Entre as muitas coisas que o
presidente-miliciano não sabe está quanto seu ato de reconhecimento
colocou os militares em uma situação altamente constrangedora, incômoda e
na contramão de toda a estratégia tão eficaz construída para ocultar o
golpe nas brumas do esquecimento. Na tentativa de se manter no poder,
ele pode ter assinado seu passaporte para fora do governo em breve.
Cicatrizes são como folhas secas: já foram verdes já foram vivas já foram cortejá foram dor Cicatrizes são coisas passadas Que não se foram
O Golpe de 1964 é uma cicatriz histórica
marcada na carne de nosso país e na alma de nosso povo. Uma marca
histórica que nos mantem viva a memória necessária para que jamais se
esqueça e jamais se repita a infâmia cometida.
A tentativa de ressignificação em curso é
mais do que uma desinformação e uma manipulação grosseira de um fato
histórico, é a tentativa de cobrir a infâmia com uma grossa camada
ideológica que tenta acobertar crimes apresentando-os como atos
redentores e encobrindo seu verdadeiro significado, os interesses de
classe envolvidos e os sujeitos que perpetraram a infâmia.
Mas, afinal, por que seria necessário tal
encobrimento? No final da Ditadura implantada em 1964, o General
Golbery operou uma ação que apontava em um sentido diverso do
encobrimento. Dizia à época que era necessário colocar os cadáveres da
Ditadura para fora do armário e operar a chamada transição lenta,
gradual e segura que colocasse um ponto final no evento – daí a
concepção da anistia ampla e irrestrita para quem lutou contra a
ditadura, mas também para os carrascos e torturadores. Tratava-se de
colocar à luz do dia para ser vivida e superada a dor do ato brutal
contra um país, para então esquecê-lo.
A catarse do espetáculo acabou por
favorecer os interesses das classes dominantes uma vez que o horror dos
porões revelados escondia os reais sujeitos do terror. Os militares
foram fieis executores, mas não passaram de serviçais dedicados de seus
mestres. Os mandantes da infâmia não estavam nos quarteis, nem mesmo no
alto comando das Forças Armadas, estavam em luxuosos escritórios das
grandes empresas monopolistas, no Brasil e nos EUA. O Golpe de 1964 foi
um golpe das classes dominantes, do grande capital monopolista e seus
aliados latifundiários e do imperialismo norte-americano. Tratou-se de
um ato terrorista tramado com auxílio direto da Embaixada estadunidense,
do Departamento de Estado dos EUA e da CIA, executado pelos títeres
militares brasileiros.
As denominações “golpe militar” ou
“ditadura militar” ideologicamente cumprem a missão de encobrir o
caráter de classe do golpe e os verdadeiros interesses por trás dele.
Para que tal encobrimento fosse eficaz, fazia-se necessário à cortina
ideológica o pretexto para tão brutal interrupção da institucionalidade
democrática que vigorava. Para isso serviu o caldo de cultura da Guerra
Fria, a luta contra o comunismo, a alardeada ameaça de uma ditadura
comunista. Como sabemos, o golpe foi antecedido por dois movimentos
complementares: por um lado um intenso processo de estrangulamento
econômico, por outro um processo de manipulação política operado por
instituições como o IPES e IBAD, numa verdadeira guerra de
contrainformação e propaganda anticomunista, fartamente financiado por
empresários e pelo imperialismo.
Na verdade, o golpe foi desferido por
dois motivos principais: impedir as reformas de base do governo Goulart
que se chocavam com os interesses da burguesia brasileira e dos
latifúndios, assim como as pretensões do imperialismo estadunidense de
se servir do Brasil como uma área de influencia privilegiada de
exportação de capitais e controle geopolítico; mas também barrar as
lutas sociais, operárias, camponesas que tomavam forma e apontavam para
um potencial risco à ordem burguesa. Aqui é preciso frisar este aspecto:
tal risco não passava de um potencial que podia se desenvolver, longe
de ser uma ameaça imediata à ordem capitalista e uma alternativa
remotamente socialista, seja no campo das lutas sindicais e sociais,
seja no escopo das reformas de base. Portanto, como define Florestan
Fernandes, o golpe foi uma “contrarrevolução preventiva”.
Apresentar essa contrarrevolução
preventiva como um desvio, como resultado de uma truculência militar,
uma quartelada, servia aos propósitos de quem queria se livrar dos
operadores para resguardar seus mandantes. Em parte, o processo de
democratização e a anistia lograram este objetivo. O preço exigido pelos
militares em troca de assumir a pecha da infâmia foi que se colocasse
um ponto final, uma pedra, sobre o horror. Isto é, uma transição que
fosse realizada sem abrir arquivos, sem julgamentos e sem grandes
acertos de contas, permitindo à corporação militar passar à ordem
democrática sem ter que responder por sua reponsabilidade diante do
terror.
Por um tempo, o acordo funcionou. Mesmo
os honrados esforços da Comissão da Verdade, com as reparações às
vitimas e seus familiares, foram sempre tutelados e vigiados para que
não extrapolassem os limites da catarse aceitável, mantendo nas sombras
as pistas que levariam aos verdadeiros protagonistas e mandantes, assim
como aqueles que fartamente se beneficiaram do crime. Mas, e agora? Com
explicar essa retomada da iniciativa de se “comemorar” a data da
infâmia?
Não é possível entender esse fenômeno se não o inserirmos no quadro geral da bizarrice do atual governo e do bufão miliciano que o comanda.
Aquilo que era apenas uma cortina de fumaça ideológica, que todos
(inclusive os sujeitos da infâmia) sabem ser mentira, ou seja, a cruzada
redentora contra o comunismo e a corrupção, serviu agora de cobertura
para que um desqualificado expulso das Forças Armadas construísse sua
carreira política e para o discurso de ódio que o levou à presidência.
Esse personagem burlesco nunca foi levado a sério pelos próprios
militares (ver, por exemplo, o juízo pouco elogioso que o ditador Geisel
tinha do personagem). Ele servia apenas a um proposito secundário: ser a
versão explícita da extrema-direita que despertaria o ódio irracional
contra o PT para apeá-lo do poder ou constrange-lo afim de aceitar os
duros ajustes contra a classe trabalhadora. No entanto, ocorre que a
criatura fugiu da coleira e chegou à Presidência.
