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domingo, 16 de maio de 2021

Marx e o feiticismo

 

A gênese do fetichismo

 

« (...) Poucos são os termos tão ligados à constituição da consciência da modernidade ocidental quanto “fetichismo”. Enunciado pela primeira vez em 1756 pelo escritor francês Charles de Brosses, membro da Académie des Inscriptions et Belle-Lettres de Paris e colaborador da Enciclopédia de Diderot e d’Alambert, o fetichismo aparecia como peça maior de uma operação que visava estabelecer os limites precisos entre nossas sociedades esclarecidas e sociedades primitivas pretensamente vítimas de um sistema encantado de crenças supersticiosas. Já o título da obra de De Brosses dedicada à apresentação sistemática do fetichismo era ilustrativo: Do culto dos deuses fetiches ou Paralelo da antiga religião do Egito com a religião atual da Nigritia (1760). Ou seja, tratava-se de criar um paralelo entre um limite à racionalidade moderna ao mesmo tempo histórico (no passado) e geográfico (no presente), determinar as coordenadas histórico-geográficas do pensamento primitivo, isto através da identificação de uma forma de encantamento cuja ilustração perfeita seria o culto aos ditos deuses fetiches. Tal caracterização do pretenso pensamento primitivo através do fetichismo atravessará os séculos XVIII e XIX. Ela pode ser encontrada, entre outros, em escritos de ideólogos como Destutt de Tracy, de filósofos como Kant, Hegel, Benjamin Constant, mas será com Augusto Comte que o fetichismo, definido enquanto estágio inicial da vida social e das formas do pensar, alcançará sua enunciação canônica.

No entanto, ao usar o termo “fetichismo” para descrever a lógica de produção de valor própria às nossas sociedades ocidentais, Marx acabará por dar forma conceitual a um momento histórico de deslocamento do sistema de partilha entre modernidade e pré-modernidade. Pois ele mostrará como o encantamento e a alienação que o Ocidente identificou em seu Outro operam, na verdade, no interior de nossas sociedades desencantadas e no cerne de nossas próprias formas de vida. Por isto, ele se servem de um conceito (fetichismo) que até então era usado para descrever o que seria exterior às sociedades modernas (De Brosses, Comte. Mas agora eles o utilizam para descrever o interior do processo de determinação do valor em nossas sociedades. Tendo estas questões em vista, lembremos da definição inicial de De Brosses:

 

Estes fetiches divinos não são outra coisa que o primeiro objeto material que cada nação ou cada particular tem o prazer de escolher e de consagrá-lo em cerimônia por seus sacerdotes: é uma árvore, uma montanha, o mar, um pedaço de madeira, um rabo de leão, um seixo, uma concha, sal, um peixe, uma planta, uma flor, um animal de certa espécie; enfim, tudo o que se possa imaginar de parecido.

 

Era desta forma que Charles De Brosses procurava caracterizar o que ele entendia por “fetichismo”: o culto supersticioso de um objeto arbitrariamente escolhido devido a alguma qualidade diferencial que agradaria o crente. Nesta definição, encontrava-se a materialização da incompreensão dos colonizadores europeus diante da complexidade dos sistemas simbólicos dos “povos primitivos”. Por ser “arbitrário” e “contingente”, o objeto cultuado era apenas a expressão imediata da projeção antropomórfica de crenças e vontades, ou seja, a forma mais elementar de superstição produzida por associações indevidas de idéias. Eles sequer poderiam ser analisados como alegorias ou símbolos, já que estaríamos em uma espécie de “grau zero da capacidade de representação”.

Esta noção de “fetiche” já estava presente nas reflexões do século XVII e XVIII a respeito das práticas religiosas dos africanos, a quem a ideologia colonial procurava impor uma “mentalidade primitiva”. De fato, o termo nasce do impacto das Grandes Navegações no imaginário europeu. Vendo a maneira com que objetos inanimados e animais eram compreendidos como dotados de forças sobrenaturais por tribos africanas, os navegantes portugueses descreveram tais objetos como fetissos. Ao se perguntar sobre o que significaria exatamente o termo português fetisso, De Brosse falará de “coisa encantada, divina” devido a sua pretensa derivação da raiz latina fatum (destino, oráculo), fanum (lugar consagrado) e fari (falar, dizer), deixando de lado a raiz latina derivada de factio (modo de fazer), facticius (artificial, falso), que era a correta. Erro providencial pois retirou a reflexão sobre o fetiche das vias de uma indagação sobre o artifício que se apresenta enquanto tal para colocá-la na direção de problemas ligados à imanência da crença. No entanto, é esta via mais próxima do sentido original da palavra que Freud irá recuperar.

Se De Brosses não foi o responsável pela constituição do termo “fetiche”, ele foi aquele que, através da criação do neologismo “fetichismo”, forneceu as condições fundamentais para a transformação de uma reflexão sobre práticas de culto de tribos africanas em dispositivo de descrição do pensamento primitivo em geral pois independente de questões vinculadas a localização geográfica ou temporal. Estratégia maior para a consolidação da maneira com que a consciência nascente da modernidade poderá estabelecer suas fronteiras.

Em seu livro, De Brosses apresenta uma longa compilação de relatos de viagens da Oceania, Américas, Brasil, África, a fim de mostrar a presença do mesmo sistema fetichista de crenças. Seu intuito principal é deixar clara a inexistência de diferença estrutural entre tais práticas e aquelas que encontraríamos na religião da Grécia antiga e do Egito. O que não poderia ser diferente, já que se trata de apresentar uma teoria evolucionista do progresso social e do pensamento capaz de justificar a partilha entre sociedades modernas e pré-modernas presentes no mesmo momento histórico. As sociedades fetichistas teriam permanecido em um estágio inicial de desenvolvimento, em uma infância perpétua, em um “estado natural bruto e selvagem” já que o fetichismo seria, como dirá Diderot em carta a De Brosses, “a religião primeira, geral e universal”. Este esquema será levado ao seu maior desenvolvimento pelas mãos de Augusto Comte e sua teoria dos três estados do espírito humano (o teológico, o metafísico e o positivismo; sendo que o fetichismo seria a primeira fase do estado teológico, seguido pelo politeísmo e pelo monoteísmo). (...) » Curso-Reler Marx, Vladimir Safatle, on-line

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