Por Alberto Toscano, via Historical Materialism, traduzido por João Victor Oliveira
Neste artigo, Alberto Toscano considera três textos que nos permitem explorar o lugar que uma recuperação e reinterpretação do ‘Materialismo e Empirocriticismo’ de Lênin ocupou na definição da agenda da filosofia marxista européia após a crise de 1956.
Introdução: Um materialismo “oriental”?
Em contraste com os textos que considerarei no corpo deste artigo, gostaria de começar relembrando brevemente o papel das referências negativas ao Materialismo e Empirocriticismo de Lênin (MEC) para a autodefinição de um filosofia “marxista ocidental”. Em sua famosa combinação de partidarismo polêmico e objetivismo inequívoco, o MEC serviu como paradigma do “marxismo oriental”, concebido como o abandono da dialética por uma filosofia do comunismo de estado, tanto na Dialética Negativa de Adorno quanto nas Aventuras da Dialética de Merleau-Ponty, texto que popularizou a expressão “Marxismo Ocidental” (com a nota negativa de Simone Weil em La Critique Sociale, em novembro de 1933, como precursora). Esta é uma posição resumida pela tirada de Herbert Marcuse, em Marxismo Soviético: “O ‘Materialismo e Empirocriticismo’ de Lênin substituíram a noção dialética da verdade por um realismo naturalista primitivo, que se tornou canônico no marxismo soviético” (p. 149). Para ter uma ideia dessas posições e preparar um contraste com os textos com os quais me preocuparei hoje, deixe-me começar citando duas passagens centrais de Merleau-Ponty e Adorno.
“Seus adversários não erraram ao criticar as ideias filosóficas de Lênin por serem incompatíveis com o que eles mesmos chamavam, como Korsch diz, de ‘marxismo ocidental’. Lênin havia escrito seu livro para reafirmar que o materialismo dialético é um materialismo, que supõe um diagrama materialista do conhecimento. […] Ao retomar a antiga alegoria das ideias-imagens, Lênin pensou que iria estabelecer solidamente a dialética nas coisas. Ele esqueceu que um efeito não se assemelha à sua causa e esse conhecimento, sendo um efeito das coisas, está localizado em princípio fora de seu objeto e atinge apenas sua contraparte interna. Isso anularia, portanto, tudo o que foi dito sobre o conhecimento desde Epicuro. […] Hegel foi realmente capaz de mostrar que, em uma filosofia da história, o problema do conhecimento é superado, porque já não pode haver uma questão de relações atemporais entre ser e pensamento, mas apenas de relações entre o homem e sua história, ou mesmo entre o presente e o futuro, e o presente e o passado. […] Esse novo dogmatismo, que coloca o sujeito conhecedor fora do tecido da história e lhe dá acesso ao ser absoluto, libera-o do dever de autocrítica, isenta o marxismo de aplicar seus próprios princípios a si mesmo e estabelece o pensamento dialético, que por seu próprio movimento a rejeitou, em uma positividade massiva.” (Aventuras da dialética, p. 59-60)
“A teoria da imagem nega a espontaneidade do sujeito, um movens [mobilizador] da dialética objetiva das forças produtivas e relações de produção. Se o sujeito é reduzido a um espelhamento obtuso do objeto que sempre perde necessariamente o objeto que só se abre ao excedente subjetivo no pensamento, então resulta daí a calma intelectual inquieta de uma administração integral.
Somente uma consciência infatigavelmente reificada pretende ou faz com que os outros creiam que ela possui fotografias da objetividade. Sua ilusão transforma-se em imediatidade dogmática. Quando Lênin, ao invés de entrar na teoria do conhecimento, afirma contra ela, em uma reiteração compulsiva, o ser-em-si dos objetos do conhecimento, ele quer colocar em evidência a conspiração do positivismo subjetivo com os poderes estabelecidos. Fazendo isso, sua necessidade política volta-se contra a meta teórica do conhecimento. A argumentação transcendente liquida o problema a partir de uma pretensão de poder, e isso para o pior: aquilo que é criticado e no que não penetramos permanece ileso tal como é, e, enquanto algo que não foi absolutamente tocado, pode mesmo ressurgir à vontade uma vez mais em constelações alteradas de poder.” (Dialética negativa, p. 205-6)
Mas não teria o MEC também desempenhado uma função diferente no desenvolvimento do chamado “marxismo ocidental” no período pós-guerra, que talvez tenha rompido com o esquema, comum a Adorno e Merleau-Ponty, de uma verdadeira dialética contra o materialismo dialético, e com a própria distinção entre o marxismo oriental e o ocidental em suas modalidades da Guerra Fria?
Neste artigo, quero considerar três textos que nos permitem explorar o lugar que uma recuperação e reinterpretação do MEC desempenharam na definição da agenda da filosofia marxista europeia após a crise de 1956. Nenhum dos três foi traduzido para o inglês, apesar da tradução de vários outros trabalhos dos autores em questão. Eles são Pour connaître la pensée de Lénine (PCPL – O Pensamento de Lênin), de Henri Lefebvre, de 1957; Introdução aos Cadernos Filosóficos de Lênin, de Lucio Colletti, de 1958, publicado em uma versão revisada como a Parte I de Il marxismo e Hegel (1969; o texto em inglês Marxismo e Hegel é uma tradução somente da Parte II); e, finalmente, Une crise et son enjeu, (Essai sur la position de Lénine en philosophie) [Uma crise e suas apostas: ensaio sobre a posição de Lênin na filosofia], de Dominique Lecourt, publicado em 1973 na série Théorie de Louis Althusser para François Maspero, como um complemento crítico para o Lênin e a filosofia do próprio Althusser.