Precisamos constatar, antes de tudo, que
ele é um incômodo. Sua total incapacidade de governar, sua inoperância
na condução dos acordos e articulações que de fato o levaram à
Presidência, sua atitude tosca e irresponsável… todos esses elementos
têm marcado com crises quase diárias o andamento do governo, gerando uma
instabilidade crônica. Diante da total incompetência, o bufão resolveu
manter a campanha e o tom da farsa que o elegeu, como denuncia o
conservador jornal O Estado de S. Paulo (apoiador declarado do
golpe de 1964 e do golpe de 2016). Diante da vergonhosa viagem aos EUA e
a catastrófica passagem pelo Chile (quase um “caminho de Santiago” de
peregrinação para extremistas de direita), envolto por atrapalhadas
diárias da ala psiquiátrica do governo (Damares, Vélez, Araújo) e pelo
desespero do guru econômico Guedes ao ver a reforma da previdência
ameaçada pelo bufão de chinelos e arma na cintura, eis que o presidente
resolve reafirmar o perfil que ele crê que o liga diretamente com as
massas conservadoras por cima e por fora das instituições do Estado,
conclamando os quarteis a fazerem as “comemorações devidas” do golpe de
1964.
Esta é uma ilusão renitente na política
brasileira. Collor, pouco antes de ser impedido, conclamou as massas a
apoiá-lo, mas o exemplo mais próximo se encontra em outro presidente:
Jânio Quadros. Como se sabe, Jânio foi uma invenção da UDN para chegar à
Presidência, na vã ilusão que poderia usar a seu favor o populismo
tresloucado da figura para ganhar a eleição e depois tutela-lo no
governo mantendo-o como figura decorativa. No entanto, como acontece no
carnaval, quem vestia-se de rei acostumou com a fantasia. Jânio tenta um
golpe contra a UDN conclamando o místico apoio do povo que o abandona
miseravelmente.
Isolado, atrapalhado e afogado em sua
própria mediocridade, o nosso bufão tenta acenar com um agrado aos
militares, ternamente afirmando que reconhece o que ninguém admite, que
eles foram heróis salvadores da pátria ameaçada, que implantaram uma
ditadura para salvar o Brasil de uma ditadura (como disse o imbecil de
plantão alojado no Ministério das Relações Exteriores), que os
torturadores que laceravam a carne de mulheres e crianças, estupravam,
empalavam, passavam corrente elétrica por testículos e introduziam ratos
em vaginas, são heróis incompreendidos que estavam purgando a carne
para nos redimir de nossos pecados.
Entre as muitas coisas que o miliciano
não sabe, está quanto seu ato de reconhecimento colocou os militares em
uma situação altamente constrangedora, incômoda e na contramão de toda a
estratégia tão eficaz construída para ocultar o golpe nas brumas do
esquecimento. Na tentativa de se manter no poder, ele pode ter assinado
seu passaporte para fora do governo em breve. Expor o golpe como
espetáculo catártico tinha um sentido no final dos anos 1970, mas
tratava-se de expor para ocultar. Agora, a exposição tem o mesmo efeito
que arrancar a casca da ferida que estava quase cicatrizando.
A direita brasileira (não o fantoche da
extrema-direita histérica e burra) já se prepara para fazer o que fez
com os militares depois da Ditadura: descartar o instrumento que não
mais lhe serve para preservar seus verdadeiros interesses e de seus
patrões imperialistas. Começou a contagem regressiva para a queda do clã
Bolsonaro e de seu circo de horrores.
Quem o substituir se empenhará em
executar os interesses de seus patrões e tirará da gaveta o discurso de
como as instituições são fortes o suficiente para corrigir seus próprios
enganos. Ninguém pedirá desculpas ou será julgado. Órfãos e viúvas
chorarão copiosamente, Janaína Pascoal vai gritar a Deus que a ilumine
enquanto sacode no ar uma esfarrapada bandeira brasileira do lado de
fora da faculdade de Direito. Alguns desavisados podem até comemorar
enquanto um enorme curativo será colocado sobre uma ferida que insiste
em não cicatrizar.
in BoiTempo, blog
quarta-feira, 27 de março de 2019
Obsessão pela redução do défice compromete futuro do País
O INE divulgou hoje informação estatística sobre o défice e a
dívida das Administrações Públicas em 2018. Os dados apontam para um
défice orçamental de 0,5% do PIB, um valor inferior ao previsto pelo
Governo (1%) na Proposta de Orçamento do Estado para 2018.
Erigir o défice como primeiro objectivo é perigoso, porque escamoteia
as dificuldades com que os trabalhadores e os cidadãos vivem. Com
efeito o que se tem de privilegiar é o crescimento, o emprego estável e
com direitos, o investimento público e os serviços públicos
Desde logo, porque o crescimento económico sustentado, criador de
empregos com direitos, deveria ser a primeira prioridade. A verdade é
que o crescimento tem sido muito limitado, com excepção de 2017, em que
atingiu um valor relativamente elevado (2,8%). Mas em 2018 o crescimento
baixou para 2,1%, há sinais claros de abrandamento na actividade
económica e as várias previsões apontam para valores inferiores a 2% nos
próximos anos. Portugal tem necessidade vital de crescimentos bem
superiores para dar resposta aos problemas económicos, sociais e
ambientais com que está confrontado.
A CGTP-IN salienta que uma parte do “bom” resultado nas contas
públicas se deve à dramática escassez de investimento público. Apesar
das promessas que se têm renovado, o investimento público apenas
representou 2% do PIB em 2018 e, admitindo-se que haverá um maior
crescimento em 2019, ainda assim não se prevê que ultrapasse os 2,3%.
Além de que existe um claro atraso na execução de projectos de
investimento financiados por fundos comunitários (Portugal 2020). Gráfico com Investimento público (% PIB)
A necessidade de investimento, tanto público como privado, é premente
não apenas pelos investimentos imprescindíveis para o futuro do país,
como nas infra-estruturas, nos equipamentos sociais e na transição
energética. É-o também porque o investimento total líquido, isto é
deduzido do consumo de capital fixo, tem sido, há vários anos, negativo,
o que reduz a capacidade de crescimento da economia.
O país tem também adiado o investimento em serviços públicos de
qualidade nas diversas áreas – investimentos que são vitais para o
bem-estar da população e para a redução de gritantes desigualdades
sociais, como na educação, saúde, protecção social e transportes,
designadamente. No Serviço Nacional de Saúde, não houve recuperação no
período 2016-2018 face ao brutal desinvestimento feito pelo Governo
PSD/CDS-PP no período da troika. A CGTP-IN espera que haja a aprovação
pela Assembleia da República de uma Lei de Bases que seja um ponto de
partida para a política de saúde consentânea com os objectivos
estabelecidos na Constituição. Mas alerta que a obsessão pela redução do
défice pode pôr em causa este desígnio.
Gráfico com a Despesa pública corrente em saúde em % do PIB
Para a CGTP-IN a prestação de serviços públicos de qualidade é
inseparável do emprego público e da valorização dos salários e das
carreiras na Administração Pública. Salienta, em particular, que os
salários da maioria dos trabalhadores da Administração Pública não são
actualizados desde 2010 e que não é aceitável que as carreiras não sejam
descongeladas na totalidade para os vários grupos profissionais.
