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segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

A "ganância" e o "egoísmo" para naturalizar o capitalismo

 

A pulsão catastrófica

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O movimento de Marx que vai da fenomenologia da ganância individual para as tendências estruturais do modo de produção capitalista encontra a mesma compulsão encontrada em Freud e ele explica essa compulsão por meio de uma força impessoal pertencente às próprias abstrações e processos econômicos.

Ao fazê-lo, Marx empreendeu assim uma completa “despsicologização” da pulsão. Entendida como uma força estrutural e não psicológica, a pulsão questiona profundamente a liberdade e a autonomia assumidas dos sujeitos econômicos e, além disso, é responsável por uma ação compulsiva que domina vidas, mentes e corpos individuais, mas também relações sociais intersubjetivas.

No pano de fundo dessa decisão conceitual, Marx rompeu com a economia política clássica. Como já mencionado, Adam Smith formulou uma hipótese que só parece apontar na mesma direção. Essa hipótese, aliás, obteve um enorme impulso ideológico nas décadas do neoliberalismo, qual seja ela, a hipótese da inclinação natural do ser humano ao egoísmo. Para um olhar desatento, a noção de interesse privado de Smith poderia aparecer como uma espécie de predecessor conceitual da pulsão. Na verdade, é a sua mistificação.

Na apologética do capitalismo, a ganância desempenhou um papel ambíguo: por um lado, era considerada como uma força natural que refletia a luta humana pela autopreservação e, por outro lado, parecia uma força eminentemente cultural ou social, que era presumivelmente capaz de manter relações sociais estáveis. A ganância é um componente central do naturalismo capitalista, o ponto em que os defensores do capitalismo se esforçam para estabelecer o vínculo entre o capitalismo e a natureza humana.[vii] Nesse aspecto, o capitalismo sempre se entendeu como aquela ordem social que está mais de acordo com as inclinações presumivelmente naturais dos seres humanos.

Essa psicologização da ganância ressurge em contextos psicanalíticos e econômicos que, de outra forma, são críticos do capitalismo, como em Otto Fenichel ou John Maynard Keynes. Ambos fizeram uma crítica ao impulso capitalista de enriquecimento e sua naturalização. No entanto, eles negligenciaram que Freud e Marx usam o conceito de pulsão a fim de passar da realidade psicológica para a realidade estrutural, do pessoal para o impessoal. Além disso, as análises históricas e formais de Marx já mostram como o impulso do enriquecimento, criticado desde Platão e Aristóteles, passa por uma metamorfose de longo alcance, uma vez que a invenção do mais-valor fundamentou a ordem socioeconômica moderna.

Jacques Lacan pegou as ressonâncias entre a psicanálise e a crítica da economia política, insistindo que há uma homologia fundamental entre a explicação de Marx sobre a função do mais-valor na pulsão do capital e a explicação de Freud da busca constante da pulsão por mais prazer (Lustgewinn). Para localizar essa homologia, Lacan cunhou o termo “mais-gozar” (plus-de-jouir). Ambos esses excedentes, nos campos do valor trabalho e da fruição, visam a objetivação de um “mais e mais” que torna a satisfação da pulsão uma tarefa praticamente infinita. A tese explícita de Lacan é que a mais-valia deve ser considerada como gozo sistêmico e, correspondentemente, o sistema capitalista como uma máquina de gozo com consequências catastróficas.

*Lucas Pohl é professor na Universidade Humboldt, em Berlim.

*SamoTomsic é pesquisador do laboratório interdisciplinar Bild Wissen Gestaltung, na Universidade de Humboldt, em Berlin. Autor, entre outros livros, de The capitalism unconscius: Marx and Lacan (Verso).

Tradução: Eleutério Prado

Trecho do livro Imagining apocalyptic politics in the anthropocene (Routledge)

Fonte: A Terra é Redonda, blogspot.com

 

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