O TOQUE DE MIDAS NA AVALIAÇÃO
(Visão de uma outsider na Educação)
Introdução
Fazendo parte integrante dos muitos nómadas do ensino em Portugal, a percentagem
residual que perfaz, agora, quase duas décadas, sem a possibilidade de deprimir, desistir ou
sucumbir perante essa realidade, pois que para além de precisar de trabalhar, deste
remanescente detrito do sistema educativo, depende a possibilidade de uma suplência,
sempre-a-postos de professores esgotados, cansados e até mesmo derrotados, por esse
mesmo sistema em que se encontram enquadrados.
Prova disso foi a experiência que tive na primeira escola que leccionei na região do Oeste,
em regime de substituição, quando após ter estado quinze dias internada com uma
pneumonia, ao regressar à escola, o presidente do Executivo (hoje ‘Director da Escola’) me
ter perguntado se estava a pensar adoecer mais vezes, já que leccionava uma disciplina de
12º ano com exame final.
Porém, tenho podido, também, obter uma panorâmica mais geral de todas as mudanças
nestes quinze anos apesar dessa permanente exterioridade e com maior liberdade de
expressão, nas diferentes escolas por onde tenho passado, apesar da pouca voz que os
professores contratados têm em qualquer uma das escola. Esse, o traço comum a todas.
E por isso, considerei louvável esta vossa iniciativa de partilha de experiências entre os
professores, via electrónica, pois apesar do pouco tempo que vamos tendo para escrever, só
pela escrita se podem conhecer as convicções das pessoas, já que entre a nossa classe, nas
conversas apressadas na sala de professores ou nos corredores, não há uma genuína e real
comunicação.
Partilho, pois, aqui algumas reflexões sobre os problemas que penso atravessarem o novo
modelo de ensino em Portugal, a propósito da questão dos rankings, que foi tema da última
reunião de departamentos, deixando em aberto a questão da possibilidade de existência
efectiva de uma avaliação e de um modelo de gestão educacional coerente, consensual e
exequível, algum dia.
Soluções, infelizmente, não antevejo, mas tenho esperança que seja possível encontrar
através do diálogo inter e intra-escolas, por parte dos professores, uma solução para a
melhoria do nosso ensino, sem que este implique diminuição da sua importância social e
cultural ou esvaziamento da sua autoridade já tão rarefeita por anteriores fracturas internas
que lhe foram impostas.
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1. Cenários identitários
Todos os professores de uma maneira ou doutra, ao longo da sua carreira vão
construindo, subjectivamente, os seus ‘cenários de actuação’ com base nos seus arquétipos,
modelos e valores educacionais, adquiridos ao longo de toda uma história de vida única e
irrepetível. E é no interior desses primeiros ensaios gerais postos em cena nos primeiros anos
de ensino, que invariavelmente os vão repetindo, ao longo da sua vida profissional, mais ou
menos criativamente, complementadas, naturalmente, por algumas das existentes
ferramentas didácticas e pedagógicas inventariadas pelas modas, que também vão existindo
e deixando de existir, também na Educação. [A título de exemplo o modelo do ‘lúdico’
anteriormente considerado um must por muitos, (apesar do repúdio de alguns resistentes a
essas veleidades), foi quase erradicado, considerando-se uma técnica no mínimo sofística e
no extremo, fazendo do professor um palhaço tonto …] Mas não se muda aquilo que se é, por
mais subterfúgios psicológicos que mobilizemos, e neste contexto, sob nenhuma
recomendação ministerial de recurso de estratégias e metodologias diversificadas, por mais
que as implementemos ou a elas recorramos, de modo a almejar tal propósito perfilado.
Por conseguinte, mais do que em qualquer outra profissão, dificilmente se estabelece a
dissociação da persona do professor, da do indivíduo. Assim, avaliar a actuação do professor
x, inevitavelmente implica a avaliação da pessoa que ele é, e simultaneamente de todo um
mis en scéne, associado às múltiplas significações que foi atribuindo ao seu projecto
profissional e identitário, que nesta altura, consigo se confundiu inexoravelmente. Tal como,
do outro lado da barricada, qualquer grelha ou modelo de avaliação ou de ensino comporta
nos seus interstícios, os ‘cenários’ (mantendo a metáfora) do(s) seus mentor(es).
Para além dos estilos, também os métodos que vão sendo preteridos distinguem estes
profissionais. Em Didáctica da Filosofia, são referidas as metodologias platónica e cartesiana
que remetem precisamente para esse contraste: a primeira privilegiando um ensino por
desvelamento e imanência (cujos resultados terão ecos mais significativos no aluno, ainda
que a longo prazo, por partir da sua auto-descoberta – por insight); o segundo através de
regras claras e metódicas, indo do mais simples ao mais complexo, (em que, pelo seu rigor, o
aluno compreenderá a curto prazo, de modo mais objectivo, a estrutura das questões
expostas).
