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segunda-feira, 3 de maio de 2021

 

Por JOSÉ PAULO NETTO*

Leia um trecho da “Apresentação” do livro recém editado de cartas de Karl Marx e Friedrich Engels.

“No método de análise, algo me prestou um grande serviço […]: voltei a folhear a Lógica de Hegel” (Marx, 16/01/1858).

“O que falta a todos estes senhores é a dialética. […] O que fazer? – se, para eles, Hegel não existiu” (Engels, 27/10/1890).

A correspondência de Marx e Engels – seja o total de cartas trocadas entre os dois no decurso de quase 40 anos de uma amizade e uma parceria teórico-política únicas, seja o daquelas que enviaram a terceiros e deles receberam – constitui um acervo textual indiscutivelmente extraordinário. Na entrada do século XXI, estimou-se que escreveram cerca de 4 mil cartas, das quais umas 2500 intercambiadas entre si, e que teriam recebido de outrem 10 mil missivas.

Ainda nos fins do século XIX, após o falecimento de Engels (1895), começou o movimento para dar a público documentos epistolares (mas não só) de Marx e de Engels – o passo inicial coube à filha mais jovem de Marx, a militante Eleanor Marx, aliás a sua testamenteira literária (ao lado de Engels). O movimento foi estimulado pela direção do Partido Socialdemocrata Alemão e acabou por se constituir numa tarefa coletiva da organização. No caso específico das cartas de Marx e Engels, um primeiro esforço institucional-partidário para divulgá-las foi conduzido por August Bebel (1840-1913) e Eduard Bernstein (1850-1932): os dois organizaram os volumes, editados em setembro de 1913, que reuniram 1386 cartas, redigidas entre 1844 e 1883.

Um solitário Vladimir I. Lênin (1870-1924), naquele tempo exilado na Suíça, examinou atentamente os quatro volumes e, em dezembro de 1913/inícios de 1914 (ano no qual se dedicaria a estudar A ciência da lógica, de Hegel), criticando embora os critérios editorais adotados por Bebel e Bernstein, extratou largamente várias das cartas marx-engelsianas e pronunciou sobre o seu conteúdo um juízo lapidar: “Se se tentasse definir em uma única palavra o foco, por assim dizer, de toda esta correspondência, o ponto central para o qual converge todo o corpo de ideias expressas e discutidas – a palavra seria dialética. A aplicação da dialética materialista à reconfiguração de toda a Economia Política, desde os seus fundamentos, a sua aplicação à história, às ciências naturais, à filosofia e à política e às táticas da classe operária – foi isto o que mais interessou a Marx e a Engels. Com isto contribuíram com o que havia de mais essencial e novo, constituindo o magistral avanço que ofereceram à história do pensamento revolucionário”.

O leitor que percorrer as páginas desse volume poderá examinar alguns dos textos cuja relevância levou aquele que seria o grande líder da Revolução de Outubro a expressar-se de modo tão certeiro.

1.

Precisamente na sequência da Revolução de Outubro criaram-se as condições para que a ideia de coligir todo o acervo literário marx-engelsiano e oferecê-lo à luz pública – envolvendo o que havia de textos inéditos, incluída a sua correspondência, mas também recuperando os materiais já divulgados – ganhasse o estatuto de um projeto cuidadoso. Tais condições foram propiciadas pelo suporte do jovem Estado soviético (com Lenin à cabeça), que ofereceu os meios para a organização, em janeiro de 1921, do Instituto Marx-Engels (depois, algumas vezes renomeado), sob a direção de Davod Riazanov (1870-1938). Este qualificado intelectual revolucionário, à frente de um grupo de pesquisadores, planejou e começou a implementar o que deveriam ser as obras completas de Marx e Engels (a coleção Marx-Engels Gesamtausgabe, conhecida como MEGA).

O projeto inicialmente conduzido por Riazánov, em seguida dirigido por V. V. Adoratsky (1878-1945), não se concluiu, interrompendo-se quando da agressão nazista (1941) à União Soviética. Mas as pesquisas processadas no instituto criado em 1921 de alguma forma prosseguiram: especialistas soviéticos trabalharam, entre 1928 e 1946, para oferecer a primeira edição russa do que seriam as Obras completas [Sochineniya] de Marx e Engels; apesar do título geral e do que então se concretizou do projeto (28 volumes em 33 tomos), incompletude do material publicado neste lapso temporal ficou evidente. De qualquer modo, cresceu nesses anos o acervo epistolar de Marx e Engels que saiu do ineditismo.

Foi somente com a documentação reunida, primeiro nos volumes das Karl Marx-Friedrich Engels Werke (edição alemã conhecida pelo acrônimo MEW, 39 volumes + 2 suplementares, publicados pela cada Dietz, de Berlim, entre 1956 e 1968), e depois nos das Marx-Engels Collected Works (Obras coligidas de Marx e Engels, conhecidas pela sigla MECW – 50 volumes editados, entre 1975 e 2005, por Lawrence & Wishart/Londres e International Publishers/Nova York) –, somente então o legado epistolar de Marx e Engels trazido à luz ganhou maior dimensão, mas, ainda assim, sem estar, na sua totalidade, disponível ao exame público.

O fato é que, desde meados dos anos 1940, vieram à luz, na Europa e nas Américas (e também no Oriente), coletâneas e seletas, as mais variadas, de cartas dos dois revolucionários. Não é possível, nesta oportunidade, listar minimamente tais coletâneas, mas cabe assinalar que o interesse pelo intercâmbio epistolar de Marx e de Engels se mantém vivo nos dias correntes.