A CGTP-IN salienta ainda que uma política de obsessão pelo défice
(que pode ser reforçada em 2019 com a perspectiva do “défice zero”) pode
ser contraproducente, pois sem crescimento económico sustentável a
dívida pública, na medida em que é expressa relativamente ao PIB,
tenderá a agravar-se. Há, pois, que promover uma política que ponha as
pessoas à frente dos números do défice.
CGTP-IN 26.'3.2019
A
narrativa que se está a construir sobre Brexit ridiculariza a
democracia, retoma o discurso suicida de Hillary Clinton sobre os
eleitores “deploráveis” e anuncia o Apocalipse. Há uma tentativa de
despolitizar o Brexit, ignorando as contradições que ele exibe à
esquerda e à direita. Nos trabalhistas, o paradoxo é evidente: apesar de
Corbyn ser oficialmente contra o Brexit, o seu manifesto eleitoral é
incompatível com o Mercado Único. Não é porque o euroceticismo seja
xenófobo que quase só vemos xenófobos a dar-lhe voz. Há excelentes
razões de esquerda contra esta União. No Reino Unido o euroceticismo até
é uma velha tradição de esquerda. Mas a esmagadora maioria da esquerda
debandou desse espaço e entregou-o aos piores argumentos. Corbyn foi a
última oportunidade de deixar de o fazer. Como o europeísmo de esquerda
foi derrotado há muito, algures entre Maastricht e Lisboa, sobram
chavões sobre a paz e a democracia que ignoram o programa ideológico que
hoje determina quase todas as políticas fundamentais impostas pela
União. Pode estar tudo errado no Brexit, e quase tudo está. Mas não está
pior do que esta UE e do que a reveladora altivez com que olhamos para
este momento. Sinto-me como Corbyn, entalado entre o debate que devia
ter sido feito e o debate que realmente se fez.
A
narrativa do Brexit para os europeus concentra-se na “trapalhada”. Não
que a confusão seja falsa, com sucessões de votações e sem se saber ao
certo o que vai acontecer a poucas semanas do eventual desenlace. Mas
não é inocente a despolitização do debate sobre a decisão tomada pelos
britânicos de forma democrática e livre. Há até alguma chacota com os
procedimentos parlamentares a que qualquer populista poderia aderir com
facilidade. Muitos dos países onde tantos se riem do difícil momento que
o Reino Unido vive nunca fizeram qualquer tipo de debate democrático e
sério sobre a sua adesão à UE. Não referendaram, não discutiram, não
votaram. Limitaram-se a estender a mão para receberem fundos e
entregarem os seus destinos a terceiros, fazendo figas para que tudo
corra bem em Bruxelas, Paris e Berlim. Quanto aos recuos e avanços do
Brexit, será necessária uma cronologia sobre o processo que levou a cada
novo tratado, referendos feitos e repetidos e trapalhadas em nada
diferentes destas? Estamos a rir de quê?
Tudo
esteve errado na forma como David Cameron marcou este referendo, tendo
como único objetivo encostar os eurocéticos do seu partido a um canto. E
tudo está errado na debandada dos que, tendo dirigido a campanha do
“leave”, não se responsabilizaram pelas suas consequências. E é natural
que não o tenham querido fazer. A direita xenófoba não tinha qualquer
projeto para depois. O Reino Unido decidiu sair da União Europeia sem um
plano, sem tempo para o que precisava de fazer, sem seriedade política e
honestidade intelectual. Mas, é bom dizer, a própria União foi-se
construído com a possibilidade de sair expressa no artigo 50º mas sem
qualquer roteiro para a forma de o fazer.
Com base
no amadorismo dos brexiteers, não podemos tratar a decisão tomada pelos
britânicos como um mero capricho de irresponsáveis. O euroceticismo
britânico, à direita e à esquerda, é anterior à adesão ao projeto
europeu. E tem, historicamente, algumas excelentes razões. O referendo
de 1975, imposto pelos trabalhistas dois anos depois da adesão, foi a
última vez que esse debate se fez a sério. As razões mais relevantes
foram agora expressas numa frase de leitura dúbia que foi usada na
campanha do Brexit para um discurso xenófobo mas podia ser usada, com
toda a propriedade, na defesa intransigente da democracia: “take back
control.”
Muitos dos países que se riem do
difícil momento que o Reino Unido vive nunca fizeram qualquer tipo de
debate democrático sério sobre a sua adesão ao projeto europeu.
Limitaram-se a estender a mão para receberem fundos e entregarem os seus
destinos a terceiros. Da Roménia a Portugal não falta quem queira dar
lições de democracia aos ingleses. Não deixa de ser irónico
Com
a mais velha democracia parlamentar, os britânicos não se adaptaram com
facilidade à informalidade antidemocrática e ao poder dos burocratas de
Bruxelas. E tiveram dificuldade em assistir, sem comichões, ao projeto
imperial alemão em que a União se transformou, desde a criação do euro e
do alargamento da UE a leste. Estes dois incómodos, que muitas vezes
foram expressos de forma demagógica e simplista mas que nem por isso
perderam razão de ser, podem manifestar-se à direita ou à esquerda de
formas diferentes, com exigências mais liberais ou mais sociais, mais
cosmopolitas ou mais xenófobas. Mas são incómodos legítimos. E a troça
que dele fazemos diz mais da nossa anemia democrática do que do caos
britânico. Da Roménia a Portugal não falta quem queira dar lições de
democracia aos ingleses. Não deixa de ser irónico.
Os loucos dirigem-se para o abismo
A
narrativa do Brexit para os europeus também se concentra na demonização
dos eleitores britânicos. E não é por acaso que se tenta resumir o
Brexit a uma espécie de surto psicótico dos ingleses. De tal forma que
que há mesmo quem acredite que, se repetir o mesmo referendo fora da
fase maníaca, o resultado será necessariamente diferente. É a velha
tática de recomeçar todos os jogos até vencer. Ela deixou um lastro de
ilegitimidade que as forças da vanguarda europeísta sempre desprezaram
até serem surpreendidas por maiorias cansadas de tanta arrogância. Uma
arrogância que nasce da certeza de que quem está do lado do bem não
precisa de apoio popular. Lidera a marcha inexorável para o progresso e
isso chega. E se os eleitores não o percebem é porque são ignorantes,
tacanhos, velhos e racistas. Há uma total coincidência entre o discurso
que se fez sobre o referendo francês, em 2005, e o que se faz agora. Com
uma diferença: na altura houve uma esquerda que, apesar da chantagem
que a colava à extrema-direita, não teve medo de estar do lado do “não”,
o que permitiu que naquela campanha houvesse argumentos de esquerda e
democráticos. O tempo veio a dar-lhes plena razão, quer no erro óbvio
que teria sido o Tratado Constitucional, quer no que veio a ser o seu
sucedâneo, o Tratado de Lisboa.
