anos. Os infratores reincidentes com mais de dezoito anos deviam ser executados, a menos que alguém os levasse para os colocar ao seu serviço. As terceiras infrações resultavam automaticamente em execução. … Estatutos semelhantes apareceram quase simultaneamente na Inglaterra, nos Países Baixos e em Zurique. ... Eventualmente, a maioria dos trabalhadores, sem qualquer alternativa, tinha pouca escolha, a não ser trabalhar por salários próximos do nível de subsistência”.

A captura adicional dos bens comuns ocorreu no início do século 19, quando os industriais britânicos procuraram eliminar as porções restantes de quaisquer bens comuns ainda existentes, para que não houvesse alternativa à venda da força de trabalho dos desapossados aos capitalistas, por uma ninharia. À medida que a resistência industrial ganhava força, o governo britânico utilizou 12.000 soldados para reprimir trabalhadores individuais, artesãos, operários fabris e pequenos agricultores que resistiam à introdução de máquinas pelos capitalistas, vendo essas máquinas como ameaças à sua liberdade e dignidade. Foram aqui utilizados mais soldados do que aqueles que os britânicos estavam simultaneamente a usar na sua luta contra os exércitos de Napoleão em Espanha.

A crítica escravidão para a acumulação capitalista

Não pode ser ignorado o papel da escravidão na alavancagem da ascensão do capitalismo. O tráfico de escravos, até ao final do século XVII, era conduzido por monopólios governamentais. As economias europeias cresceram com o “comércio triangular”, no qual os produtos manufaturados europeus eram enviados para a costa da África ocidental em troca de escravos, que eram enviados para as Américas, que, por sua vez, enviavam açúcar e outras mercadorias de volta à Europa. A Grã-Bretanha e outras potências europeias ganharam muito mais com as plantações das suas colónias caribenhas do que com as possessões norte-americanas; muitos produtos caribenhos não podiam ser cultivados na Europa, enquanto as colónias da América do Norte tendiam a produzir o que a Europa já produzia para si.

A Grã-Bretanha lucrou enormemente com o comércio triangular, tanto no próprio comércio de escravos, quanto nos excedentes gerados pelas colheitas nas plantações efetuadas com trabalho escravo. Os lucros do comércio de escravos foi suficientemente grande para aumentar a prosperidade da economia britânica como um todo, fornecer os fundos de investimento para construir as infraestruturas necessárias para apoiar a indústria e o comércio de escala, resultante de uma crescente economia industrial, e aliviar os problemas de crédito.

A matança de povos indígenas pela Espanha e o uso dos sobreviventes como escravos para extrair enormes quantidades de ouro e prata – a base do dinheiro na Europa e na Ásia – também contribuíram de forma crucial para o crescimento das economias europeias, através do aumento da quantidade de dinheiro disponível e da possibilidade de importação de mercadorias da China, que não estava interessada em comprar os produtos europeus, mas precisava de prata para estabilizar a sua própria economia. O padre espanhol Bartolomé de las Casas, horrorizado com o que testemunhou,  escreveu em 1542, “Os espanhóis, mal tiveram conhecimento daquelas pessoas, comportaram-se como ferozes lobos, ou tigres, ou leões que tivessem passado muitos dias sem comida. E não fizeram outra coisa, desde há quarenta anos até hoje, e ainda acham por bem fazer, a não ser desmembrar, matar, perturbar, afligir, atormentar e destruir os índios através de todo o tipo de crueldades – novas, diversificadas e das mais singulares maneiras, nunca antes vistas, lidas ou faladas – algumas das quais serão contados a seguir; e levam isto a tal ponto que, na Ilha Hispaniola, dos mais de três milhões de almas que existiam, hoje não restam mais de duzentas pessoas nativas ”.

Quando os espanhóis foram expulsos pelas guerras de libertação da América Latina, no início do século 19, isso não significou uma independência real. Os britânicos substituíram os espanhóis, usando meios financeiros mais modernos para explorar a região. A era do colonialismo direto, começada com a extração maciça de ouro e prata pela Espanha, foi substituída por relações comerciais unilaterais, após a formal independência da região, no início do século XIX. George Canning, um “livre comerciante” imperialista que era o secretário de relações exteriores britânico, escreveu em 1824: “A escritura está feita, o prego cravado, a América espanhola é livre; e se não administrarmos mal os nossos negócios ela é inglesa.”

