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sábado, 9 de julho de 2022

in Labirintos do Fascismo, de João Bernardo (edições Afrontamento, 1ª edição, 2003) , sai no Brasil

 Uma perspectiva histórica inquietante sobre as origens dEcologia

 

(...) A agricultura orgânica, que hoje
é um elemento constitutivo da maior parte das doutrinas ecologistas, nasceu no âmbito da
metafísica da raça, enquanto elo de ligação entre o sangue e o solo.

E a política racial de escravismo e genocídio foi apresentada pelos nacionais-socialistas
como uma conclusão lógica do mito do equilíbrio natural que fundamenta a ecologia. Segundo
Darré, os outros povos, como os celtas e os eslavos, não possuíam a mesma ligação entre
sangue e solo que caracterizaria os nórdicos; e quanto aos judeus, eles seriam absolutamente
desprovidos de implantação na terra, já que eram um povo sem raízes
148. O Judeu Errante não
era para os nacionais-socialistas só uma figura negativa do reino animal, mas do reino vegetal
também. Deve situar-se neste contexto ecologista o duplo programa de escravização dos
eslavos e extermínio dos judeus. Assim como era preciso arrancar as ervas daninhas e
domesticar o gado para «aumentar os poderes naturais do solo» e «preservar o equilíbro de toda
a natureza», também — e exactamente pelas mesmas razões — se justificavam as medidas
racistas. Por isso Darré se referiu aos judeus como «ervas daninhas»
149. Como observou
Emmanuel Ringelblum na sua crónica secreta, «Eles» — na linguagem parcialmente cifrada
empregue por este historiador, «Eles», com maiúscula, designava os ocupantes nacional-
socialistas da Polónia — «comparam os judeus a uma planta parasitária que vive doutras
plantas»
150. Os SS «estão decididos a destruir as raças concorrentes», escreveu o antigo
director do jornal dos Waffen-SS de língua francesa, «como se destroem as pragas na
agricultura!»
151.
Também é conhecida a comparação estabelecida por Himmler entre os eslavos e o gado
de trabalho, no aterrador discurso proferido em Posen em Outubro de 1943: «É-me
completamente indiferente o que possa suceder a um russo ou um checo. [...] É evidente que
nunca devemos ser brutais ou cruéis sem necessidade. Nós, os alemães, que somos o único
povo no mundo a ter uma atitude decente para com os animais, também assumiremos uma
atitude decente para com estes animais humanos. Mas é um crime contra o nosso próprio
sangue preocuparmo-nos com eles e darmos-lhes ideais [...]»
152. Esta alucinante justificação da
benevolência mediante a animalização do inimigo não foi uma excentricidade do Reichsführer-
SS, porque nos derradeiros meses da guerra, num lugarejo da Pomerânia Ocidental, quando três

147 A. Bramwell (1985) 178-179; W. W. Kay (2008).

148 A. Bramwell (1985) 54-56, 189-192; P. Staudenmaier (1995) 17-18.

149 Citado em P. Staudenmaier (1995) 20.

150 E. Ringelblum (1964) 42.

151 Saint-Loup (1987) 208.

152 Citado em A. