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quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

FELIZ ANO NOVO!

Para os meus «seguidores» a quem sigo com prazer e admiração, para os demais amigos que fazem o favor de me lerem, para aqueles que verifico que me visitam mas cujas identidades desconheço, para todos vós Um Grande, Muito Grande e muito Feliz Novo Ano!

NOVAS FÁBULAS - 1

O Optimista

Voava de ramo em ramo contente da vida. Era um macaco optimista. «O que está bem hoje, estará bem amanhã!», filosofava. «Se não está bem, vai melhorar!», rematava. Nem sempre estava bem, contudo o sol havia de nascer outra vez. A crença era tão genuína, natural e profunda, que até os gorilas o admiravam, entre duas sestas. Acreditava num Criador, Bom e Misericordioso. Acreditava de um modo tão sincero que até as girafas lhe tiravam o chapéu. Porém, habitava o mesmo território um macaco bem diferente. Ladino e astuto, divertia-se a trepar à porfia com ele pelos melhores frutos. Não era rara a vez em que chegava primeiro. «Quem vai ao mar, perde o lugar!», «Quem chega primeiro come melhor!», «Fia-te na virgem e não corras!», com provérbios como estes ia espicaçando o outro. Às fêmeas joviais arribava primeiro e ataviava-se. Enquanto o outro aos predadores exibia-se confiante, eclipsava-se num relâmpago ao primeiro sinal de aviso. Certo dia numa dessa correrias caiu desamparado e não fosse um monte de folhas fofas que o amparou logo ali teria entregue a alma ao Criador, na opinião oportuna do Optimista. «Não estava escrito que hoje esticasses o pernil!», alvitrou este lá do alto, sem um riso, sem uma blasfémia.

Quando, noite alta, um temporal varreu a região com ventos a 200km à hora, o macaco optimista foi lançado como uma bola de ténis pela estratosfera. Foi mergulhar num poço a 300km por segundo. «Que sorte, o Criador fez este poço para mim!». O outro macaco, que se anichara num abrigo à prova de bala, foi encontrá-lo, dois dias depois, enregelado, em cima de um pinheiro semi-esgalhado. «Se tudo de mau tinha de acontecer, porque não te precaveste?», disparou-lhe à queima-roupa. «Se adivinhasse o dia de amanhã não era optimista!», retorquiu o outro com enorme sabedoria.

AVISO

Com o novo ano inicio uma nova série de FÁBULAS que espero colocar com regularidade. A esta nova experiência junta-se a continuação da Novela «Na Hora Da Nossa Morte» e a série de estudos sobre «Filosofias Materialistas». A quem apreciar os meus agradecimentos; aos outros, os meus lamentos.

Um Novo Ano Cheio de Lutas pelas liberdades e direitos sociais!




quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Na Hora da Nossa Morte (novela, cont.)


Diário de Marta -10




Sim, procuro sair mais, seguir o conselho da minha mãe. Aliás, uma solução óbvia. Desde sempre que a soube, a dificuldade foi encontrar vontade, iniciativa. Somente seguimos os conselhos para os quais já estávamos preparados. Ontem percorri a pé a cidade. Se excluirmos a zona norte que cresce rapidamente, a cidade de Torres Vedras percorre-se sem qualquer esforço. Observei com uma atenção que nunca lhe prestei a Igreja e Convento da Graça. Ao que dizem foi convento dos Eremitas Calçados (curiosa esta classificação! Andariam de facto descalços os outros?). É austero mas adornado com uma elevada e bela torre sineira. Pouco mais posso descrever com termos técnicos que a minha ignorância nestes assuntos não é pequena (admiro os médicos que arranjam tempo para serem cultos). O que posso afirmar como leiga é que o retábulo da igreja é bem bonito. As esculturas são delicadas nos tons e nas roupagens. O claustro é a parte de que mais gostei: um sorriso breve do sol de inverno adoçava-lhe as colunas e fazia apetecer a tranquilidade dos bancos. Visitei o Museu Municipal, a documentação sobre as invasões francesas, esse período histórico do qual todos julgam saber muito e na realidade não sabem nada.

Não pude visitar a Igreja da Misericórdia, ali ao pé do café Havanesa, por estar encerrada, foi pena porque me disseram que era bastante bonita. Aproveitei para visitar a igreja de São Pedro, pequena e confortável, com uma torre sineira que me informaram ser quinhentista mas reconstruída depois do terramoto de 1755, e um portal manuelino ao qual tirei algumas fotos (a fotografia poderia ser o meu entretenimento preferido se tivesse tempo e aquele à vontade que faz de um fotógrafo um autêntico caçador). Atravessei depois a pequena praceta que se situa nas traseiras, pejada de carros e dirigi-me para o Chafariz dos Canos, monstruosamente enquadrado por uns prédios horrorosos. Um monumento de que nunca vi igual. Merecia uma área condigna e um restauro que o tornasse vivo e atractivo. Regressei à praça da igreja de São Pedro, enfiei pela ruela agradável que desemboca nos Paços do Concelho, com um bonita fachada, virei à esquerda para descansar um pouco num banco aprazível da praça de Machado Santos, que é para mim talvez a praça mais bonita da cidade, ao lado a igreja de Santiago que já visitara antes. A vontade de comer invadiu-me sem aviso, mesmo assim decidi-me a subir o Centro histórico, recuperado recentemente, a guardar respeito e silêncio no interior da Igreja de Santa Maria do Castelo, a mais hospitaleira das igrejas de Torres Vedras, com uma luz diáfana e um belo púlpito. Não sou de rezas, contudo apeteceu-me rezar. Não são as catedrais faustosas que os soberanos mandavam construir para garantir a imortalidade deles, como os faraós, que me comovem, mas as capelas, as igrejinhas modestas, às vezes perdidas e solitárias no ventre das grandes metrópoles, outras vezes peregrinas no alto dos montes.

Não sei se Deus existe, se não. Se existir que tenha em paz ao lado dele a minha filha morta para este mundo.

Amanhã vou visitar o professor Ramos, meu mestre nos tempos já longínquos do Liceu. Não sei o que me deu, que pressentimento, que vontade, que fui descobri-lo na Net, provavelmente por causa de um dossiê de grupo que descobri por acaso, numas arrumações, em casa. E-mail enviado, e-mail respondido de pronto. Vi a fotografia dele num blog, a cabeça encanecida, os olhos com aquele brilho peculiar que o tornava interessante. Vou visitá-lo, não é longe. Vou seguir o conselho de minha mãe.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Na Hora da Nossa Morte (novela, cont.)

Diário de Carlos – 11



Ontem realizou-se a cerimónia do lançamento da primeira pedra para a minha ponte. Iniciaram-se as obras. Hoje, pela manhã, já lá fui e acompanhei os primeiros trabalhos de terraplanagem das arribas onde os pés hão-de assentar. O rio naquela zona estreita bastante, as arribas são elevadas, retirada a terra aparece a rocha. Furar o granito, enfiar nos poços as colunas, despejar cimento. Um único tabuleiro, suficientemente largo para o trânsito automóvel e para bermas seguras para os peões. Justificava-se que levasse apenas um arco, porém levará dois, verdadeiramente não serão arcos perfeitos, mas inclinados cada um para o lado oposto, ficarão com uma vibração harmoniosa, cada um a cair para o extremo oposto, dois contrários que se equilibram, lembro-me ainda bem das aulas de filosofia, de Heráclito, o filósofo obscuro mas divino, como explicava o professor Ramos, os arcos da lira, imaginemos duas liras, ou dois arcos, duas forças oponentes, duas forças que jamais se derrotam uma à outra. A minha ponte há-de ser a imagem da identidade das contradições, digo eu, que não sou filósofo, porém não sou estúpido, vivi o bastante para descobrir que as contradições estão por todo o lado, tanto se aniquilam uma à outra, como se equilibram desde que o peso, ou a massa, ou a energia, sejam equivalentes. É esta tensão que aprecio. É esta tensão que traduzi na minha ponte.

A cerimónia decorreu como é costume: o governador civil, o presidente da Câmara e os vereadores, os deputados municipais, a bênção do pároco, um destacamento de bombeiros e representantes engalanados de associações e colectividades. O ministro das Obras Públicas baldou-se, enviou um sub-secretário. O senhor presidente da Câmara fez um discurso empolado, em que falou mais dele do que de mim, mais das obras que promete do que a ponte que estava ali a começar. Tocou a charanga dos bombeiros e ainda foi o que melhor se ouviu. Não houve porco assado no espeto, a populaça depressa debandou.

Tenho saudades da Carla. No fundo, talvez me apeteça é outra mulher. Porque me lembra a Carla? Provavelmente porque não me apareceu outra. Todavia, a Carla rejuvenesceu-me, aquele corpo jovem e sensual mexia comigo. Aprendia depressa tudo que lhe ensinava. Suspeito que já o sabia, em teoria convenhamos pois que era virgem. Que energia naquele corpo sem as neuroses da mulher madura! Tenho quarenta e um anos, ela vinte e poucos, vinte e dois mais exactamente, noutro mundo poderíamos viver juntos, talvez casássemos, teríamos filhos…Mas não, nenhum de nós estava preparado, para casamentos não estou apto, por enquanto pelo menos, e a rapariga ainda menos: um curso superior para terminar, projectos de realização profissional, rapazes da sua idade para explorar. Que fui eu para ela? Uma iniciação. Que foi ela para mim? Uma aventura inconsequente? Que possuía ela a mais sobre as outras que conheci? Esse longo reportório…Talvez tivesse, nenhuma folha de árvore é idêntica à outra. Só as pontes se podem copiar…Será que projectei na minha ponte os arcos dançantes do corpo da Carla? Bailarina, tensão de opostos…

Na Hora da Nossa Morte (novela, cont.)

DIÁRIO DE MARTA-9




Fui ao cemitério deixar flores para a Gisela. Não contive o choro. Não vejo como realizar o luto. Não há perda maior do que a perda de um filho, carne da nossa carne. Trouxe-a no ventre, amamentei-a, brincámos juntas, fez-me rir quantas vezes com os seus comentários infantis, a música das suas primeiras palavras, a expectativa das prendas de surpresa no natal. A vida de uma mãe deixa de fazer sentido quando já não é mãe, quando a fatalidade lhe roubou a luz dos seus olhos.

Preciso de viver e não sei como.