Observe-se que esta correspondência só adquire a sua efetiva significação quando devidamente contextualizada – tanto no marco da biografia dos seus signatários quanto na conjuntura histórica precisa em que suas peças foram redigidas. Escritas em diferentes idiomas (especialmente alemão, inglês e francês, muitas vezes mesclando-os numa mesma missiva), as cartas aqui coligidas são típicas de uma correspondência privada, propriamente particular, compreensivelmente vazadas sem preocupações formais, em tom coloquial (por vezes valendo-se mesmo de termos vulgares) e, inevitável e frequentemente, exprimindo opiniões e juízos que o calor da hora tornava eventualmente equivocados e inclusive estados anímicos momentâneos e passageiros. É evidente que esses aspectos adjetivos importam quando se trata de signatários cuja estatura teórico-intelectual e política alcançou relevo mundial duradouro – e Marx e Engels personificam, como poucos, missivistas com tais características. Mas tais aspectos nem por isso deixam de ser adjetivos.

Significativos são alguns traços gerais que se revelam sempre presentes e reiterados no que, de fato, há de mais objetivo e expressivo na correspondência de Marx e Engels – e que contribuem para compor o perfil dos dois camaradas de ideias e de lutas. Destaquemos cinco desses traços (cuja visibilidade, no presente volume, seguramente será verificada pelo leitor atento):

– a viva referência à herança cultural provinda da Antiguidade (greco-romana), enriquecida e redimensionada com o Renascimento (aí, é óbvio, incluída a Reforma) e atualizada com a Ilustração, cujos conteúdos Marx e Engels dominavam com extrema segurança;

– o domínio exaustivo e crítico das manifestações teóricas, culturais e científicas que lhes eram contemporâneas nos mais distintos campos do conhecimento (História, Filosofia, Economia Política, Arte/Literatura, Ciências e Tecnologias…), dando provas – para além de qualquer eruditismo/enciclopedismo – do acúmulo e do processamento de um impressionante universo de informações;

– a aguda consciência da permanente necessidade da pesquisa para formulação/comprovação de qualquer juízo sobre a realidade, concebendo o seu conhecimento como historicamente condicionado pois, passível de ampliação, retificação e revisão;

– a sistemática investigação das relações – de autonomia e de dependência – entre as várias modalidades de conhecimento desenvolvidas historicamente (Filosofia, Arte, Ciência etc.) e os suportes econômico-sociais e políticos determinados que as embasavam;

– a recusa explícita de modalidades explicativas/compreensivas da vida histórico-social fundadas em reducionismos analíticos, conducentes a soluções simplistas e esquemáticas.

Entretanto, sem minimizar o que se encontra nesses (e ainda noutros) traços da correspondência marx-engelsiana que já está dada ao conhecimento público, o que a nós nos parece essencial para o estudioso que a examina hoje deve ser buscado nas suas passagens que se referem estria e diretamente às motivações das iniciativas políticas mais importantes dos signatários e, muito especialmente, ao desenvolvimento do seu projeto teórico.

Justifica esta priorização, em face do que já conhecemos das biografias de Marx e de Engels, uma razão elementar: tanto num caso como noutro, dispomos de critérios objetivos para avaliar documentalmente as resultantes do que na correspondência se registra como intencionalidade – vale dizer: temos hoje muito mais elementos factuais e textuais que aqueles consignados nas cartas de Marx e de Engels para ajuizar das conexões entre as suas intenções e o que delas efetivamente se concretizou.

Sinalizemos em que estas últimas observações mostram-se pertinentes para o que nos interessa maiormente ao apresentar esta edição das Cartas sobre “O capital”. Tanto em 1948, data da primeira recolha delas em um volume, quanto em 1954, quando se fez uma edição alemã de divulgação mais ampla e a partir de meados dos anos 1960, com a sua publicitação alargada (saem sucessivamente em volumes específicos as suas edições em francês, castelhano, italiano e inglês), pelo menos os três livros d’O capital já eram de pleno domínio público. Até então, cartas como as recolhidas no presente volume eram praticamente o único material autógrafo significativo que poderia contribuir para esclarecer a gênese e a elaboração da opus magnum marxiana.

Ora, atualmente dispomos não só de edições integrais d’O capital – e de mais outras obras a ele conexas –, mas ainda de materiais preparatórios para a grande e inconclusa obra. Atualmente, pois, o estudioso d’O capital tem à sua disposição um conjunto textual que lhe propicia melhores condições para acompanhar e compreender o desenvolvimento do processo teórico-analítico que, objeto da correspondência marx-engelsiana aqui compendiada, apresenta-se então globalmente formatado. Assim, o estudioso pode examinar o teor da correspondência e aferi-lo considerando o que objetivamente dele resultou.

Agora, ao fim do segundo decênio do século XXI, sob a luz dos materiais relacionados a O capital já conhecidos, as cartas reunidas neste volume podem (e devem) ser apreciadas de um modo novo, mais rigoroso e melhor fundamentado, que esteve fora do alcance dos principais estudiosos que as analisaram até as sétima e oitava décadas do século passado. Pensamos, todavia, que, submetidas ao filtro crítico contemporâneo, elas conservam ainda uma importância toda especial.

*José Paulo Netto é Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autor, entre outros livros, de Karl Marx – uma biografia (Boitempo).

Referência


Karl Marx & Friedrich Engels. Cartas sobre “O capital”. Tradução: Leila Escorsim. Revisão técnica e apresentação: José Paulo Netto. Edição: Miguel Yoshida. São Paulo, Expressão Popular, 2020, 480 págs.

 

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