Quem oiça o tom
geral concluirá que o Reino Unido passará a ser a Coreia do Norte, com
fronteiras hermeticamente fechadas e sem trocas comerciais ou culturais
com a Europa e com o mundo. Que se transformará numa espécie de
Venezuela da Europa. Que dependerá da caridade de Donald Trump. E que
abandonará o clube das democracias
Por
fim, a narrativa do Brexit para os europeus concentra-se no anúncio do
Apocalipse. Quem oiça o tom geral concluirá que o Reino Unido passará a
ser a Coreia do Norte, com fronteiras hermeticamente fechadas e sem
trocas comerciais ou culturais com a Europa e com o mundo. Que se
transformará numa espécie de Venezuela da Europa. Que dependerá da
caridade de Donald Trump. E que abandonará o clube das democracias. Já
se sabe que se não fosse a União Europeia, com os seus comissários não
eleitos e a permanente lei do mais forte como regra, o Reino Unido nunca
teria conhecido tal coisa. Só que, apesar de o Reino Unido caminhar
para as trevas, continua a haver mais europeus a emigrarem para a
Inglaterra do que ingleses a fugir do que aí vem. E tendo o saldo
migratório com a UE caído, com o resto do mundo até subiu. Isto apesar
de todos já terem percebido que este divórcio é mesmo inevitável. Mais:
ao contrário do que se anunciava, a economia britânica não colapsou –
longe disso – depois do referendo.
Sim,
esperam o Reino Unido momentos muito difíceis. Até porque a integração
europeia tem alguns pontos quase irreversíveis – e por isso mesmo cada
passo deveria ter sido longamente discutido e até, pecado dos pecados,
referendado. E será especialmente difícil com uma saída feita com os
pés, em que os seus principais defensores desertaram e tudo está a ser
negociado debaixo de uma pressão que só pode correr mal a todos. E não
faltam incendiários, em Londres e nas capitais europeias, a achar que a
pressão devia ser ainda maior. Há coisas que foram resolvidas dentro da
União que têm mesmo de ser adaptadas às novas condições. A fronteira
entre a República da Irlanda e a Irlanda da Norte é seguramente a mais
difícil. Mas não deve ser tratada como um problema britânico. Porque não
é. É uma questão europeia, que envolve um estado que continua a ser
membro. Poderia até acabar da melhor forma, com a unificação das
irlandas. Mas isto já sou eu a sonhar.
Sim, o Reino
Unido corre enormes riscos com esta decisão. Tantos que pode vir a
concluir, tarde demais, que foi uma escolha errada. Mas aderir à CEE e à
União também foi um desafio perigoso. Assim como aderir ao euro, erro
que o histórico euroceticismo britânico os impediu de cometer. O
euroceticismo e o facto de Thatcher ter garantido uma disciplina
neoliberal que dispensava imposições externas. A elite inglesa sempre
foi mais segura do seu poder do que a continental. Já nós, atirámo-nos
para a moeda única de cabeça sem um décimo do debate que os ingleses
estão a fazer em torno do Brexit e que fizeram quando recusaram dar esse
passo. Uma futurologia realista ter-nos-ia explicado que este viria a
ser um dos maiores desastres económicos na nossa história recente, com
efeitos estruturais na dívida, na balança comercial, na capacidade de
segurarmos grandes empresas nacionais e bancos. Tudo o que podia ter
corrido mal correu mal. E, no entanto, cá estamos vivos. E a maioria até
acha que fizemos otimamente em estar no pelotão da frente desta
aventura.
Achámos que a importância deste passo
valia o risco. Os britânicos acham que a importância de não estar na
União vale o risco. E estão, apesar de tudo, um bocadinho mais bem
equipados do que nós para correr esse risco. Sofrerão muito ou pouco,
ninguém sabe ao certo apesar de todos fazerem previsões indiscutíveis.
Não sabemos o que vai acontecer à UE e se vai sofrer mais quem ficar
dentro ou quem sair. Mas, mesmo partindo do princípio que o embate será
forte, um povo pode estar disposto a sacrificar-se pela sua
independência. E não vejo porque deva ser isso motivo de choque ou de
gozo.
A direita e o “egoísmo” dos pobres
Do
ponto de vista intelectual, o Brexit confrontou a esquerda e a direita
britânicas com as suas contradições. Um confronto saudável de que
andamos todos, por essa Europa fora, a fugir.
Se
não tivesse existido Thatcher poderíamos dizer que o conservadorismo
democrático que não alinhou na deriva neoliberal se confrontaria, neste
debate, com a importância que sempre deu ao Estado-Nação como fonte de
legitimidade de exercício do poder. E com as maldades que vão sendo
feitas ao parlamentarismo. E com a natureza voluntarista, insensata e
disruptiva do europeísmo. Mas, apesar da prosápia conservadora, Margaret
Thatcher é percursora de tudo o que se fez na Europa. Começou primeiro
no Reino Unido, na realidade. Não por acaso, acabou por ser o sinistro
Nigel Farage, e não um tory, a capturar o discurso de defesa do
parlamentarismo que nas suas diatribes em Estrasburgo quase o faziam
passar por alguém que um qualquer democrata deveria aplaudir.
Mas
alguns argumentos da direita pró-Brexit merecem mais atenção do que a
mera rejeição enojada. Não nos termos em que são apresentados, mas nas
suas origens. Os ingleses (e aqui estou a falar mesmo dos ingleses, não
dos britânicos) sentem-se alienados na sua identidade. Alienados da sua
identidade colonial e imperial, o que é inevitável e positivo. Mas
também alienados na sua identidade nacional. Enquanto escoceses, galeses
e até irlandeses puderam construir diferentes graus de autonomia, os
ingleses, destinados a ser o centro de um império mirrado, não o
fizeram. Não têm parlamento próprio e políticas próprias. E isto até tem
consequências práticas. Há uma parte da Inglaterra que foi esquecida.
Ao contrário da Escócia, a Inglaterra não tem os seus próprios
instrumentos para tratar das suas assimetrias internas. Grande parte do
país foi sugado por Londres. E foi esse o país que mais fortemente votou
pelo Brexit.
Fronteiras abertas sem
transferência de recursos é um convite à debandada, traduzida pela
personagem do “canalizador polaco”. Num país tão desigual como o Reino
Unido, os mais pobres, que se sentem abandonados pelo poder, têm
dificuldade em aceitar transferência de recursos para outros países.
