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sexta-feira, 29 de março de 2019

Muito bom! Preecisamos de um artigo assim para recordarmos o 24 de Abril (os mandantes e ganhadores da ditadura fascista) e o 25 de Novembro e as infâmias (ante et post)...

1964: a infâmia, a cicatriz e o bufão

Entre as muitas coisas que o presidente-miliciano não sabe está quanto seu ato de reconhecimento colocou os militares em uma situação altamente constrangedora, incômoda e na contramão de toda a estratégia tão eficaz construída para ocultar o golpe nas brumas do esquecimento. Na tentativa de se manter no poder, ele pode ter assinado seu passaporte para fora do governo em breve.


Por Mauro Luis Iasi.


Cicatrizes são como folhas secas:
já foram verdes
já foram vivas
já foram cortejá
foram dor
Cicatrizes são coisas passadas
Que não se foram
O Golpe de 1964 é uma cicatriz histórica marcada na carne de nosso país e na alma de nosso povo. Uma marca histórica que nos mantem viva a memória necessária para que jamais se esqueça e jamais se repita a infâmia cometida.

A tentativa de ressignificação em curso é mais do que uma desinformação e uma manipulação grosseira de um fato histórico, é a tentativa de cobrir a infâmia com uma grossa camada ideológica que tenta acobertar crimes apresentando-os como atos redentores e encobrindo seu verdadeiro significado, os interesses de classe envolvidos e os sujeitos que perpetraram a infâmia.
Mas, afinal, por que seria necessário tal encobrimento? No final da Ditadura implantada em 1964, o General Golbery operou uma ação que apontava em um sentido diverso do encobrimento. Dizia à época que era necessário colocar os cadáveres da Ditadura para fora do armário e operar a chamada transição lenta, gradual e segura que colocasse um ponto final no evento – daí a concepção da anistia ampla e irrestrita para quem lutou contra a ditadura, mas também para os carrascos e torturadores. Tratava-se de colocar à luz do dia para ser vivida e superada a dor do ato brutal contra um país, para então esquecê-lo.
A catarse do espetáculo acabou por favorecer os interesses das classes dominantes uma vez que o horror dos porões revelados escondia os reais sujeitos do terror. Os militares foram fieis executores, mas não passaram de serviçais dedicados de seus mestres. Os mandantes da infâmia não estavam nos quarteis, nem mesmo no alto comando das Forças Armadas, estavam em luxuosos escritórios das grandes empresas monopolistas, no Brasil e nos EUA. O Golpe de 1964 foi um golpe das classes dominantes, do grande capital monopolista e seus aliados latifundiários e do imperialismo norte-americano. Tratou-se de um ato terrorista tramado com auxílio direto da Embaixada estadunidense, do Departamento de Estado dos EUA e da CIA, executado pelos títeres militares brasileiros.
As denominações “golpe militar” ou “ditadura militar” ideologicamente cumprem a missão de encobrir o caráter de classe do golpe e os verdadeiros interesses por trás dele. Para que tal encobrimento fosse eficaz, fazia-se necessário à cortina ideológica o pretexto para tão brutal interrupção da institucionalidade democrática que vigorava. Para isso serviu o caldo de cultura da Guerra Fria, a luta contra o comunismo, a alardeada ameaça de uma ditadura comunista. Como sabemos, o golpe foi antecedido por dois movimentos complementares: por um lado um intenso processo de estrangulamento econômico, por outro um processo de manipulação política operado por instituições como o IPES e IBAD, numa verdadeira guerra de contrainformação e propaganda anticomunista, fartamente financiado por empresários e pelo imperialismo.
Na verdade, o golpe foi desferido por dois motivos principais: impedir as reformas de base do governo Goulart que se chocavam com os interesses da burguesia brasileira e dos latifúndios, assim como as pretensões do imperialismo estadunidense de se servir do Brasil como uma área de influencia privilegiada de exportação de capitais e controle geopolítico; mas também barrar as lutas sociais, operárias, camponesas que tomavam forma e apontavam para um potencial risco à ordem burguesa. Aqui é preciso frisar este aspecto: tal risco não passava de um potencial que podia se desenvolver, longe de ser uma ameaça imediata à ordem capitalista e uma alternativa remotamente socialista, seja no campo das lutas sindicais e sociais, seja no escopo das reformas de base. Portanto, como define Florestan Fernandes, o golpe foi uma “contrarrevolução preventiva”.
Apresentar essa contrarrevolução preventiva como um desvio, como resultado de uma truculência militar, uma quartelada, servia aos propósitos de quem queria se livrar dos operadores para resguardar seus mandantes. Em parte, o processo de democratização e a anistia lograram este objetivo. O preço exigido pelos militares em troca de assumir a pecha da infâmia foi que se colocasse um ponto final, uma pedra, sobre o horror. Isto é, uma transição que fosse realizada sem abrir arquivos, sem julgamentos e sem grandes acertos de contas, permitindo à corporação militar passar à ordem democrática sem ter que responder por sua reponsabilidade diante do terror.
Por um tempo, o acordo funcionou. Mesmo os honrados esforços da Comissão da Verdade, com as reparações às vitimas e seus familiares, foram sempre tutelados e vigiados para que não extrapolassem os limites da catarse aceitável, mantendo nas sombras as pistas que levariam aos verdadeiros protagonistas e mandantes, assim como aqueles que fartamente se beneficiaram do crime. Mas, e agora? Com explicar essa retomada da iniciativa de se “comemorar” a data da infâmia?
Não é possível entender esse fenômeno se não o inserirmos no quadro geral da bizarrice do atual governo e do bufão miliciano que o comanda. Aquilo que era apenas uma cortina de fumaça ideológica, que todos (inclusive os sujeitos da infâmia) sabem ser mentira, ou seja, a cruzada redentora contra o comunismo e a corrupção, serviu agora de cobertura para que um desqualificado expulso das Forças Armadas construísse sua carreira política e para o discurso de ódio que o levou à presidência. Esse personagem burlesco nunca foi levado a sério pelos próprios militares (ver, por exemplo, o juízo pouco elogioso que o ditador Geisel tinha do personagem). Ele servia apenas a um proposito secundário: ser a versão explícita da extrema-direita que despertaria o ódio irracional contra o PT para apeá-lo do poder ou constrange-lo afim de aceitar os duros ajustes contra a classe trabalhadora. No entanto, ocorre que a criatura fugiu da coleira e chegou à Presidência.
Precisamos constatar, antes de tudo, que ele é um incômodo. Sua total incapacidade de governar, sua inoperância na condução dos acordos e articulações que de fato o levaram à Presidência, sua atitude tosca e irresponsável… todos esses elementos têm marcado com crises quase diárias o andamento do governo, gerando uma instabilidade crônica. Diante da total incompetência, o bufão resolveu manter a campanha e o tom da farsa que o elegeu, como denuncia o conservador jornal O Estado de S. Paulo (apoiador declarado do golpe de 1964 e do golpe de 2016). Diante da vergonhosa viagem aos EUA e a catastrófica passagem pelo Chile (quase um “caminho de Santiago” de peregrinação para extremistas de direita), envolto por atrapalhadas diárias da ala psiquiátrica do governo (Damares, Vélez, Araújo) e pelo desespero do guru econômico Guedes ao ver a reforma da previdência ameaçada pelo bufão de chinelos e arma na cintura, eis que o presidente resolve reafirmar o perfil que ele crê que o liga diretamente com as massas conservadoras por cima e por fora das instituições do Estado, conclamando os quarteis a fazerem as “comemorações devidas” do golpe de 1964.
Esta é uma ilusão renitente na política brasileira. Collor, pouco antes de ser impedido, conclamou as massas a apoiá-lo, mas o exemplo mais próximo se encontra em outro presidente: Jânio Quadros. Como se sabe, Jânio foi uma invenção da UDN para chegar à Presidência, na vã ilusão que poderia usar a seu favor o populismo tresloucado da figura para ganhar a eleição e depois tutela-lo no governo mantendo-o como figura decorativa. No entanto, como acontece no carnaval, quem vestia-se de rei acostumou com a fantasia. Jânio tenta um golpe contra a UDN conclamando o místico apoio do povo que o abandona miseravelmente.
Isolado, atrapalhado e afogado em sua própria mediocridade, o nosso bufão tenta acenar com um agrado aos militares, ternamente afirmando que reconhece o que ninguém admite, que eles foram heróis salvadores da pátria ameaçada, que implantaram uma ditadura para salvar o Brasil de uma ditadura (como disse o imbecil de plantão alojado no Ministério das Relações Exteriores), que os torturadores que laceravam a carne de mulheres e crianças, estupravam, empalavam, passavam corrente elétrica por testículos e introduziam ratos em vaginas, são heróis incompreendidos que estavam purgando a carne para nos redimir de nossos pecados.
Entre as muitas coisas que o miliciano não sabe, está quanto seu ato de reconhecimento colocou os militares em uma situação altamente constrangedora, incômoda e na contramão de toda a estratégia tão eficaz construída para ocultar o golpe nas brumas do esquecimento. Na tentativa de se manter no poder, ele pode ter assinado seu passaporte para fora do governo em breve. Expor o golpe como espetáculo catártico tinha um sentido no final dos anos 1970, mas tratava-se de expor para ocultar. Agora, a exposição tem o mesmo efeito que arrancar a casca da ferida que estava quase cicatrizando.
A direita brasileira (não o fantoche da extrema-direita histérica e burra) já se prepara para fazer o que fez com os militares depois da Ditadura: descartar o instrumento que não mais lhe serve para preservar seus verdadeiros interesses e de seus patrões imperialistas. Começou a contagem regressiva para a queda do clã Bolsonaro e de seu circo de horrores.
Quem o substituir se empenhará em executar os interesses de seus patrões e tirará da gaveta o discurso de como as instituições são fortes o suficiente para corrigir seus próprios enganos. Ninguém pedirá desculpas ou será julgado. Órfãos e viúvas chorarão copiosamente, Janaína Pascoal vai gritar a Deus que a ilumine enquanto sacode no ar uma esfarrapada bandeira brasileira do lado de fora da faculdade de Direito. Alguns desavisados podem até comemorar enquanto um enorme curativo será colocado sobre uma ferida que insiste em não cicatrizar.
in BoiTempo, blog