Minha abordagem desses textos (que, se repostos em seus contextos teóricos, políticos e biográficos, exigiriam comentários muito amplos) será bastante esquemática, apresentando uma permutação sintomática de posições em torno do MEC que abordam três grandes preocupações:
a) Como o MEC se relaciona com os cadernos de Lênin sobre a Lógica de Hegel? Essa questão ressoa com duas questões relacionadas: uma epistemologia materialista realista ou objetivista é compatível ou não com um marxismo verdadeiramente dialético? E: seria o MEC um modelo para a ruptura com os legados hegelianos do marxismo e, se sim, isso deve ser bem-vindo ou abominável?
b) Qual é a articulação apropriada entre marxismo (e a política marxista), filosofia e ciência?
c) Que conceito de matéria (se é que algum) é exigido por um materialismo marxista? E como esse conceito de matéria deve ser relacionado aos conceitos científicos da matéria?
Também quero refletir sobre um corolário (d), no que diz respeito às teorias da abstração atuantes nessas interpretações do MEC.
Especialmente no que diz respeito ao ponto (a), como veremos, os três textos fornecem as três permutações possíveis, como segue:
Lefebvre: Os Cadernos sobre a Lógica de Hegel (e outros textos filosóficos) superam os limites do MEC, adotando uma concepção propriamente dialética da realidade.
Colletti: Os Cadernos manifestam um retrocesso perigoso dos avanços polêmicos do MEC, uma restauração de um idealismo da matéria que é um recuo epistemológico e materialista da afirmação, contida em MEC, da heterogeneidade entre pensamento e realidade objetiva, e da primazia da última (bem como uma maior apreciação, em MEC, da importância de Kant para um materialismo moderno).
Lecourt: Não há, ao fim, incompatibilidade entre MEC e os Cadernos de Lênin estudando Hegel durante a guerra, em termos de sua infraestrutura filosófica fundamental, uma continuidade identificada por Lecourt nos termos da noção de um reflexo sem espelho.
Lefebvre, ou, Reflexo Complexo
Lefebvre enquadra sua discussão sobre a filosofia de Lênin, na Parte III de PCPL, observando a importância do chamado de Engels para transformar e verificar o materialismo em resposta às novidades emergentes nas ciências naturais. Ele reproduz a afirmação de Lênin, que identifica os desafios modificados do materialismo em termos do poderoso surgimento da epistemologia, no interior da ideologia burguesa (e de vários revisionismos marxistas), observando que, enquanto Marx e Engels enfatizavam corretamente a dialética e a história sobre o materialismo, a época [de Lênin] gerava uma conjuntura teórica radicalmente diferente, na qual a filosofia burguesa absorveu, sob um disfarce deformado, vários princípios da dialética, mas com finalidades relativistas e revisionistas, como resumido na afirmação, típica da época, de que a matéria desapareceu. Não obstante a associação de Lefebvre com algumas das principais características do marxismo ocidental, em PCPL ele enfatiza o aviso de Lênin de que a ortodoxia marxista se retirara para o terreno da filosofia e da filosofia da história e, em seu abandono do materialismo científico, natural, havia deixado o caminho aberto para soluções relativistas. É significativo aqui que Lefebvre veja paralelos entre os debates de 50 anos antes e as controvérsias do marxismo francês, principalmente as Aventuras de Merleau-Ponty, em que a tentativa, nas palavras de Lefebvre (p. 129), de construir um idealismo a partir de baixo, anda de mãos dadas com uma estigmatização de MEC como modelo de um marxismo “oriental” dogmático e vulgar. Por outro lado, podemos ver a operação de Lênin em MEC, para Lefebvre, como um modelo da necessidade de reformular e revitalizar a filosofia marxista dentro das conjunturas mutáveis de conflito e crítica da filosofia burguesa. Recolocada em seu contexto histórico, a operação de Lênin não pode ser tomada como uma mera afirmação ou defesa do dogmatismo. Pelo contrário, para Lefebvre: “Com Lênin, não podemos repetir isso o suficiente, o pensamento marxista destacou-se tanto do imobilismo ortodoxo quanto de um revisionismo, que colocava em questão os princípios” (p. 130). O MEC pertence ao duplo movimento necessário para retornar aos princípios e aplicá-los aos novos problemas do presente, restaurando e, portanto, renovando os princípios básicos do marxismo.
