Em 2020, as despesas militares a nível mundial atingiram o valor mais alto desde que há registos. E enquanto a Defesa nacional continua envolta em polémica, a União Europeia prepara-se para as possíveis guerras do futuro (apesar de isso poder violar os seus princípios)
Texto Tiago Soares Infografia Carlos Esteves Ilustração Cristiano Salgado
Fazer a guerra e manter a paz custa muito dinheiro: no ano passado, os países do globo gastaram pelo menos 1625 mil milhões de euros em Defesa, segundo as últimas estimativas do Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI), publicadas num relatório em abril. O instituto faz estes cálculos desde 1988 e nunca tinha chegado a um número tão grande: as despesas militares a nível mundial subiram 2,6% em relação a 2019, 9,3% em comparação com 2010, e estão em crescimento contínuo desde 2014.
Sem surpresas, os Estados Unidos da América lideram o ranking do SIPRI: o orçamento militar expandiu-se em 4,4% durante o primeiro ano da pandemia, uma percentagem que não encontra paralelo em nenhum dos outros quatro países que compõem o top 5. Estes cinco países — EUA, China, Índia, Rússia, Reino Unido — são responsáveis por 62% do investimento militar mundial, mas os mais de 637 mil milhões de euros norte-americanos afastam qualquer tipo de comparação com as restantes nações: a China, em segundo lugar na lista, ficou-se pelos 206 mil milhões.
O relatório do SIPRI assinala outro dado preocupante: das nações que mais aumentaram as despesas militares entre 2019 e 2020, a Hungria surge em décimo lugar, sendo o segundo país europeu no ranking, apenas atrás da Roménia: o governo de extrema-direita liderado por Viktor Orbán gastou cerca de 2 mil milhões nas forças armadas no ano passado, mais 20% do que no ano anterior. Ora, foi justamente em 2020 que a Hungria deixou de ser considerada uma democracia pela organização não governamental Freedom House.
A União Europeia está a expandir o seu poderio militar. Em dezembro aprovou um pacote de 8 mil milhões de euros para desenvolver e comprar armas
A União Europeia não levantou a voz sobre o caso húngaro, e percebe-se porquê: Bruxelas está neste momento a expandir o seu próprio poderio militar. Em dezembro, foi aprovado o European Defence Fund (EDF), um pacote de 8 mil milhões de euros destinado a desenvolver e comprar novas armas e outros equipamentos tecnológicos bélicos. Depois, em março, foi criado o European Peace Facility (EPF), um mecanismo financeiro de 5 mil milhões de euros para “aumentar as capacidades de segurança e defesa” da UE e “ajudar a preservar a paz no mundo” até 2027. Este investimento permite que os países da UE exportem material de guerra para nações não europeias — incluindo armas letais.
Estas mudanças estratégicas foram impulsionadas por países como a França e a Alemanha, mas parecem estar numa “zona cinzenta” em termos legais: “Pela primeira vez na história da UE, temos parcelas orçamentais com componentes militares”, disse ao jornal “The Guardian” Özlem Demirel, eurodeputado alemão e vice-presidente do subcomité de segurança e defesa. No parecer jurídico que o grupo parlamentar de Demirel redigiu argumenta-se que o EDF é uma “violação manifesta” dos tratados fundadores da UE, que proíbem que o orçamento comum dos 27 Estados-membros seja usado para “operações com implicações militares”.
Heiko Maas, ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, descreveu o projeto como um “investimento fundamental na paz e na estabilidade”, mas os especialistas fora do universo político são claros: “É óbvio que a UE está a afastar-se cada vez mais da ideia inicial de um projeto de paz, e estes instrumentos são exemplo disso”, avisou Frank Slijper, investigador na organização não governamental holandesa Pax, apontando que as respostas militares europeias em regiões como o Sahel (que inclui o Mali, Burkina Faso, Níger e Chade, por exemplo) só vão piorar os conflitos já existentes e “aumentar o risco de danos para os civis.”
Defesa portuguesa atribulada
Os montantes destes dois pacotes europeus são superiores ao orçamento que o Ministério da Defesa português tem para o presente ano: cerca de 2,4 mil milhões de euros, segundo um relatório do Orçamento do Estado para 2021 que foi noticiado em outubro, o que significa uma redução de 1% em relação a 2020. Em março, o ministro João Gomes Cravinho disse no Parlamento que desde 2014 houve um reforço de 26% no investimento em Defesa em Portugal.
Mesmo assim, as dificuldades das Forças Armadas portuguesas são conhecidas, antigas, e não parecem ter fim: instalações com condições precárias, poucos recursos humanos, derrapagens financeiras em obras, drones comprados por milhões que não funcionam. O exemplo dos drones mostra que o investimento tem sido curto, sim, mas existe: este ano há mais 20 milhões para comprar equipamento do que em 2020. Aliás, segundo dados organizados pela Pordata, o Estado português gasta mais dinheiro em Defesa do que em sectores vitais da sociedade como transportes, habitação, agricultura, cultura, e serviços da administração pública.
Este ano, uma das partes do orçamento da Defesa que foi reforçada diz respeito à participação portuguesa em missões internacionais: as Forças Nacionais Destacadas ficaram com um orçamento total de 71 milhões de euros, mais 3 milhões do que em 2020, e neste momento há 605 militares portugueses ao serviço em 15 missões de paz, por sua vez distribuídas por 12 países, dizem dados do Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA).
O EMGFA é justamente o organismo protagonista da última polémica da Defesa portuguesa, pois está a ser alvo de uma reforma orgânica que vai centralizar as suas estruturas de comando. Os militares queixam-se que as alterações vão tirar autonomia aos três ramos (Força Aérea, Exército, Marinha) perante o poder político, mas o Governo responde que esse é o objetivo e aponta para os exemplos de outros países europeus. O Parlamento aprovou a medida na generalidade, segue-se a discussão na especialidade, e o Executivo parece ter deixado a porta aberta a alguns ajustes — mas já deixou claro que não vai recuar.
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