quarta-feira, 27 de março de 2019

Obsessão pela redução do défice compromete futuro do País

O INE divulgou hoje informação estatística sobre o défice e a dívida das Administrações Públicas em 2018. Os dados apontam para um défice orçamental de 0,5% do PIB, um valor inferior ao previsto pelo Governo (1%) na Proposta de Orçamento do Estado para 2018.
Erigir o défice como primeiro objectivo é perigoso, porque escamoteia as dificuldades com que os trabalhadores e os cidadãos vivem. Com efeito o que se tem de privilegiar é o crescimento, o emprego estável e com direitos, o investimento público e os serviços públicos
Desde logo, porque o crescimento económico sustentado, criador de empregos com direitos, deveria ser a primeira prioridade. A verdade é que o crescimento tem sido muito limitado, com excepção de 2017, em que atingiu um valor relativamente elevado (2,8%). Mas em 2018 o crescimento baixou para 2,1%, há sinais claros de abrandamento na actividade económica e as várias previsões apontam para valores inferiores a 2% nos próximos anos. Portugal tem necessidade vital de crescimentos bem superiores para dar resposta aos problemas económicos, sociais e ambientais com que está confrontado.
A CGTP-IN salienta que uma parte do “bom” resultado nas contas públicas se deve à dramática escassez de investimento público. Apesar das promessas que se têm renovado, o investimento público apenas representou 2% do PIB em 2018 e, admitindo-se que haverá um maior crescimento em 2019, ainda assim não se prevê que ultrapasse os 2,3%. Além de que existe um claro atraso na execução de projectos de investimento financiados por fundos comunitários (Portugal 2020).
Gráfico com Investimento público (% PIB)
grafico1
A necessidade de investimento, tanto público como privado, é premente não apenas pelos investimentos imprescindíveis para o futuro do país, como nas infra-estruturas, nos equipamentos sociais e na transição energética. É-o também porque o investimento total líquido, isto é deduzido do consumo de capital fixo, tem sido, há vários anos, negativo, o que reduz a capacidade de crescimento da economia.
O país tem também adiado o investimento em serviços públicos de qualidade nas diversas áreas – investimentos que são vitais para o bem-estar da população e para a redução de gritantes desigualdades sociais, como na educação, saúde, protecção social e transportes, designadamente. No Serviço Nacional de Saúde, não houve recuperação no período 2016-2018 face ao brutal desinvestimento feito pelo Governo PSD/CDS-PP no período da troika. A CGTP-IN espera que haja a aprovação pela Assembleia da República de uma Lei de Bases que seja um ponto de partida para a política de saúde consentânea com os objectivos estabelecidos na Constituição. Mas alerta que a obsessão pela redução do défice pode pôr em causa este desígnio.

Gráfico com a Despesa pública corrente em saúde em % do PIB
graf2
Para a CGTP-IN a prestação de serviços públicos de qualidade é inseparável do emprego público e da valorização dos salários e das carreiras na Administração Pública. Salienta, em particular, que os salários da maioria dos trabalhadores da Administração Pública não são actualizados desde 2010 e que não é aceitável que as carreiras não sejam descongeladas na totalidade para os vários grupos profissionais.
A CGTP-IN salienta ainda que uma política de obsessão pelo défice (que pode ser reforçada em 2019 com a perspectiva do “défice zero”) pode ser contraproducente, pois sem crescimento económico sustentável a dívida pública, na medida em que é expressa relativamente ao PIB, tenderá a agravar-se. Há, pois, que promover uma política que ponha as pessoas à frente dos números do défice.
CGTP-IN
26.'3.2019

Este artigo de Daniel Oliveira com bons argumentos para refletirmos para as próximas eleições eiropeias, não exprime toda a minha opinião, mas a dele.


