OutrasPalavras
Jornalismo de Profundidade e Pós-capitalismo
Löwy: História, razões e ética do Ecossocialismo
Por que reorganizar a produção e o consumo,
em bases não-mercantis. A luta para superar o sistema não precisa
esperar a conquista do poder. Marx, produtivista?
Publicado 10/05/2017 às 23:29 - Atualizado 15/01/2019 às 17:44
Por que reorganizar a produção e o consumo, em bases
não-mercantis. As divergências em relação ao “capitalismo verde” e ao
“socialismo” burocrático. A luta para superar o sistema não precisa
esperar pela conquista do poder. Marx, um produtivista?
Por Michel Lowy, em entrevista a Miguel Fuentes | Tradução: Inês Castilho | Imagem: Marc Chagall
O sociólogo e filósofo Michael Lowy, uma das referências mais
importantes do pensamento anticapitalista, concedeu há poucos dias
entrevista sobre o perigo crescente da crise ecológica e sua importância
como problema estratégico central para o marxismo.
Refletindo sobre uma série de questões tais como as mudanças
climáticas, o ecossocialismo e os desafios do movimento revolucionário
durante as próximas décadas, as ideias deste intelectual constituem um
claro chamado de advertência. Segundo ele, dependerá da capacidade que
tenham as organizações de esquerda para integrar esses debates em seus
seus respectivos eixos estratégicos, a possibilidade (ou não) de
enfrentar o último desafio programático da revolução socialista: o
perigo do colapso da civilização e da extinção humana, ou melhor, nas
palavras de Lowy… a ameaça de um ecossuicídio planetário.
O que é o Ecossocialismo e quais suas referências?
O ecossocialismo é uma alternativa radical ao capitalismo que resulta
da convergência entre a reflexão ecológica e a reflexão socialista
(marxista). Sua premissa fundamental é que a preservação de um ambiente
natural favorável à vida no planeta é incompatível com a lógica
expansiva e destrutiva do sistema capitalista. Não se podem salvar os
equilíbrios ecológicos fundamentais do planeta sem atacar o sistema, não
se pode separar a luta pela defesa da natureza do combate pela
transformação revolucionária da sociedade.
Existe hoje uma corrente ecossocialista internacional que, por
ocasião do Foŕum Mundial de Belém (janeiro de 2009), publicou uma
declaração sobre as mudanças climáticas, assinada por centenas de
pessoas de 45 países. Entre seus precursores se encontram figurais tais
como Manuel Sacristán (Espanha), Raymond Williams (Inglaterra), André
Gorz (França), James O’Connor (Estados Unidos), e entre seus
representantes atuais estão o coautor do “Manifesto Ecossocialista
Internacional” (2001) [1] Joel Kovel (Estados Unidos), o marxista
ecológico John Bellamy Foster (ibidem), o indigenista peruano Hugo
Blanco, a ecofeminista canadense Terisa Turner, o marxista belga Daniel
Tanuro, e muitos outros.
O ecossocialismo dissocia-se de dois modelos inoperantes: 1) A
ecologia conformista, que adapta suas propostas ao mercado e busca
desenvolver um “capitalismo verde” — quer dizer, uma ilusão nefasta ou,
em muitos casos, uma mistificação. 2) O pretendido “socialismo real” (da
falida URSS, China etc.), o qual não foi mais que uma caricatura
burocrática do socialismo baseada numa imitação servil do aparato
técnico capitalista e num produtivismo antiecológico tão destruidor da
natureza como seu equivalente ocidental.
O ecossocialismo propõe uma reorganização do conjunto do modo de
produção e de consumo baseado em critérios exteriores ao mercado
capitalista: as necessidades reais da população e a defesa do equilíbrio
ecológico. Isso significa uma economia de transição ao socialismo, na
qual a própria população – e não as “leis de mercado” ou um Birô
Político autoritário – decidam, num processo de planejamento, as
prioridades e os investimentos.
Esta transição poderá conduzir não só a um novo modo de produção e a
uma sociedade mais igualitária, mais solidária e mais democrática, mais
também a um modo de vida alternativo, uma nova civilização
ecossocialista para além do dinheiro, dos hábitos de consumo
artificialmente induzidos pela publicidade, e da produção ao infinito de
mercadorias inúteis. O “Bem Viver” da tradição indígena das Américas é
uma importante fonte de inspiração para esta alternativa.