Estive com a minha mãe. Foi necessário telefonar-lhe primeiramente não se desse o caso de não estar em casa, ocupada como anda, ou parece, com a sua paixão adúltera, não desejava de modo nenhum aparecer em casa de repente e deparar com o meu pai sombrio e apagado como uma vela gasta. No fim da conversa gostei de estar com ela. Enfrentou a minha pergunta frontal sobre o amante com algum desconforto, mas depressa se recompôs: «Está certo, minha filha, mais tarde ou mais cedo tínhamos de conversar sobre isso, sei tudo sobre ti, julgo eu, e tu não poderias desconhecer o que passa comigo. Não quero mal ao teu pai, fui feliz com ele tempo suficiente para o estimar, é bom homem e foi um bom pai para ti. Provavelmente o caso em que me envolvi passará um dia destes, não será talvez mais do que uma fuga aos silêncios que pesam sobre esta, casa que já foi ruidosa quando tu e a minha netinha nos visitavam, o teu marido, ou ex-marido, também, não deves esquecer quanto ele era alegre e generoso connosco e convosco, mas, enfim, não falemos dele…Cometeu um desleixo trágico, inqualificável, muito embora eu talvez lhe houvesse já perdoado, mas tu não lhe perdoas, e tens as tuas razões, o amor é um sentimento muito delgado, como um fino fio, quebra-se e desaparece por uma palavra que se diga, um acto que se pratica…Sei do que falo, em relação ao teu pai sucedeu isso e não cometeu o mesmo horror que o teu ex-marido, provocar a morte da filha porque estava ao telefone não sei com quem, e logo ele que conduzia sempre irresponsavelmente depressa…Mas não falemos disso, é assunto que não esqueces mas queres esquecer, o teu problema é não conseguires fazer o luto, matutas, matutas, e dás cabo da cabeça e da tua vida, só tens uma vida, bem sabes, já não és uma jovem, o tempo passa depressa, sei bem isso! Tens que refazer a tua vida, eu não tenciono, está descansada! refazer a minha vida com o Bártolo, falemos no nome dele porque pelos vistos já o conheces, não tenciono não, continuarei com o teu pai, a não ser ele que não o queira, é uma traição? Uma deslealdade? Pois será, mas permite, minha filha, que eu resista à velhice que chega, ao tédio, à frustração, tive uma vida cheia, trabalhei bem, fui respeitada, trazia dinheiro para casa, não mereço, acho eu, um resto de vida infeliz com um homem que me ignora, que desperdiça economias no jogo e na bebida, não sei o que lhe sucedeu para se transformar num pobre-diabo, diria que foi a aposentação, mas não me parece, nunca o vi trabalhar com empenho, parece que nasceu um fracassado. Mudemos de assunto…Não sirvo para te dar conselhos, sobretudo agora que não convives facilmente com o meu comportamento extra-conjugal, eu sei, não vale a pena estarmos com evasivas, contudo deixa-me dizer-te o que me parece melhor para ti, para ti que és a minha única filha: já pensaste em ter outro filho? Evidentemente que não substituirá nunca aquele que perdeste, mas será um consolo, uma nova entrega, uma espécie de remissão da tua dor…Com quem, de quem? Não surgiu ninguém na tua vida, não te apaixonaste, não tens um amigo especial? Não tens ou não sabes? Fechaste-te em ti mesma, trabalho-casa, necessitas de sair, conviver, descobrir amizades, olha: nem que seja através destes meios modernos, refiro-me à Net, dizem que se fazem bons casamentos através da Net…Olha lá, tu até nem precisas de recorrer a isso, ainda és uma mulher bonita, com quarenta anos és uma mulher madura, desejável para muitos homens, bastaria que saísses da casca onde te escondes, cuidasses mais de ti, não vais às compras? Não frequentas um ginásio? Tens dinheiro de sobra para isso! Estás divorciada, és uma mulher livre e emancipada…luta por ti, vai em frente! Traz-me um netinho, talvez até seja bom para o teu pai, talvez alegre esta casa tristonha, insuportável. Não queres casar novamente? Pois não cases! Namora o mais que quiseres e puderes, minha filha, vida só há uma e tu já a gastaste pela metade…»

Quando saí de ao pé da minha mãe vinha absorta. Admirada com o discurso dela, desenvolto, afirmativo, que bem lhe anda a fazer o tal Bártolo! E vim a matutar no que ela me disse…um filho, porque não? Vou pensar nisso com a razão. Calcular as estratégias. Mãe solteira. Seleccionar o homem certo para essa função. Exclusiva função de dar-me um filho.

Ano Velho, Ano Novo

Dois burros, que não asnos, de idades diferentes, encontraram-se no cruzamento de dois caminhos.
Diz o burro novo: Estás com um ar acabado, ó fraterno!
Responde o burro velho: Quando te acabar o ano também estarás assim.
Replica o burro novo: Foi assim tão mau o teu ano? Sou um optimista. O pessimismo veio-te com a velhice.
Treplica o burro velho: Ou a lucidez. Fiquei desempregado, os filhos chateiam-me com as prendas de natal e os gastos deles para a passagem de ano, o meu patrão só fez merda para os pobres e dinheiro para os ricos e, ainda assim, ganhou as eleições. Prepara-te para o que te espera...
Responde o burro novo: Pode ser que melhore, tenho fé e confiança. O teu patrão é igual ao meu, e o meu já vai recuando quando a pressão aumenta.
Retorque o burro velho: Se o teu dono é igual ao meu bem podes ter fé nesses iguais: ainda o teu ano irá a meio e dar-te-ão aos lobos.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

A década de chumbo

Apelidaram-se de «anos de chumbo» aos anos 70, na Itália, marcados com os atentados terroristas da extrema-esquerda e da extrema-direita. Terroristas sem mais adjectivos. A década que ora termina não foi menos de chumbo, no sentido literal e figurado. Quem tem uma memória já longa como a minha lembra-se da década de 80, que mereceria o mesmo apelido, a da senhora Tatcher e dos senhores Reagan e Cavaco. De resto a crise económico-financeira do capitalismo começou, a bem dizer, nos anos 70 e de solavanco em solavanco rebentou agora. Os anos do neo-liberalismo não foram de ouro, excepto para os bandidos, isto é não foram o fim da crise de 70, mas, antes, a sua continuação. O neo-liberalismo, com a excelsa escola de Chicago que escavacou a teoria do Keynes e o Estado Previdência, não vieram resolver crise nenhuma mas aprofundá-la e dar-lhe novas rapinas. O estudo clássico de Marx, O Capital, cujos volumes estão agora integralmente traduzidos e publicados pela Editorial Avante!, descrevem há cento e cinquenta anos perfeitamente a natureza rapace do capitalismo. Não mudou. Está sempre a rapinar e não o deixou de fazer nos anos de «boom» económico, lá para os idos de 50 e 60.
O que nos fica na memória desta década é a reacção terrorista dos EU e seus aliados em resposta ao terrorismo circunscrito do grupo de Bin Laden, isto é, o excelente pretexto que encontraram para rapinar o petróleo do Iraque e controlar os preços da OPEP. Nem mais. O que nos fica na memória é o fim definitivo da Jugoslávia, a realização dos planos há muito delineados pela Alemanha e EU (sempre presentes estes em todo o lado). O que nos fica na memória é a sangria no Congo ex-belga, atiçada pelos ex e novos colonizadores de mãos dadas com os mais sanguinários corruptos deste planeta (e os minérios do Congo!). O que fica na memória é a anarquia genocida do «corno de África», Sudão e Somália, depois de varrido o socialismo que lá se instalara, sempre com a mãozinha dos EU (como já o fizera armando a Eritreia para que esta demolisse o regime socialista da Etiópia). Onde lhe cheirasse a socialismo (e a nacionalizações pois claro!) os EU decapitaram, delapidaram e demoliram.
Desta década fica-nos, portanto, na memória, o desastre a que nos conduziu o neo-liberalismo, cujo alto preço está (e vai ser) pago pelos povos e pelos trabalhadores (como sempre, de resto).
Copenhaga, por sua vez, pariu um rato. Um ratito para "combater" a monstruosidade das ameaças que pesam sobre este pobre planeta.
Boas Festas!

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Crítica da Razão Consensual- A ONTOLOGIA

Não se critica a possibilidade, a necessidade e o valor dos consensos que ponham um fim justo aos conflitos, mas um pensamento único, débil, conformista, submetido, quantas vezes imbecil e infantilizado. Critica-se qualquer ideologia política ou religiosa (aliás, sempre política) que se arvore em universal para se impor como única e verdadeira. Critica-se qualquer filosofia que em nome do Sujeito, dos Valores, da Subjectividade, da Comunicação, queira fazer passar o primado do espírito, das ideias, ou mesmo das sensações, sobre a materialidade do mundo; isto é, critica-se o idealismo nos seus múltiplos disfarces.

O que é ONTOLOGIA?

«A partir da altura em que Aristóteles falou de uma filosofia primeira e nela incluiu tanto o estudo do ente enquanto ente como o estudo de um ente principal ao qual se subordinam os demais entes , se abriu a possibilidade de distinguir entre o que logo se chamou ontologia e o que com maior frequência se entendeu por metafísica. Apenas no começo do século XVII surgiu o termo “ontologia”. Por meio do nome “ontologia” se designava o estudo de todas as questões que dizem respeito ao conhecimento dos géneros supremos das coisas. (…) Por um lado concebe-se como ciência do ser em si, do ser último ou irredutível, de um primeiro ente em que todos os demais consistem, isto é, do qual dependem todos os entes. Neste caso, a ontologia é verdadeiramente metafísica, isto é ciência da realidade ou da existência no sentido próprio do vocábulo. Por outro lado, a ontologia parece ter como missão a determinação daquilo no qual os seres consistem e ainda daquilo em que consiste o ser em si. Então é uma ciência das essências e não das existências» ( José Ferrater Mora, Diccionario de Filosofía Abreviado, ed. EDHASA-SUDAMERICANA).

Classifica-se como reflexão ôntica a reflexão sobre o s«objectos» do mundo -os problemas interiores do mundo, e não sobre a origem deste -, opondo-se à reflexão ontológica ( sobre o próprio ser do mundo). Tendo a metafísica perdido importância, o nome “ontologia” aplica-se ao estudo ou às concepções da existência em geral, sendo os diversos “existencialismos” responsáveis por esta orientação.

Etimologicamente deriva do grego on, ontos, particípio presente de einai (ser), e logos, (discurso). “Ontologia” é um discurso que tem por objecto não uma categoria qualquer especial do ser, mas o «o ser enquanto ser». Confundida com a metafísica como sucedeu durante longo tempo, é o estudo do fundamento da ordem das cosas., estudo da essência do ser enquanto ser, oposta às ciências particulares. Esta mistura ou confusão entre ontologia, metafísica e teologia, veio a perder interesse submetida às críticas (o filósofo Heidegger mostrou como deste modo «esquecia-se» a original e verdadeira natureza do assunto, a qual é a compreensão dos entes e a nossa finitude como destinação inelutável. O próprio nome “ontologia” fica afectado por estas críticas contemporâneas. Entende-se hoje geralmente a ontologia como compreensão do(s) sentidos(s) do ser e não como «ciência». Para as filosofias da linguagem trata-se, portanto, de uma reflexão sobre a linguagem, produtora dos discursos e dos sentidos (essas imaterialidades fugidias, múltiplas, sem território, os símbolos). Na afirmação «Haverá essa coisa determinada e nomeada» distingue-se «a coisa» como do domínio do estudo científico específico (biologia, química, etc.) e o sentido do termo «haverá» como sendo do domínio da ontologia.