Antes pelo contrário
Antes pelo contrário
Daniel Oliveira
No Brexit, sinto-me Corbyn
A narrativa que se está a construir sobre Brexit ridiculariza a democracia, retoma o discurso suicida de Hillary Clinton sobre os eleitores “deploráveis” e anuncia o Apocalipse. Há uma tentativa de despolitizar o Brexit, ignorando as contradições que ele exibe à esquerda e à direita. Nos trabalhistas, o paradoxo é evidente: apesar de Corbyn ser oficialmente contra o Brexit, o seu manifesto eleitoral é incompatível com o Mercado Único. Não é porque o euroceticismo seja xenófobo que quase só vemos xenófobos a dar-lhe voz. Há excelentes razões de esquerda contra esta União. No Reino Unido o euroceticismo até é uma velha tradição de esquerda. Mas a esmagadora maioria da esquerda debandou desse espaço e entregou-o aos piores argumentos. Corbyn foi a última oportunidade de deixar de o fazer. Como o europeísmo de esquerda foi derrotado há muito, algures entre Maastricht e Lisboa, sobram chavões sobre a paz e a democracia que ignoram o programa ideológico que hoje determina quase todas as políticas fundamentais impostas pela União. Pode estar tudo errado no Brexit, e quase tudo está. Mas não está pior do que esta UE e do que a reveladora altivez com que olhamos para este momento. Sinto-me como Corbyn, entalado entre o debate que devia ter sido feito e o debate que realmente se fez.
<span class="creditofoto">Foto epa</span>
Foto epa
A narrativa do Brexit para os europeus concentra-se na “trapalhada”. Não que a confusão seja falsa, com sucessões de votações e sem se saber ao certo o que vai acontecer a poucas semanas do eventual desenlace. Mas não é inocente a despolitização do debate sobre a decisão tomada pelos britânicos de forma democrática e livre. Há até alguma chacota com os procedimentos parlamentares a que qualquer populista poderia aderir com facilidade. Muitos dos países onde tantos se riem do difícil momento que o Reino Unido vive nunca fizeram qualquer tipo de debate democrático e sério sobre a sua adesão à UE. Não referendaram, não discutiram, não votaram. Limitaram-se a estender a mão para receberem fundos e entregarem os seus destinos a terceiros, fazendo figas para que tudo corra bem em Bruxelas, Paris e Berlim. Quanto aos recuos e avanços do Brexit, será necessária uma cronologia sobre o processo que levou a cada novo tratado, referendos feitos e repetidos e trapalhadas em nada diferentes destas? Estamos a rir de quê?
David Cameron <span class="creditofoto">Foto Reuters</span>
David Cameron Foto Reuters
Tudo esteve errado na forma como David Cameron marcou este referendo, tendo como único objetivo encostar os eurocéticos do seu partido a um canto. E tudo está errado na debandada dos que, tendo dirigido a campanha do “leave”, não se responsabilizaram pelas suas consequências. E é natural que não o tenham querido fazer. A direita xenófoba não tinha qualquer projeto para depois. O Reino Unido decidiu sair da União Europeia sem um plano, sem tempo para o que precisava de fazer, sem seriedade política e honestidade intelectual. Mas, é bom dizer, a própria União foi-se construído com a possibilidade de sair expressa no artigo 50º mas sem qualquer roteiro para a forma de o fazer.
Com base no amadorismo dos brexiteers, não podemos tratar a decisão tomada pelos britânicos como um mero capricho de irresponsáveis. O euroceticismo britânico, à direita e à esquerda, é anterior à adesão ao projeto europeu. E tem, historicamente, algumas excelentes razões. O referendo de 1975, imposto pelos trabalhistas dois anos depois da adesão, foi a última vez que esse debate se fez a sério. As razões mais relevantes foram agora expressas numa frase de leitura dúbia que foi usada na campanha do Brexit para um discurso xenófobo mas podia ser usada, com toda a propriedade, na defesa intransigente da democracia: “take back control.”
Muitos dos países que se riem do difícil momento que o Reino Unido vive nunca fizeram qualquer tipo de debate democrático sério sobre a sua adesão ao projeto europeu. Limitaram-se a estender a mão para receberem fundos e entregarem os seus destinos a terceiros. Da Roménia a Portugal não falta quem queira dar lições de democracia aos ingleses. Não deixa de ser irónico
Com a mais velha democracia parlamentar, os britânicos não se adaptaram com facilidade à informalidade antidemocrática e ao poder dos burocratas de Bruxelas. E tiveram dificuldade em assistir, sem comichões, ao projeto imperial alemão em que a União se transformou, desde a criação do euro e do alargamento da UE a leste. Estes dois incómodos, que muitas vezes foram expressos de forma demagógica e simplista mas que nem por isso perderam razão de ser, podem manifestar-se à direita ou à esquerda de formas diferentes, com exigências mais liberais ou mais sociais, mais cosmopolitas ou mais xenófobas. Mas são incómodos legítimos. E a troça que dele fazemos diz mais da nossa anemia democrática do que do caos britânico. Da Roménia a Portugal não falta quem queira dar lições de democracia aos ingleses. Não deixa de ser irónico.
Os loucos dirigem-se para o abismo
A narrativa do Brexit para os europeus também se concentra na demonização dos eleitores britânicos. E não é por acaso que se tenta resumir o Brexit a uma espécie de surto psicótico dos ingleses. De tal forma que que há mesmo quem acredite que, se repetir o mesmo referendo fora da fase maníaca, o resultado será necessariamente diferente. É a velha tática de recomeçar todos os jogos até vencer. Ela deixou um lastro de ilegitimidade que as forças da vanguarda europeísta sempre desprezaram até serem surpreendidas por maiorias cansadas de tanta arrogância. Uma arrogância que nasce da certeza de que quem está do lado do bem não precisa de apoio popular. Lidera a marcha inexorável para o progresso e isso chega. E se os eleitores não o percebem é porque são ignorantes, tacanhos, velhos e racistas. Há uma total coincidência entre o discurso que se fez sobre o referendo francês, em 2005, e o que se faz agora. Com uma diferença: na altura houve uma esquerda que, apesar da chantagem que a colava à extrema-direita, não teve medo de estar do lado do “não”, o que permitiu que naquela campanha houvesse argumentos de esquerda e democráticos. O tempo veio a dar-lhes plena razão, quer no erro óbvio que teria sido o Tratado Constitucional, quer no que veio a ser o seu sucedâneo, o Tratado de Lisboa.
Quem oiça o tom geral concluirá que o Reino Unido passará a ser a Coreia do Norte, com fronteiras hermeticamente fechadas e sem trocas comerciais ou culturais com a Europa e com o mundo. Que se transformará numa espécie de Venezuela da Europa. Que dependerá da caridade de Donald Trump. E que abandonará o clube das democracias
<span class="creditofoto">Foto Reuters</span>
Foto Reuters
Por fim, a narrativa do Brexit para os europeus concentra-se no anúncio do Apocalipse. Quem oiça o tom geral concluirá que o Reino Unido passará a ser a Coreia do Norte, com fronteiras hermeticamente fechadas e sem trocas comerciais ou culturais com a Europa e com o mundo. Que se transformará numa espécie de Venezuela da Europa. Que dependerá da caridade de Donald Trump. E que abandonará o clube das democracias. Já se sabe que se não fosse a União Europeia, com os seus comissários não eleitos e a permanente lei do mais forte como regra, o Reino Unido nunca teria conhecido tal coisa. Só que, apesar de o Reino Unido caminhar para as trevas, continua a haver mais europeus a emigrarem para a Inglaterra do que ingleses a fugir do que aí vem. E tendo o saldo migratório com a UE caído, com o resto do mundo até subiu. Isto apesar de todos já terem percebido que este divórcio é mesmo inevitável. Mais: ao contrário do que se anunciava, a economia britânica não colapsou – longe disso – depois do referendo.