Porque ela não se faz internamente. Só conheço uma forma de vencer o
“egoísmo” dos pobres: políticas igualitárias que os tirem da pobreza
Por
outro lado, o debate sobre a imigração é mais difícil do que parece.
Não me refiro à imigração exterior à União Europeia. Aí, quase toda a
conversa dos defensores do Brexit é só demagógica. Nada mudará depois da
saída, até porque as políticas europeias são bastante restritivas. Mas a
imigração comunitária corresponde a um problema real da União.
Fronteiras abertas sem transferência de recursos é um convite à
debandada, traduzida pela personagem do “canalizador polaco”. E é uma
equação de resultado negativo para todos: mau para quem recebe as
pessoas, porque a pressão leva a redução salarial, mau para quem as
perde, que fica quase sempre sem os quadros que andou a formar. Os
neoliberais acreditam que isto se resolve deixando que o mercado de
trabalho encontre o seu ponto de equilíbrio, a extrema-direita acha que
se resolve fechando as fronteiras, a esquerda acha que se resolve
aumentando as transferências de recursos de um para outro lado para que
faça tanto sentido um inglês ir viver para Bucareste como um romeno ir
viver para Londres.
O problema do argumento da
esquerda é que, num país tão desigual como a Inglaterra, os mais pobres,
que se sentem abandonados pelo poder, têm dificuldade em aceitar essa
transferência de recursos para outros países. Porque ela não se faz
internamente. Claro que numa campanha a coisa não é posta assim. A
extrema-direita sabe explicar isto de forma mais simples, sem acicatar a
vontade de justiça mas apenas o ódio pelo outro. Mas o problema está
lá. Só conheço uma forma de vencer o “egoísmo” dos pobres: políticas
igualitárias que os tirem da pobreza.
A esquerda e os deploráveis
Apesar
de grande parte do espetáculo ser dado pelos conservadores, os
problemas não acabam à direita. É bom lembrar, aliás, que para o “leave”
vencer teve de contar com muitos (mesmo muitos) votos de esquerda. Mais
de um terço dos eleitores trabalhistas votou no Brexit. Sobretudo os
que foram sendo deixados para trás no processo de globalização e
integração europeia. Aqueles que os trabalhistas viram fugir para o UKIP
e para os conservadores em 2015 e que, muitos deles, foram recuperados
por Jeremy Corbyn em 2017. E é à esquerda que as contradições são mais
evidentes.
Não é por acaso que Friedrich von
Hayek, o buda dos neoliberais, feroz opositor do programa trabalhista de
1945, admirador de Salazar e que preferia um ditador liberal a um
governo democrático a que faltasse liberalismo, via no federalismo a
melhor forma de fugir às “pressões da opinião pública e da influência
política”. E é por isso que me espanto com os incautos federalistas de
esquerda. A União Europeia transformou-se, talvez estivesse mesmo
destinada sê-lo, na mais poderosa arma de alienação democrática para
fugir às “pressões da opinião pública e da influência política”. Isto
não invalida que a direita britânica tivesse querido isso mesmo e até
feito pior, por sua iniciativa, do que Bruxelas e Berlim alguma vez
exigiram. Mas impede, como veremos mais à frente, que a esquerda se
atreva a querer fazer diferente.
O que está em
causa no caminho que o projeto europeu levou, dentro ou fora do euro, é a
sobrevivência de qualquer programa de esquerda à escala nacional.
Dantes, um europeísta ainda poderia explicar que o era com base na
defesa do Estado Social, dos valores da tolerância e da democracia e da
convergência entre as nações europeias. Hoje, o máximo que pode dizer é
que esta é a sua utopia. A UE transformou-se no oposto de tudo o que
eles desejavam: a concorrência e o processo de privatização das funções
do Estado são os seus dogmas, as políticas anti-imigração é o seu novo
mainstream, a fragilização das democracias nacionais e o reforço da
burocracia europeia a sua prática e a divergência económica e social
entre nações a sua tendência. A estranha pergunta que nos fazemos é se
ainda são possíveis políticas de esquerda nesta Europa. E a resposta é
cada vez mais clara.
Claro que se pode dizer, com
toda a justiça, que o Reino Unido foi um fator de agravamento de grande
parte destas tendências. Só que, como qualquer país, o Reino Unido não é
uma realidade homogénea. E o mesmo Reino Unido que impôs políticas
austeritárias – a UE não foi a causa da austeridade, foi mais um
instrumento para a austeridade – elegeu como líder do Partido
Trabalhista o social-democrata mais à esquerda da Europa.
A
primeira dificuldade dos trabalhistas é mesmo com o processo. Jeremy
Corbyn foi escolhido pelo eleitorado contra a vontade de uma elite do
partido responsável pela maior traição histórica a que assistimos à
esquerda, que conduziu à terceira via e à implosão da social-democracia
europeia. Foi escolhido através de uma profunda democratização do
partido e de um apelo à participação cidadã. É impensável ter Corbyn a
aliar-se a essa mesma elite partidária para trair a vontade que foi
expressa pelos eleitores. Mesmo a sua cedência aos sectores do partido
que querem a repetição do referendo, que lhe são próximos, é uma traição
às suas promessas de regeneração democrática. Ainda mais quando isso se
faz em nome de uma altivez antidemocrática de uma parte dos eleitores. O
discurso que confronta os cidadãos educados, civilizados e cosmopolitas
com a populaça boçal dos pubs e que alimenta o combate geracional
insulta o melhor da tradição da esquerda. É um subgénero da reveladora
expressão usada por Hillary Clinton para caracterizar os eleitores de
Trump – “os deploráveis”. Uma arrogância social e cultural que
representa o mais monumental suicídio da esquerda.
O
discurso que confronta os cidadãos educados, civilizados e cosmopolitas
com a populaça boçal dos pubs e que alimenta o combate geracional
insulta o melhor da tradição da esquerda. É um subgénero da reveladora
expressão usada por Hillary Clinton para caracterizar os eleitores de
Trump – “os deploráveis”. Uma arrogância social e cultural que
representa o mais monumental suicídio da esquerda
Corbyn
também tem dificuldades eleitorais. Apesar de todo o desprezo que
merece da elite do agonizante centro-esquerda europeu, Corbyn fez
aumentar o número de membros do Partido Trabalhista de 200 mil, em 2015,
para quase 400 mil, em 2016. Depois do referendo e de várias renúncias
entraram mais cem mil. Mesmo depois de uma queda mais recente, por causa
da pressão dos últimos meses, o Labour de Corbyn é, se as minhas contas
não estão erradas, o maior partido europeu. E os principais
responsáveis por esse aumento foram jovens de classe média, em grande
parte votantes do “remain”. E isso explica a pressão do Momentum, grupo
de apoio a Corbyn, para um referendo ao inaceitável acordo de Theresa
May.