MATERIALISMO

O materialismo é uma filosofia, isto é uma investigação independente do saber científico e da actividade do cientista, na medida em que é uma concepção geral das relações entre o ser e o pensar, um conjunto de categorias e princípios gnoseológicos que sustentam essa concepção e consiste em afirmar que o ser, a matéria é «o elemento primordial», e o pensamento, o espírito, o elemento segundo. «Reconhecer esta primazia, este primado da matéria sobre o pensamento é a essência do materialismo filosófico» (Lucien Sève,1980).

As críticas ao materialismo filosófico assentam, sobretudo, na acusação de que é uma teoria metafísica (negativamente), pois que separa o que não se pode separar: o sujeito (que conhece) do objecto (que é conhecido), isto é, separa a referência do referente; o real é aquilo que se conhece; logo, o sensível e a subjectividade constituem um plano intransponível, o qual não se pode excluir quando se nomeia a «matéria» como um dado exterior, independente e com o estatuto de fundamento. Nestas críticas contemporâneas existe uma confusão entre gnoseologia e ontologia, ou, talvez mais, uma exclusão da ontologia. Contudo, o problema é negado ou reprimido mas não é eliminado: a interrogação «Qual a natureza do objecto?», «O que dá o sujeito e o que não dá porque já lá está?», persegue a reflexão. A meu ver a questão principal prende-se com o género de relações entre o sujeito (cognoscente) e o Objecto. Sempre mera (ou perfeita) adequação? Reflexo? Mediações complexas e dialécticas? A praxis humana, o trabalho por exemplo, não cria o mundo, muito embora também o crie. A mente humana não «representa» o mundo sem que as coisas não possuam elas mesmas propriedades objectivas e independentes (o astrónomo não cria as galáxias, por maior que seja o seu poder instrumental e teórico). As sensações, o pensamento, o espírito, não criam todas as coisas que vêem e analisam: é precisamente porque muitas dessas coisas existem de facto que as vemos e nelas somos obrigados a pensar. Mas na materialidade não incluímos apenas a Natureza, o físico, o biológico: as coisas e as instituições transformadas ou criadas a partir de matérias-primas ou enquanto «coisas» sociais exteriores e independentes do querer de cada indivíduo (a terra, por exemplo, fonte de riqueza, não deixa de ser material ainda que nela se hajam investido valores). A desmaterialização das coisas tem muito que ver com a desmaterialização do dinheiro, sob a forma de Capital, isto é, de equivalente universal. O capitalismo financeiro parece volátil e aéreo, simbólico e imaterial, porém são de facto «materiais» muitos dos bens que se produzem, as matérias-primas dos computadores, as armas com que se mata e se saqueia…

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Com palavras me encantas!

O Sr. Obama, Presidente do Império (os impérios modernos têm presidentes e são democráticos) discursou aquando da entrega do Nobel da Paz. Da paz só prometeu que retiraria os exércitos invasores daqui a dois anos, entretanto reforça-os. De Guantanamo nada disse, excepto que não tolera torturas. Dos sofrimentos do povo palestino nada disse, excepto ter enviado a Sra. Clinton fazer umas conversações secretas. Da Colômbia disse nada, nem das Honduras, nem de Cuba. Porém, sabemos tudo sobre a sua excelsa família. Tudo é um modo de dizer. O prémio devia ir para o cão de raça lusitana.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Na Hora da Nossa Morte (novela, cont.)

DIÁRIO DE CARLOS – 10


A minha casa paterna. Cheguei ontem noite alta. Acendi todas as luzes e os meus pais não se materializaram. Abandonaram vestígios: no quarto deles a cómoda da minha mãe, com os seus artefactos com os quais ela compunha aquela imagem sempre agradável com que recebia o meu pai regressado do trabalho, me recebia a mim, muitos anos depois, habitante única daquela mansão, quando eu a visitava; no chão, ao lado da cama, o mesmo lado da cama que ele ocupou durante dezenas de anos, umas pantufas do meu pai. Salvaguardei tudo nos seus lugares para tentar travar o devir do tempo. Cristalizado no quarto, nas estantes dos livros na sala de estar. Fixar o tempo, fixar num ponto do devir a casa como uma ilha no caos. Eu sou feito de acontecimentos, tudo o é, contudo quando reentro nesta casa, quando a ela regresso, nada aconteceu dentro dela, excepto a erosão macia e quase imperceptível dos materiais. Nesta casa parada no fluxo do tempo não há vida humana, a matéria não emite afectos: sento-me no longo e largo sofá onde o meu pai dormia as sestas de domingo e não o sinto, nada resta; passo no corredor atapetado, os quadros nas paredes, e nada sinto que daí venha, nem das escadas de madeira em caracol que levam aos quartos. Somente o silêncio fracturado pelos meus passos. Uma casa assim está esvaziada. E eu encontro-me só.

Procuro um livro nas estantes para me ocupar. Ligo o televisor, elimino o som. Abandono o livro, retiro o computador da mala, busco o correio. Dois e-mails chamam-me a atenção: um, do meu chefe convocando-me para a cerimónia de lançamento da primeira pedra, início da construção da ponte, da minha ponte. Já sabia, o tipo não quer é que eu me balde! É burro, pois eu nunca faltaria a esse momento. A ponte que eu desenhei e vou acompanhar passo a passo é o projecto da minha vida. De uma vida. Perseguirei implacavelmente os engenheiros, os mestres e contramestres, cada operário, para que nada falhe e tudo se cumpra escrupulosamente conforme o que arquitectei.

O outro e-mail é do Professor. O título provoca-me perplexidade e alguma inquietação: «Credo». Leio: «Redijo este testamento intelectual numa altura em que me encontro na plena posse das minhas faculdades mentais. Quer desapareça amanhã, quer viva mais dez ou vinte anos deteriorando-se o corpo e a mente, o que eu agora afirmo é o que fica a valer.

A crença de que não possuímos alma mas uma mente inseparada do corpo, um cérebro que é o corpo, é uma evidência racional e científica absolutamente irrefutável. A nossa Espécie é apenas uma entre milhões delas, que deriva de um elo comum a diversas espécies aparentadas e que sobreviveu à última extinção em massa que o planeta sofreu (como as aves são sobreviventes dos dinossáurios). O que destrói, cria. Somos o resultado de ontogéneses proporcionadas por erros de cópia (vários elos ou ramos da árvore de hominídeos extinguiram-se sem apelo nem agravo), mutações acidentais e de uma prolongada e dura caminhada adaptativa, cujo sucesso se deve à existência de um cérebro e de algumas vantagens físicas que nos permitiram colonizar todos os habitats, caçar, pescar, construir fortificações e abrigos, inventar a agricultura, as cidades, os Estados, a escrita, as aprendizagens, os valores e as regras, as explicações sobre o mundo e os modos de viver, de produzir, reproduzir e acumular os excedentes.

Inventámos, por força das emoções e dos modos do viver, ficções fantasiosas de seres sobre-humanos, sobrenaturais, contudo nenhuma realidade transcendente, fora da Natureza, explica melhor a Natureza do que os conhecimentos que estão ao nosso dispor: este universo ao qual pertencemos teve uma origem natural e terá uma morte irreversível, e tudo que de fundamental ainda ignoramos, saber-se-á muito provavelmente neste século e felizes daqueles que possam acompanhar os fantásticos progressos das ciências (esses sim, fantásticos!). Somente existe uma Substância, que é material, pura imanência sem transcendência alguma, que se exprime de diversos e diferenciados modos, físico-químicos, biológicos, sociais (sem a natureza física não se produziriam efeitos de natureza simbólica ou imaterial).

Creio nestes axiomas porque apresentam-se hoje à razão com indubitável evidência. E estas certezas devo-as à Ciência. Por isso ela constitui uma das fontes inesgotáveis do Conhecimento e do progresso social, do humanismo, isto é, da humanização de cada e de todos os indivíduos. Poderá e deverá ser de todos se soubermos aprender com a utilidade e outros valores intrínsecos das actividades humanas que a nossa história geral nos oferece. Os progressos da consciência são inextinguíveis: apesar de todos os recuos e alienações é imensa a parte da humanidade que já não pensa hoje como se pensava há 100 anos atrás! Apesar das derrotas, das mentiras, da ignorância domesticada e induzida, uma ampla percentagem da população mundial acredita, ainda que muitos o ocultem por medo ou pessimismo, que os modos de produzir os bens e de se apropriar dos excedentes (materiais e imateriais) constituem o motor determinante das múltiplas e mutáveis configurações dos organismos societários. Este “senso-comum” (que o senso-comum alienado dominante subverteu) permite-lhe, ou permitir-lhe-á, deduzir (e esta é razão “natural” que se opõe à “razão consensual”, a que é imposta pela ideologia dominante) que uma transformação revolucionária (socializar os meios e bens de produção que hoje já são sociais) do modo de produção actual é não só possível como absolutamente necessária para a sobrevivência da Casa Comum, para o bem-estar de todos que habitam a mesma Aldeia Global. Não há mentira, ou teoria resignada e conformista, que me convença que esta sociedade injusta e agressiva, seja o fim-da-história. Que todas as reformas revolucionárias sejam por via pacífica é o que deseja qualquer indivíduo pacífico e razoável. O perigo que encerra uma auto-defesa violenta contra uma violência imposta é que a violência da auto-defesa seja desproporcionada, ou que os meios justifiquem os fins. Se não queremos que um regime entre numa escalada de autoritarismo, não o ataquemos: qual o animal que não aprende a agressão quando é agredido? O principal problema com a realização do socialismo «num só país» prende-se com a pressa de fazer num só dia, por meios coercivos, aquilo que se poderia fazer pacifica e democraticamente em meses ou anos. Uma ditadura é sempre uma ditadura por mais eufemismos e teorias que a queiram justificar. O socialismo ou é democrático, ou não é socialismo.