Sim, esperam o Reino Unido momentos muito difíceis. Até porque a integração europeia tem alguns pontos quase irreversíveis – e por isso mesmo cada passo deveria ter sido longamente discutido e até, pecado dos pecados, referendado. E será especialmente difícil com uma saída feita com os pés, em que os seus principais defensores desertaram e tudo está a ser negociado debaixo de uma pressão que só pode correr mal a todos. E não faltam incendiários, em Londres e nas capitais europeias, a achar que a pressão devia ser ainda maior. Há coisas que foram resolvidas dentro da União que têm mesmo de ser adaptadas às novas condições. A fronteira entre a República da Irlanda e a Irlanda da Norte é seguramente a mais difícil. Mas não deve ser tratada como um problema britânico. Porque não é. É uma questão europeia, que envolve um estado que continua a ser membro. Poderia até acabar da melhor forma, com a unificação das irlandas. Mas isto já sou eu a sonhar.
Sim, o Reino Unido corre enormes riscos com esta decisão. Tantos que pode vir a concluir, tarde demais, que foi uma escolha errada. Mas aderir à CEE e à União também foi um desafio perigoso. Assim como aderir ao euro, erro que o histórico euroceticismo britânico os impediu de cometer. O euroceticismo e o facto de Thatcher ter garantido uma disciplina neoliberal que dispensava imposições externas. A elite inglesa sempre foi mais segura do seu poder do que a continental. Já nós, atirámo-nos para a moeda única de cabeça sem um décimo do debate que os ingleses estão a fazer em torno do Brexit e que fizeram quando recusaram dar esse passo. Uma futurologia realista ter-nos-ia explicado que este viria a ser um dos maiores desastres económicos na nossa história recente, com efeitos estruturais na dívida, na balança comercial, na capacidade de segurarmos grandes empresas nacionais e bancos. Tudo o que podia ter corrido mal correu mal. E, no entanto, cá estamos vivos. E a maioria até acha que fizemos otimamente em estar no pelotão da frente desta aventura.
Achámos que a importância deste passo valia o risco. Os britânicos acham que a importância de não estar na União vale o risco. E estão, apesar de tudo, um bocadinho mais bem equipados do que nós para correr esse risco. Sofrerão muito ou pouco, ninguém sabe ao certo apesar de todos fazerem previsões indiscutíveis. Não sabemos o que vai acontecer à UE e se vai sofrer mais quem ficar dentro ou quem sair. Mas, mesmo partindo do princípio que o embate será forte, um povo pode estar disposto a sacrificar-se pela sua independência. E não vejo porque deva ser isso motivo de choque ou de gozo.
A direita e o “egoísmo” dos pobres
Do ponto de vista intelectual, o Brexit confrontou a esquerda e a direita britânicas com as suas contradições. Um confronto saudável de que andamos todos, por essa Europa fora, a fugir.
Margaret Thatcher, em junho de 1975 <span class="creditofoto">Foto Getty</span>
Margaret Thatcher, em junho de 1975 Foto Getty
Se não tivesse existido Thatcher poderíamos dizer que o conservadorismo democrático que não alinhou na deriva neoliberal se confrontaria, neste debate, com a importância que sempre deu ao Estado-Nação como fonte de legitimidade de exercício do poder. E com as maldades que vão sendo feitas ao parlamentarismo. E com a natureza voluntarista, insensata e disruptiva do europeísmo. Mas, apesar da prosápia conservadora, Margaret Thatcher é percursora de tudo o que se fez na Europa. Começou primeiro no Reino Unido, na realidade. Não por acaso, acabou por ser o sinistro Nigel Farage, e não um tory, a capturar o discurso de defesa do parlamentarismo que nas suas diatribes em Estrasburgo quase o faziam passar por alguém que um qualquer democrata deveria aplaudir.
Nigel Farage <span class="creditofoto">Foto Reuters</span>
Nigel Farage Foto Reuters
Mas alguns argumentos da direita pró-Brexit merecem mais atenção do que a mera rejeição enojada. Não nos termos em que são apresentados, mas nas suas origens. Os ingleses (e aqui estou a falar mesmo dos ingleses, não dos britânicos) sentem-se alienados na sua identidade. Alienados da sua identidade colonial e imperial, o que é inevitável e positivo. Mas também alienados na sua identidade nacional. Enquanto escoceses, galeses e até irlandeses puderam construir diferentes graus de autonomia, os ingleses, destinados a ser o centro de um império mirrado, não o fizeram. Não têm parlamento próprio e políticas próprias. E isto até tem consequências práticas. Há uma parte da Inglaterra que foi esquecida. Ao contrário da Escócia, a Inglaterra não tem os seus próprios instrumentos para tratar das suas assimetrias internas. Grande parte do país foi sugado por Londres. E foi esse o país que mais fortemente votou pelo Brexit.
Fronteiras abertas sem transferência de recursos é um convite à debandada, traduzida pela personagem do “canalizador polaco”. Num país tão desigual como o Reino Unido, os mais pobres, que se sentem abandonados pelo poder, têm dificuldade em aceitar transferência de recursos para outros países. Porque ela não se faz internamente. Só conheço uma forma de vencer o “egoísmo” dos pobres: políticas igualitárias que os tirem da pobreza
Por outro lado, o debate sobre a imigração é mais difícil do que parece. Não me refiro à imigração exterior à União Europeia. Aí, quase toda a conversa dos defensores do Brexit é só demagógica. Nada mudará depois da saída, até porque as políticas europeias são bastante restritivas. Mas a imigração comunitária corresponde a um problema real da União. Fronteiras abertas sem transferência de recursos é um convite à debandada, traduzida pela personagem do “canalizador polaco”. E é uma equação de resultado negativo para todos: mau para quem recebe as pessoas, porque a pressão leva a redução salarial, mau para quem as perde, que fica quase sempre sem os quadros que andou a formar. Os neoliberais acreditam que isto se resolve deixando que o mercado de trabalho encontre o seu ponto de equilíbrio, a extrema-direita acha que se resolve fechando as fronteiras, a esquerda acha que se resolve aumentando as transferências de recursos de um para outro lado para que faça tanto sentido um inglês ir viver para Bucareste como um romeno ir viver para Londres.
O problema do argumento da esquerda é que, num país tão desigual como a Inglaterra, os mais pobres, que se sentem abandonados pelo poder, têm dificuldade em aceitar essa transferência de recursos para outros países. Porque ela não se faz internamente. Claro que numa campanha a coisa não é posta assim. A extrema-direita sabe explicar isto de forma mais simples, sem acicatar a vontade de justiça mas apenas o ódio pelo outro. Mas o problema está lá. Só conheço uma forma de vencer o “egoísmo” dos pobres: políticas igualitárias que os tirem da pobreza.
A esquerda e os deploráveis
Apesar de grande parte do espetáculo ser dado pelos conservadores, os problemas não acabam à direita. É bom lembrar, aliás, que para o “leave” vencer teve de contar com muitos (mesmo muitos) votos de esquerda. Mais de um terço dos eleitores trabalhistas votou no Brexit. Sobretudo os que foram sendo deixados para trás no processo de globalização e integração europeia. Aqueles que os trabalhistas viram fugir para o UKIP e para os conservadores em 2015 e que, muitos deles, foram recuperados por Jeremy Corbyn em 2017. E é à esquerda que as contradições são mais evidentes.