Depois há os outros, que votaram no “leave”. É
o eleitorado operário, das regiões industriais e deprimidas de
Inglaterra. Este voto da classe trabalhadora não pode ser ignorado.
Porque sem ela o Labour perde as suas raízes e Corbyn não tem futuro
para a defesa do seu programa político. Porque sem ele a esquerda
britânica cometerá o mesmo erro da esquerda francesa, norte-americana e
italiana: entregará o seu povo à extrema-direita. Temo, aliás, que as
indecisões de Corbyn venham a custar-lhe muitos votos nas europeias, se o
Reino Unido lá chegar. Para um lado e para o outro.
O Mercado Único contra Corbyn
Corbyn
tem tudo contra si: um Brexit que afasta a atenção do seu programa
progressista de defesa do Serviço Nacional de Saúde e intervenção do
Estado para retomar a relevância industrial inglesa; o boicote à elite
do partido, que o impede de ter uma gestão com cabeça, tronco e membros
de todo este complexo processo; o ódio da elite milionária que o teme
vinte vezes mais a ele do que ao Brexit; e uma campanha nauseabunda que,
utilizando episódios que nada têm de novo no Labour (ou nos
conservadores), o tenta apresentar como um antissemita. Que tenha
sobrevivido até aqui é quase um milagre.
Mas a sua
maior dificuldade é mesmo programática. É o conteúdo das suas políticas.
Vale a pena, para perceber a insanável contradição, ler ESTE TEXTO do economista de esquerda Costa Lapavitsas. A tese de Lapavitsas é simples: se o Reino Unido ficar no Mercado Único europeu O MANIFESTO DE CORBYN é impraticável.
Se
o Reino Unido ficar no Mercado Único europeu o manifesto de Corbyn é
impraticável. A sua política industrial, que se baseia na possibilidade
de o Reino Unido, tal como a China ou a Coreia do Sul, poder apoiar
financeiramente alguns grandes motores da sua indústria, choca de frente
com as regras da concorrência da União. A contratação pública com
critérios de responsabilidade social também. E o programa de
nacionalizações, sendo teoricamente possível, violaria toda a orientação
da União
A sua política industrial, que se baseia
na possibilidade de o Reino Unido, tal como a China ou a Coreia do Sul,
poder apoiar financeiramente alguns grandes motores da sua indústria
(não estamos a falar de apoio à modernização, a regiões deprimidas ou a
PME), choca de frente com as regras da concorrência da União. Porque
essas regras de concorrência, com um sentido ideológico bastante
determinado, olham para o Estado como um elemento neutro na economia. O
resultado, para a Europa, tem sido o que se vê: está a ser ultrapassada
pelo pragmatismo asiático. As regras europeias impedem que o Estado seja
um verdadeiro estratega da economia. Os neoliberais adoram, a
competitividade externa das suas nações europeias nem por isso. A não
ser na Alemanha, claro. Essa faz o que lhe apetece.
Também
a contratação pública de serviços e bens com critérios de
responsabilidade social, um dos pilares importantes do programa de
Corbyn, fica muitíssimo limitado. A defesa das regras de concorrência,
mais uma vez, e o tratamento de igualdade, tornam esse caminho espinhoso
e virtualmente impossível.
Por fim, o programa de
renacionalizações dos caminhos de ferro, correios, energia e água, sendo
teoricamente possível, violaria toda a orientação da União, que aponta
de forma clara e quase impositiva para a privatização. Para além de toda
a resistência interna, Corbyn teria de lidar com o boicote ativo da
União e todas as suas instituições. Mesmo que as renacionalizações
destes gigantes fossem aceites, a imposição seguinte é a que temos
conhecido e que é explícita no sector bancário: os monopólios públicos
são inaceitáveis, as regras de gestão do que é público devem ser as
mesmas do que no privado para não criarem distorções no mercado. Estes
dogmas políticos alguma vez foram a votos? Claro que não. Não estamos a
falar de uma democracia, estamos a falar da União Europeia. E já não
falo, claro do controlo de capitais, sem os quais qualquer programa de
esquerda é uma doce ilusão.
A esquerda ausente em cima do Brexit
Um
dos grandes problemas de grande parte da esquerda, ao debater o Brexit,
é que o despolitizou. Porque não tem nada a dizer sobre a Europa que
não sejam chavões sobre a paz e a democracia, porque está obrigada a
ignorar o programa ideológico que hoje determina quase todas as
políticas fundamentais impostas pela União, porque se tentar ser
consequente na defesa desta integração acaba por tropeçar nos seus
próprios pés. Qualquer sofisticação sobre as vantagens de ficar no
mercado único deixaria a esquerda totalmente nua nas suas contradições. E
isto faz com que se limite a ser uma ajudante histérica e vazia numa
luta entre a direita neoliberal europeísta e a direita xenófoba
nacionalista. Sem nada a acrescentar, de um lado ou do outro, ao que
está a ser discutido.
A esquerda despolitizou o
debate sobre o Brexit. Porque não tem nada a dizer sobre a Europa que
não sejam chavões sobre a paz e a democracia, porque está obrigada a
ignorar o programa ideológico que hoje determina quase todas as
políticas fundamentais impostas pela União, porque se tentar ser
consequente na defesa desta integração acaba por tropeçar nos seus
próprios pés. Limita-se a ser uma ajudante histérica numa luta entre a
direita neoliberal e europeísta e a direita xenófoba nacionalista
A
vantagem de confrontar o manifesto político de Corbyn com os efeitos de
continuar no Mercado Único é perceber a enorme dificuldade em manter um
discurso coerente de esquerda e europeísta. Há um discurso utópico,
talvez. Mas se é para ignorar a correlação de forças, a história recente
e a exequibilidade do que se defende, sonhemos realmente alto com um
mundo todo sem fronteiras e classes sociais. Se é para lidar com o que
temos, esta é a União que deixámos que fosse construída, bloqueada por
tratados que só podem ser mudados por unanimidade e que tem um sentido
ideológico que se tornou parte da sua natureza. Aprendamos de uma vez
por todas a lidar com isso.
É importante recordar,
mais uma vez, que a tradição do Labour não é, ao contrário da ideia
instalada, europeísta. Dois anos depois de ter aderido ao Mercado Comum e
à CEE, pela mão do primeiro-ministro conservador Edward Heath, o
primeiro-ministro trabalhista Harold Wilson cumpriu uma promessa
eleitoral e levou a adesão a referendo. Já então o Partido Trabalhista,
mais eurocético do que os conservadores, estava dividido. De tal forma
que, ao contrário dos conservadores e dos liberais, que fizeram campanha
pelo “sim”, o Labour não tomou posição oficial.