Quais são os principais aportes do Ecossocialismo à teoria marxista e à prática das organizações de esquerda?
Muitos ecologistas criticam Marx por considerá-lo produtivista. Tal
crítica nos parece completamente equivocada: ao fazer a crítica do
fetichismo da mercadoria, é justamente Marx quem coloca a crítica mais
radical à lógica produtivista do capitalismo, a ideia de qua a produção
de mais e mais mercadorias é o objeto fundamental da economia e da
sociedade.
O objetivo do socialismo, explica Marx, não é produzir uma quantidade
infinita de bens, mas sim reduzir a jornada de trabalho, dar ao
trabalhador tempo livre para participar da vida política, estudar,
brincar, amar. Para tanto, Marx proporciona as armas para uma crítica
radical do produtivismo e, particularmente, do produtivismo capitalista.
No primeiro volume de O Capital, Marx explica como o
capitalismo esgota não só as forças do trabalhador, como também as
próprias forças da terra, esgotando as riquezas naturais. Assim, essa
perspectiva, essa sensibilidade está presente nos escritos de Marx. No
entanto, não foi suficientemente desenvolvida.
É verdade, entretanto, que alguns escritos de Marx, e sobretudo de Engels (o Anti-Dühring,
por exemplo) propõem que a tarefa de uma revolução seria unicamente
mudar as relações de produção, que se converteram em travas ao livre
desenvolvimento das forças produtivas. Cremos que, desde uma perspectiva
ecossocialista, necessita-se de uma visão muito mais radical e profunda
do que deve ser uma revolução socialista. Trata-se de transformar não
só as relações de produção e as relações de propriedade, como a própria
estrutura das forças produtivas, a estrutura do aparato produtivo. É
preciso que aplicar ao aparato produtivo a mesma lógica que Marx pensava
para o aparato de Estado a partir da experiência da Comuna de Paris
quando ele dizia o seguinte: “os trabalhadores não podem apropriar-se do
aparato do Estado burguês e usá-lo a serviço do proletariado, não é
possível, porque o aparato do Estado burguês nunca vai estar a serviço
dos trabalhadores. Então, trata-se de destruir esse aparato de Estado e
criar outro tipo de poder”.
Essa lógica tem de ser aplicada ao aparato produtivo que deve ser, se
não destruído, ao menos radicalmente transformado. Este não pode ser
simplesmente apropriado pelas classes subalternas, e posto a trabalhar a
seu serviço, pois necessita ser estruturalmente transformado. Por
exemplo, o sistema produtivo capitalista funciona com base em fontes de
energia fósseis, responsáveis pelo aquecimento global – o carbono e o
petróleo. Um processo de transição ao socialismo só seria possível
quando se der a substituição dessas formas de energia por energias
renováveis — por exemplo a água, o vento e, sobretudo a energia solar.
Por isso, o ecossocialismo implica uma revolução do processo de
produção, das fontes energéticas. É impossível separar a ideia de
socialismo, quer dizer, de uma nova sociedade, da ideia de novas fontes
de energia, particularmente do calor – alguns ecossocialistas falam já
de um “comunismo solar”, pois entre o calor, a energia do Sol, o
socialismo e o comunismo haveria uma espécie de afinidade eletiva.
Mas não basta transformar o aparato produtivo e os modelos de
propriedade, é necessário transformar também o padrão de consumo, todo o
modo de vida em torno do consumo, que é o padrão de capitalismo baseado
na produção maciça de objetos artificiais, inúteis e perigosos. Por
isso trata-se de criar um novo modo de consumo e um novo modo de vida,
baseado na satisfação das verdadeiras necessidades sociais, algo
completamente diferente das supostas e falsas necessidades produzidas
artificialmente pela publicidade capitalista. Dele se depreende pensar a
revolução ecossocialista como uma revolução da vida cotidiana, como uma
revolução pela abolição da cultura do dinheiro e da mercadoria imposta
pelo capitalismo.