Não é por acaso que Friedrich von Hayek, o buda dos neoliberais, feroz opositor do programa trabalhista de 1945, admirador de Salazar e que preferia um ditador liberal a um governo democrático a que faltasse liberalismo, via no federalismo a melhor forma de fugir às “pressões da opinião pública e da influência política”. E é por isso que me espanto com os incautos federalistas de esquerda. A União Europeia transformou-se, talvez estivesse mesmo destinada sê-lo, na mais poderosa arma de alienação democrática para fugir às “pressões da opinião pública e da influência política”. Isto não invalida que a direita britânica tivesse querido isso mesmo e até feito pior, por sua iniciativa, do que Bruxelas e Berlim alguma vez exigiram. Mas impede, como veremos mais à frente, que a esquerda se atreva a querer fazer diferente.
O que está em causa no caminho que o projeto europeu levou, dentro ou fora do euro, é a sobrevivência de qualquer programa de esquerda à escala nacional. Dantes, um europeísta ainda poderia explicar que o era com base na defesa do Estado Social, dos valores da tolerância e da democracia e da convergência entre as nações europeias. Hoje, o máximo que pode dizer é que esta é a sua utopia. A UE transformou-se no oposto de tudo o que eles desejavam: a concorrência e o processo de privatização das funções do Estado são os seus dogmas, as políticas anti-imigração é o seu novo mainstream, a fragilização das democracias nacionais e o reforço da burocracia europeia a sua prática e a divergência económica e social entre nações a sua tendência. A estranha pergunta que nos fazemos é se ainda são possíveis políticas de esquerda nesta Europa. E a resposta é cada vez mais clara.
Claro que se pode dizer, com toda a justiça, que o Reino Unido foi um fator de agravamento de grande parte destas tendências. Só que, como qualquer país, o Reino Unido não é uma realidade homogénea. E o mesmo Reino Unido que impôs políticas austeritárias – a UE não foi a causa da austeridade, foi mais um instrumento para a austeridade – elegeu como líder do Partido Trabalhista o social-democrata mais à esquerda da Europa.
<span class="creditofoto">Foto Reuters</span>
Foto Reuters
A primeira dificuldade dos trabalhistas é mesmo com o processo. Jeremy Corbyn foi escolhido pelo eleitorado contra a vontade de uma elite do partido responsável pela maior traição histórica a que assistimos à esquerda, que conduziu à terceira via e à implosão da social-democracia europeia. Foi escolhido através de uma profunda democratização do partido e de um apelo à participação cidadã. É impensável ter Corbyn a aliar-se a essa mesma elite partidária para trair a vontade que foi expressa pelos eleitores. Mesmo a sua cedência aos sectores do partido que querem a repetição do referendo, que lhe são próximos, é uma traição às suas promessas de regeneração democrática. Ainda mais quando isso se faz em nome de uma altivez antidemocrática de uma parte dos eleitores. O discurso que confronta os cidadãos educados, civilizados e cosmopolitas com a populaça boçal dos pubs e que alimenta o combate geracional insulta o melhor da tradição da esquerda. É um subgénero da reveladora expressão usada por Hillary Clinton para caracterizar os eleitores de Trump – “os deploráveis”. Uma arrogância social e cultural que representa o mais monumental suicídio da esquerda.
O discurso que confronta os cidadãos educados, civilizados e cosmopolitas com a populaça boçal dos pubs e que alimenta o combate geracional insulta o melhor da tradição da esquerda. É um subgénero da reveladora expressão usada por Hillary Clinton para caracterizar os eleitores de Trump – “os deploráveis”. Uma arrogância social e cultural que representa o mais monumental suicídio da esquerda
Corbyn também tem dificuldades eleitorais. Apesar de todo o desprezo que merece da elite do agonizante centro-esquerda europeu, Corbyn fez aumentar o número de membros do Partido Trabalhista de 200 mil, em 2015, para quase 400 mil, em 2016. Depois do referendo e de várias renúncias entraram mais cem mil. Mesmo depois de uma queda mais recente, por causa da pressão dos últimos meses, o Labour de Corbyn é, se as minhas contas não estão erradas, o maior partido europeu. E os principais responsáveis por esse aumento foram jovens de classe média, em grande parte votantes do “remain”. E isso explica a pressão do Momentum, grupo de apoio a Corbyn, para um referendo ao inaceitável acordo de Theresa May.
Depois há os outros, que votaram no “leave”. É o eleitorado operário, das regiões industriais e deprimidas de Inglaterra. Este voto da classe trabalhadora não pode ser ignorado. Porque sem ela o Labour perde as suas raízes e Corbyn não tem futuro para a defesa do seu programa político. Porque sem ele a esquerda britânica cometerá o mesmo erro da esquerda francesa, norte-americana e italiana: entregará o seu povo à extrema-direita. Temo, aliás, que as indecisões de Corbyn venham a custar-lhe muitos votos nas europeias, se o Reino Unido lá chegar. Para um lado e para o outro.
O Mercado Único contra Corbyn
Corbyn tem tudo contra si: um Brexit que afasta a atenção do seu programa progressista de defesa do Serviço Nacional de Saúde e intervenção do Estado para retomar a relevância industrial inglesa; o boicote à elite do partido, que o impede de ter uma gestão com cabeça, tronco e membros de todo este complexo processo; o ódio da elite milionária que o teme vinte vezes mais a ele do que ao Brexit; e uma campanha nauseabunda que, utilizando episódios que nada têm de novo no Labour (ou nos conservadores), o tenta apresentar como um antissemita. Que tenha sobrevivido até aqui é quase um milagre.
Mas a sua maior dificuldade é mesmo programática. É o conteúdo das suas políticas. Vale a pena, para perceber a insanável contradição, ler ESTE TEXTO do economista de esquerda Costa Lapavitsas. A tese de Lapavitsas é simples: se o Reino Unido ficar no Mercado Único europeu O MANIFESTO DE CORBYN é impraticável.
Se o Reino Unido ficar no Mercado Único europeu o manifesto de Corbyn é impraticável. A sua política industrial, que se baseia na possibilidade de o Reino Unido, tal como a China ou a Coreia do Sul, poder apoiar financeiramente alguns grandes motores da sua indústria, choca de frente com as regras da concorrência da União. A contratação pública com critérios de responsabilidade social também. E o programa de nacionalizações, sendo teoricamente possível, violaria toda a orientação da União
A sua política industrial, que se baseia na possibilidade de o Reino Unido, tal como a China ou a Coreia do Sul, poder apoiar financeiramente alguns grandes motores da sua indústria (não estamos a falar de apoio à modernização, a regiões deprimidas ou a PME), choca de frente com as regras da concorrência da União. Porque essas regras de concorrência, com um sentido ideológico bastante determinado, olham para o Estado como um elemento neutro na economia. O resultado, para a Europa, tem sido o que se vê: está a ser ultrapassada pelo pragmatismo asiático. As regras europeias impedem que o Estado seja um verdadeiro estratega da economia. Os neoliberais adoram, a competitividade externa das suas nações europeias nem por isso. A não ser na Alemanha, claro. Essa faz o que lhe apetece.
Também a contratação pública de serviços e bens com critérios de responsabilidade social, um dos pilares importantes do programa de Corbyn, fica muitíssimo limitado. A defesa das regras de concorrência, mais uma vez, e o tratamento de igualdade, tornam esse caminho espinhoso e virtualmente impossível.