Então, qual deles privilegiar ou validar como melhor, já que estes dois modelos são
apenas exemplificativos das múltiplas formas de ensinar, existindo em número proporcional
ao das pessoas que eles são, (como referi anteriormente), não havendo um igual a outro?
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Como universalizar de forma isenta e imparcial tal assimetria, sem correr o risco de a
desvirtuar e perverter? É este um dos motivos pelos quais o actual processo de ensinoaprendizagem-
avaliação parece transformado no Leito de Procusto, salteador de estradas que
para além de roubar os transeuntes desprevenidos, os colocava no seu Leito de ferro,
amputando-lhes as pernas, caso fossem demasiado grandes para aquele; ou ao contrário,
esticando-as, até que aí coubessem.
E a subjectividade que entrou, em múltipla e caótica diversidade, dando entrada nessa
espécie de máquina-formatadora, acaba sendo transfigurada numa acabada e normalizada
objectividade empacotada, pronta a ser exibida juntamente a todas as outras num - por sua
vez - belo gráfico de rankings de objectividades encaminhado para o seu destino nacional
num top de sucesso ou insucesso escolar, deixando as escolas na mó de cima ou na mó de
baixo, independentemente de tudo que na sua realidade se tenha lá realizado.
2. Mea (parca) Culpa
Relativamente à instrumentalização da avaliação formal e sistemática como um dos
rituais iniciáticos e de passagem a que todos os professores em início de carreira se deverão
submeter, tal prática acarreta o peso e a responsabilidade de ajuizamento de outras personas,
que ainda sem cenários, procuram encetar o seu processo de auto-construção. Mais ou
menos conscientes desse fardo e dessa responsabilidade, de ano lectivo, para ano lectivo, as
agruras dos profissionais dessa contabilidade de realizações, capacidades e intelectos, vai-se
tornando mecanizada - graças ao auxílio das grelhas, das fórmulas do excel e das
ponderações do grupo ou do departamento disciplinar que vão auxiliando a diluição da
responsabilidade e eufemizando o peso dos veredictos finais nas pautas de final de período.
Este recurso de descarga de consciência (ao nível individual), tal como o da busca da
sensibilidade, fidelidade e padronização (ao nível metodológico), que a avaliação dita
objectiva deve conter, em última instância, visam a fuga à subjectiva e impiedosa
responsabilidade de transformação do outro em objecto (de avaliação). Mas todos sabemos
ser este um mecanismo ilusório, por maior rigor e honestidade intelectual que lhe gostemos
de imputar. Mesmo assim devemos tentá-lo, naturalmente. Mas com essa consciência. E é
esta que parece ter deixado de existir…
3. A teimosia e imprevisibilidade do Ser
É e sempre foi esta a aporia e o paradoxo do método introspectivo, da dificuldade na
origem da emancipação e afirmação da pródiga Psicologia da casa materna (a Filosofia). É
este o problema ainda do método experimental nas ciências, e de todas as parasitárias
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variáveis que imprevisivelmente despontam de todos os processos rígidos e inflexíveis de
determinação e fixação do Ser em grelhas, na avidez denunciante da fragilidade humana pela
incansável captura daquele nas malhas das redes conceptuais.
E se Heraclito (540 a.C.-470 a.C.) já observara que não tomamos banho no mesmo rio,
Popper séculos mais tarde (1902-1994), afirma que não existem factos brutos, ou seja, não
existe total objectividade em nenhum processo em que interfira o sujeito humano. Damásio
complementa e reforça esta ideia de que todos os fenómenos emocionais acabam por
interferir em qualquer banal processo de decisão e apreciação judicativa do sujeito.
Tem sido esta a batalha da ciência, e que anteriormente terá instigado toda uma
Galeria de ilustres imortais a buscar o alcance e o limite desse toque de Midas: a
transformação da subjectividade em objectividade. E vieram conciliações, cepticismos, e
finalmente a consciencialização de que deveremos continuar a nossa busca, guiados por um
fio de Ariadne, de modo a não cair numa qualquer vácua e obscura alietoriedade na
construção dos nossos instrumentos institucionais, ou sem cair no deslumbramento de medir
o imensurável, comparar o incomparável, reduzir a riqueza da multiplicidade em compacta
unidade inverosímil.