Mas o quanto Lênin pode ser um guia para a renovação de uma filosofia marxista, 50 anos após seu único trabalho explicitamente filosófico? Essa pergunta guia Lefebvre, que também faz o paralelo entre isso e a escassez de reflexão filosófica sistemática nos próprios escritos de Marx e Engels. Ele identifica o nexo-chave da intervenção de Lênin em uma lacuna deixada no trabalho de Marx e Engels, a saber, o “hiato” entre a teoria do reflexo ideológica (em A Ideologia Alemã, o capítulo sobre o fetichismo em O Capital ou os escritos políticos de Marx) e “a teoria do conhecimento, a teoria do reflexo verdadeiro do real” (p. 132). Mas esse giro para a epistemologia requer confrontar a questão da abstração. Lefebvre coloca o problema com muita lucidez na passagem a seguir, que, como indica uma nota, também é uma crítica tanto a Lukács como a Plekhánov:
Lênin viu o problema perfeitamente bem. Se não queremos que a teoria marxista se frature e encontre na ciência um obstáculo – se não desejamos que todos os setores do conhecimento escapem progressivamente ao marxismo – precisamos mostrar que a história das ideologias está intimamente (dialeticamente) ligada ao processo pelo qual os seres humanos passam da ignorância ao conhecimento. Portanto, faz-se necessário que o reflexo [o reflet (ou la réflexion)] não seja apenas um reflexo social (superestrutura ideológica) mas, também, ao mesmo tempo e contraditoriamente, o reflexo do mundo real e do mundo externo. É necessário que a abstração seja considerada não apenas como a produção da divisão do trabalho, mas como o instrumento do conhecimento. Portanto, é necessário filosoficamente revisitar e restaurar os princípios do marxismo, que são interpretados de tal maneira que os ‘ortodoxos’ passaram das categorias econômicas (as da divisão do trabalho) para as ideologias, negligenciando categorias e noções especificamente filosóficas. (p. 133).
É esse dilema que requer o desenvolvimento de uma teoria do reflexo – um termo que Lefebvre observa não ser, de forma alguma, unívoco. Aqui, Lefebvre cita a famosa fórmula de Lênin sobre as sensações que copiam, fotografam, refletem a realidade objetiva, mas imediatamente a qualifica, destacando como é difícil enquadrar esta metáfora naquilo que ele considera uma dimensão-chave do esboço de Lênin de uma epistemologia materialista, baseando em Engels o argumento da relatividade sem relativismo do conhecimento humano. Nas palavras de Lefebvre: “Todo conhecimento é aproximativo, provisório, revisível, momentâneo – e, no entanto, envolve algo absoluto; não apenas um absoluto infinitamente distante, mas um conteúdo já presente; um grão de verdade, que o desenvolvimento subsequente extrai e desenrola. Nada é absoluto, tudo é relativo. Mas existe uma relação dialética entre o absoluto e o relativo: uma unidade entre esses termos contraditórios.” (p. 134) E, depois: “O absoluto está no próprio coração, se é que podemos colocar assim, do relativo; em sua seio” (p. 197). Essa dialética tanto abraça quanto supera o relativismo; é uma unidade dialética do absoluto e do relativo, ou melhor, a superação da distinção bruta entre o absoluto e o relativo é uma definição da própria dialética. É por isso que a metáfora fotográfica é tão problemática, pois, como observa Lefebvre, “é difícil ver como um conhecimento relativo pode emergir de sensações que refletem o objeto real como uma fotografia ou uma cópia” (p. 134). Para que a relatividade dialética apreenda a sensação, esta não pode ser uma unidade reificada; deve ser um fenômeno, ou seja, algo que inclui a contradição em si mesma e cuja contradição só pode ser resolvida com uma passagem para o “pensamento abstrato”, um pensamento que não reflete o aparente, mas o essencial; que se desdobra não em um reflexo sensorial, mas em um reflexo conceitual. Aqui, Lefebvre relaciona à sua leitura de MEC uma nota muito importante dos Cadernos Filosóficos de Lênin sobre a Metafísica de Aristóteles, na qual ele fala sobre a cognição humana como algo que não é “um reflexo no espelho, mas um ato complexo, dobrado e em ziguezague – um ato que inclui a possibilidade de um voo imaginativo para além da vida”, no qual somos capazes, como comenta Lefebvre, de distinguir um sonho fértil de um delírio vazio.
Nos Cadernos, Lênin reconhece claramente que a penetração no real também envolve uma atividade de abstração, de distanciar-se dele, e que essa duplicação necessária é também o que abre espaço para distorções ideológicas. Na glosa de Lefebvre: “A ideologia reflete, portanto, condições sociais e históricas; a separação entre trabalho intelectual e trabalho manual; posições de classe; mas, ao mesmo tempo, encontra sua condição no processo de conhecimento”. Enquanto a sensação imediata e a consciência espontânea estão, de certo modo, abaixo da distinção verdade/falsidade: “tudo depende de qual reflexão [réflexion], que atinge o verdadeiro reflexo [reflet] (o conceito), se extrai, através de uma série de aproximações reflexivas (das mediações), a partir dos fenômenos e das aparências imediatas.” (p. 136)
Armado com essas preliminares dialéticas (que já articulam a polêmica filosófica de Lênin em termos hegelianos, contra Colletti), Lefebvre aborda o MEC enfatizando a articulação, neste texto, de uma crise teórico-política do marxismo com uma crise ideológico-epistemológica das ciências naturais, uma crise que (e é possível imaginar Lefebvre dirigindo-se diretamente à sua época) também é a ocasião de uma renovação do marxismo, bem como de reafirmação de seus princípios norteadores que, neste caso, obviamente dizem respeito ao próprio significado a ser conferido ao materialismo. A ligação entre o questionamento científico-natural do materialismo e o revisionismo marxista está obviamente em jogo. Diagnosticar essa crise envolve pensar na conexão entre a crise do materialismo mecanicista (não dialético) e a crise da ideologia burguesa (em vista de sua recusa do marxismo). Com nossas mentes parcialmente tendo em conta a análise althusseriana dessa situação, em Lecourt, é interessante notar que Lefebvre verá o texto de Lênin como uma análise corrosiva da maneira pela qual o cientista burguês (savant) tenta “pensar sua ciência” de acordo com as ideias de sua classe: idealismo, misticismo, subjetivismo, etc. “Espontaneamente, ele pensa que tem um certo objeto de estudo diante de si: realidade material. Mas esse materialismo ingênuo e espontâneo dos cientistas não é suficiente […].” (p. 150) O materialismo espontâneo tropeça quando confrontado com mudanças na teoria científica e na ideologia burguesa. Como observa Lefebvre: “A ideologia burguesa, em contradição com a ciência (idealismo que nega o próprio objeto da ciência: natureza material, movimento tornando-se inconcebível sem apoio material) termina em uma ‘crise’ da ciência. Essa crise […] apenas aparece como uma ‘crise’ interna da ciência: é devida, em um de seus aspectos importantes, à inevitável interação no pensamento dos cientistas entre as superestruturas ideológicas da sociedade burguesa e os novos conhecimentos sobre a matéria”. (p. 150) É aqui que a lucidez de Lênin é vista em seu máximo, enquanto ele corta o nó górdio da ciência e da ideologia em torno da questão do materialismo, dobrando a própria noção de matéria (retornaremos à forma como Colletti e Lecourt diagnosticam esse movimento, ao qual eles também dão importância crucial).