Entre
os que fizeram campanha pela adesão estava a recém-eleita líder
conservadora Margaret Thatcher. Entre os que fizeram campanha pelo “não”
estava Tony Benn, um carismático deputado trabalhista de esquerda, que
participou em vários governos e esteve quase cinquenta anos no
Parlamento, tendo sido dos mais notáveis rostos do euroceticismo
progressista. Costuma ser referido como o mentor de um jovem trabalhista
que, na altura, tinha 26 anos e também votou “não”. Viria a ser
deputado oito anos mais tarde e chamava-se Jeremy Corbyn. Mesmo que a
narrativa dominante tenha conseguido forçar a colagem do euroceticismo
ao nacionalismo xenófobo, nem Thatcher nem Corbyn estavam enganados no
lado da trincheira que então escolheram.
O que se
passa com os trabalhistas, que têm merecido menos atenção do que os
conservadores, tratando Corbyn como uma excentricidade esquerdista, é o
que acabará por se passar com toda a esquerda europeia. Mas nos Estados
membros onde o aprofundamento da integração ainda não arrasou todos os
partidos de esquerda, a coisa será mais dramática: aí sim, a
incompatibilidade do reforço do Estado Social e do papel do Estado na
economia com as regras da moeda única é absoluta. As clivagens que
atravessam a política inglesa são as clivagens que atravessam o resto da
política europeia. Só que isto se passa num país que sempre desconfiou
da União Europeia e que tem um sistema eleitoral que o divide por dois
partidos sem verdadeira coesão política. A clivagem do Brexit só é mais
clara nos conservadores porque a esquerda, no Reino Unido e na Europa,
se demitiu do debate.
O europeísmo de esquerda
foi derrotado há muito, algures entre Maastricht e Lisboa. O
euroceticismo de esquerda pode ter tido a sua última oportunidade com
Corbyn. Tudo o que defendo é incompatível com esta União, e isso
levar-me-ia a ser pelo Brexit. A ausência da esquerda no debate entregou
o Brexit à xenofobia e ao egoísmo, o que me levaria a ser contra o
Brexit. Sinto-me como Corbyn, entalado entre o debate que devia ter sido
feito e o debate que realmente se fez
Não
é porque o euroceticismo seja xenófobo que quase só vemos xenófobos a
dar-lhe voz. É porque a esquerda debandou desses espaço e entregou-o aos
piores argumentos. Hoje, temos um confronto entre neoliberais e
neofascistas. No discurso público, não há europeísmo de esquerda, assim
como não há euroceticismo de esquerda. E Corbyn, dependente de um
partido que não lhe quer bem, não conseguiu inventar nem um nem outro. O
europeísmo de esquerda foi derrotado há muito, algures entre Maastricht
e Lisboa. O euroceticismo de esquerda pode ter tido a sua última
oportunidade com Corbyn. A conjuntura não lhe deu espaço político para o
afirmar. Não sou, no entanto, injusto com o único líder
social-democrata europeu com um programa ambicioso à esquerda. Ele teve o
azar de cair bem cima de todas as contradições deste espaço político.
Já
não há argumentos de esquerda em defesa desta União. Sempre que os
começamos a esmiuçar acabamos por ouvir a inevitável frase: não podemos
desistir de sonhar. Percebemos então que estamos perante alguém que se
sabe derrotado. E há, como mostrei aqui, excelentes argumentos de
esquerda pelo Brexit. Só que, ao contrário do que aconteceu no referendo
francês contra o Tratado Constitucional, eles estiveram ausentes da
campanha e de todo este processo. Ao não saírem do armário, os
brexiteers de esquerda entregaram milhões de eleitores trabalhistas aos
argumentos da extrema-direita.
Nunca tomei uma
posição clara sobre o Brexit porque tenho a mesma dificuldade de Corbyn.
Tudo o que defendo é incompatível com esta União, e isso levar-me-ia a
ser pelo Brexit. A ausência da esquerda no debate entregou o Brexit à
xenofobia e ao egoísmo, o que me levaria a ser contra o Brexit. O que é
estrutural faz-me concordar com o Brexit, o que é conjuntural faz-me ser
contra. Sinto-me como Corbyn, entalado entre o debate que devia ter
sido feito e o debate que realmente se fez.
Prosseguem
em todo o lado as agressões militares EUA. Mas a guerra (as guerras)
que Washington tem em curso trava-se em grande medida também no plano
económico. A dimensão económica que assume é o indício de um poder em
acelerado declínio, cujo desespero o torna ainda mais perigoso.
Só
muita ingenuidade pode ver na prisão de Michel Temer a prova de que a
justiça brasileira é neutra e não participou num golpe. Pelo contrário, a
gestão de políticas dos ritmos da investigação Lava Jato demonstram a
total instrumentalização política da Justiça.
O
golpe contra Dilma, que apesar do impeachment se arrisca a ser a única a
provar-se inocente (mas o cerco vai continuar), tinha dois objetivos:
afastar o PT do poder, para lançar, em tempo de vacas magras, uma feroz
contrarreforma social, e garantir aos autores do golpe a salvação do que
sabiam que aí vinha. Está documentado em escutas. Se há coisa que se
prova em toda esta história é que o afastamento de Dilma e do PT nada
teve a ver com qualquer combate à corrupção. Foi um ato desesperado de
corruptos que tentavam segurar o poder para salvarem a sua pele. Não
conseguiram. Com as suas políticas antissociais e no meio do caos, a
direita tradicional brasileira perdeu o controlo da situação. E foi
assim que abriu as portas a Jair Bolsonaro. Um deputado que, em 2016,
quando Dilma foi derrubada, valia menos de 5% nas sondagens.
As
prisões de Eduardo Cunha e de Michel Temer aconteceram no tempo em que
tinham de acontecer. Eles foram vítimas do seu próprio golpe. Foram eles
que fizeram o dirigiram, foram eles que criaram o caos que levou
Bolsonaro ao poder e são eles que agora permitem que o novo poder diga
que ninguém está a salvo
Para
além de abrir as portas a Bolsonaro, Eduardo Cunha e Michel Temer deram
tempo para retirar da corrida presidencial o candidato que estava à
frente nas sondagens: Lula da Silva. O processo de Lula passou à frente
de todos e os seus prazos foram escandalosamente determinados pelo
calendário eleitoral. Impedir que Lula fosse a votos era o grande
objetivo do juiz Sérgio Moro. Devidamente premiado com a oferta de um
superministério que pode vir a ser a passadeira vermelha para a desejada
presidência.