Mas naturalmente, que a complexificação e as crescentes exigências da realidade do
séc. XXI (e desde o XIX), não se compadecem com considerações filosóficas e
epistemológicas. Nas sociedades tendencialmente laicas, são necessárias soluções que
cumpram o propósito neo-liberal de crescimento e sucesso. De facto, no momento actual,
qualquer coincidência entre o actual revivalismo do modelo da Teoria de Fayol aplicado ao
modelo educacional (não) são meras coincidências.
4. A Escola-Empresa
Temos, então, duas realidade, duas linguagens que não se encontram, ou se tocam e
que se patenteiam em flagrantes contradições nas várias cimeiras mundiais que bemintecionadamente
procuram concertar (e consertar) os erros do passado, como no quotidiano,
em pequenas coisas do mundinho das pessoas comuns. Mas é o paradigma da Produção-
Consumo que continua e continuará a mover o mundo, o do lucro e do sucesso a qualquer
preço. Aquele que transforma todos os indivíduos em potenciais clientes e essa realidade não
escapa, naturalmente, à nossa realidade, enquanto professores.
E voltamos ao início, perseguidos todos pela obsessão da avaliação, da mensuração e
da necessidade de sucesso a todo o custo, vendo as nossas escolas transformadas em
empresas, os nossos alunos no cliente a agradar, sob o risco de este ir comprar um produto
mais qualificado a outro mercado melhor cotado. Conformemo-nos. É esta a realidade da
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sociedade neo-liberal, com provas de sucesso em vários países civilizados e na realidade
portuguesa privatizada. As regras são estas… e quem não joga… está fora do jogo…das
cadeiras. Sabemo-lo. Sabemos também as suas inegáveis vantagens, ao nível da gestão.
Mas, ao nível humano, ao nível da realidade académica sortirá efeito até quando? E a que
preço?
5. O cansaço
A exposição a que a profissão dos professores vota, implica um desgaste que até hoje
não foi devidamente compreendido ou balizado. Consumi-los com uma sobrecarga de
engrenagens fabricadas pelo modelo empresarial amputará o gozo e o tempo para se
dedicarem ao acto de comunicação e de ensino por excelência, passando a consumá-lo,
contabilisticamente, mecanicamente, contrariadamente, competitivamente,
desmotivadamente… até que seque o último ímpeto que o leva a levantar-se todas as
manhãs para cumprir uma tarefa que não é socialmente reconhecida, que ninguém agradece,
que não é bem remunerada e a que todos se arrojam na audácia e liberdade de criticar, de
julgar e de avaliar por ser mais… ou (tanto faz)… por ser menos….
Com a agravante de todos termos sido formados na arte (hoje técnica) de avaliar tudo e
todos criticamente. Nada escapa a esse crivo, que sendo parcialmente uma inata capacidade
humana, é faculdade desenvolvida e aguçada entre a nossa classe profissional. Todos
avaliam todos. E claro, numa escola não existem só professores, logo, a avaliação dispara de
todos os lados, sem que se possa ter o feed-back exacto do julgamento individual, que cada
um faz do outro.
6. Democratização da crítica aos professores
E se não foi avante a avaliação dos alunos e respectivos Encarregados de Educação
aos professores, a obrigatória avaliação dos professores titulares aos colegas de trabalho, a
cicatriz ficou - incólume. E o estigma também. E o medo. E o fantasma que paira ainda com
demasiada realidade entre os docentes. Dentro deles, em cada um. Entre eles. Mas não é
uma impressão: Foi e estará concedida a abertura e a liberdade de os Encarregados de
Educação poderem pedir contas aos professores, como quem pede a conta no balcão de um
restaurante. Em aberto está a possibilidade de se construírem famas e consumarem boatos
de quem se desconhece totalmente o trabalho, sob pretexto dessa democrática liberdade de
avaliação de professores. Nos cafés, em blogs e respectivos abjectos comentários, na própria
Escola, nas conversas ao almoço do fim-de-semana entre familiares ou amigos. Todos se
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aventam a dizer de sua justiça, com a ligeireza de quem cospe para o chão ou fala do tempo,
doutamente.
Quando sarará esta ferida? Quando os professores que amam a sua profissão
poderão ver renascer o prazer pleno de ensinar sem que tudo o mais se torne mais que o acto
de ensinar? Não sei. Mas presumo que não seja tão cedo. Talvez quando, daqui a uma (?) ou
duas décadas se der a previsível crise de vocações para a profissão, já que todos sabemos
que, se perguntarmos a qualquer jovem estudante, (de qualquer dos actuais ciclos de ensino)
se quer ser professor, ou aos pais destes se gostariam que os filhos seguissem a profissão,
sabemos precisamente qual a resposta: NNNNNÃÃÂOOOOO!!! Talvez nesse momento,
então nasça uma nova raça de professores e alunos, e a coragem para construir novos
cenários nas e para as escolas.
Helena Cabrita
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