O ecossocialismo não é só a perspectiva de uma nova civilização, uma
civilização da solidariedade – no sentido profundo da palavra,
solidariedade entre os humanos, mas também com a natureza –, é também
uma estratégia de luta, desde já, aqui e agora. Não se trata de esperar
até o dia em que o mundo se transforme, mas de começar desde já, agora, a
lutar por esses objetivos. Trata-se de promover a convergência, a
articulação entre lutas sociais e lutas ecológicas, as quais têm o mesmo
inimigo: o sistema capitalista, as classes dominantes, o
neoliberalismo, as multinacionais, o FMI, a OMC. Os indígenas da América
Latina, desde as comunidades andinas do Peru até as montanhas de
Chiapas, estão na primeira linha de combate em defesa da Mãe Terra, da
Pachamama, contra o sistema.
Noam Chomsky tem afirmado nos últimos anos que a crise
ecológica é mais importante que a crise econômica [2]. Qual sua opinião
sobre essa frase?
Estou inteiramente de acordo com Chomsky! A crise econômica é grave,
porque serve às classes dominantes, ao capital financeiro, para aplicar
suas receitas neoliberais, agravando o desemprego, destruindo conquistas
sociais, privatizando os serviços públicos etc. Mas a crise ecológica é
algo muito mais importante e muito perigoso, porque ameaça as condições
de vida da humanidade no planeta.
A que se você refere quando fala de um possível ecossuicídio planetário?
A civilização capitalista industrial moderna é um trem suicida que
avança, com rapidez crescente, em direção a um abismo: as mudanças
climáticas, o aquecimento global. Trata-se de um processo dramático que
já começou, e que poderá levar nas próximas décadas a uma catástrofe
ecológica sem precedentes na história humana: elevação da temperatura,
desertificação das terras, desaparecimento da água potável e da maioria
das espécies vivas, multiplicação dos furacões, elevação do nível do mar
– até que Londres, Amsterdã, Veneza, Xangai, Rio de Janeiro e demais
cidades costeiras fiquem debaixo d’água. A partir de um certo nível de
elevação da temperatura, será ainda possível a vida humana neste
planeta? Ninguém pode responder com segurança a esta pergunta.
O dito ecossuicídio planetário é uma situação hipotética, ou uma possibilidade concreta para as próximas décadas?
Cientistas como James Hansen – durante muitos anos o climatólogo da
NASA, nos EUA – explicam-nos que as mudanças climáticas não se
desenvolvem de forma gradual, mas sim com saltos qualitativos. A partir
de um certo nível de aquecimento – 2 graus centígrados além das
temperaturas pré-industriais – o processo se tornará irreversível e
imprevisível. Isso pode acontecer nas próximas décadas, sobretudo se se
confirmam uma série de evidências científicas recentes: derretimento do
gelo dos polos mais rápida do que o prevista; maciças emissões de metano
(um gás com muito maior efeito de aquecimento do que o CO2) pelo
derretimento do permafrost na Sibéria, Canadá etc. Ninguém pode prever
quando se dará a inversão, e portanto não têm sentido as previsões que
se referem ao ano 2.100.
Uma série de cientistas começaram a alertar sobre uma grande
crise planetária no caso de que o aquecimento global supere os 2 graus
centígrados, produzindo com ela uma importante quebra nos sistemas
agrícolas. Ideias semelhantes têm sido discutidas no âmbito dos estudos
energéticos, projetando-se a possibilidade de uma crise estrutural
próxima do capitalismo como produto do esgotamento do petróleo e dos
combustíveis fósseis (fenômeno conhecido como Peak Oil). [3] Como se
relacionaria a ideia do perigo de um ecossuicidio planetário com a
possibilidade de um fenômeno de colapso capitalista, aquele como
consequência do avanço da crise ecológica no futuro próximo?
Em primeiro lugar, não tem sentido discutir o Peak Oil como se fazia
ainda há alguns anos. O problema não é o esgotamento do petróleo, mas
que há muitas reservas de petróleo e carvão. Se elas forem queimadas, o
aquecimento global será inevitável e catastrófico.
Pois bem, a crise ecológica, por si mesma, não leva a um colapso do
capitalismo. O capitalismo pode sobreviver nas piores condições
energéticas e agrícolas. Não há menhum mecanismo automático que leve a
um colapso capitalista. Haverá crises terríveis, mas o sistema
encontrará alguma saída, em forma de guerras, ditaduras, movimentos
fascistas etc. Assim foi nos anos 1930 e assim pode ocorrer no futuro.