Por fim, o programa de renacionalizações dos caminhos de ferro, correios, energia e água, sendo teoricamente possível, violaria toda a orientação da União, que aponta de forma clara e quase impositiva para a privatização. Para além de toda a resistência interna, Corbyn teria de lidar com o boicote ativo da União e todas as suas instituições. Mesmo que as renacionalizações destes gigantes fossem aceites, a imposição seguinte é a que temos conhecido e que é explícita no sector bancário: os monopólios públicos são inaceitáveis, as regras de gestão do que é público devem ser as mesmas do que no privado para não criarem distorções no mercado. Estes dogmas políticos alguma vez foram a votos? Claro que não. Não estamos a falar de uma democracia, estamos a falar da União Europeia. E já não falo, claro do controlo de capitais, sem os quais qualquer programa de esquerda é uma doce ilusão.
A esquerda ausente em cima do Brexit
Um dos grandes problemas de grande parte da esquerda, ao debater o Brexit, é que o despolitizou. Porque não tem nada a dizer sobre a Europa que não sejam chavões sobre a paz e a democracia, porque está obrigada a ignorar o programa ideológico que hoje determina quase todas as políticas fundamentais impostas pela União, porque se tentar ser consequente na defesa desta integração acaba por tropeçar nos seus próprios pés. Qualquer sofisticação sobre as vantagens de ficar no mercado único deixaria a esquerda totalmente nua nas suas contradições. E isto faz com que se limite a ser uma ajudante histérica e vazia numa luta entre a direita neoliberal europeísta e a direita xenófoba nacionalista. Sem nada a acrescentar, de um lado ou do outro, ao que está a ser discutido.
A esquerda despolitizou o debate sobre o Brexit. Porque não tem nada a dizer sobre a Europa que não sejam chavões sobre a paz e a democracia, porque está obrigada a ignorar o programa ideológico que hoje determina quase todas as políticas fundamentais impostas pela União, porque se tentar ser consequente na defesa desta integração acaba por tropeçar nos seus próprios pés. Limita-se a ser uma ajudante histérica numa luta entre a direita neoliberal e europeísta e a direita xenófoba nacionalista
A vantagem de confrontar o manifesto político de Corbyn com os efeitos de continuar no Mercado Único é perceber a enorme dificuldade em manter um discurso coerente de esquerda e europeísta. Há um discurso utópico, talvez. Mas se é para ignorar a correlação de forças, a história recente e a exequibilidade do que se defende, sonhemos realmente alto com um mundo todo sem fronteiras e classes sociais. Se é para lidar com o que temos, esta é a União que deixámos que fosse construída, bloqueada por tratados que só podem ser mudados por unanimidade e que tem um sentido ideológico que se tornou parte da sua natureza. Aprendamos de uma vez por todas a lidar com isso.
É importante recordar, mais uma vez, que a tradição do Labour não é, ao contrário da ideia instalada, europeísta. Dois anos depois de ter aderido ao Mercado Comum e à CEE, pela mão do primeiro-ministro conservador Edward Heath, o primeiro-ministro trabalhista Harold Wilson cumpriu uma promessa eleitoral e levou a adesão a referendo. Já então o Partido Trabalhista, mais eurocético do que os conservadores, estava dividido. De tal forma que, ao contrário dos conservadores e dos liberais, que fizeram campanha pelo “sim”, o Labour não tomou posição oficial.
Edward Heath e Harold Wilson <span class="creditofoto">Fotos Getty</span>
Edward Heath e Harold Wilson Fotos Getty
Entre os que fizeram campanha pela adesão estava a recém-eleita líder conservadora Margaret Thatcher. Entre os que fizeram campanha pelo “não” estava Tony Benn, um carismático deputado trabalhista de esquerda, que participou em vários governos e esteve quase cinquenta anos no Parlamento, tendo sido dos mais notáveis rostos do euroceticismo progressista. Costuma ser referido como o mentor de um jovem trabalhista que, na altura, tinha 26 anos e também votou “não”. Viria a ser deputado oito anos mais tarde e chamava-se Jeremy Corbyn. Mesmo que a narrativa dominante tenha conseguido forçar a colagem do euroceticismo ao nacionalismo xenófobo, nem Thatcher nem Corbyn estavam enganados no lado da trincheira que então escolheram.
O que se passa com os trabalhistas, que têm merecido menos atenção do que os conservadores, tratando Corbyn como uma excentricidade esquerdista, é o que acabará por se passar com toda a esquerda europeia. Mas nos Estados membros onde o aprofundamento da integração ainda não arrasou todos os partidos de esquerda, a coisa será mais dramática: aí sim, a incompatibilidade do reforço do Estado Social e do papel do Estado na economia com as regras da moeda única é absoluta. As clivagens que atravessam a política inglesa são as clivagens que atravessam o resto da política europeia. Só que isto se passa num país que sempre desconfiou da União Europeia e que tem um sistema eleitoral que o divide por dois partidos sem verdadeira coesão política. A clivagem do Brexit só é mais clara nos conservadores porque a esquerda, no Reino Unido e na Europa, se demitiu do debate.
O europeísmo de esquerda foi derrotado há muito, algures entre Maastricht e Lisboa. O euroceticismo de esquerda pode ter tido a sua última oportunidade com Corbyn. Tudo o que defendo é incompatível com esta União, e isso levar-me-ia a ser pelo Brexit. A ausência da esquerda no debate entregou o Brexit à xenofobia e ao egoísmo, o que me levaria a ser contra o Brexit. Sinto-me como Corbyn, entalado entre o debate que devia ter sido feito e o debate que realmente se fez
<span class="creditofoto">Foto epa</span>
Foto epa
Não é porque o euroceticismo seja xenófobo que quase só vemos xenófobos a dar-lhe voz. É porque a esquerda debandou desses espaço e entregou-o aos piores argumentos. Hoje, temos um confronto entre neoliberais e neofascistas. No discurso público, não há europeísmo de esquerda, assim como não há euroceticismo de esquerda. E Corbyn, dependente de um partido que não lhe quer bem, não conseguiu inventar nem um nem outro. O europeísmo de esquerda foi derrotado há muito, algures entre Maastricht e Lisboa. O euroceticismo de esquerda pode ter tido a sua última oportunidade com Corbyn. A conjuntura não lhe deu espaço político para o afirmar. Não sou, no entanto, injusto com o único líder social-democrata europeu com um programa ambicioso à esquerda. Ele teve o azar de cair bem cima de todas as contradições deste espaço político.
Já não há argumentos de esquerda em defesa desta União. Sempre que os começamos a esmiuçar acabamos por ouvir a inevitável frase: não podemos desistir de sonhar. Percebemos então que estamos perante alguém que se sabe derrotado. E há, como mostrei aqui, excelentes argumentos de esquerda pelo Brexit. Só que, ao contrário do que aconteceu no referendo francês contra o Tratado Constitucional, eles estiveram ausentes da campanha e de todo este processo. Ao não saírem do armário, os brexiteers de esquerda entregaram milhões de eleitores trabalhistas aos argumentos da extrema-direita.
Nunca tomei uma posição clara sobre o Brexit porque tenho a mesma dificuldade de Corbyn. Tudo o que defendo é incompatível com esta União, e isso levar-me-ia a ser pelo Brexit. A ausência da esquerda no debate entregou o Brexit à xenofobia e ao egoísmo, o que me levaria a ser contra o Brexit. O que é estrutural faz-me concordar com o Brexit, o que é conjuntural faz-me ser contra. Sinto-me como Corbyn, entalado entre o debate que devia ter sido feito e o debate que realmente se fez.