Canning não era um ocioso fanfarrão. Ao mesmo tempo, o ministro das Relações Exteriores francês lamentou: “Na hora da emancipação, as colónias espanholas transformaram-se numa espécie de colónias britânicas”. E para que não pensemos que se tratou simplesmente de arrogância europeia, aqui está o que o ministro das finanças argentino tinha a dizer: “Não estamos em posição de tomar medidas contra o comércio exterior, principalmente o britânico, porque estamos subordinados a essa nação por grandes dívidas e expor-nos-íamos a uma rutura que causaria muitos danos”. O que tinha acontecido? A Argentina abriu amplamente os seus portos ao comércio sob influência britânica, inundando-se com um dilúvio de produtos europeus suficientes para estrangular a nascente produção local; quando, mais tarde, a Argentina tentou escapar dessa dependência impondo barreiras comerciais a fim de criar a sua própria indústria, os navios de guerra britânicos e franceses forçaram o país a abrir-se novamente.

O “direito” a impor o ópio na China para manter os lucros

O imperialismo não se limitou a um único continente. Consideremos o tratamento dos britânicos à China, na segunda metade do século XIX. (No momento, concentramo-nos nos britânicos, porque era a principal potência capitalista desse tempo). Navios de guerra britânicos foram enviados para a China para forçar os chineses a importar ópio, uma droga que era ilegal no país. Isto foi feito em nome do alegado “direito a comerciar” da Grã-Bretanha. Sob esta doutrina, os países subdesenvolvidos não tinham escolha a não ser comprar produtos aos mais poderosos países capitalistas, mesmo produtos que causassem danos generalizados à população do país. Isto podia também ser considerado um “direito” a forçar o ópio na China. Onde mais, senão sob o capitalismo, poderia tal “direito” absurdo ser invocado? Os traficantes de droga dos EUA também fizeram enormes fortunas vendendo, de igual modo, ópio aos chineses.

Um  artigo do Medium de 2015,  detalhando o histórico e os resultados das duas guerras do ópio, realçou as  enormes quantias de dinheiro  que foram conseguidas:

O ópio era um grande negócio para os britânicos, um dos críticos motores económicos da época. A Grã-Bretanha controlava a Índia e supervisionava um milhão de produtores de ópio indianos. Em 1850, a droga respondia por uns impressionantes 15 a 20 por cento da receita do Império Britânico, e o negócio de ópio da Índia com a China tornou-se, nas palavras de Frederic Wakeman, um importante historiador deste período, a ‘mercadoria mais valiosa do mundo do comércio do século XIX’. Observa Carl Trocki, autor de Opium, Empire and the Global Economy [Ópio, Império e Economia Global], ‘Toda a infraestrutura comercial do comércio europeu na Ásia foi construída em torno do ópio. … [Uma] procissão de mercadores marítimos americanos fez fortuna contrabandeando ópio. Estavam cientes dos seus efeitos tóxicos na população chinesa, mas poucos deles mencionaram a droga nas milhares de páginas de cartas e documentos que enviaram para a América’.”

Por fim, as autoridades chinesas ordenaram aos estrangeiros, principalmente aos britânicos e americanos, que entregassem todo o ópio. Após uma recusa, as autoridades chinesas destruíram todo o ópio que encontraram. Em resposta, navios de guerra britânicos foram enviados para bombardear cidades costeiras até que a China concordasse com o unilateral Tratado de Nanquim, através do qual foi forçada a pagar à Grã-Bretanha uma indenização de milhões, ceder Hong Kong e abrir cinco portos ao comércio, onde os estrangeiros não estavam sujeitos às leis ou autoridades chinesas.

