O que é ser rico em Portugal? (Um debate com Raquel Varela)
Raquel Varela, de quem também aprecio lutas várias, acha que a classe média são as pessoas que têm o orçamento da família dela. Lamento, mas não são.
Raquel Varela escreveu ontem um texto para debater comigo quem deve pagar a crise. Vamos, então, ao debate.
Numa entrevista ao PÚBLICO, publicada a 20 de abril, o Sérgio Aníbal perguntou-me o que são os rendimentos mais altos e se não apanhavam a chamada “classe média”. Eu respondi com um facto: só há 10% dos contribuintes que ganham mais de 50 mil euros brutos por ano por agregado familiar. Na verdade, arredondei para cima, porque há apenas 8,75% dos 5,3 milhões de agregados que entregaram declaração de IRS em 2018 com rendimento bruto acima de 40 mil euros. Mas também disse que há muito rendimento que não é tributado e não surge nesta estatística, o que faz com que a carga fiscal seja injusta.
Ao contrário do que afirma Raquel Varela, eu não estava a defender que a carga fiscal sobre estas pessoas deva aumentar. Mas também não disse, nem digo, que não devia. O meu objetivo foi chamar a atenção para dois factos: que não é preciso ganhar muito para fazer parte dos mais ricos deste país e que, se há muito rendimento que aparece nas contas nacionais e não na Autoridade Tributária (AT), é porque há formas, muitas delas legais, que fazem com que ele desapareça das malhas tributárias.
Os números que aqui deixo incluem rendimento de trabalho e de capital. No caso da World Inequality Database, chegam mesmo ao rendimento de capital tributado em sede de IRC. Quem detém o rendimento, em última análise, são sempre as pessoas. A separação entre capital e trabalho perdeu importância no mundo dos CEOs e dos trabalhadores bem pagos dos sectores dos serviços e financeiro, que combinam rendimentos de capital e de trabalho. Está na altura de pensarmos em rendimentos elevados, independentemente da fonte.
Quem são os 1% mais ricos? Os valores aqui reportados da AT são todos aproximados, porque a informação disponível não me permite situar exatamente o percentil. O top 1%, na AT, em 2018, são os agregados com mais de 100 mil euros por ano. Detêm 8% do rendimento bruto e contribuem quase um quarto da coleta. No Inquérito às Condições de Vida e do Rendimento (ICOR), do INE, os top 1% têm mais de 137 mil euros por agregado. Na World Inequality Database (WID), o valor para Portugal corresponde a 150 mil euros por adulto.
Quanto aos 10% mais ricos, na AT são os agregados com mais de 40 mil euros, que detêm um quarto do rendimento bruto e suportam 40% da carga fiscal. No ICOR, o top 10% são os agregados com mais de 56 mil euros e na WID são os adultos com mais de 50 mil euros. Os valores na WID são por adulto e os restantes por agregado. A conclusão que se impõe é que há muitos euros em falta das declarações de IRS. Passo a explicar porquê.
No Twitter, coloquei no outro dia umas estatísticas da WID e alguém, surpreso com as discrepâncias com a AT, sugeriu que estas “cheiravam mal”. É tudo absolutamente inodoro. Há várias fontes possíveis para analisarmos a distribuição do rendimento e nenhuma é melhor do que a outra. As estatísticas de IRS publicadas pela AT têm o rendimento tributado, em sede de IRS, no momento da declaração de rendimentos. Não têm o rendimento todo. Por exemplo, os rendimentos de capital que são tributados na fonte, com a taxa liberatória de 28%, são de englobamento opcional. Isto é, cada contribuinte pode decidir se quer ou não somá-los ao rendimento restante. O englobamento implica que o rendimento de capital é tributado à taxa marginal, que depende do rendimento total. Logo, são os contribuintes mais ricos, com taxas marginais superiores a 28%, que têm interesse em não englobar os rendimentos de capital e, por isso mesmo, é mais provável que o rendimento em falta nas declarações de IRS seja precisamente dos mais ricos.
A outra razão para o rendimento não aparecer todo nas declarações de IRS é que há estratégias de planeamento fiscal agressivo que fazem desaparecer rendimento. Estas estratégias, umas mais legais do que outras, envolvem quase sempre passar rendimento entre as esferas do IRS e do IRC, e são também mais utilizadas pelos contribuintes mais ricos. Do lado dos contribuintes mais pobres, os agregados familiares com rendimento até 8500 euros por ano não são obrigados a entregar declaração de IRS. É outra parte do rendimento, menos substancial, que não está nos dados da AT.
O Inquérito às Condições de Vida e do Rendimento é baseado numa amostra e o rendimento é declarado pelos próprios – logo, medido com erro. Mas tem duas vantagens: inclui as transferências da segurança social e cobre toda a população, mesmo aqueles mais pobres que não declaram IRS. Finalmente, temos a World Inequality Database, que produz estatísticas de distribuição do rendimento combinando os dados da AT, os inquéritos e as contas nacionais, procurando que a distribuição do rendimento reflita a totalidade do que é gerado no país num determinado ano, plasmado nas contas nacionais.
O Luís Aguiar-Conraria escreveu há dias no Expresso que era bom que nos convencêssemos que “a decisão de aumentar os impostos é tomada não quando estes sobem, mas antes, quando se aumentou a despesa pública”. Eu acrescento que era bom também começarmos a debater isto de forma adulta e informada. Podemos eliminar tributações autónomas, esquemas vários de otimização fiscal de empresas e pessoas, possibilidades de dedução de despesa em sede de IRS, criar mais um escalão no top 1%, mudar as taxas marginais dos escalões mais elevados ou mexer no IRC. O que não podemos é continuar a fazer apelos ao novo contrato social sem pagar para ele. E podemos, claro, discutir se queremos tributar a riqueza. Quando Raquel Varela refere que as 25 famílias mais ricas de Portugal têm 18 mil milhões de euros e contrasta isso com os 50 mil euros por ano dos agregados, supostamente médios, que eu supostamente quero tributar, está a misturar património com rendimento. Alhos com bugalhos, portanto.
Eu também gostava que o país fosse mais rico. Mas não é por um rico português ser pobre quando comparado com um rico dos Países Baixos que ele é menos rico quando comparado com um pobre português. E, já agora, onde está a famosa classe média? Se for quem fica a meio, com metade dos agregados mais pobres e a outra metade mais ricos, é um agregado com 23 mil euros brutos, de acordo com o ICOR, e um adulto com 15.600 euros, de acordo com o WID. Nada que se compare, portanto, aos 50 mil euros brutos que Raquel Varela utiliza para a definir. Não, a nossa classe média não gasta 200 euros num dia a “ir ao teatro e comprar um livro a cada membro de uma família de quatro e jantar”, muito menos despende 700 a 1000 euros por mês para se alimentar “com qualidade”. Raquel Varela, de quem também aprecio lutas várias, tal como ela afirma apreciar outras minhas, acha que a classe média são as pessoas que têm o orçamento da família dela. Lamento, mas não são.
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