Temos uma categoria filosófica da matéria e concepções científicas da matéria, específicas das ciências naturais. A matéria, em filosofia, é eminentemente simples (e, poderíamos dizer, eminentemente polêmica), sua única propriedade sendo, como Lênin argumenta, uma realidade objetiva existente fora de nossa consciência. O reconhecimento absoluto e categórico dessa externalidade é um verdadeiro axioma do materialismo dialético, separando-o do agnosticismo e do idealismo relativista. Como comenta Lefebvre, essa noção de matéria é equivalente à antiga noção filosófica de ser como o que se encontra antes e além da consciência. Não nos diz o que é matéria, mas que ela é. Como ele observa: “A noção filosófica da matéria é, ao mesmo tempo, a mais vazia e a mais abstrata de todas as noções, porque não tem conteúdo determinado – e a mais rica, a mais ampla das noções, porque designa a natureza infinita, infinitamente profunda e múltipla em sua unidade.” (p. 151) É uma noção que, nos termos de Lênin, não pode envelhecer nem desaparecer – é inteiramente intocado pelo trem das revoluções científicas. Esse conceito filosófico absoluto da matéria pode, então, ser visto como o assíntota ou atrator para as concepções relativas-absolutas da matéria lançadas pelas ciências específicas. É também uma premissa não demonstrável (daí sua polemicidade irredutível, como observado especialmente por Althusser, que torna inevitável o partidarismo na filosofia, e sobredeterminado pelas orientações revolucionárias e reacionárias do materialismo e do idealismo – orientações que Lefebvre realmente não esclarece aqui.) Como o idealismo não pode ser logicamente refutado, ele só pode ser combatido, como um postulado filosófico politicamente carregado, que, como tal, é indestrutível, sempre renascendo sob novas formas. Da mesma forma, “não se pode demonstrar, não se pode provar o materialismo. O materialista luta por sua posição, por seu partido. […] A posição filosófica é uma posição política.” (p. 154)
Mas essa oposição entre materialismo e idealismo é apenas absoluta em termos das categorias filosóficas fundamentais. Fora deste domínio, observa Lefebvre, é apenas relativa (ou, então, o materialismo nunca precisaria ser … dialético). É como se a polêmica absoluta fosse uma característica da filosofia e da política, mas não da faixa mais ampla de conhecimentos e práticas que compõem o materialismo histórico e dialético. Isso também requer um conceito de reflexo que não possa ser unilateral ou absoluto, uma vez que o marxismo “define a consciência como reflexo [reflet ou réflexion] do ser natural e social do homem, como reflexo de sua atividade prática e social e, portanto, como um reflexo complexo, emergindo da sensação e da percepção rumo ao conhecimento e às ideias. Portanto, como um reflexo que é ele mesmo ativo”. Além disso: “O materialismo dialético implica a teoria do conhecimento, o reflexo ativo [réflexion ou reflet actifs] penetrando através da prática e do conhecimento em uma realidade infinita e inesgotável. Dominando-a pouco a pouco, transformando a necessidade cega em liberdade.” (p. 159)
É apenas distinguindo os diferentes níveis em que o materialismo opera (como dilema polêmico do materialismo versus idealismo; na formação histórica dos conceitos filosóficos e de suas polêmicas concretas; e na epistemologia apropriada, de acordo com Lefebvre) que também podemos ver como – como é óbvio no caso de Hegel – o idealismo pode se revelar mais importante para o materialismo do que certas tensões do materialismo.
Para Lefebvre, a ideia central de Lênin é a da objetividade da dialética. Em que sentido os Cadernos “suprassumem” o MEC? Acima de tudo, no sentido de que introduzem uma teoria da abstração, de uma abstração do conceito, de um conceito completo, rico em conteúdo.