Quando novas exigências foram recusadas, as marinhas britânica, francesa e americana lançaram a segunda guerra do ópio, atacando cidades costeiras e do interior. Invadiram Pequim, “expulsaram o imperador da cidade e, numa orgia de roubos de obras de arte e joias, destruíram a Versalhes da China, o antigo Palácio de Verão”. Impuseram um novo tratado, mais desigual do que o primeiro, , forçando a abertura de todo o país. Um advogado britânico contratado para justificar este comportamento escreveu, enquanto a primeira guerra do ópio se estava a desenvolver: “Os nossos homens de guerra estão agora, assim se espera, no seu caminho para a China, que será ‘a nossa ostra, que [nós] abriremos com a espada’. Então, podemos sacar do Imperador um reconhecimento da hedionda ofensa – ou série de ofensas – que ele cometeu contra a lei da natureza e das nações, e dar-lhe uma lição, mesmo de um livro bárbaro, que o irá beneficiar e a todos seus sucessores”.

Lucros fantásticos para o capital europeu; morte para os africanos

Também a África não foi poupada à exploração. Longe disso. O número exato de africanos sequestrados e transportados à força através do Atlântico nunca será conhecido, mas as estimativas dos estudiosos tendem a variar entre cerca de dez milhões até doze milhões. No entanto, o número de vítimas humanas é ainda maior, porque, em simultâneo com aqueles que foram sequestrados com sucesso, mais milhões foram mortos ou mutilados e, portanto, não atravessaram o Atlântico. Este nível de desumanidade não pode ser alcançado sem uma ideologia que o acompanha.

Walter Rodney, na sua notável contribuição para compreender o atraso no desenvolvimento do Sul,  How Europe Underdeveloped Africa [Como a Europa Subdesenvolveu a África], realçou que embora o racismo e outros ódios, incluindo o antissemitismo, existissem há muito na Europa, o racismo era uma parte integrante do capitalismo, porque era necessário racionalizar a exploração do trabalho africano, que era crucial para a acumulação da riqueza. “Ocasionalmente, defende-se erradamente que os europeus escravizaram os africanos por motivos racistas”, escreve o Dr. Rodney. “Os proprietários e mineiros europeus escravizaram os africanos por razões económicas, para que a sua força de trabalho pudesse ser explorada. Na verdade, teria sido impossível abrir o Novo Mundo e usá-lo como um constante gerador de riqueza, se não fosse a mão-de-obra africana. Não havia outras alternativas: a população americana (indígena) foi virtualmente exterminada e a população da Europa era demasiado pequena naquela época para se estabelecer além-mar”.

A exploração não terminou com o fim da escravatura no século 19, destacou o Dr. Rodney. As potências coloniais confiscaram enormes áreas de terra arável na África e, depois, venderam-nas a preços simbólicos aos bem relacionados. No Quénia, por exemplo, os britânicos declararam as terras férteis do planalto como “terras da coroa” e venderam blocos de terra com até 550 milhas quadradas (1.400 quilómetros quadrados). Esses confiscos maciços de terras não só permitiram a criação de plantações extremamente lucrativas, como também criaram as condições que forçaram os novos sem terra africanos a tornarem-se trabalhadores agrícolas de baixos salários e a pagar impostos ao poder colonial. Foram aprovadas leis a proibir os africanos de desenvolverem cultivos comerciais nas regiões de plantação, um sistema de compulsão resumido por um coronel britânico que se tornou um colono no Quénia: “Roubámos as suas terras. Agora, devemos roubar os seus braços. O trabalho obrigatório é o corolário da nossa ocupação do país”. Noutras partes da África colonial, onde a terra permaneceu em mãos africanas, os governos coloniais aplicaram impostos em dinheiro sobre o gado, a terra, as casas e as próprias pessoas; os agricultores de subsistência não têm dinheiro para pagar impostos em dinheiro, por isso, foram forçados a trabalhar em cultivos comerciais, pelo que recebiam muito pouco.