Eis o meu credo. Ditado pela minha razão que nenhuma doença ainda afectou. Se a primeira parte é irrefutável (ou se aplicarmos o critério de Popper, é falsificável e, portanto, é verdadeira), a segunda, reconheço, é passível de refutação. Não deixa, no entanto, de ser racional. Não são os erros e crimes cometidos no passado em seu nome (quantos crimes se cometem e cometeram em nome do que quer que seja!) que a tornam irracional, são os erros e crimes eles próprios.»

domingo, 13 de dezembro de 2009

J. SWIFT (Autor de «As viagens de Gulliver»)



Ideias para sobreviver à conjura dos estúpidos

«A clarividência é a arte de ver o invisível»
«O máximo domínio da arte da oratória consiste em ocultar esse domínio»
«O que destaca e distingue um escritor não é outra coisa senão a capacidade de saber escolher com inteligência o tema das suas obras»
«De que serve a liberdade de pensamento se não conduz à liberdade de acção?»
«Nunca acudas até que te hajam chamado três ou quatro vezes, pois que só os cães acodem ao primeiro assobio»
«Ninguém aceita conselhos, mas toda a gente aceita dinheiro; portanto o dinheiro é melhor que os conselhos»
«O orgulho, o mau carácter e o querer ter sempre razão são as três grandes fontes da má educação»
As boas maneiras consistem fundamentalmente em acções, não em palavras. E a modéstia e a humildade são os principais ingredientes»

sábado, 12 de dezembro de 2009

Legendas das imagens

1º (por ordem decrescente) Julien Offroy de La Mettrie
2º I. Kant
3º Barão d´Holbach
4º D. Hume
5º Graccus Babeuf

Crítica da Razão Consensual














Os Materialismos

Continuamos este brevíssimo resumo da história dos materialismos:

Século XVII- O atomismo de Gassendi cria um plano imanente pelo qual tenta explicar a realidade móvel de todas as coisas, sem recorrer a forças transcendentais. Contudo, o paradigma da sua época ainda está dominado pela ortodoxia religiosa à qual não parece desejar recusar: a finitude do mundo permite admitir-se que foi criado; a mente humana, «imaterial», permite-lhe incluir a possibilidade de uma alma imortal, etc. Entre este e os demais classificados pejorativamente como «libertinos», quem se salienta mais pelo seu radicalismo é Cyrano de Bergerac que, no seu livro de «ficção-científica», ou utópico, Viagem à Lua, O Outro Mundo ou Os Estados e Impérios da Lua ( Guimarães Editores), defende as novas ideias de Copérnico e Galileu e nenhuma crença religiosa sobrevive.

Renée Descartes não foi em filosofia um materialista (Deus é a substância infinita e criadora), contudo fornece para os vindouros uma explicação mecanicista dos processos materiais (todos os corpos, incluindo o humano). É no seu dualismo (separação da alma e do corpo) que ele reproduz a cisão tradicional e ortodoxa. As consequências da sua teoria mecanicista (e o seu matematismo e elogio da Nova Ciência) são, porém, formidáveis.

Bastava eliminar a dualidade das substâncias (física-extensa e pensante). Foi o que realizou o génio incomparável de Bento Espinosa. Apenas existe uma única substância ou realidade dotada de infinitos atributos, os quais exprimem-se (actualizam-se) em modos de ser, ou seres, de existências diferenciadas e múltiplas. Deus ou Natureza. Ainda que não seja ateu em rigor (não quer sê-lo) bastará que se retire a palavra Deus para que sobre somente uma realidade: o universo infinito e não criado. É o que irão fazer alguns filósofos do século seguinte, em particular o célebre barão d´Holbach, renovando o espinosismo com novas ideias extraídas da química e da biologia. O problema da Vida é complexo: Diderot e outros esforçar-se-ão por explicá-la através de noções aprendidas nos grandes biólogos do seu tempo. O pensamento, a mente, é outro dos complexos problemas desde sempre: La Mettrie apresenta o homem como uma construção mecânica, uma espécie de relógio de órgãos e respectivas funções, dispensando a necessidade de alma; o abade Condillac desenha um homem absolutamente sensitivo que aprende pela experiência sensível; Helvétius, injustamente esquecido hoje, enfatiza o papel da vida social na formação humana. Nenhum deles (com excepção de Condillac que entra em contradições convenientes) recorre às hipóteses complementares de Deus e alma imortal. Neste século, ou, pelo menos, antes da Revolução Francesa, o crítico mais radical e consequente foi um pároco apagado em vida que legou um Testamento explosivo: Jean Meslier, no qual nega todas as crenças ortodoxas e tradicionais, por meio de uma filosofia baseada nas teses de Espinosa e de Malebranche.

O século das Luzes, tanto francês como inglês, termina com uma profusão de materialismos, quase todos marcadamente anti-clericais. Teses de uma ontologia materialista ( a Matéria é a única realidade) e de uma gnoseologia sobretudo sensualista (que deve muito a Locke e a Hume).

I. KANT , com a sua crítica Da Razão Pura, tenta, então, uma síntese do empirismo e do racionalismo, da materialismo (realismo) e do idealismo, num esforço para salvar a metafísica. Dos materialistas aceita a crença de que a matéria existe como realidade externa e independente e dos empiristas a tese de que tudo começa, em termos de conhecimento, pelas sensações; dos idealistas (racionalistas) re-introduz a noção de condições apriorísticas e subjectivas de todo o conhecimento (espaço-tempo e categorias), e remete para a metafísica as questões relacionadas com a existência de um Deus criador e justiceiro, que lhe permite escorar as condições de toda a moralidade possível e necessária.

II. Com a enorme influência de Kant e da filosofia alemã subsequente, idealista, os materialismos ficam, aparentemente, remetidos para o passado. No entanto, o período que antecede a revolução Francesa e durante o seu acidentado percurso, o materialismo adquire novas e mais acutilantes formas de intervenção política: Gracus Babeuf e Sylvain Maréchal são um vivo exemplo.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Os meus livros



" A história é a minha paixão, é mesmo, se se quiser, a minha religião."

Pierre Vidal-Naquet nasceu em Paris em 1930. O pai foi morto em Auschwitz em 1944. Foi director de estudos na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, especialista em história da Grécia antiga. Faleceu em Nice em 2006.

Os meus livros

«(...) numa época efectivamente seca, reactiva, manipuladora, em que a inflação dos discursos pré-fabricados lamina os cérebros, você incita cada um a ousar seguir as suas vias secretas. Agradeço-lhe em meu nome, e em nome de todos aqueles a quem os seus livros mostraram ou mostrarão um dia o que é a força das solidões.» Roger-Pol Droit, Le Monde, "Carta Aberta a Gilles Deleuze", 14 de Setembro de 1990.


Gilles Deleuze, o maior filósofo da segunda metade do século passado, suicidou-se, já muito doente, no seu domicílio em 1995.

Os meus livros



«A que tipo de experiência remete a experiência do diferente em si, do insensível para além do sensível? A experiência tem que vir de um campo em que se dá o diferente em si. Como definir esse campo? Não pode ser o campo da experiência empírica porque nesse se dá o sensível. Trata-se de determinar como pensar, ou o que de direito deve ser pensado. Ou melhor: é preciso determinar as condições de possibilidade do pensamento do concreto singular, do diferente em si.» (Da Introdução)

Unidade/Diferença: o diferente oposto ao uno? ou para Além de toda a polaridade ocidental?
Um livro de um grande filósofo português. Um leitura inovadora do pensamento multifacetado de Gilles Deleuze.

CARAVAGGIO


terça-feira, 8 de dezembro de 2009

CARAVAGGIO, biografia, de Christopher Peachment

PRÓLOGO

Eu, Caravaggio, fiz isto.
Jazendo nesta cama encharcada, consigo ver alguns dos meus objectos mais pequenos empilhados ao canto, mas pouco mais, pois não consigo mover-me com facilidade. O que fizeram ao resto das minhas coisas, assim como às três ou quatro telas enroladas que trazia comigo, não faço ideia. Havia entre elas um S. João que valia alguma coisa.(...) Consigo ver o meu rosto no fragmento de vidro fumado, ao canto, e está amarelo e desfigurado. Os meus membros não têm vigor e transpiro constantemente. A ferida no rosto é horrível. Viajei durante quatro anos, fugido das cortes papais em Roma, por Malta e Sicília, e depois, finalmente, dei comigo em Nápoles, local que odeio e quase acabou comigo.
Há momentos, porém, em que estou lúcido, e este é um deles.(...)»

domingo, 6 de dezembro de 2009

Há 25 anos, Bhopal !

«A de Dezembro de 1984 os habitantes da cidade indiana de Bhopal sofreram os efeitos de 42 toneladas de isocianato de metilo haviam escapado por negligência de uma empresa multinacional norte-americana, a Union Carbide, que produz pesticidas: 25 mil morreram, 100 mil desenvolveram cancros e outras doenças graves. A fábrica foi encerrada, mas sem limpeza: o gás continua a matar. Mais de 300 toneladas de produtos tóxicos permaneceram em contentores até há quatro anos; 10 mil toneladas de resíduos tóxicos enterrados infiltram-se com a água das chuvas na água de consumo.


A Union Carbide, que dizimou populações paupérrimas e super-exploradas, infecta o mundo tranquilamente, como muitas outras multinacionais. A Camorra italiana encarrega-se do trabalho sujo de lançar para o mar os bidões radioactivos. As gigantescas petrolíferas dedicam-se a contaminar o planeta.

Em Copenhaga discute-se com muita moderação e ponderação as metas modestas para diminuir o aquecimento global.

sábado, 5 de dezembro de 2009

PABLO NERUDA

Ode e Germinações


O sabor da tua boca e a cor da tua pele,

Pele, boca, fruta minha destes dias velozes,

Diz-mo, estiveram sem cessar a teu lado

Por anos e viagens, por luas e por sóis,

E terra e pranto e chuva e alegria?

Ou só agora, só agora

Saem de tuas raízes

Como a água traz à terra seca

Germinações que não conhecia

Ou aos lábios do cântaro esquecido

Sobe na água todo o sabor da terra?



Não sei, não mo digas, não o sabes.

Ninguém sabe estas coisas.

Mas aproximando os meus sentidos

Da luz da tua pele, desapareces,

Fundes-te como o ácido

Aroma de um fruto

E o calor de um caminho,

O olor do milho a debulhar-se,

A madressilva do entardecer puríssimo,

Os nomes da terra poeirenta,

O perfume infinito da pátria:

Magnólia e matagal, sangue e farinha,

Galope de cavalos,

O luar poeirento sobre a aldeia,

O pão recém-nascido:

Tudo da tua pele me volta à boca,

Volta ao meu coração, volta ao meu corpo,

E volto a ser contigo

A terra que tu és:

És em mim profunda Primavera :

Em ti volto a saber como germino.

NÃO HÁ ESQUECIMENTO


Se me perguntais donde vim


Falarei de nebulosas e astros obscuros


Com grades nos olhos e gritos


Muitos silêncios


Falarei das conspirações caladas


Da morte que saiu à rua


Falarei das palavras censuradas e dos medos


Muitos medos


Eram raivas mutiladas


Sombras nas esquinas


E promessas adiadas.






Não me pergunteis donde vim


Se não quereis que os mortos regressem


Para vos perguntar quem os matou.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Crítica Da Razão Consensual: Os Materialismos

Renascimento e Modernidade


Neste percurso dos materialismos que procuramos resumir, assinalamos alguns momentos fortes:

- A influência do pensamento de Averróis, comentador árabe de Aristóteles. O averroísmo difunde-se pela segunda metade do século XIII através de especulações que se não estão ainda dentro do materialismo moderno, abrem-lhe o caminho: a negação da imortalidade da alma humana (portanto, uma cerrada argumentação em favor da sua mortalidade, explorando habilmente a tese de Aristóteles), o mundo como coisa eterna e não criada (negação da criação divina).

-A continuação desta leitura, bem fundada, de Aristóteles, aprofunda-se com Guilherme de Occam no século seguinte: crítica que abala os alicerces do platonismo por meio das teses nominalistas (contra a teoria da realidade dos «universais», explicadas como meras ideias, sinais e nomes), empiristas.

-No século XVI acentua-se a crítica dos dogmas teológicos, a crítica ao sobrenatural. Entretanto, ao lado do mesmo aristotelismo que nega a imortalidade da alma e a ideia de criação divina, assiste-se ao reaparecimento em força do estoicismo e do epicurismo: é a ideia da «alma do mundo», são os panteísmos, a afirmação da Natureza como realidade autónoma, as novas filosofias da natureza, o imanentismo e o infinitismo, ideias que vão adquirir uma invulgar força poética na filosofia de Giordano Bruno 81548-1600). Com tais matérias-primas o materialismo vai rasgando caminho, inclusivamente com o regresso a fontes e autores antigos (Epicuro, Lucrécio, Estóicos) desprezados na filosofia teológica académica dominante na Idade Média.

-Contudo, a palavra «materialismo» ainda espera por uma formulação mais precisa: panteísmo? ou Natureza realmente separada de Deus (ou deuses)? Qual a relação entre matéria e espírito: realidades independentes ou uma dependente da outra? No século dezassete sob a influência da Física de Galileu Galilei e outros factores, ver-se-á surgir um materialismo moderno na filosofia de Hobbes (1588-1679), Pierre Gassendi (1592-1655), Bento Espinosa (1632-1677). O próprio Descartes (1596-1650), dualista, faz muito para minar o terreno às ontologias idealistas com as suas teses mecanicistas.


quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Quem diria?

«Cristóvão Ferreira, antigo jesuíta português, que abjura sob tortura japonesa em 1614. Em 1636, o ano em que Descartes trabalha no Discurso do Método, o padre, cuja fé deveria ser muito fraca, a avaliar pela pertinência dos argumentos que dificilmente terá desenvolvido apenas no momento da abjuração, escreve de facto La Supercherie Devoilée, um pequeno livro explosivo e radical.


Em cerca de trinta páginas apenas, ele afirma: deus não criou o mundo; aliás, o mundo nunca foi criado; a alma é mortal; Inferno, Paraíso e predeterminação não existem; as crianças que morrem estão livres do pecado original que, de qualquer maneira, não existe; o cristianismo é uma invenção; o decálogo, uma loucura impraticável; o papa, um imoral e uma personagem perigosa; o pagamento de missas, as indulgências, a excomunhão, os interditos alimentares, a virgindade de Maria, os reis magos, outras tantas quimeras; a ressurreição, um conto nada razoável, risível, escandaloso, um logro; os sacramentos, a confissão, devaneios; a eucaristia, uma metáfora; o juízo final, um incrível delírio…(…) E então, ateu? Não. Uma vez que em momento nenhum, diz, escreve, afirma ou pensa que Deus não existe.»

Tratado de Ateologia, Michel Onfray, Ed. ASA, 2007, p.40.

1.2 Cristóvão Ferreira

Na composição do Kenkon Bensetsu tem um papel central o português Cristóvão Ferreira (1580-ca.1650), e sobre ele, portanto, alguns elementos biográficos devem ser dados. Cristóvão Ferreira nasceu por volta de 1580 na Zibreira, Torres Vedras, e entrou para a Companhia de Jesus nos finais do ano de 1596. Depois de cumprir os anos de noviciado, tomou os seus primeiros votos em Dezembro de 1598, em Coimbra, cidade onde estudou nos dois anos seguintes. A 4 de Abril de 1600 embarcou rumo à Índia, a bordo do S. Valentim, alcançando Goa alguns meses depois. Goa era apenas a primeira etapa na dura viagem até ao Extremo Oriente e depois de recuperar dos rigores desse trajecto, Ferreira, e todos os que tinham por destino a China e o Japão, partiu de novo, com destino a Macau. Uma vez aí chegado, retoma os seus estudos no Colégio da Madre de Deus. Em 1608 é ordenado presbítero e, finalmente, a 16 de Maio de 1609, o recém ordenado padre deixa Macau rumo ao Japão.

In scientia.artenumerica.org.

O primeiro tratadista anti-clerical foi português. Nascido em Torres Vedras. Quem o conhece? Quem publicou alguma vez o seu tratado? Quem sabe onde pára?

in «Ensaios anticlericais», sátira, 1900


Livros que aconselho


Livros que aconselho



quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

OS MATERIALISMOS










Nesta mensagem que continua a 5ª parte da Crítica da Razão Consensual e desenvolve o tema controverso dos Materialismos, torna-se necessário abordar a sua história, inserida evidentemente na história da filosofia ocidental, se bem que seja possível apenas um brevíssimo resumo. Na verdade o materialismo apresenta-se com um percurso consistente desde o nascimento da filosofia, muito embora com uma tal diversidade que não é coisa fácil garantir a sua continuidade linear através das épocas, dos paradigmas, dos pensadores. Até mesmo conceitos como os de progresso e evolução mostram-se de difícil demonstração na realidade dos factos. Deste modo diremos, com grandes cautelas, que o nascimento da filosofia é o nascimento do materialismo, pois que o modo de pensar e o discurso da filosofia começa pela crítica das crenças tradicionais, dos mitos, das superstições populares (que os poderes políticos defendem ou, pelo menos, admitem, e é o que passa nos impérios do médio oriente e do Egipto), das religiões. Tais críticas nem sempre estabelecem uma nítida distinção entre a filosofia e a religião, verifica-se isto nos pensamentos que os pré-socráticos nos legaram. Contudo essa indistinção já é indício de uma atitude crítica, a própria referência a «deuses» já exprime outra coisa diferente das tradições e as analogias poéticas de Heráclito ou as explicações através dos «elementos» (água, fogo, ar) em todos eles até culminarem em Empédocles, já revelam uma outra e nova orientação. Muito ou pouco mitológicos, os «elementos» são coisas materiais, que se elevam à categoria de causas do nascimento e da morte, do movimento e repouso, da mudança e da estabilidade. Os «princípios» nos primeiros filósofos já não são mais transcendentes, mas imanentes, e estas noções são axiais no pensar filosófico, a ideia de imanência (as coisas e as causas, os princípios, estão dentro deste mundo, não é necessário recorrer a «forças» exteriores à Natureza) é central nos materialismos. Além disto (ou porque assim é) o pensamento antigo apoia-se e depende dos progressos científicos da época (aritmética, geometria, astronomia, música, inclusive algumas técnicas –alguns filósofos são engenheiros, inventam-se artefactos movidos a água, embora este aspecto seja mais notável na famosa Alexandria, numa época mais avançada.

Dentro dos avanços da especulação de pendor materialista o mérito vai por inteiro para o atomismo clássico, tacteado primeiramente por Leucipo de Mileto e depois formulado com grande clareza por Demócrito de Abdera (contemporâneo de Sócrates). Jogando no tabuleiro da famosa equação de Parménides «Ser e não-ser» (o Ser é, o não-ser não é), os atomistas afirmam com clareza que o Ser são os átomos (partículas invisíveis e indivisíveis, em eterno movimento) e o não-ser, o vazio. A génese das coisas dá-se por «acaso» e «necessidade»: determinismo mecânico, ausência de finalismo e intencionalidade. Este realismo proto-científico, alcança o seu esplendor (vemos hoje com espanto)com Epicuro (341-270).


                                                     DEMÓCRITO de Abdera

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

América, Aztecas

Até o jade se parte,
até o ouro se dobra,

até a plumagem de quetzal se despedaça...
Não se vive para sempre na terra!
Duramos apenas um instante!

NA HORA DA NOSSA MORTE (cont.), novela.

DIÁRIO DE CARLOS - 9


Já não sinto a mesma surpresa que me tomou de todo: de facto, os acasos, as coincidências existem, Marta pode habitar realmente na mesma região que a minha, até a mesma cidade, a maior parte do tempo passo-o em Lisboa, ela terá vindo a residir em Torres Vedras recentemente, até mesmo muito recentemente, nos tempos em íamos acompanhando a vida um do outro ela habitava na casa dos pais para os lados de Alcântara e em Lisboa terá residido depois de casar. Com o casamento dela perdi-lhe o rasto. É bem possível que recentemente haja decidido habitar numa região que oferece melhor qualidade de vida do que o inferno da capital, os jovens saem daqui, os mais velhos regressam ou escolhem-na pelo interior sossegado, pelas praias. Enfim, o país é pequeno, até o mundo o é.

Fui visitar novamente o Professor. Na idade que alcanço, nesta viragem da vida ou crise como alguns classificam, fazemos o balanço e a conclusão a que chego é que não produzi nada que valesse a pena. Nunca me identifiquei com coisa alguma, não me comprometi com pessoas e causas. Nunca pertenci a nenhum partido político, nunca a política me seduziu, nem as artes, ao contrário da falecida, toda entregue à galeria, às transacções e às viagens de negócios. Cada vez me distanciava mais dela, apenas quando a sua doença fatal se revelou nos aproximámos, por cumplicidades, hábitos, compaixão. Desconheço quantos amantes teve, resguardava-se habilmente mas não mentia, se eu lho perguntasse ela confessava; eu limitava-me a fingir indiferença, distracção. No fundo, incomodava-me, e estou absolutamente convicto que também a incomodava a ela; provavelmente vingava-se da minha indiferença, vingava-se sobretudo das amantes que eu tinha, sempre mais novas do que ela. Um casamento de disfarces: ambos nos disfarçávamos com as respectivas ocupações. Na verdade, ela é que andava sempre atarefada, produzia, as coisas aconteciam pela mão dela; eu arrastava a minha moleza, desenhava no gabinete sem inspiração, por rotina, ainda que não fosse sempre medíocre o que desenhava, contudo sem paixão. Nesta fase da vida agarrei-me ao projecto da ponte como quem envereda por uma religião salvadora subitamente iluminado. Eu sei que é uma evasão, mas a minha vida é toda ela feita de fugas e contra-fugas. Filho de pais ricos, amamentado por uma ama e servido por um cortejo de criadas, nunca me faltou nada que eu desejasse, bastava choramingar com astúcia para receber automaticamente o brinquedo cobiçado (e logo desprezado). Talvez com as mulheres tenha sucedido o mesmo. Seduzia, era seduzido, fruía, largava.

