Manual de Filosofia
«Para Weber, ética é o conjunto das crenças que se
manifestam nas atitudes práticas de um povo, de uma sociedade,
de uma comunidade religiosa. Cada povo, cada sociedade, cada
forma religiosa tem assim a sua ética. Ao mesmo tempo em que
povos, sociedades ou religiões estabelecem seus códigos de
comportamento correto, nasce também a tendência de refletir sobre
os comportamentos humanos para encontrar uma justificação
racional dos mesmos, tentando justificar as escolhas. Isso equivale
a querer encontrar razões que fossem válidas para todos os seres
humanos e para todas as circunstâncias. Falamos aqui de novo de
justificação, que é sinônimo de racionalização. Também na ética
acontece um processo crescente de racionalização. Tanto na vida
prática da produção de bens quanto na vida moral, envolvendo o
comportamento na relação com qualquer ser humano, procuram
se os meios melhores para realizar da melhor maneira os fins que
se estabelecem. E com isso se busca superar qualquer fatalismo,
superstição ou simples fé, para que tudo o que acontece na vida
humana possa ser mais compreendido, mais controlado e mais
programado. Inclusive a vida religiosa passa, com o protestantismo,
a ser mais racional. Aliás, para Weber, a modernidade consiste em
uma combinação de fatores religiosos (ética protestante) e de um
espírito do capitalismo. Na obra A ética protestante e o espírito do
capitalismo, Weber sustenta que as leis da economia não têm valor
autônomo e independente dos outros aspectos da vida social
(política, religião, arte etc.): as leis da economia, ao contrário do
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que pensava o contemporâneo Karl Marx, nascem num contexto
cultural em que vigora uma determinada atitude frente à vida e ao
mundo, contexto cultural marcado pela religiosidade protestante,
calvinista e pietista. E tal atitude é denominada por Weber como
ética, não uma determinada filosofia moral, mas um ethos (conjunto
de hábitos) de um povo ou de uma sociedade, ou seja, uma ética
vivida, uma mentalidade, crenças e atitudes práticas difundidas nos
indivíduos e entre os indivíduos e grupos sociais.
Weber defende que foi esta mentalidade que favoreceu e
amadureceu o espírito do capitalismo. Assim, o trabalho deixou de
ser visto como castigo divino devido ao pecado, e passou a ser
visto como chamado de Deus para se tornar um ser autônomo e
capaz de ser livre através da construção individual de uma
propriedade privada. Neste contexto, trabalhar é uma espécie de
ascese, que agora deixa os mosteiros e vai para dentro do mundo,
na relação com a terra, ou depois nas indústrias, com o objetivo de
conquistar cada vez maior individualidade e maior autonomia,
maior domínio racional sobre a própria vida, e com isso prestando
maior glória a Deus.
Ao fazermos estas observações, é importante chamarmos a
atenção para o fato de que Weber não aceita tão convictamente a
tese – de que falamos antes ao caracterizar o pensamento moderno
– segundo a qual a modernidade é uma ruptura com o cristianismo
ou com a Idade Média. Para ele, há sim mudanças, maior
antropocentrismo, mas este antropocentrismo nunca perde totalmente
sua marca cristã. Por outras palavras, na modernidade Deus parece
ter deixado de estar tão fora do mundo, e a vida humana deixa de
ter como alvo final a outra vida, passando-se a valorizar mais a
vida aqui e agora. O deus transcendente torna-se imanente.
Isso poderá servir para entender melhor porque Weber
defende a existência de duas grandes tendências na ética: a ética
da convicção e a ética da responsabilidade. Se tomássemos
em conta apenas o processo de racionalização moderno como
criação cada vez maior de autonomia humana em relação a
qualquer instância superior ao ser humano, teríamos certamente a
presença exclusiva ou primazia da ética da responsabilidade. E se
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Unidade 2 – Ética
disséssemos que a modernidade é apenas uma continuidade do
cristianismo, teríamos a presença maior da ética da convicção.
Dito isso, vejamos o que significa estas éticas?
