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sábado, 29 de maio de 2021

 


Tão verde, o novo mundo

António Guerreiro

28 de Maio de 2021

A natureza é um campo de batalha. E a guerra em curso não é aquela imanente às leis do equilíbrio natural nem tem nenhum aspecto darwinista, mas é uma guerra civil mundial, assimétrica, entre os açambarcadores e os expropriados. Agora, que os recursos finitos estão à beira do esgotamento e que deixou de se poder contar com a grande disponibilidade do universo natural através da domesticação técnica, económica e política, é o “capitalismo verde”, ungido de virtudes salvíficas, que prossegue a mesma guerra de sempre. Veja-se o que se passa actualmente muito perto de nós: no Alentejo, hectares e hectares de terra começam a ser cobertos por painéis fotovoltaicos e estão anunciados projectos megalómanos. Desactiva-se a central de carvão em Sines, mas a seguir, a alguns quilómetros dali, projecta-se uma vasta impermeabilização de terrenos pelos tais painéis — lisos, estéreis e mortais como a matéria plástica das estufas mais a sul. A população da zona ficou agora a saber que o sol, quando nasce, não é para todos. Muito mais a norte, nas terras do Barroso, não é o sol, mas o lítio que é a matéria-prima a extrair do fundo da terra. A população protesta, organiza-se pelo direito à paisagem e à diversidade da vida que nela habita. Mas a paisagem, como sabemos, começou a ser açambarcada ainda antes do sol.

É verdade que não podemos viver sem extrair energia de algum lado e não conseguimos imaginar uma diminuição drástica do consumo de energia sem que se dê uma regressão catastrófica. Mas nenhuma exigência de realismo nos deve fazer acreditar nas falsidades das energias alternativas e renováveis, a que temos sido expostos enquanto se vai instalando um capitalismo verde à custa da chamada “crise climática”. A verdade que hoje estamos em condições de apreender, sem hesitações, é que não há energias inócuas e sem efeitos muito nocivos. O que há é um discurso poderoso para encobrir o lado negro da onda verdejante. Sabemos que a extracção do lítio para as baterias dos carros eléctricos (assim como outros componentes necessários à sua fabricação) tem efeitos devastadores; sabemos que a energia solar, explorada em larga escala, precisa de superfícies imensas, instala o deserto, expropria as populações da sua terra. As chamadas energias alternativas são a nova indústria do capitalismo verde e transformam as populações em cobaias de um laboratório planetário. O neo-liberalismo teorizado pelos societários do Mont-Pèlerin diz que a condição para um funcionamento optimal do mundo é que as populações sejam privadas de toda a capacidade de agir sobre ele.

A denominada “crise climática”, que muitos ingénuos pensaram e pensam que seria o factor que iria, finalmente, ditar o fim do capitalismo, é o recurso recente de um novo capitalismo triunfante. Como nos ensinou Schumpeter, no capitalismo a destruição desempenha um papel tão importante como a criação. O slogan de um ecologismo de boas vontades, mas quase inócuo, avisa que “não há planeta B” e que caminhamos para uma catástrofe que atinge a todos. Não é verdade: há um planeta B no interior deste mesmo planeta, onde se instalam, ao abrigo das calamidades (canículas, cheias, tufões, ciclones, etc.), a minoria que açambarca todos os meios e recursos. Para alguns, o proclamado fim do mundo está a ser o início de um novo mundo, próspero e maravilhoso; os desastres ecológicos são selectivos, não atingem a “grande família dos homens”, não abarcam a humanidade desprovida de qualquer referência à história e à organização social e política. A ecologia política diz-nos que o desregulamento climático é uma consequência dos modos de produção e consumo próprios do capitalismo. Mas não vai além disso, não diz o que é necessário: que chegámos a uma época em que a crise climática ofereceu ao capitalismo — que exibe por todo o lado uma desavergonhada cor “verde” de onde retira grandes proveitos — novas condições para se perpetuar. Convida-nos a substituir o nosso carro a gasóleo por um carro eléctrico, fazendo-nos crer que estamos a salvar o planeta, escondendo-nos que apenas deslocámos os factores de destruição. O que fica a salvo, afinal, é a indústria automóvel. Mas não queremos, quase todos, ter um automóvel? E não queremos todos, mesmo todos, salvar o planeta? Pois bem, aí temos o capitalismo verde a criar e depois a alimentar essas nossas ilusões. A ecologia há-de morrer ainda antes do capitalismo.

in Jornal Público

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