Encontrei o Professor no seu quintal. O jardim de Epicuro, como ele designa com ironia aquele pedaço, quase breve, de terra (a minha casa paterna possui um vasto terreno), toda coberta de uma espantosa variedade de flores, produtos hortícolas, árvores de fruto, não sei como cabe tudo em tão curto espaço. Calça uns botas de borracha, tem um chapéu de palha na cabeça. Sorri com simpatia quando chego. Sentados a saborear um excelente vinho branco («Compro o vinho nas adegas ou mesmo no produtor», diz-me), contou-me, desta vez, episódios da sua vida (Estranhei estas confidências que nele não são habituais): « Com o avançar da idade, no inverno –na minha idade um inverno soma-se ao outro- vem-me uma dorzita aqui na perna direita. Sofri um grave acidente de viação há muitos anos, tinha eu vinte ou vinte e um anos, éramos quatro dentro de um pequenito carro, íamos para Lisboa, dois rapazes e duas raparigas, transportávamos uma mala cheia de jornais clandestinos, o Avante!, apenas o condutor sabia o que levava, perdeu o controlo do carro e despistámo-nos, o automóvel incendiou-se e na fogueira pavorosa morreu uma das raparigas, escutei os seus gritos lancinantes, ainda os tenho nos ouvidos, como tenho na cabeça os gritos de soldados que morreram na guerra colonial que também fiz…Enfim, os pides foram dos primeiros a chegar, deparou-se-lhes um mar de jornais clandestinos na estrada, soube que estava sob prisão quando me encontrava no serviço de urgência do hospital, entre a vida e a morte. Pela facto estranho dos pides estarem ali, espalhou-se a notícia de que foram eles que disparam sobre o carro, nunca soube ao certo, não minto nem desminto. O resto pertence à pequena ou grande história dos perseguidos pela pide, das prisões políticas, dos interrogatórios inclementes, das celas solitárias, das torturas. Eu fui apenas um caso, outros sofreram anos e mais anos de prisão, no meu caso houve a tragédia daquela morte horrível que não esqueço nunca mais.»

Fiquei a olhar fixamente para o meu antigo e admirado Professor. Nunca nas aulas confidenciou aos alunos fosse o que fosse. Contava-me agora. Com um chapéu de palha e umas botas de borracha no seu jardim de Epicuro. E senti uma espécie de amor viril por aquela figura modesta, franzina, sobre a qual o tempo implacável socavava os alicerces. Li-lhe nos olhos uma infinita tristeza, embora as palavras soassem com serena resignação.

Quando parti, uma interrogação atravessou-se-me na mente: Será que a sua solidão o conduz ao suicídio?

NA HORA DA NOSSA MORTE (cont.), novela.

DIÁRIO DE MARTA – 8


Reajo à dor. Meto-me no carro e passeio-me por colinas e vales desta região que, outrora, devia ser soberba, há um século, há dois, quando os franceses se perderam aqui, perderam a vida e a glória. A serra do Socorro, Dois Portos, o lugar da Buligueira onde nasceu Félix Henriques Nogueira, o introdutor das ideias republicanas, democráticas e socialistas, em Portugal, o apeadeiro dos caminhos de ferro em Runa, tão bonito com tantos apeadeiros e estações do nosso país interior, provinciano, mas tão confortável, doméstico, acolhedor, não fosse estar abandonado. Portugal possui regiões tão diversas que não acredito quando alguém sensível e bom observador privilegia uma sobre todas as outras, quer seja o Alentejo que acho magnífico, e a palavra é justa, porque me faz sentir a extensão, a planura, quer sejam os desfiladeiros cavados pelo Rio Douro, quadro que mede meças com as regiões mais afamados da Europa. Este Oeste, talvez com a excepção da serra do Montejunto, é alcantilado, mas feminino, nos roliços peitos que ponteiam a paisagem, lhe aguçam o solo mansamente.

Encontrei-me com a Carla. Encontrei-a juvenil, airosa, vestida com gosto, uns olhos muito claros, aparentemente ingénuos com um andar de bailarina frágil mas segura, que a torna agradável à vista. Propus-lhe que visitássemos a galeria de arte do tal Bártolo, tinha curiosidade de entrar dentro daquela espaço onde a minha mãe provavelmente seduziu ou se deixou seduzir. Fica no Bairro Alto. A entrada é exígua mas o espaço prolonga-se por duas ou três divisões decoradas com simplicidade e bom gosto. Os dois pintores cujas obras estavam ora expostas, um homem e uma mulher, não me suscitaram grande admiração. Realmente estive atenta sobretudo a quem lá entrasse. Recebeu-nos uma empregada que logo nos deixou à vontade. Demorei-me o mais que pude com a esperança de ver chegar o dono. Foi quando nos retirámos que ele se cruzou connosco à saída. Carla tocou-me no braço, mas não era preciso, reconheci-o imediatamente. Com cachecol de seda colorida ao pescoço, um chapéu de abas largas, um jeito delicado de andar, uma voz quase fina com que nos cumprimentou, dava aquela aparência de homossexual que certos homens dão sem o serem necessariamente. Seria bissexual? E sorri para mim mesma com aquele pensamento perverso. O amante de minha mãe. Que surpresas nos reserva a vida? Que me reservará a minha? Afinal, vou compreendendo a atitude de minha mãe: casada há dezenas de anos com um homem silencioso, que se refugia cada vez mais no uísque, apagado, vê-se, ou viu-se, sexagenária, o corpo a decair nos entre folhos da velhice, o tempo a passar depressa, naturalmente abalada pela morte da sua neta adorada, o divórcio da filha, a tristeza em que me vê mergulhada, tornou-a presa fácil de uma paixão serôdia. Também eu já não sou nova e admito agora que o amor, ou as paixões, o que quer que seja, não respeita idades. De resto, o Bártolo deve ser da idade dela, embora pareça mais novo, provavelmente pinta o cabelo como, aliás, sucede com a minha mãe. Tenho pena, evidentemente, do meu pai. Pode ser que ele reaja mudando os hábitos e os vícios, se souber o que se passa. Mas duvido que saiba, tão inerte que ele é.

Quis saber pela Carla o máximo que puder sobre esse Carlos. O pressentimento tem razão de ser: o meu antigo namorado cursou arquitectura e chamava-se Carlos. Não soube com facilidade tornear a questão, mudar o rumo da conversa, a Carla contava-me sem pausas o que lhe ia sucedendo no mestrado nas áreas da Psicologia, as dificuldades de adaptação quando iniciou o curso, a Faculdade tão diferente da Escola Secundária, os novos colegas, as invejas e alguma exclusão que encontrou naqueles grupinhos que se faziam herméticos, as novas amizades, o namorado…Fiz-lhe perguntas sobre o namorado, com o propósito de chegar ao Carlos. De chofre questionei-a: quem foi o namorado anterior? (Aqui falei-lhe sobre o meu ex-marido para permitir que se sentisse à vontade e não adivinhasse a minha intenção) Hesitou, serviu-se da garrafa de água, confessou que fora uma relação muito forte mas com termo certo, a diferença de idades, a distância física, os mundos separados, os novos círculos em que ela na faculdade se envolveu. Já ia mudar de assunto (demonstrava que o passado estava definitivamente encerrado) quando disparei a pergunta cuja resposta me poderia levar à confirmação: Manténs algum contacto com ele, enfim, às vezes ficam óptimas amizades (questões evasivas), onde pára ele, reside onde? (esta era a pergunta decisiva). «Vive em Torres Vedras». Estava feito o teste. E era positivo. Foi em Torres Vedras que o vi. Agora posso afirmar que o vi.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

200 anos



Uma edição: ESCRITO À MÃO DUZENTOS ANOS DEPOIS
Autores: Luís Filipe Rodrigues/ poemas
               José Pedro Sobreiro/ ilustrações
Editora : Município de Torres Vedras
Novembro de 2009
Objectivo: comemorar os 200 anos das Linhas de Torres Vedras (bi-centenário das Invasões Francesas)

Avaliação: Excelente.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

NA HORA DA NOSSA MORTE (cont.)

DIÁRIO DE MARTA – 7




A igreja de São Pedro, o seu tamanho de capela, a sua arte interior e a modéstia do seu exterior, apesar da bonita portada manuelina, agrada-me, acolhe-me sem vaidades e ostentação. Sinto-me mais recolhida, como em todos os templos pequenos, mais sossegadamente só, comigo mesma ou talvez com Deus, se acaso Ele existir. Eu quero crer que existe, eu gostava que existisse, necessitava que existisse, todo Ele bom, misericordioso, compassivo e compreensivo. A igrejinha de São Miguel também é assim, sóbria e discreta mais ainda, como se fosse uma igreja construída por pobres para os pobres. Eu sei que os pobres admiram as igrejas ricas, cobertas de oiro e esplendor, que os submete, intimida e parecem demonstrar o vasto e eterno poder da Igreja católica. Comigo não se passa assim. Nessas vejo somente o poder de uma instituição terrena, nas outras deixo-me invadir pela vontade de crer, pela comoção, e pela saudade depois da perda da minha filha. Nada peço, porque nada há a esperar após a morte de um ser tão querido, se não e apenas o luto. Refugio-me no canto mais discreto, longe das beatas que recitam orações e imploram curas milagrosas para os seus achaques de velhas, logo após as suas visitas perpétuas ao Centro de Saúde. No hospital chama-se por Deus e quem acode somos nós, os médicos, as enfermeiras.

À saída recebo uma sms da Carla, convida-me para tomar uma bica em Lisboa, respondo-lhe que aceito, no Centro Comercial do Saldanha, amanhã, pela tarde. Mesmo a propósito, pensava enviar-lhe um convite, gostava de saber quem é esse Carlos de que falou com suspeita ligeireza. Carlos há muitos evidentemente, mas desde que me pareceu vislumbrar o Carlos da minha juventude, passei a interessar-me por eles. Certamente que não é ele, mas quem sabe?