Coletti, ou, Contra a Hipóstase
Colletti é bem conhecido no mundo anglófono principalmente devido à sua difusão pela New Left Review e por Perry Anderson, que o elevou, junto com Sebastiano Timpanaro, ao status de filósofo italiano chave de uma nova esquerda marxista, nomeadamente através da publicação de seu Marxismo e Hegel e De Rousseau a Lênin. A New Left Review também foi o local em que Colletti primeiro esclareceu sua ruptura com o marxismo, em uma longa entrevista político-filosófica com Anderson, que só posteriormente seria publicada em italiano. De maneira singular, entre os marxistas ocidentais, Colletti encontrou no anti-idealismo polêmico do texto de Lênin de 1908 (e, talvez acima de tudo, na valorização que esse opera de Kant sobre Hegel, no terreno da epistemologia) sua inspiração teórica inicial para uma união com o Partido Comunista Italiano e com a teoria marxista. O MEC continuaria sendo um ponto de referência após a ruptura de Colletti com a teoria e a política marxistas, à medida que sua posição mudava – em bases que contêm considerável continuidade, especialmente em sua justaposição de uma epistemologia materialista realista contra a dialética de contradições reais e historicismo – de uma crítica da extrema esquerda para uma de direita ao marxismo. Nas páginas de Società, a partir de 1952, Colletti analisou o MEC, mas também usou suas polêmicas anti-idealistas como ponto de partida para críticas ao historicismo croce-gramsciano do PCI e à atração da esquerda por figuras como John Dewey. A prioridade da matéria / natureza / objetividade sobre o pensamento, e a necessidade de uma epistemologia da reflexão (ou correspondência) permaneceu fundamental para combater as posições que poderiam ser vistas volatilizando a matéria em espírito, mesmo que o nome desse último fosse práxis ou prática – posições que, seguindo Lênin, poderiam ser vistas como a proposta de tantas “terceiras vias” que obscurecem as distinções entre os campos do materialismo e do idealismo. Esse trabalho inicial prosseguiu, em boa medida, sob a égide de Galvano Della Volpe e sua imagem de Marx, descrito como o inventor de um galileanismo moral [referência a Galileo Galilei], de um método de abstração determinada. Os textos publicados em Società seriam revisados e combinados para compor o longo ensaio de Colletti, introduzindo a edição de Feltrinelli (1958) dos Cadernos Filosóficos de Lênin, Marxism and Hegel, incluída como parte I do livro homônimo, em 1969.
O capítulo de Colletti sobre Lênin e Hegel, em ressonância com Lefebvre, relaciona a crítica de Lênin ao idealismo, a uma incompreensão ideológica da realidade fundada em um processo de hipóstase, à sua crítica da divisão do trabalho, de modo que a separação entre relações materiais e relações espirituais se correlaciona com a separação entre produção e distribuição. A sociologia burguesa já está baseada nas distorções epistemológicas produzidas pela sociedade burguesa. Colletti observa o seguinte sobre os primeiros escritos de Lênin , desde O que são os amigos do povo a O desenvolvimento do capitalismo na Rússia:
[A] paixão teórica que anima esses escritos é tal que Lênin não se limita a remeter – ou pior, aplainar – o fato ideológico à sua base social, mas ele o reconstrói, desenvolvendo todas as suas implicações, inclusive no nível do método. Ele vê, em outras palavras, que, assim como o dualismo que o homem projeta sobre o objeto é a expressão de um dualismo real entre sujeitos, entre homens, da mesma forma, este último também deve envolver uma separação dualista entre sujeito e objeto na práxis do conhecimento. De fato, se na estrutura do objeto ‘sociedade’ não vejo relações materiais essenciais é porque, nesta sociedade, o mundo do trabalho e da produção tem um reconhecimento inessencial, portanto, porque há uma separação entre prática e teoria; porque a teoria, no final, permanece por si própria. (p. 152)
A crítica da hipóstase é uma crítica do processo de abstração que torna possível o pensamento metafísico. A metafísica – na interpretação de Lênin por Colletti – vira as costas para a multiplicidade dos fatos para substituí-la por uma ideia genérica autorreferencial. O MEC pode, assim, ser visto também no contexto de uma reflexão epistemológica sobre os meios para neutralizar a hipóstase. Essa crítica da hipóstase não pode repousar no materialismo como outra concepção do mundo, por exemplo, como um complemento democritiano [de Demócrito] ao método hegeliano, mas deve ser entendida como “um materialismo que se esgota sem resíduos mitológicos na investigação científica concreta” (p. 156). Apenas a manutenção da forma da “exterioridade do dado empírico-material” garante que a substituição hipostática da ideia do objeto real seja evitada. Seguindo a lição de Della Volpe, a hipóstase deve ser combatida por uma abstração determinada, na qual a atenção à individuação e discriminação do material permite um trabalho de generalização, como encontrado, exemplarmente, na análise de Marx da formação socioeconômica burguesa. A generalização depende de fatores materiais tais que as “generalizações científicas e o objeto real da análise em O Capital estão em uma relação dual de distinção-unidade”. Abstrações determinadas, conceitos empíricos, que permitem regularidade, iterabilidade, tipicidade, este é o tipo de simplificação científica que, nesta leitura proposta Della-Volpeana de Lênin, é proposta por Colletti.
