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sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Prolegómenos-ÉTICA-18

 

4 esquinas

  • Público - Edição Lisboa 29 Oct 2021
  • Por António Rodrigues Jornalista.

Antes, o trabalho era uma merda e era precário; agora ainda é mais - Anne Helen Petersen Jornalista norte-americana

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Anne Helen Petersen Jornalista norte-americana

 

1.  Millennials Union

Os millennials foram o sonho do capitalismo. O seu discurso sem amarras, o seu individualismo e pouca crença nas lutas sociais, a sua vontade de não estabelecer vínculos fortes com as empresas, por mais que, tal como a Internet, estivesse assente numa ideia de liberdade, serviu de bandeja argumentos aos patrões para precarizar ainda mais a mão-de-obra, no sentido de nos tornar a todos numa espécie de apanhadores de tomate em Almería: contratados consoante as necessidades das empresas, por tempo determinado, sem vínculos e sujeitos à arbitrariedade de um custo do trabalho estabelecido por quem manda. Ou seja, se, “antes, o trabalho era uma merda e era precário; agora ainda é mais”, escreve Anne Helen Petersen. “Os millennials perceberam que as coisas podem mudar muito rapidamente, não importa quanto te esforçaste e se seguiste o caminho que devias, e serás substituído a não ser que venhas de uma família muito rica e poderosa”, afirma a jornalista em entrevista ao El País. A meritocracia morreu e por mais empenho nos estudos e no trabalho, não há nenhuma garantia de estabilidade, porque o sistema se transformou e deixou o elo mais fraco, que somos nós, numa posição de franca vulnerabilidade, condenados a um ciclo interminável de “auto-representação” para nos vendermos melhor no mercado de emprego. Ao mesmo tempo, esta descida aos infernos está a abrir os olhos a estes individualistas que achavam ter redefinido o trabalho e que agora voltam a olhar positivamente para as lutas sociais, para os direitos laborais e até, pasme-se, para essas instituições que vilipendiavam como símbolos do passado: os sindicatos. “Estamos a viver uma espécie de greve informal contra o trabalho”, refere a autora de Can’t Even: How Millennials Became The Burnout Generation.

2. Que é isso do descanso?

Viver cansa, mais agora em que a todas as horas há uma manhã de trabalho em qualquer lado e em que a sociedade transformou o direito a dormir oito horas de sono numa quase indulgência esquerdista. “Colonizar o tempo dedicado a dormir é a última fronteira do capitalismo”, refere Pablo Duarte na revista mexicana Gatopardo. E, nesse esforço exigido pelo mundo que nunca pára, cansa-se um planeta inteiro de gente. Os escapes, o ócio, a procrastinação tornam-se (in)actividades párias que, sublinham, em nada contribuem para a sociedade e devem ser reduzidas ao mínimo. A arte serve se se puder contabilizar, seja num investimento, seja no embelezar de um currículo. Tudo se instrumentaliza, o ar que respiramos, a roupa que vestimos, a comida que comemos. O que fazemos define-nos mais do que o que somos. O trabalho passa a ser um todo que se estende para além da jornada habitual até ocupar todos os outros espaços da existência humana. “Dizem que a nossa era é o século do trabalho. Na verdade, é o século do sofrimento, da miséria e da corrupção”, escreveu Paul Lafargue no seu O Direito à Preguiça. Era o século XIX, mas podia ser o século XXI. Ninguém melhor que os norte-americanos conseguiram transformar o trabalho em vida e as jornadas extenuantes de 16, 18 horas diárias numa questão de liberdade, a do trabalhador poder escolher ganhar mais dinheiro em troca do seu descanso. Mas enquanto um imigrante recém-chegado aos EUA nos anos 1940, 1950 se esgotava a trabalhar de sol a sol pelo sonho de ascender socialmente, mesmo que não ele, pelo menos os seus filhos, a quem poderia pagar os estudos, um trabalhador pobre de hoje arruína a saúde a trabalhar sem descanso apenas para poder sobreviver.

3.   Melhor o desemprego do que um mau trabalho

Volta e meia, mais volta do que meia, os filmes norte-americanos acabam a falar nos traumas familiares, normalmente sobre as famílias burguesas e os seus dramas existenciais ou, quase sempre como pano de fundo, nas exigidas classes mais pobres, obrigadas a acumular empregos mal pagos para alimentar a família e no impacto que essas jornadas intermináveis de labor tem no crescimento sozinho dos filhos.

Empregadas de mesa sem ordenado, obrigadas a viver das gorjetas; salários à hora completamente inadequados para o custo dos serviços básicos, como renda de casa e alimento; empresas que impõem longas jornadas por pouca jorna; fábricas que ignoram as mais elementares regras de tratamento humano. Mas o clima parece estar a mudar, em Agosto, um número recorde de pessoas, 4,3 milhões, demitiu-se do emprego, de acordo com o Departamento de Trabalho dos Estados Unidos, e dez milhões de postos de trabalho ficaram vagos por não haver ninguém a concorrer. Como escreveu Farhad Manjoo, na segunda-feira no New York Times, esta atitude que está a deixar desconcertados os patrões, habituados a que os trabalhadores marchem sempre ao toque de caixa das empresas, a explicação para o fenómeno pode estar numa mudança de atitude “muito pouco norte-americana: que a nossa sociedade está demasiado obcecada com o trabalho, que o emprego não é a única forma de dar significado à vida e que, às vezes, não ter trabalho é melhor que ter um mau”.

4. A importância de um bom pequeno-almoço

Os trabalhadores de fábricas da Kellogg’s em quatro estados norte-americanos estão em greve contra o plano da empresa de redução de salários, corte nos benefícios e eliminação de postos de trabalho, com a transladação de instalações para o México e o Canadá. Além disso, a empresa que produz os mais famosos corn flakes para o pequeno-almoço decidiu adoptar uma política de salários para as novas contratações que provoca mal-estar, ao colocar lado a lado, nas mesmas funções, trabalhadores com ordenados diferentes. O plano pós-pandémico da empresa é a versão it’s nothing personal, it’s only business na sua versão empresarial mais gananciosa, porque estes trabalhadores são os mesmos que ajudaram a Kellogg’s a funcionar durante a pandemia e a obter lucros chorudos, parte deles distribuídos em forma de prémios aos quadros superiores. Não só a direcção executiva da empresa e o seu conselho de administração esqueceram os trabalhadores que chegaram a fazer jornadas de 16 horas diárias e de 85 horas semanais para que a Kellogg’s pudesse corresponder à procura do mercado, como agora os insultam com redução de salários ou despedimentos. Se muitas empresas já compreenderam a sua responsabilidade social e o tanto que há a ganhar num comportamento ético em relação aos seus trabalhadores, outras tantas, ou mais, continuam convencidas de que os pobres nasceram para ser explorados pelos ricos. O cartaz carregado por uma funcionária em greve dizia tudo: “Eu alimento as vossas famílias, mas não consigo alimentar a minha.”

 

 

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