As Invasões Francesas

Seria de todo conveniente que os textos publicados sobre as Invasões Francesas (ver «Badaladas»), a propósito das comemorações do bi-centenário, não se limitassem às questões militares, mas esclarecessem as questões político-ideológicas desses acontecimentos de enorme relevância para o futuro do país de então. Qual o papel da Igreja portuguesa na organização dos levantamentos populares, das guerrilhas, da «terra queimada», das crueldades cometidas em resposta às crueldades e saques dos exércitos napoleónicos? Em nome do «rei ausente»? Que tipo de patriotismo e independentismo (isto é, que valores e conteúdo, que interesses)? Qual a actividade dos portugueses «afrancesados» ou simpatizantes dos ideais da Revolução Francesa nesses acontecimentos? Que tipo de patriotismo (subversivo, revolucionário ou simplesmente reformista) era defendido e disseminado por estes adeptos? Exprimiriam os interesses das burguesias nacionais?Como se explicaria a Revolução de 1820 sem este fermento?
José Tengarrinha, o Dicionário de História de Portugal dirigido por Joel Serrão, algumas das Histórias de Portugal, para citar apenas o mais conhecido, contêm esclarecimentos incontornáveis.
Certamente que os abusos e a devastação causada pelos exércitos napoleónicos, nas retiradas sobretudo, alienaram muito do que poderia existir ou possiblitar uma simpatia expectante pelos ideais proclamados e pelas promessas declaradas por Napoleão Bonaparte e seus generais, e alimentaram a reacção aversiva das populações expoliadas e famélicas facilmente recrutadas pelos padres, contudo as minorias letradas (discípulas dos Iluministas) e sectores da Burguesia comercial não reagiram da mesma forma. A revolta contra o absolutismo não surgiu mais tarde vinda do nada ou apenas por causa do martírio de Gomes Freire de Andrade, como muito bem nos relata a peça «Felizmente há luar»...Convinha re-ligar as análises económicas e sociológicas (classes e sectores de classe) com as ideias e as ideologias.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Os Materialismos

Crítica da Razão Consensual (5ª Parte)




Teses

1. A Crítica que, há anos atrás na revista VÉRTICE, decidi intitular «Crítica da Razão Consensual», que segue agora com uma quinta parte, ambiciona respeitar a Crítica, isto é, a Filosofia da Crítica, ou seja: o marxismo (havendo mais do que um, persigo aquele que entendo). O marxismo é também a Crítica das críticas, pois que posições de crítica ele há muitas, sendo que algumas delas não criticam coisa alguma, porque o seu propósito não é subverter, mas justificar. A Filosofia Crítica vai à raiz dos problemas e tira as devidas consequências práticas.

2. A Razão criticada é tanto a racionalidade tecno-científica quando escamoteia os contextos sociais, as causas e as consequências políticas e idolatra os progressos técnicos, quanto a ideologia propagandística (incluindo a que se adorna com ouropéis de utopias abstractas), em primeiríssimo lugar a inseminada pelas centrais ideológicas do capitalismo e, em segundo lugar, aquelas que propõem alternativas ora reformistas inconsequentes, ora meramente especulativas sem transgredir os limites da sociedade capitalista. Filósofos da envergadura de G. Deleuze caíram sob esta ratoeira, isto é, e sem mais delongas, o capitalismo captura-os perfeitamente e devora-os com lágrimas nos olhos como choram os crocodilos quando engolem a presa inteira.

3. Não se trata de afirmar que todos os outros estão errados, porque não é do erro que se fala, mas de opções ou alternativas e da utilidade prática, da consequência que responde à pergunta: E agora, que fazer?

4. Para separar as águas, a questão do que é o Materialismo perfila-se como incontornável, quer seja no início do método crítico, quer no momento em que é necessário justificar os fundamentos da Crítica. Ora, o fundamento radical da Crítica é a definição de materialismo que o próprio entende como mais adequada. Assim, a Crítica da Razão Consensual (o dito racionalismo que justifica os consensos sem apelar aos conflitos (que faz por não ver) ou, pior ainda, impõe o consentimento com vista à submissão) assenta numa definição de materialismo.

5. Entendo como boa a afirmação de que toda a realidade é essencialmente material (incluindo a humana e os seus produtos ditos «imateriais»). Esta asserção geral (e aqui o geral, sendo abstracto, é o mais concreto, conforme opinou Hegel) cobre três áreas:

O materialismo filosófico, histórico e científico. Em cada área os argumentos específicos justificam a tese geral.

6. O materialismo filosófico afirma ontologicamente a dependência unilateral do ser social em relação ao ser biológico; epistemologicamente afirma a existência independente dos objectos do pensamento (pelo menos alguns, isto é, e de novo, «a realidade é independente do pensamento (científico, pois que pretende ser o mais objectivo dos géneros de pensamento), começando por ser-lhe anterior no tempo e no espaço; prático, afirmando o papel constitutivo da acção transformadora do homem na reprodução e na transformação dos modos sociais do viver.

7. O materialismo histórico evidencia o primado causal do modo de produção dos homens e de reprodução do seu ser natural (o trabalho, as actividades práticas, os meios e as relações de produção). Daí a Economia Política (Isto é, a Crítica da Economia), assente nestas bases, ser a ciência mestra que ilumina a Crítica Social (ou sociológica) e, portanto, a prática da filosofia da praxis.

8. O materialismo científico é constituído pelos resultados confirmados das descobertas e axiomas científicos. Deste modo, existe uma Psicologia materialista, uma Biologia materialista, etc.

9. É para nós evidente que a última área confirma as outras e, estas, confirmam a última, ou dela resultam também por dedução (mas não só). Ou seja: a Física (tanto a micro como a macro), a Química, a Biologia, a Antropologia, confirmam a tese geral (tudo que existe á apenas matéria, ou, pelo menos, depende da matéria (o físico, a natureza).

(cont.)

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

NA HORA DA NOSSA MORTE (cont.), novela.



DIÁRIO DE MARTA – 6




Fui ontem à noite a Santa Cruz. Percorri a estrada que leva à escadaria da praia da Formosa, segui mais adiante e estacionei no exíguo espaço do miradouro no topo da falésia que os namorados escolhem, num acesso de romantismo, para atraírem o abismo para eles. Um pequeno muro impede-nos de lançar o carro arriba abaixo. Podemos fazê-lo mais à esquerda, por um caminho estreito e lamacento no inverno. Não sou a primeira a pensá-lo, nem a primeira a passar da intenção à acção. Imagino o automóvel a rebolar por ali abaixo, a as arestas a rasgarem a chapa, o tejadilho a esmagar-se, o depósito de gasolina a explodir. Estremeço. Desejo morrer e ao mesmo tempo não quero. A minha tristeza não é daquele género que leva as mulheres a beber veneno para os ratos (matou-se deste modo uma vizinha, encontraram-na horrivelmente inchada), ou a lançar o automóvel do cimo das falésias de Santa Cruz. Preferia deitar-me e não acordar. Preferia snifar coca, injectar heroína, fumar ópio e, assim, desvanecer sem imaginação e sem dor. Porém, nunca experimentei essas drogas, não sei sequer onde buscá-las. Até para isso precisava de ter iniciativa, e iniciativa é o que me falta seja para o que for. Necessito e quero realizar actos, contudo há um motor avariado no meu cérebro, limito-me a cumprir os comportamentos profissionais de rotina e nada mais. Quereria ir ao cinema regularmente, tantas vezes quantas os muitos filmes anunciados que me agradam, assistir aos espectáculos da Olga Roriz, ou da Companhia Nacional de Bailado, de que gosto tanto. Porém, não sou capaz sozinha de me decidir. Saio dos turnos do hospital mais do que exausta, exaurida, sufocada com o sofrimento a que assisto, às dores e às mortes que não posso evitar. Trago comigo um sono de séculos, como se a cura pelo sono a que me submeti não tivesse terminado. Talvez seja a defesa natural do meu corpo. Dormir. Esquecer. No entanto, tenho de repetir os mesmos actos: erguer-me com as imagens da minha filha morta a ocupar-me todo o espaço dos meus pensamentos, logo pela manhã.

O meu ex-marido enviou-me uma mensagem perguntando-me se estava tudo bem comigo. O sacana. Ainda se atreve. Eu sei que ele me ama, que deseja mais que tudo o meu perdão. Nem amor, nem perdão. Ponto final.

A minha tristeza não tem fim. É constante e acerada como uma faca espetada na mente, no coração. Rodeiam-me acontecimentos que não me interessam nada, atravesso-os com absoluta indiferença. Vejo mas não olho. Vejo o mundo a desabar, a anarquia nas ruas, as chusmas de desempregados em fúria, as multidões iradas a clamar contra os impostos e os salários congelados, os partidos políticos a organizarem manifestações de protesto contra um governo que não acautelou a dívida pública, que perdeu o controlo da economia, que privatiza tudo para baixar o deficit, que já não tem dinheiro nos cofres para pagar aos funcionários. Vejo velhos e novos partidos a defenderem a salvação do país através de soluções totalitárias: novos messias, novos Salazares, dom Sebastião que emerge do nevoeiro, a democracia posta entre parêntesis, proclamações delirantes de patriotismo serôdio em reacção às ameaças das potências europeias de intervir drasticamente no nosso país de merda. Merda para tudo isso, merda para todos eles. Que se afunde o país, que se afundem nove séculos de história. Afundada estou eu e ninguém me acode. Na realidade, sou eu que ando a acudir aos desgraçados que me caem nas mãos na urgência do hospital. A mim ninguém me socorre.

sábado, 21 de novembro de 2009

Federico García Lorca


FEDERICO GARCÍA LORCA (Assassinado pelos fascistas numa madrugada de Agosto de 1936)

I.
BÚZIO

Trouxeram-me um búzio.

Dentro dele canta
um mar de mapa.
Meu coração
enche-se de água
com peixinhos
de sombra e prata.

Trouxeram-me um búzio.

II.

CANÇÃO TONTA

Mamã.
Eu quero ser de prata.

Filho,
terás muito frio.

Mamã.
Eu quero ser de água.

Filho,
terás muito frio.

Mamã.
Borda-me em tua almofada.

Está bem!
Agora mesmo!

Faleceu Mário Barradas, o grande encenador, animador, fundador do teatro de Évora!


sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Artaut e Deleuze

Em O Anti-Édipo (1972), escrto com o psiquiatra F. Guattari, o filósofo G. Deleuze recria as experiências e os escritos de A. Artaut, seguir-seá a série intititulada «Capitalismo e esquizofrenia» que termina com Mille plateaux (1980). Critica S. Freud que muito embora haja descoberto o inconsciente como produção desejante imparável, ilimitada, pareceu atemorizar-se perante essa força produtiva selvagem e instaurou a ficção do «Édipo» para reprimir e ordenar. Ora, Deleuze, tal como Artaut, não persegue identidades fixas(«Eu, Antonin Artaut, sou o meu filho, o meu pai, a minha mãe, etc.». Deleuze forja, então, o conceito de «máquinas desejantes» (qualquer estrutura que produz e consome). O corpo cheio sem órgãos é, pois, o desejo, a energia, que não conhece limites. As máquinas desejnates actualizam transitoriamente e episodicamente essa força sem forma que pode ser todas as formas, matriz de todas as formas e de todos os processos. «O capital é o corpo sem órgãos (...) do ser capitalista». «Corpo sem órgãos» é uma expressão de Artaut. O esquizofrénico é o arquétipo (o negativo é o psicótico das sociedades capitalistas contemporâneas). A «esquizo-análise» de Deleuze e Guattari projectam sobre a ilusão do ego a mais completa desmitificação.