Uma vez que compreendemos, como Lênin, que a análise de Marx compreende a formação econômica de uma sociedade como um processo histórico-natural, a passagem para o MEC não é uma passagem entre duas ordens descontínuas do ser físico e histórico.
Colletti salienta que o MEC é um texto mais matizado e complexo do que pode parecer à primeira vista. Ela gira em torno do princípio da epistemologia marxista, a unidade-distinção entre pensamento e ser, onde a unidade representa a capacidade de conhecer o mundo, distinção na medida em que a própria noção de ciência depende da externalidade inerradicável da realidade material para um pensamento que nunca pode esgotá-la, substituí-la ou absolutizá-la. Com base nesse princípio, o MEC está ancorado em duas teses: (1) a objetividade do mundo; (2) o caráter aproximativo do conhecimento, que requer o teste da prática e da experimentação (p. 162). O materialismo, ou “a hipótese da matéria”, é uma premissa e condição da investigação científica, mas não é um produto dela. Para Colletti, a impossibilidade de agir sem matéria, ou mesmo de afirmar seu desaparecimento, é alcançada pela negativa, anatomizando as voltas e reviravoltas, as contradições e aporias daqueles imaterialismos que encontram em Ernst Mach seu santo padroeiro. Como em Lefebvre, a distinção entre conceitos filosóficos e científicos da matéria é crucial para toda a reflexão sobre a relação entre o marxismo e as ciências da natureza. Colletti enfatiza, de uma maneira que Lefebvre não, o fato de o materialismo filosófico assim interpretado não colocar restrições ao cientista experimental. Contra qualquer transformação engelsiana ou stalinista do marxismo em uma filosofia da natureza, o materialismo de Lênin, segundo Colletti, “não tem nada a dizer sobre a estrutura ou as propriedades do mundo externo; deixa a cargo exclusivo das ciências investigar e descobri-las”. (p. 163). Colletti toma essa concepção filosófica do materialismo como base para denunciar como fundamentalmente anti-leninistas todas as variantes stalinistas de uma ciência marxista, do lissenkoismo em diante. “Você não pode deduzir de Marx nem uma biologia séria nem uma falsificada e fabricada” (p. 164). O próprio MEC não é uma generalização dos resultados científicos, mas um ponto de passagem necessário para o marxismo contemporâneo em busca de uma teoria materialista do conhecimento – embora Colletti considere que deixa a desejar no tratamento da razão e das articulações específicas de uma teoria do conhecimento, em contraste com o postulado polêmico da matéria. O que falta ao MEC, para Colletti, é “uma verdadeira teoria do conceito e das leis científicas”, limitando o escopo da polêmica e do materialismo – que, no nível do postulado em si, pode permanecer no nível de Feuerbach ou Dietzgen e não atingir o nível de Marx e Engels. O que é insuficiente em Lênin, segundo Colletti, é a determinação social ou a forma social do conhecimento, por assim dizer. Como ele escreve:
[P]recisamente na medida em que Lênin não vê (ou não vê completamente) a funcionalidade recíproca da razão e da matéria, nem consegue compreender completamente a mediação entre ciência e sociedade, ele não consegue entender que, assim como meu conhecimento não pode ser universalmente válido, de modo a abrir-me à comunicação com os outros e me introduzir na vida associada; apenas pela objetividade de seu conteúdo; do mesmo modo, inversamente, a objetividade de meu conhecimento só pode ser verificada para a e na sociedade, isto é apenas em relações com outros homens. (p. 165)
Para Colletti, isso mostra uma atenção insuficiente não apenas ao papel da prática na determinação da verdade, mas na maneira como a relação social é o princípio da teoria, uma atenção insuficiente à historicidade e à socialidade da ciência – um ponto em que Colletti resgata o pensando de Gramsci a partir de sua associação com o idealismo croceano. A obra de Lênin, com todos os seus méritos, também é um produto da redução ou fragmentação do pensamento marxista em componentes compartimentados: materialismo metafísico, por um lado; dialética hegeliana, por outro. Colletti afirma que o materialismo dialético, em sua aceitação oficial que combina a teleologia hegeliana com os princípios do materialismo iluminista, não é um materialismo científico e moderno, uma vez que implica uma concepção pré-newtoniana ou aristotélica do movimento como mudança qualitativa (em vez de aceitar que tanto movimento e quanto repouso são estados, como é evidente no princípio da inércia), e porque depende de uma noção de contradição real (em vez de oposição real), que está em desacordo com o realismo científico.
Ao contrário da estimativa de Lefebvre, onde é a integração da dialética hegeliana que permite que Lênin supere as limitações de sua polêmica contra machianos e bogdanovitas; para Colletti, a volta a Hegel serve apenas para embotar a força do postulado materialista, sem permitir uma visão realista da socialidade do conhecimento. Como Engels, segundo Colletti, Lênin interpreta mal a passagem de Hegel a Marx, como se fosse apenas uma retificação, o que significa que também para ele (nos Cadernos) “a matéria acaba somando-se à dialética como elemento extrínseco, sem que seja claro como, concretamente, ela entra na constituição e formação do novo método” (p. 166), levando Lênin a confundir as hipóstases hegeliana do conceito com antecipações de objetividade e, ainda mais problemático, aderindo à crítica hegeliana de Kant – sem perceber que o repúdio à “coisa em si” é, em Hegel, o outro lado de uma identificação acrítica do real com a ideia, uma perda dessa unidade-distinção que está por trás, no MEC, do julgamento que reconhece a contribuição de Kant para um materialismo crítico. O que se perde na denúncia do númeno do agnóstico Kant é sua “concepção positiva do sensível, de uma distinção real e não formal entre ser e pensamento” (p. 167). A atenção de uma dialética hegeliana à fluidez e mobilidade do conceito, às contradições reais que fazem com que uma mesma coisa tenha e não tenha um preço sério: a matéria e as determinações reais são abandonadas por uma questão dialética fora do espaço e do tempo (p. 167). Isso abre caminho para uma interpretação heraclitiana de Marx como filósofo da mudança e da contradição, perdendo de vista seu método de abstração determinada que permite, seguindo Della Volpe, um circuito que se move do concreto para o abstrato e vice-versa. Entre o MEC e os Cadernos, temos que escolher.