Como dizia Walter Benjamin: “o capitalismo nunca vai morrer de morte
natural”. Se queremos por um fim no sistema capitalista, isso só será
possível por um processo revolucionário, uma ação histórica coletiva
anticapitalista. O capitalismo só desaparecerá quando suas vítimas se
levantarem contra ele e o eliminarem.
Marx afirmou no Manifesto Comunista que a história
da humanidade foi até hoje a história da luta de classes, e que esta
luta terminou sempre com a vitória de uma classe sobre outra… ou então
“na destruição das classes em conflito”. Em nossos dias, mais de um
século e meio após aquela afirmação, uma equipe de pesquisadores
financiados parcialmente pela NASA divulgou um estudo no qual se sugere,
entre outras coisas, que a combinação dos efeitos das mudanças
climáticas e dos níveis de concentração extrema de riqueza, assim como
também de uma futura escassez de recursos em nível mundial estariam a
ponto de produzir a ruína da civilização contemporânea. [4] Poderíamos
hoje dizer que a sincronia entre as crises ecológica, econômica e social
constituiria a materialização histórica daquela possibilidade prevista
por Marx em torno de uma possível autodestruição das classes
fundamentais do capitalismo?
Creio que se trata de realidades distintas. A concentração extrema de
riquezas não conduz à “destruição das duas classes de luta”: é
simplesmente a vitória de uma das classes, a burguesia financeira
parasitária contra as classes subalternas…
Pois bem, a crise ecológica pode, sim, ter como resultado a ruína da
civilização atual e a autodestruição das classes da sociedade moderna,
segundo a previsão de Marx. Se se permite ao capitalismo destruir o
planeta, todos os seres humanos serão vítimas. Mas a mentalidade dos
capitalistas, em particular a oligarquia fóssil – os interesses da
indústria do carbono, do petróleo e suas associadas da eletricidade, do
transporte, da indústria química etc – poderia ser resumida com a famosa
frase do rei francês Luís XIV: “Depois de mim, que venha o dilúvio”.
Durante as primeiras décadas do século XX, algumas
importantes figuras do marxismo tais como Lenin, Trotsky ou Gramsci
tiveram de enfrentar os horrores das Guerras Mundiais e do Fascismo. Em
nosso caso, em troca, pareceria que temos diante de nós um horizonte
destrutivo muito superior ao que ditos revolucionários poderiam ter
sequer imaginado. Um exemplo disso pode ser visto nos efeitos
hipercatastróficos que podem chegar a ter as mudanças climáticas, assim
como também no começo do que algumas importantes referências científicas
denominaram como a sexta extinção maciça de espécies. Outra denominação
em voga deste fenômeno é a do Antropoceno e sua possível relação com um
fenômeno de extinção iminente da própria espécie humana. [5] É correto,
para você, afirmar que nos encontraríamos às portas de um salto
destrutivo inédito da dinâmica capitalista?
Há um consenso crescente entre os cientistas de que entramos numa
nova era geológica, o Antropoceno, uma era na qual a ação humana – na
verdade, a civilização capitalista industrial moderna – determina os
equilíbrios do planeta, inicialmente o clima. Uma das características do
Antropoceno é o processo da sexta extinção maciça das espécies, que já
começou.
A elevação da temperatura global acima de 2 graus centígrados terá
sem dúvida efeitos “hipercatastróficos”, que não se podem comparar com
outros eventos históricos (guerras etc.), mas somente com eventos de
outras eras geológicas quando, por exemplo, a maioria das costas dos
continentes atuais estava sob o mar.
Não creio que se possa afirmar que a extinção da espécie humana seja
“iminente”. É um perigo real, uma ameaça, mas para as próximas décadas.
Há mais de um século Rosa Luxemburgo lançou uma das talvez
mais obscuras advertências da tradição marxista: isto é, sua famosa
frase “Socialismo ou Barbárie”. No caso de Walter Benjamin é igualmente
conhecida sua advertência em torno da necessidade de “cortar o pavio
antes que a fagulha chegue à dinamite”, em alusão à possibilidade de um
“fim catastrófico” (negativo) do desenvolvimento capitalista. Hoje, já
passado mais de um século no qual o capitalismo seguiu impondo sua
vontade às expensas de toda a humanidade… é possível dizer que a
barbárie triunfou… ou então que se encontraria perto disso?