De modo geral, na ética da convicção, valem os princípios,
as convicções, independente dos resultados que se alcançam com
esta forma de comportamento humano. Na ética da
responsabilidade, valem as consequências, os resultados alcançados
com as nossas ações. Trata-se de duas atitudes, bem diferentes.
Podemos chamá-las também de “tipos ideais”, de modelos gerais
de ética racional. Vejamos cada uma delas de forma mais detalhada.
X
Ética da convicção: defendida principalmente pelo
Cristianismo e retomada, na modernidade, por Kant –
estabelece que o que vale é a intenção, a boa vontade;
o que vale é cumprir a vontade de Deus ou a lei que
existe, independente do fato de que o cumprimento
da lei me traga maior benefício, me dê felicidade,
independente, portanto, dos resultados práticos,
imediatos. Fazer o bem é cumprir a norma,
independente do resultado que isso trará. Um exemplo,
de fazer um bem na administração pública é cumprir
a norma vigente, é promover o que se considera bem
público, mesmo que isso não proporcione ao
funcionário uma promoção futura, e mesmo que isso
não traga sempre e necessariamente um benefício para
o público. Fazer o bem é seguir princípios considerados
corretos, mesmo que os resultados sejam ineficazes
ou menos eficazes do que agindo de outra forma.
O que importa é a correção na execução da tarefa,
fazer o que se deve fazer. Um exemplo seria dizer
sempre a verdade, independente dos resultados. Outro
exemplo: cumprir os mandamentos de Deus é – ou
deveria ser – para um cristão sinônimo de bem, mesmo
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que o cumprimento não sirva para ele ser mais
benquisto, ficar mais rico, ou ter maior reconhecimento
por parte dos outros. De acordo com a ética da
convicção, no dizer de Kant, importa ser digno de ser
feliz, não ser realmente feliz. Lembremos também das
passagens bíblicas que destacam claramente que os
que cumprem os mandamentos de Deus nem sempre
vivem bem, e os que não os cumprem nem sempre
vivem mal. Outro exemplo foi dado por Platão: numa
sociedade predominantemente injusta, os que fazem
o bem não vivem bem, e os que são injustos vivem
bem, mas nem por isso alguém deve fazer algo só
porque e enquanto me trouxer resultados bons.
X
Ética da responsabilidade: ensina que devemos
ter em conta as consequências previsíveis da própria
ação. Nesta perspectiva, o que importa são os
resultados, não os princípios, ou a intenção. Para um
servidor público, fazer o bem é agir em função do
resultado, que pode ser tanto a melhor promoção do
bem comum, quanto a melhor promoção do bem
pessoal do próprio servidor, ou então ambos os
resultados. Esta ética parece ser a única ética possível
e desejável no campo da política, na qual deveria ser
descartada a ética da convicção. Também a ética
utilitarista, a que já nos referimos, é uma ética da
responsabilidade. E, se houver uma ética na economia,
esta seria a única ética compatível com o lucro.
Por mais que Weber insista em falar da distinção e da
incompatibilidade racional entre ética da convicção e ética da
responsabilidade, ele não deixa de assinalar uma tensão teórica e
prática entre elas. Se levarmos ao extremo a ética da
responsabilidade, podemos cair facilmente no que é assinalado por
Maquiavel: que os fins justificam qualquer meio que se usa. Por
exemplo: um político poderia matar um adversário político para
conseguir realizar maior benefício para a comunidade? O Estado
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Unidade 2 – Ética
pode eliminar, com pena de morte, todo aquele que parece ser
incurável em seu comportamento criminoso? Um servidor público
poderia descumprir uma lei para ser mais eficaz na solução de um
problema social? Na política – voltamos a insistir – conta bem mais
a eficácia, o bom resultado, do que o cumprimento de princípios.
Certamente os cidadãos criticariam um governante que fosse santo
do ponto de vista moral, mas ineficiente do ponto de vista prático.
Maquiavel insiste em dizer que um bom político não pode sempre
agir de acordo com um código moral, mas que ele precisa ser capaz
de “entrar no mal” para fazer o bem na prática.