Lecourt, ou, O Espelho Quebrado
Une crise et son enjeu, de Dominique Lecourt, é uma monografia rara no marxismo europeu sobre o MEC, vinda depois de sua obra For a Critique of Epistemology (Bachelard, Canguilhem, Foucault) [Para uma Crítica da Epistemologia] e na sequência de Lênin e filosofia de Althusser, com sua elaboração do tema leninista do partidarismo na filosofia. A grande originalidade do trabalho de Lecourt, que apresenta uma paciente reconstrução da “crise das ciências físicas”, fornecendo o contexto para a intervenção de Lênin (incluindo apêndices que reproduzem alguns textos-chave no debate mencionado pelo próprio Lênin), consiste em explorar a hipótese de que a epistemologia materialista do MEC e a redescoberta da dialética hegeliana nos Cadernos não devem ser compreendidas pelo prisma da descontinuidade. Como observa Lecourt no início de sua investigação, a leitura atenta do MEC em seu contexto levanta três conclusões aparentemente paradoxais:
- o reflexo em jogo na chamada teoria do reflexo é um reflexo sem espelho;
- contrariamente às aparências, Lênin não apoia de forma alguma uma teoria sensualista do conhecimento;
- não há contradição entre o MEC e os Cadernos sobre Hegel de 1914-15; a tese do reflexo (sem espelho) encontra seu eco em um processo (sem sujeito). (p. 16)
Em vez de produzir uma teoria alternativa da produção do conhecimento, para Lecourt, o objetivo do MEC é impedir a criação, nos marcos do empirocriticismo, do tipo de ideologia científica que ilusoriamente “resolverá” os problemas científicos de uma maneira que impeça a pesquisa experimental adequada. “A vantagem de um materialismo consistente”, observa Lecourt, é “esclarecer, com uma pergunta, a formulação de um problema que é tarefa das ciências resolver” (p. 26). Como Colletti, Lecourt enfatiza que, para Lênin, o materialismo filosófico não tem contribuição direta a dar às especificações científicas da matéria. Em vez disso, ele mostra que o empirocriticismo apresenta-se falsamente como consequência filosófica das ciências psicofisiológicas, enquanto, ao contrário do materialismo dialético, é, na verdade, incompatível com estas. A leitura equivocada de Lênin resulta de tomar as ilustrações do reflexo através de estudos psicofisiológicos da percepção como sendo o próprio conteúdo filosófico de sua tese. No final, Lecourt observa, Lênin mostra que simplesmente não há um terreno comum entre o argumento idealista e o materialista, mais do que há um confronto entre duas epistemologias comparáveis.
Lecourt argumenta que, para entender a natureza do desafio de Lênin, precisamos observar a importância em seu trabalho da ordem das perguntas. É essa ordem que distingue os dois campos filosóficos. A posição materialista diz que a primazia do ser sobre o pensamento toma o primeiro lugar, enquanto a [questão] de como o conhecimento do mundo externo é alcançado é secundária. O truque do empirocriticismo é inverter esta ordem. “Essa filosofia”, comenta Lecourt, “subordina a posição na questão fundamental à solução da questão secundária” (p. 33). A questão da aquisição de conhecimento é aqui, em última análise, científica (evitando, portanto, a crítica de Colletti aos limites do MEC), e no final, “o conhecimento dos mecanismos de aquisição do conhecimento não é uma questão filosófica” (p. 35), enquanto a história da produção do conhecimento permanece apenas um esboço. No final, a epistemologia materialista de Lênin poderia ser considerada como uma espécie de epistemologia mínima, polêmica ou negativa. A tese sobre a qual se firma, a do reflexo, é, na verdade, uma tese dupla que compreende a primazia do ser sobre o pensamento e a objetividade dos conhecimentos. No momento em que a segunda tese é tratada como a primeira, a afirmação do materialismo passa a estar subordinada ao acesso à experiência da matéria. Se a objetividade do conhecimento é tratada como o fundamento da verdade, estamos dentro de uma problemática que pode assumir duas formas: ou colocar o conteúdo do conhecimento dentro do objeto e pedir ao sujeito que o descubra; ou inverter isso e colocar o conteúdo no sujeito, para o qual o objeto é uma ocasião. Essa teoria do conhecimento é um sistema fechado no qual sujeito e objeto se espelham. O conhecimento é encarado como a inscrição passiva de um conteúdo-pensamento.