terça-feira, 26 de março de 2019

Com mensagens deste nível vale a pena lutar

Washington está a travar uma Guerra de Nova Dimensão contra a China e irá amargamente perdê-la

Peter Koenig    26.Mar.19    Outros autores
Prosseguem em todo o lado as agressões militares EUA. Mas a guerra (as guerras) que Washington tem em curso trava-se em grande medida também no plano económico. A dimensão económica que assume é o indício de um poder em acelerado declínio, cujo desespero o torna ainda mais perigoso.
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sábado, 23 de março de 2019


Antes pelo contrário
Antes pelo contrário
Daniel Oliveira
O serviço está feito, caro Temer. Está dispensado
Contactos do autor Instagram
Só muita ingenuidade pode ver na prisão de Michel Temer a prova de que a justiça brasileira é neutra e não participou num golpe. Pelo contrário, a gestão de políticas dos ritmos da investigação Lava Jato demonstram a total instrumentalização política da Justiça.
O golpe contra Dilma, que apesar do impeachment se arrisca a ser a única a provar-se inocente (mas o cerco vai continuar), tinha dois objetivos: afastar o PT do poder, para lançar, em tempo de vacas magras, uma feroz contrarreforma social, e garantir aos autores do golpe a salvação do que sabiam que aí vinha. Está documentado em escutas. Se há coisa que se prova em toda esta história é que o afastamento de Dilma e do PT nada teve a ver com qualquer combate à corrupção. Foi um ato desesperado de corruptos que tentavam segurar o poder para salvarem a sua pele. Não conseguiram. Com as suas políticas antissociais e no meio do caos, a direita tradicional brasileira perdeu o controlo da situação. E foi assim que abriu as portas a Jair Bolsonaro. Um deputado que, em 2016, quando Dilma foi derrubada, valia menos de 5% nas sondagens.
As prisões de Eduardo Cunha e de Michel Temer aconteceram no tempo em que tinham de acontecer. Eles foram vítimas do seu próprio golpe. Foram eles que fizeram o dirigiram, foram eles que criaram o caos que levou Bolsonaro ao poder e são eles que agora permitem que o novo poder diga que ninguém está a salvo
Para além de abrir as portas a Bolsonaro, Eduardo Cunha e Michel Temer deram tempo para retirar da corrida presidencial o candidato que estava à frente nas sondagens: Lula da Silva. O processo de Lula passou à frente de todos e os seus prazos foram escandalosamente determinados pelo calendário eleitoral. Impedir que Lula fosse a votos era o grande objetivo do juiz Sérgio Moro. Devidamente premiado com a oferta de um superministério que pode vir a ser a passadeira vermelha para a desejada presidência.
As prisões de Eduardo Cunha, primeiro, e de Michel Temer, depois, com base em evidências muito mais indiscutíveis do que as que existem contra Lula, aconteceram no tempo em que tinham de acontecer. Depois de cada um ter feito o que tinha de fazer. Cunha e Temer foram vítimas do seu próprio golpe. Foram eles que o dirigiram, foram eles que criaram as condições para Bolsonaro chegar ao poder e são eles que agora permitem que o novo poder diga que ninguém está a salvo. A não ser, claro, homens como Onyx Lorenzoni, chefe da Casa Civil de Bolsonaro, que confessou ter recebido financiamento ilegal e que o ministro Sérgio Moro perdoou porque ele até já tinha admitido os seus erros pedindo desculpas.
Temer não é o único dispensado pelo novo poder. Giniton Lages, o delegado policial que aproximou demasiado a investigação sobre o assassinato de Marielle Franco da família Bolsonaro, recebeu guia de marcha para a Europa. O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, disse que ele estava muito cansado e propô-lo para um programa de intercâmbio com a polícia italiana. Como veem, no Brasil é tudo às claras. Mas sim, tenho completa confiança na justiça brasileira. Um dia chegará à verdade. Mas sempre no tempo político conveniente.

quinta-feira, 21 de março de 2019


Elisabete Miranda
Elisabete Miranda
Jornalista
Teremos de trabalhar até morrer?