A alternativa à agricultura era ir trabalhar para as minas, onde os salários eram de fome. As empresas de mineração e comércio europeias e norte-americanas obtiveram fantásticos lucros (às vezes até 90%) e as matérias-primas puderam ser exploradas em níveis semelhantes. (Uma empresa de borracha dos EUA, de 1940 a 1965, tirou o equivalente a 160 milhões de dólares em borracha da Libéria, enquanto o governo liberiano recebeu 8 milhões de dólares.) Outro método de extrair riqueza foi alcançado através de trabalhos forçados – os governos coloniais francês, britânico, belga e português exigiam que os africanos realizassem trabalho não pago em ferrovias e outros projetos de infraestruturas. Os franceses foram particularmente cruéis no uso de trabalho forçado (em cada ano, ao longo da década de 1920, 10.000 novas pessoas foram obrigados a trabalhar numa única ferrovia e, pelo menos, 25% dos trabalhadores forçados dessa ferrovia morreram de fome ou doenças). Essas ferrovias não beneficiaram os africanos quando a independência chegou, em meados do século 20, porque foram projetadas para levar matérias-primas para um porto e não tinham relação com os padrões comerciais ou geográficos dos novos países ou dos seus vizinhos.

Todo o território que hoje constitui a República Democrática do Congo era, no final do século XIX e início do século XX, propriedade pessoal do rei da Bélgica, Leopoldo II. Pelo menos 10 milhões de congoleses perderam a vida às mãos das autoridades belgas, ansiosas por extrair borracha e outros recursos a qualquer custo. Esta pilhagem genocida – a perda de vidas reduziu para metade a população local – assentou num sistema de terror e trabalho escravo. Este  sistema incluía trabalho forçado que, nas minas, se fazia dia e noite, corte de mãos como punição e “queima de incontáveis ​​aldeias e cidades, onde todos os indivíduos encontrados foram mortos”.

À medida que os EUA ganharam proeminência, tornando-se uma potência capitalista liderante no início do século 20, o derrube de governos para garantir incontestáveis “investimentos lucrativos” tornou-se rotina. Os EUA, aliás, foram o primeiro país a reconhecer a reivindicação do Rei Leopoldo ao Congo.

Se for o teu “quintal”, fazes o que quiseres

Os EUA há muito que consideram a América Latina o seu “quintal”. A economia de Cuba, sob o domínio espanhol, era baseada na cana-de-açúcar produzida por escravos e, quando uma série de rebeliões finalmente conseguiu libertar o país do domínio colonial espanhol, a independência cubana foi apenas formal, pois os Estados Unidos rapidamente se tornaram um senhor colonial em tudo, exceto no nome. As forças dos EUA deixaram Cuba em 1902, após uma ocupação de quatro anos, mas antes impuseram que os cubanos aceitassem a Emenda Platt. A emenda, inserida na constituição cubana como o preço da retirada dos EUA, deu a estes o controle sobre a política externa e económica cubana e o direito de intervir com forças militares para proteger os interesses corporativos dos EUA. Em 1905, os interesses dos EUA  possuíam 60 por cento das terras de Cuba e controlavam a maior parte da sua indústria. Apenas quatro meses após a revolução de 1959 assumir o poder, o governo dos EUA já considerava o potencial sucesso da revolução um “mau exemplo” para o resto da América Latina. O Departamento de Estado dos EUA definiu os objetivos dos EUA em Cuba como “recetividade aos EUA, liberdade ao capital mundial e aumento do comércio” e “acesso dos Estados Unidos aos recursos cubanos essenciais”. Esses objetivos não mudaram até hoje.

Isso decorre, naturalmente, do que o embaixador dos Estados Unidos na Cuba pré-revolução, Earl T. Smith,  disse sobre o país insular: “Eu dirigi Cuba a partir do sexto andar da embaixada dos EUA. O trabalho dos cubanos era cultivar açúcar e calar a boca”.

Quando rebentou uma greve contra a United Fruit Company, na Colômbia, em 1929, a ação foi reprimida com um massacre dos trabalhadores. A embaixada dos EUA, em Bogotá, telegrafou para o Departamento de Estado em Washington esta triunfante mensagem: “Tenho a honra de informar que o representante de Bogotá da United Fruit Company me disse ontem que o número total de grevistas mortos pelos militares colombianos ultrapassou um milhar”. Honra. Pensemos sobre isso.