Pelo contrário, de acordo com a leitura de Lecourt do MEC, se a objetividade do conhecimento é postulada com base na primazia do real sobre o pensamento, temos um sistema aberto em que o problema científico da aquisição do conhecimento é um problema disponível experimentalmente, e a tarefa da filosofia não é a fundamentação da verdade. Daí a conclusão de que a teoria do reflexo (reflet) rompe com as filosofias da reflexividade (réflexion), enquanto as teorias idealistas exigem a primazia da objetividade do conhecimento sobre a primazia do ser. Lecourt mostra como, dada essa inversão idealista das primazias, podemos obter três versões da questão da primazia: um idealismo consequente, que declara a primazia do pensamento; um idealismo hesitante ou mascarado (também conhecido como agnosticismo), que reivindica a identidade entre pensamento e ser; e um idealismo contraditório, que trata o fundamento epistemológico da objetividade como primário, mas ainda reivindica uma primazia de ser ou da matéria sobre o pensamento. Lecourt também mostra como o partidarismo leninista envolve uma estratégia complexa, neste caso, a de ocupar uma posição adversária (idealismo sensualista) para destruir o inimigo por dentro. O que é mais importante para nossos propósitos é a própria interpretação de Lecourt sobre o que poderia ser uma epistemologia materialista. A orientação polêmica de Lênin é esclarecida quando percebemos que o MEC não está tentando produzir uma teoria do conhecimento, no sentido de uma fundamentação filosófico da objetividade científica. Uma vez que a primazia do ser sobre o pensamento é a tese principal, a objetividade do conhecimento é uma tese para o conhecimento, para os estudos experimentais de aquisição de conhecimento.
Diametricamente oposto a Merleau-Ponty e Adorno, para Lecourt, o posicionamento correto da tese 2 (a objetividade do conhecimento) significa que toda a teoria do reflexo de Lênin “pode ser lida como a decomposição sistemática do fantasma do espelho que assombra as teorias do conhecimento” (p. 43). O reflexo não é uma inscrição passiva em um sistema fechado de sujeito-objeto, mas um reflexo ativo, uma noção rivaliza com a metáfora do espelhamento. Além disso, como o próprio Lefebvre notou, a natureza aproximativa ou relativa do conhecimento significa que o reflexo não pode ser “especular”. Não apenas o reflexo é ativo e aproximativa, mas a centralidade da prática no conhecimento significa que, em última análise, a base do conhecimento é social (aqui podemos ver como Lecourt postula no MEC o que Colletti e Lefebvre vêem como ausentes, com o último indo buscar isto em Hegel). É a prática que quebra o fechamento das teorias idealistas do conhecimento. Como Lecourt resume:
O que Lênin chama de ‘teoria materialista do conhecimento’ é o conjunto de teses induzidas pela tese 2 (a tese da objetividade) colocada na ordem materialista que a subordina à tese do primado do ser sobre o pensamento (tese da materialidade). O conjunto dessas teses tem como função abrir o campo para os problemas científicos – inseridos nas ciências da natureza e no ‘materialismo histórico’ – colocados pelo conhecimento aos processos de aquisição do conhecimento. Nesse sentido, a ‘teoria’ que eles constituem difere radicalmente daquela que é tradicionalmente designada pela teoria do conhecimento na história da filosofia idealista: um sistema fechado de respostas filosóficas ao problema do fundamento da verdade dos conhecimentos. (p. 47)
Um reflexo sem espelho é, portanto, “um reflexo que ocorre em um processo histórico de aquisição de conhecimentos” (p. 47). Essa noção de processo, que surge da abertura do espelhamento do sujeito-objeto, é o que liga o MEC aos Cadernos, apesar dos materiais radicalmente diferentes com os quais eles operam. É importante notar que, para Lecourt, a incapacidade de compreender essa continuidade é um produto do erro essencialmente francês de pensar que Hegel é um pensador do cogito, do sujeito, enquanto é precisamente o subjetivismo que a lógica de Hegel coloca em questão. Ao fazê-lo, Lecourt também fornece uma defesa sutil do uso de Lênin da crítica de Hegel a Kant, contra Colletti, identificando a capacidade de Lênin de ocupar as posições hegelianas (que afirmam a superioridade do absoluto, ou processo, sobre o sujeito) com a reviravolta que Lênin opera na dialética hegeliana, que envolve impedir que o absoluto volte a ser sujeito, como acontece em Hegel. Ambos os textos incorporam o mesmo princípio de partidarismo na filosofia: sempre ser capaz de discernir as novas apostas da batalha contra o idealismo, de ocupar criativamente posições inimigas (em certo sentido, não há outras) e, finalmente, nas palavras de Lecourt, “romper com uma prática puramente especulativa da filosofia para discernir, na prática social, o que, a cada momento, determina a forma do combate” (p. 112).
Bibliografia
Theodor W. Adorno, Negative Dialectics (London: Routledge, 1990)
Lucio Colletti, Il marxismo e Hegel (Bari: Laterza, 1969)
Dominique Lecourt’s, Une crise et son enjeu (Essai sur la position de Lénine en philosophie) (Paris: F. Maspéro, 1973)
Henri Lefebvre, Pour connaître la pensée de Lénine (Paris: Bordas, 1957)
I. Lênin , Materialism and Empirio-Criticism (Moscow: International Publishers, 1970)
Herbert Marcuse, Soviet Marxism: A Critical Analysis (New York:
in LavraPalavra.Br.
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