21 de Março de 2019
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Por muito apaixonado que um trabalhador seja pela sua profissão e por muito que um patrão goste do seu funcionário, no mercado de trabalho não se trocam votos para a vida. Em regra, quem trabalha aspira a chegar ali aos 60 anos e reformar-se com uma pensão compostinha, que lhe permita manter os níveis de conforto até ao fim dos seus dias, e quem lhe dá emprego deseja vê-lo pelas costas para poder injetar sangue novo na empresa.
Até há poucos anos esta intersecção das vontades era fácil de conseguir. Com a bênção da Segurança Social, faziam-se rescisões amigáveis disfarçadas de desemprego involuntário, e do subsídio de desemprego transitava-se para a reforma antecipada. Noutros casos, acordava-se com os funcionários uma compensação para cobrir as penalizações que sofrem por se retirarem voluntariamente do mercado de trabalho antes da idade legal.
Estes desenlaces harmoniosos não desapareceram, ainda são uma realidade, mas, à medida que a idade legal da reforma galga (já vai nos 66 anos e 5 meses) e os cortes se aprofundam, a reforma antecipada torna-se cada vez menos apetecível para trabalhadores e cada vez menos acessível para as empresas que assumem os encargos com as rescisões. Neste cenário, como lidar com os trabalhadores que aspiram pelos dias de ócio e descanso, e com as empresas que os querem reciclar?
A OCDE, que ontem apresentou uma análise detalhada sobre o sistema de pensões português, considera que este tempo acabou e que, com os incentivos certos, os comportamentos se ajustarão.
Se se subir a idade de acesso à reforma antecipada (atualmente nos 60 anos) e se se acabar com o regime especial para os desempregados de longa duração, as empresas acabarão por ser forçadas a ficar com os funcionários mais anos e a dar-lhes programas de reconversão profissional. Estes, por seu turno, confrontados com o susto do corte na pensão, conformam-se com trabalhar mais tempo, em linha com os ganhos que conquistaram com o avanço da média de vida.
Isto é o modelo teórico que, funcionando na perfeição, asseguraria a sustentabilidade financeira do sistema e, ao mesmo tempo, pensões adequadas aos reformados do futuro. Na prática, contudo, sabemos que:
- a longevidade de cada um numa empresa depende em última análise da vontade do empregador. Caso se fechem as válvulas de escape, podem gerar-se os vazios de proteção social e as quebras de rendimento abruptas podem criar sérios problemas sociais
- constituir poupança complementar e privada para a reforma é desejável mas difícil quer para particulares (dados os nossos baixos níveis de rendimento) quer para as empresas (que já enfrentam uma taxa social única acima da média)
- embora Portugal seja um dos países europeus onde se vive mais anos, é aquele onde se vive menos anos com saúde, pelo que trabalhar mais anos significa ter menos tempo de qualidade antes de morrer
- a velhice fica muito cara, sobretudo num país onde os lares públicos são escassos e de baixa qualidade
Enquanto os académicos e os políticos não descobrem como conjugar todas as variáveis, a perspetiva é pouca animadora para todos quantos têm ainda muitos anos de vida ativa pela frente.
Ou trabalham até morrer ou morrem de medo de chegar à reforma.
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Suponho que tal teria de passar por um congresso...


O PCP "só se comprometeu com o que podia cumprir, não engoliu sapos"

O líder parlamentar do Partido Comunista Português não tem dúvidas de que, nas próximas eleições legislativas, os portugueses vão ser capazes de reconhecer que medidas determinados partidos defenderam e conseguiram fazer aprovar.

 
Notícias ao Minuto
Há 13 Horas por Patrícia Martins Carvalho 
Política João Oliveira
João Oliveira admitiu, na ‘Grande Entrevista’ da RTP3, que ao longo da legislatura “houve momentos de maior dificuldade em encontrar um caminho que permitisse a aprovação de algumas medidas”. Aliás, sublinhou, a discussão sobre as pensões foi uma delas, pois “não foi fácil”, uma vez que o PCP “ficou sozinho”.
No entanto, nos quase últimos quatro anos uma coisa é certa: o PCP não engoliu sapos e a explicação para tal não ter acontecido é simples. “Nós não nos comprometemos com nada com que não nos pudéssemos comprometer e, por isso, não engolimos sapos. Concordámos com o que tínhamos de concordar, discordámos do que tínhamos de discordar”, afiançou o deputado comunista.
Nesta senda, João Oliveira defendeu que “houve coisas muito relevantes que resultaram de propostas do PCP” e, por isso, não teme um desconhecimento da atuação do seu partido por parte dos portugueses até porque “há questões que são evidentes em relação a quem propôs, a quem tomou a iniciativa e a quem defendeu”.
“Durante anos apresentámos propostas para que os manuais escolares fossem gratuitos, conseguimos alcançá-lo e julgo que ninguém tem dúvidas relativamente à origem dessa proposta”, afirmou o deputado apontando ainda outras medidas como a “equiparação das reformas dos pedreiros ao regime dos mineiros, o combate à precariedade e o aumento das pensões”.
A menos de sete meses das eleições legislativas, João Oliveira assume que evitar uma maioria absoluta não só é um “objetivo que o PCP não pode perder de vista”, como é também um “elemento central da batalha eleitoral” que vão travar. Até porque, sublinhou, “não há uma experiência de maioria absoluta em Portugal que tenha sido positiva para o povo português”.
Recordando o sufrágio de 2015, o líder parlamentar comunista não tem dúvidas de que os eleitores têm claro que “cada voto que foi dado à CDU contou para todos os avanços que foram conseguidos” e, por isso, garante que o PCP “assumirá qualquer responsabilidade, inclusivamente governativa”, se essa for a vontade do povo. Para isso, lembrou, “é preciso que o povo [lhe] dê a força para isso”.
“Se tivermos condições para participar num governo que se comprometa com uma política que verdadeiramente responda às necessidades dos trabalhadores e do povo, assumiremos essa responsabilidade”, finalizou.

Viagem à Polónia

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Auschwitz: nele pereceram 4 milhôes de judeus. Depois dos nazis os genocídios continuaram por outras formas.

Viagem à Polónia

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Auschwitz, Campo de extermínio. Memória do Mal Absoluto.