A barbárie ainda não triunfou. Tampouco sabemos se se encontra perto
de fazê-lo. Tudo depende da capacidade de resistência das vítimas do
sistema: quer dizer, também de nós. O fatalismo é um erro político. Como
dizia Gramsci, precisamos de pessimismo na razão e de otimismo na
vontade.
Nas últimas décadas, algumas das ideias-força mais
importantes que a intelectualidade capitalista integrou em seu programa
ideológico foram aquelas em torno dos conceitos de “fim da história”,
“fim da luta de classes” e “fim da classe trabalhadora”. Deixando de
lado o evidente triunfalismo capitalista que acompanhou o
desenvolvimento de tais ideias, estes conceitos podem hoje ser
considerados, diante do possível ecossuicídio planetário? O “fim da
história” é hoje um perigo real?
O possível econssuicídio planetário é um perigo real, mas nada tem a
ver com os discursos ideológicos do “fim da história” ou da luta de
classes, que proclamavam a eternidade do capitalismo neoliberal. Ao
contrário, a luta de classes é o método para por fim à dinâmica
autodestrutiva do capital.
Como podemos pensar essa situação a partir do marxismo e nos
preparar para um cenário de crise com uma dimensão possivelmente muito
superior à que o campo das lutas sociais enfrentou nos últimos séculos?
O marxismo nos permite compreender a natureza destrutiva do
capitalismo, sua tendência inexorável à expansão perpétua, e portanto
sua contradição com os limites naturais do planeta. O marxismo nos
permite colocar nas vítimas do sistema, nas classes e grupos oprimidos e
explorados o sujeito possível de uma transformação anticapitalista.
Finalmente, o marxismo nos propõe, com o programa socialista, os
fundamentos de uma alternativa radical ao sistema. Mas, sem dúvida, como
expusemos acima, necessitamos de uma reformulação ecossocialista das
concepções marxistas.
A Revolução Social é uma política anticapitalista que
coloque a expropriação da burguesia e a tomada do poder pelos
trabalhadores como um passo necessário para deter o desastre que se
avizinha, ou para nos preparar para resistir ao colapso?
Deter o desastre é uma tarefa imediata. Cada tubulação de petróleo
que se interrompe, cada central elétrica de carbono que se fecha, cada
mata que se protege contra a voracidade destruidora do capital, detém o
desastre. Mas só será possível impedir a ruína da civilização humana
destruindo o sistema com uma revolução socioecológica.
É necessário adaptar o programa e a política da Revolução
Socialista diante dos novos perigos que supõe a combinação entre crise
ecológica, econômica e social durante o século atual? Que elementos o
Manifesto Ecossocialista nos oferece para esta tarefa?
O Manifesto Ecossocialista não tem a resposta a todas estas
perguntas. Simplesmente expõe que o socialismo do século 21 tem que ser
um socialismo ecológico, e vice-versa: de pouco nos serve uma ecologia
que não seja socialista. Sua principal tese é que o sistema capitalista é
incompatível com a preservação da vida em nosso planeta. O programa
socialista tem que transformar-se em programa ecossocialista, integrando
de maneira muito mais central a questão da relação com a natureza do
que na tradição socialista ou comunista do século 20.
Um dos princípios fundamentais do marxismo revolucionário
foi o de defender o papel da classe trabalhadora como sujeito social da
Revolução Socialista. Agora, se considerarmos que um possível colapso
civilizatório iminente se associaria à ruína da sociedade industrial e,
consequentemente, à desintegração do próprio sujeito trabalhador em
vastas regiões do planeta… é possível continuar defendendo a
centralidade do movimento trabalhador na luta de classes e do projeto
socialista?