 

 

Durante grande parte do século 20, o governante efetivo da Guatemala e das Honduras foi a United Fruit Company. A empresa possuía vastas plantações em oito países e derrubou governos na Guatemala e nas Honduras. Durante muitos anos, a United Fruit teve um negócio especialmente agradável na Guatemala. A empresa não pagava impostos, importava equipamento sem pagar direitos e tinha a garantia de baixos salários. A empresa também detinha o monopólio das ferrovias, portos marítimos e telégrafo da Guatemala. Quando um presidente, Jacobo Arbenz, decidiu acabar com esta exploração e orientar a economia da Guatemala no sentido de beneficiar os guatemaltecos, por meio de reformas moderadas, a CIA derrubou-o. Os serviços secretos dos EUA declararam que o programa de Arbenz tinha de ser revertido, porque abrandar o domínio da United Fruit Company no país ia contra os interesses dos Estados Unidos. Os EUA instituíram o que se tornaria um pesadelo de 40 anos de assassínios em massa organizados pelo Estado. Uma série de líderes militares –, cada um mais brutal do que o anterior e fortalecidos com a ajuda dos EUA –, desencadeou um reino de terror que, no final, custou 200.000 vidas, 93% das quais foram assassinadas pelo Estado, através do seu exército e dos seus esquadrões da morte. Mas isto não está fora da política comum. Os Estados Unidos invadiram militarmente países da América Latina e do Caribe 96 vezes, incluindo 48 vezes no século XX. Esse total resulta apenas de intervenções diretas e não inclui golpes fomentados pelos EUA, como na Guatemala, em 1954 e no Chile, em 1973. A maioria dessas invasões ocorreu por motivos semelhantes aos articulados pelo ex-presidente dos EUA, William Howard Taft: para garantir lucros para uma ou mais corporações americanas ou derrubar governos que não priorizassem a maximização desses lucros.

Os EUA invadiram e ocuparam a Nicarágua várias vezes. Uma dessas ocasiões, em 1909, ocorreu quando um presidente da Nicarágua  aceitou um empréstimo  de banqueiros britânicos em vez de norte-americanos, abrindo então negociações com a Alemanha e o Japão para construir um novo canal que rivalizasse com o Canal do Panamá. Os EUA instalaram uma ditadura e o presidente Taft colocou a alfândega da Nicarágua sob o controle dos Estados Unidos. O reprovado empréstimo britânico foi refinanciado por dois bancos americanos, que assumiram o controle do banco nacional da Nicarágua e da ferrovia como recompensa. Esses acontecimentos não foram por acaso, pois o presidente Taft já havia  declarado que a sua política externa era a de “incluir uma intervenção ativa para garantir a oportunidade de as nossas mercadorias e os nossos capitalistas terem investimentos lucrativos” no exterior.

Todas essas atrocidades – e inúmeras outras – aconteceram antes dos assassinatos no Equador, Irão e Panamá dos Chefes de Estado que se recusaram a fazer o que os operacionais do governo dos EUA lhe ordenaram (e, no caso de Omar Torrijos, recusando os subornos, que foram a primeira tática para obter o apoio dos líderes locais), conforme narrou o Sr. Perkins em  Confissões. Não, essas atrocidades – e o autor não nos deixa dúvidas de que não foram “acidentes”, mas assassinatos perpetrados pelo governo dos EUA – não representam uma viragem sem precedentes para o lado negro. Esses atos –, assim como as sanções atuais que matam centenas de milhares –, são negócios normais para o governo dos Estados Unidos e o capitalismo que ele impõe no mundo. Imperialismo, brutalidade e violência não são novidade; são ferramentas essenciais há muito utilizadas em abundância.

Muito mais exemplos poderiam ser citados; o exposto representa uma fração minúscula das atrocidades que poderiam ser contadas. Uma tão longa história de violência sistemática e brutalidade fala por si mesma quanto à “moralidade” do capitalismo.

* Pete Dolack  escreve no   blog Systemic Disorder [Desordem Sistémica] e tem sido um ativista em vários grupos. O seu primeiro livro,  It's Not Over: Learning From the Socialist Experiment [Ainda não acabou: aprendendo com a experiência socialista], está disponível na Zero Books e completou o seu segundo livro, What Do We Need Bosses For? [Para que precisamos de chefes?]

Fonte: https://www.counterpunch.org/2021/04/18/the-innocence-of-early-capitalism-is-another-fantastical-myth/, publicado e acedido em 2021/04/18.

Tradução do inglês de PAT

 in Pelo Socialismo blogspot.com


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