Antonin Artaut:Loucura e Lucidez,Tradição e Modernidade-Caudio Willer

Em O Teatro e seu duplo, obra na qual apresenta o conjunto de ideias que constituíram o teatro da crueldade, Antonin Artaud defende uma linguagem que pudesse exprimir objectivamente verdades secretas. Uma linguagem mais concreta que a utilizada para falar da esfera psicológica: mudar a finalidade da palavra no teatro é servir-se dela em um sentido concreto e espacial, combinando-a com tudo o que o teatro contém de especial e de significação em um domínio concreto; é manipulá-la como objecto sólido, capaz de abalar as coisas inicialmente no ar, e em seguida em um domínio mais misterioso e mais secreto.

Por isso, o teatro da crueldade é um ritual, valorizando o gestual e o objecto, trocando o lugar de palco e plateia. Em outras de suas obras, como Heliogábalo, O anarquista coroado e Viagem ao país dos Taraumaras, criou uma recíproca desse teatro, uma espécie de semiologia onde as coisas têm significado e formam discursos. A leitura de Viagem ao país dos Taraumaras, e do que escreveu depois sobre o ritual do peiote, mostra que esse rito do sol negro foi, para ele, a mais autêntica realização do teatro da crueldade.

Em uma das Cartas de Rodez, quando esteve internado nessa instituição psiquiátrica em 1945, Artaud responde a Henry Parisot, que lhe havia mandado o Jabberwocky (Jaguadarte) de Lewis Carroll (obra na qual é inventada a palavra-baú) perguntando-lhe se não queria traduzi-la. Diz que não, que Lewis Carroll não tem uma visão fecal do ser, e o acusa de haver roubado um texto seu: tendo escrito um texto como Letura d'Eprahi Talli Tetr Fendi Photia O Fotre Indi, não posso tolerar que a sociedade atual (…) só me deixe traduzir um outro feito a sua imitação. (…) Aqui estão alguns experimentos de linguagem aos quais a linguagem desse livro antigo devia assemelhar-se. Mas que só podem ser lidos se escandidos em um ritmo que o próprio leitor deverá achar para entender e para pensar:



ratara ratara ratara

atara tatara rana

otara otara katara

otara retara kana

ortura ortura konara

kokona kokona koma

kurbura kurbura kurbura

kurbata kurbata keyna

pesti anti pestantum putara

pest anti pestantum putra



Há outros exemplos dessa linguagem em Artaud, em sua fase pós-internamento. Mas ele não a inventou: o uso de fonemas não-semantizados é arcaico. Octavio Paz, no ensaio Leitura e Contemplação (publicado na colectânea Convergências), trata das glossolálias, o "falar línguas", expressão de estados alterados de consciência por gnósticos e outras doutrinas místicas. Analisa o modo como reaparecem em autores modernos – Huidobro, Khlebnikov, Fargue, Michaux, Hugo Ball e Artaud: na história da poesia moderna, reaparece a mesma obsessão dos gnósticos e dos cristãos primitivos, dos montanistas e dos xamãs da Ásia e da América: a busca de uma linguagem anterior a todas as linguagens, e que restabeleça a unidade do espírito. Embora intraduzível para tal ou qual significação, essa linguagem não carece de sentido. Mais exactamente: aquilo que enuncia não está antes, mas depois da significação. Não é um balbuciar pré-significativo: é uma realidade ao mesmo tempo física e espiritual, audível e mental, que transpôs os domínios do significado e os incendiou.

O paralelo entre a escrita de Artaud e ideias gnósticas e herméticas também é apontado por Susan Sontag, comentando as passagens, em Artaud, nas quais as palavras são tratadas primariamente como material (som): elas têm um valor mágico. A atenção ao som e forma das palavras, como distinta de seu significado, é um elemento do ensinamento cabalístico do Zohar, que Artaud estudou na década de trinta. Isso é evidente em textos como Para acabar com o julgamento de Deus, onde afirma que toda verdadeira linguagem é ininteligível, e exemplifica com glossolálias: potam am cram/ katanam anankreta/ karaban kreta/ tanamam anangteta/ konaman kreta/ e pustulam orentam/ taumer dauldi faldisti. Para acabar… é um catecismo de heresias. Afirma que onde cheira a merda, cheira a ser, perguntando, em uma suprema blasfémia: É deus um ser?/ Se o for, é merda. São blasfémias ditas a partir de um ponto/ em que me vejo forçado/ a dizer não,/ NÃO/ à negação. A liberdade está no avesso: Então poderão ensiná-lo a dançar às avessas/ como no delírio dos bailes populares/ e esse avesso será/ seu verdadeiro lugar.

Semelhante escrita do avesso é uma sobrevivência de ideias gnósticas, nascidas nas areias da Palestina, inventadas por um concorrente do Cristo, Simão o Mago, para depois se disseminarem em remotos séculos I e II, por seitas que buscavam formar religiões secretas, principalmente no Egipto, convivendo com o neoplatonismo e o hermetismo. Os crentes na criação do mundo por uma divindade decaída, o Demiurgo, e na salvação humana pela obtenção de um conhecimento resultando, não da adesão, mas da luta contra Deus. Para alguns, pela adopção de um código moral às avessas. Desapareceram diante da organização teológica e política do cristianismo, perseguidos e combatidos como hereges, para reaparecer na Idade Média como bogomilos e, no século XIII, como cátaros da Provença, exterminados militarmente. A inversão da história do Jardim do Éden, na qual a serpente é portadora, não da perdição, porém da sabedoria, além de se manter em cultos demoníacos da Idade Média e da Renascença, aparece na criação literária como adesão ao avesso, fascinação romântica e pós-romântica pelo desafio, não apenas à ordem social, mas universal. A permanência da heresia como sombra da História é a expressão da revolta contra um mundo e uma sociedade onde tudo está errado, fora do lugar. Por isso, engendrado por um ente maligno, o Demiurgo. William Blake, que acreditava em um Deus ruim e opressor, em conflito com um Deus bom, é um escritor antecipado pela Gnose, mais que pelo paganismo. Assim como, a seu modo, Baudelaire, Nerval, Lautréamont, Jarry e Artaud.

Cosmogonias invertidas, glossolálias e pensamento mágico também comparecem nos delírios, nos surtos psicóticos. Diferentes sociedades em diferentes épocas tiveram suas representações da loucura e lugares para o louco. É possível mostrar que no xamã, sacerdote tribal primitivo, os três lugares são o mesmo. Confundem-se também em William Blake, que conversava com profetas bíblicos. A loucura de Artaud consistiu em ele ter sido um personagem de si mesmo, identificando obra e vida. Inspirado em seus textos, praticou-os na vida real, como no famoso episódio, relatado por Anais Nin, da palestra (O Teatro e a peste, de O teatro e seu duplo), em que declarou que não iria falar da peste, porém mostrá-la, encarnando o empestado, sofrendo, contorcendo-se até cair no chão, de forma tão chocante que esvaziou o auditório. Ou nas ocasiões em que afirmou que Paris era Roma antiga e ele, Artaud, era Heliogábalo.

Identificar linguagem e realidade, querer que o símbolo se torne efectivo, activo no plano da realidade, é pensamento mágico. E também pensamento poético, busca da anulação do tempo. A confusão entre criação, ideias típicas do sintoma e temas de uma tradição esotérica chega a nós pela corrente subterrânea da história; passa a ser um dos modos da tradição da ruptura, para utilizar a expressão criada por Octavio Paz (em Os filhos do barro). Em seus elogios e homenagens a Lautréamont, Nerval e Poe, Artaud se assume como representante dessa tradição. Reescreve uma história da literatura como história de escritores loucos, que culmina nele.

É especialmente fascinante como Artaud, depois de viajar ao México para tomar peiote entre os Taraumara, de ter uma crise ao voltar e ser internado, produziu textos literariamente superiores, pela força, ritmo e riqueza de imagens. Onde se pode ver como antagónicos, em muitos escritores, um componente psicótico, destrutivo, e um componente criador, em Artaud ambos interagiam; um alimentou o outro. Sua obra culmina, em 1947, com Van Gogh, o suicidado pela sociedade, esplêndido poema em prosa onde reitera que louco é o homem que a sociedade não quer ouvir, e que é impedido de enunciar certas verdades intoleráveis. Afirma que um dos meios de a sociedade burguesa marginalizar artistas videntes é através de bruxarias. Insiste em que seu internamento é obra de uma conjuração, pois, se o deixassem solto, mudaria o mundo. Caracteriza Van Gogh como vítima solidária do mesmo enfeitiçamento.

Assumindo a óptica de Artaud, distinguir entre categorias como normalidade e loucura, ou entre arte, sintoma e delírio, é uma falsa questão. É inevitável, ao discuti-lo, adoptar a perspectiva e o tipo de epistemologia defendida por Michel Foucault na parte final de As Palavras e as Coisas, e, a meu ver, de modo mais consistente pelo surrealismo. Consiste em pensar o delírio, tanto quanto o sonho e a criação poética, como meios de conhecimento. Assim como a linguagem científica abre campos de conhecimento, a linguagem não-instrumental, não-discursiva, abre outros campos de experiência do real. Entender o inconsciente como consciência não-discursiva ajuda a esclarecer a modernidade de Hölderlin, Nerval, Lautréamont, Corbière, Germain Nouveau, Jarry e Artaud. Permitindo a intervenção do inconsciente, rompem com o discursivo e com a sociedade: rompem com o discurso da sociedade. Fazem arte revolucionária, pela radicalidade da rebelião individual, e por sua crítica à realidade: por isso falo em tomá-la como meio de conhecimento, e não apenas como algo a ser interpretado, como objecto do paradigma clínico ou de uma teoria literária. A inserção consciente de Artaud na tradição da ruptura acentua o carácter universal de sua contribuição, por mais que esta se tenha manifestado de modo particular, irredutível, que não permite uma escola ou doutrina de seguidores, apesar da sua influência em tantos campos da modernidade: teatro, poesia, contracultura, antipsiquiatria. É universal por expressar contradições fundamentais, entre o sujeito e o mundo que lhe é exterior, o imaginário e o real, o absoluto e o contingente, o poético e o prosaico.

Viagem à Polónia

Viagem à Polónia
Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

Viagem à Polónia

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Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.