A combinação das crises “tradicionais” do capitalismo e da crise
ecológica cria as condições para uma ampla aliança de forças sociais
contra o sistema. Potencialmente, como expunha o “Occupy Wall Street”,
os 99% que não têm um interesse fundamental na manutenção do sistema,
são atores possíveis para sua superação. Desde a Conferência
Intergalática dos Zapatistas em Chiapas em 1996, e os eventos de Seattle
em 1999, até os movimentos recentes de Indignados, vemos os primeiros
elementos desta coalisão antissistêmica. Participam dela sindicalistas,
ecologistas, movimentos indígenas, camponeses, movimentos de mulheres,
associações cristãs, correntes revolucionárias, movimentos da juventude,
associações de bairro, militantes socialistas, comunistas e
anarquistas. Hoje em dia na América Latina as comunidades indígenas e
camponeas estão na vanguarda das lutas socioecológicas, antineoliberais,
anti-imperialistas e anticapitalistas. Mas, em última análise, a
principal força desta coalizão são os trabalhadores, no sentido amplo:
os que vivem da venda de sua força de trabalho, ou do seu próprio
trabalho individual ou comunitário. Esta ampla classe de trabalhadores,
que não deve ser confundida somente com os operários industriais,
constitui a maioria da população, e sem sua ação coletiva nenhuma
revolução será possível.
Outro princípio tradicional do marxismo durante o século 20
foi defender a necessidade do controle operário da produção, do
planejamento mundial da economia e da distribuição socialista das
riquezas como meios possíveis para satisfazer, entre outras coisas, as
necessidades materiais do conjunto da humanidade. Agora, se
considerarmos que a crise ecológica que se avizinha (e o tipo de quebra
alimentar global que trará consigo) poderia implicar que inclusive tais
medidas sejam já insuficientes (ineficazes) para dar resposta às
necessidades da população mundial, isso devido à própria gravidade da
crise que se avizinha e à inexistência de tecnologias capazes de
assegurar uma adequada produção agrícola ante um cenário
hipercatastrófico de mudanças climáticas… O que fazer? Como resolver
esse aparente paradoxo no qual um setor da humanidade pareceria já estar
perdido (morto) para o projeto socialista? Mas ainda… é possível
resolvê-lo?
Penso ser prematuro discutir o que fazer quando o aquecimento global
superar os 2 graus centígrados… Nossa tarefa nas próximas décadas é
tratar de impedir isso, promovendo as lutas socioecológicas, as várias
resistências anticapitalistas e a consciência ecossocialista. O objetivo
é a abolição do capitalismo, o planejamento ecossocialista – em escala
local, nacional, continental e, em algum momento, mundial – a
distribuição da riqueza e o controle democrático (não apenas “operário”)
da população sobre a produção e o consumo.
Evidentemente, é possível que sejamos derrotados e que a humanidade
seja levada pelo capitalismo a uma catástrofe. Mas, no momento histórico
atual, temos de levar adiante, com todas as nossas forças, este combate
decisivo para evitar o desastre.
Tendo em conta a gravidade das ameaças implicadas na crise
ecológica atual… por que elas têm sido tão escassamente tratadas no
âmbito das organizações de esquerda?
Há várias explicações possível para a demora da tomada de consciência ecológica da esquerda:
1) O dogmatismo, a repetição do tradicional, a resistência a aceitar mudanças na teoria e na prática.
2) O economicismo, a redução da política a interesses corporativos
imediatos: por exemplo “salvar o emprego”, isso sem questionar as
consequências humanas, sociais ou ecológicas desses “empregos”.
3) A influência da ideologia burguesa do “progresso”, identificado
com a expansão, o “crescimento” da economia, a produção de mais e mais
mercadorias, e o consumismo.
4) O caráter futuro das ameaças ecológicas – colapso da civilização –
em comparação com os problemas econômicos imediatos: a crise, o
desemprego etc.
Notas:
[1]Nota sobre o Manifesto Ecosocialista: https://www.rebelion.org/hemeroteca/sociales/lowy090602.htm.
[2] Entrevista a Noam Chomsky: http://www.jornada.unam.mx/2015/09/12/cultura/a36n1cul.
[3] Notas complementares sobre esses temas nos siguintes links:
(1) http://www.eldesconcierto.cl/2017/03/15/manuel-casal-lodeiro-y-su-libro-sobre-la-izquierda-ante-el-colapso/
(2) http://www.eldesconcierto.cl/2017/02/24/entrevista-a-peter-wadhams-el-artico-esta-en-peligro/.
[4] Estudo cofinanciado pela NASA sobre um possível colapso
capitalista iminente:
https://www.theguardian.com/environment/earth-insight/2014/mar/14/nasa-civilisation-irreversible-collapse-study-scientists.
[5]Link:http://elpais.com/elpais/2015/06/19/ciencia/1434727661_836295.html.