As prisões de
Eduardo Cunha, primeiro, e de Michel Temer, depois, com base em
evidências muito mais indiscutíveis do que as que existem contra Lula,
aconteceram no tempo em que tinham de acontecer. Depois de cada um ter
feito o que tinha de fazer. Cunha e Temer foram vítimas do seu próprio
golpe. Foram eles que o dirigiram, foram eles que criaram as condições
para Bolsonaro chegar ao poder e são eles que agora permitem que o novo
poder diga que ninguém está a salvo. A não ser, claro, homens como Onyx
Lorenzoni, chefe da Casa Civil de Bolsonaro, que confessou ter recebido
financiamento ilegal e que o ministro Sérgio Moro perdoou porque ele até
já tinha admitido os seus erros pedindo desculpas.
Temer
não é o único dispensado pelo novo poder. Giniton Lages, o delegado
policial que aproximou demasiado a investigação sobre o assassinato de
Marielle Franco da família Bolsonaro, recebeu guia de marcha para a
Europa. O governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, disse que ele
estava muito cansado e propô-lo para um programa de intercâmbio com a
polícia italiana. Como veem, no Brasil é tudo às claras. Mas sim, tenho
completa confiança na justiça brasileira. Um dia chegará à verdade. Mas
sempre no tempo político conveniente.
quinta-feira, 21 de março de 2019
Elisabete Miranda
Jornalista
Teremos de trabalhar até morrer?
21 de Março de 2019
Por muito apaixonado que um trabalhador seja pela sua profissão e por muito que um patrão goste do seu funcionário, no mercado de trabalho não se trocam votos para a vida. Em regra, quem trabalha aspira a chegar ali aos 60 anos
e reformar-se com uma pensão compostinha, que lhe permita manter os
níveis de conforto até ao fim dos seus dias, e quem lhe dá emprego
deseja vê-lo pelas costas para poder injetar sangue novo na empresa.
Até há poucos anos esta intersecção das vontades era fácil de conseguir. Com a bênção da Segurança Social,
faziam-se rescisões amigáveis disfarçadas de desemprego involuntário, e
do subsídio de desemprego transitava-se para a reforma antecipada.
Noutros casos, acordava-se com os funcionários uma compensação para
cobrir as penalizações que sofrem por se retirarem voluntariamente do
mercado de trabalho antes da idade legal.
Estes
desenlaces harmoniosos não desapareceram, ainda são uma realidade, mas,
à medida que a idade legal da reforma galga (já vai nos 66 anos e 5
meses) e os cortes se aprofundam, a reforma antecipada torna-se cada vez menos apetecível para trabalhadores e cada vez menos acessível para as empresas que assumem os encargos com as rescisões. Neste cenário, como lidar com os trabalhadores que aspiram pelos dias de ócio e descanso, e com as empresas que os querem reciclar?
Isto
é o modelo teórico que, funcionando na perfeição, asseguraria a
sustentabilidade financeira do sistema e, ao mesmo tempo, pensões
adequadas aos reformados do futuro. Na prática, contudo, sabemos que:
- a longevidade de cada um numa empresa depende em última análise da vontade do empregador. Caso
se fechem as válvulas de escape, podem gerar-se os vazios de proteção
social e as quebras de rendimento abruptas podem criar sérios problemas
sociais
- constituir poupança complementar e privada para a reforma é desejável mas difícil
quer para particulares (dados os nossos baixos níveis de rendimento)
quer para as empresas (que já enfrentam uma taxa social única acima da
média)
- embora Portugal seja um dos países europeus onde se vive mais anos, é aquele onde se vive menos anos com saúde, pelo que trabalhar mais anos significa ter menos tempo de qualidade antes de morrer
- a velhice fica muito cara, sobretudo num país onde os lares públicos são escassos e de baixa qualidade
Enquanto
os académicos e os políticos não descobrem como conjugar todas as
variáveis, a perspetiva é pouca animadora para todos quantos têm ainda
muitos anos de vida ativa pela frente.
Ou trabalham até morrer ou morrem de medo de chegar à reforma.
O PCP "só se comprometeu com o que podia cumprir, não engoliu sapos"
O
líder parlamentar do Partido Comunista Português não tem dúvidas de
que, nas próximas eleições legislativas, os portugueses vão ser capazes
de reconhecer que medidas determinados partidos defenderam e conseguiram
fazer aprovar.
João Oliveira admitiu, na ‘Grande Entrevista’ da RTP3, que ao longo da legislatura “houve momentos de maior dificuldade em encontrar um caminho que permitisse a aprovação de algumas medidas”. Aliás, sublinhou, a discussão sobre as pensões foi uma delas, pois “não foi fácil”, uma vez que o PCP “ficou sozinho”.
No entanto, nos quase últimos quatro anos uma coisa é certa: o
PCP não engoliu sapos e a explicação para tal não ter acontecido é
simples. “Nós não nos comprometemos com nada com que não nos pudéssemos comprometer e, por isso, não engolimos sapos. Concordámos com o que tínhamos de concordar, discordámos do que tínhamos de discordar”, afiançou o deputado comunista.
Nesta
senda, João Oliveira defendeu que “houve coisas muito relevantes que
resultaram de propostas do PCP” e, por isso, não teme um desconhecimento
da atuação do seu partido por parte dos portugueses até porque “há questões que são evidentes em relação a quem propôs, a quem tomou a iniciativa e a quem defendeu”. “Durante
anos apresentámos propostas para que os manuais escolares fossem
gratuitos, conseguimos alcançá-lo e julgo que ninguém tem dúvidas
relativamente à origem dessa proposta”, afirmou o deputado
apontando ainda outras medidas como a “equiparação das reformas dos
pedreiros ao regime dos mineiros, o combate à precariedade e o aumento
das pensões”.
A menos de sete meses das eleições legislativas, João Oliveira assume que evitar uma maioria absoluta não só é um “objetivo que o PCP não pode perder de vista”, como é também um “elemento central da batalha eleitoral” que vão travar. Até porque, sublinhou, “não há uma experiência de maioria absoluta em Portugal que tenha sido positiva para o povo português”.
Recordando o sufrágio de 2015, o líder parlamentar comunista não tem dúvidas de que os eleitores têm claro que “cada voto que foi dado à CDU contou para todos os avanços que foram conseguidos” e, por isso, garante que o PCP “assumirá qualquer responsabilidade, inclusivamente governativa”, se essa for a vontade do povo. Para isso, lembrou, “é preciso que o povo [lhe] dê a força para isso”.
“Se tivermos condições para participar num
governo que se comprometa com uma política que verdadeiramente responda
às necessidades dos trabalhadores e do povo, assumiremos essa
responsabilidade”, finalizou.