Tão verde, o novo mundo
António Guerreiro
28 de Maio de 2021
A
natureza é um campo de batalha. E a guerra em curso não é aquela
imanente às leis do equilíbrio natural nem tem nenhum aspecto
darwinista, mas é uma guerra civil mundial, assimétrica, entre os
açambarcadores e os expropriados. Agora, que os recursos finitos estão à
beira do esgotamento e que deixou de se poder contar com a grande
disponibilidade do universo natural através da domesticação técnica,
económica e política, é o “capitalismo verde”, ungido de virtudes
salvíficas, que prossegue a mesma guerra de sempre. Veja-se o que se
passa actualmente muito perto de nós: no Alentejo, hectares e hectares
de terra começam a ser cobertos por painéis fotovoltaicos e estão
anunciados projectos megalómanos. Desactiva-se a central de carvão em
Sines, mas a seguir, a alguns quilómetros dali, projecta-se uma vasta
impermeabilização de terrenos pelos tais painéis — lisos, estéreis e
mortais como a matéria plástica das estufas mais a sul. A população da
zona ficou agora a saber que o sol, quando nasce, não é para todos.
Muito mais a norte, nas terras do Barroso, não é o sol, mas o lítio que é
a matéria-prima a extrair do fundo da terra. A população protesta,
organiza-se pelo direito à paisagem e à diversidade da vida que nela
habita. Mas a paisagem, como sabemos, começou a ser açambarcada ainda
antes do sol.
É
verdade que não podemos viver sem extrair energia de algum lado e não
conseguimos imaginar uma diminuição drástica do consumo de energia sem
que se dê uma regressão catastrófica. Mas nenhuma exigência de realismo
nos deve fazer acreditar nas falsidades das energias alternativas e
renováveis, a que temos sido expostos enquanto se vai instalando um
capitalismo verde à custa da chamada “crise climática”. A verdade que
hoje estamos em condições de apreender, sem hesitações, é que não há
energias inócuas e sem efeitos muito nocivos. O que há é um discurso
poderoso para encobrir o lado negro da onda verdejante. Sabemos que a
extracção do lítio para as baterias dos carros eléctricos (assim como
outros componentes necessários à sua fabricação) tem efeitos
devastadores; sabemos que a energia solar, explorada em larga escala,
precisa de superfícies imensas, instala o deserto, expropria as
populações da sua terra. As chamadas energias alternativas são a nova
indústria do capitalismo verde e transformam as populações em cobaias de
um laboratório planetário. O neo-liberalismo teorizado pelos
societários do Mont-Pèlerin diz que a condição para um funcionamento
optimal do mundo é que as populações sejam privadas de toda a capacidade
de agir sobre ele.
A
denominada “crise climática”, que muitos ingénuos pensaram e pensam que
seria o factor que iria, finalmente, ditar o fim do capitalismo, é o
recurso recente de um novo capitalismo triunfante. Como nos ensinou
Schumpeter, no capitalismo a destruição desempenha um papel tão
importante como a criação. O slogan de um ecologismo de boas vontades,
mas quase inócuo, avisa que “não há planeta B” e que caminhamos para uma
catástrofe que atinge a todos. Não é verdade: há um planeta B no
interior deste mesmo planeta, onde se instalam, ao abrigo das
calamidades (canículas, cheias, tufões, ciclones, etc.), a minoria que
açambarca todos os meios e recursos. Para alguns, o proclamado fim do
mundo está a ser o início de um novo mundo, próspero e maravilhoso; os
desastres ecológicos são selectivos, não atingem a “grande família dos
homens”, não abarcam a humanidade desprovida de qualquer referência à
história e à organização social e política. A ecologia política diz-nos
que o desregulamento climático é uma consequência dos modos de produção e
consumo próprios do capitalismo. Mas não vai além disso, não diz o que é
necessário: que chegámos a uma época em que a crise climática ofereceu
ao capitalismo — que exibe por todo o lado uma desavergonhada cor
“verde” de onde retira grandes proveitos — novas condições para se
perpetuar. Convida-nos a substituir o nosso carro a gasóleo por um carro
eléctrico, fazendo-nos crer que estamos a salvar o planeta,
escondendo-nos que apenas deslocámos os factores de destruição. O que
fica a salvo, afinal, é a indústria automóvel. Mas não queremos, quase
todos, ter um automóvel? E não queremos todos, mesmo todos, salvar o
planeta? Pois bem, aí temos o capitalismo verde a criar e depois a
alimentar essas nossas ilusões. A ecologia há-de morrer ainda antes do
capitalismo.
in Jornal Público
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