No entanto, Weber afirma que, por mais difícil que seja
abandonar a pura ética da responsabilidade, na política, e –
poderíamos acrescentar – na vida pública em geral –
[...] a ética da responsabilidade e a ética da convicção não
são termos absolutamente opostos, mas sim elementos
complementares que devem concorrer para formar o ho
mem autêntico, o homem que pode ter “vocação política”
(WEBER, 1979, p. 97).
Tanto a responsabilidade sem convicção quanto a convicção
sem responsabilidade parecem ser insuficientes. Quando um
determinado governo ou instituição age segundo uma ética da
convicção, terá como justo, por exemplo, matar, em nome do bem,
qualquer adversário, como fazem as ditaduras e a maioria das
ideologias políticas, ou como o fez a própria Igreja católica em certos
momentos, ou como o fazem ainda hoje governos fundamentalistas.
Não se pode sem mais, neste mundo, querer impor a todos os
mesmos princípios. Sendo assim, são as consequências práticas
boas para todos que deveriam servir de motivo para considerar
que alguém age bem, e não simplesmente a coerência mantida entre
princípios e ação. No caso da ética da responsabilidade, deveria
ser considerado o que é um resultado bom, e se este resultado bom
é apenas para quem age ou é bom também para aqueles que são
atingidos por este resultado.
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De toda maneira, certamente vale a pena refletir mais sobre
a distinção feita por Weber, e que serve de veículo para discutirmos
boa parte das teorias da moral que privilegiam ou a ética da
convicção ou aquela da responsabilidade. Na ética da convicção,
os meios nunca podem ser maus, embora os resultados possam
não ser bons. Os resultados seriam bons só se todos cumprissem as
normais morais. Somente numa sociedade onde os indivíduos são
predominantemente virtuosos será bom ser bom, ou seja, será bom
agir sempre de acordo com princípios. Assim, o Sermão da
Montanha proferido por Jesus Cristo, é uma ética da convicção;
mas dificilmente poderíamos esperar que todos seguissem estes
princípios. Também o moderno Kant defende uma ética da
convicção, enquanto diz que virtuoso não é quem alcança a
felicidade, mas quem é digno de ser feliz, por ter cumprido a lei.
De acordo com uma ética da responsabilidade, podemos e
devemos agir em vista dos resultados, e considerar bom moralmente
aquele que age com responsabilidade, assumindo a responsabilidade
pelas consequências de suas ações, inclusive agindo contra aqueles
que, em nome de uma convicção moral “superior” agem no mundo
sem pensarem nas consequências que o cumprimento de sua
convicção traz para quem tem convicções diferentes. Neste caso,
podemos tomar como exemplo o atual confronto entre teses
fundamentalistas, como a de alguns grupos muçulmanos, que agem
certamente de acordo com uma ética da convicção (e combinam
ética com política), enquanto no mundo ocidental parece prevalecer
como parâmetro moral uma ética da responsabilidade, e uma
separação entre ética e política. Neste contexto, a ética da convicção
pode ser cega, e não aceita questionamento, enquanto a convivência
entre os seres humanos em um mundo globalizado parece exigir
tolerância e reconhecimento do diferente, mesmo que tal tolerância
deva ser apoiada também num princípio: o do direito do outro ser
diferente de nós. Ter de tomar em conta as consequências de nossas
ações para se poder falar de ética parece ser de bom senso. Assim
sendo, certamente poderíamos afirmar que uma ética da
responsabilidade constitui-se como forma de respeito pela
humanidade, em sua diversidade de culturas, de tradições, de
crenças, ou então como ética da dignidade humana. De toda forma,
o próprio Weber reconhece que “ninguém pode determinar se deve
agir de acordo com a ética da responsabilidade ou de acordo com
a ética da convicção, nem quando de acordo com uma ou com
outra” (WEBER, 1979, p. 96).
Í
CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. 2. ed. São Paulo: Ática, 1995.
Também disponível, na íntegra, em: <www.cfh.ufsc.br/~wfil/
convite.pdf>. Acesso em 3 ago. 2009.
Í
VASQUEZ, Adolfo S. Ética. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970.
AFINAL, O QUE É A ÉTICA?
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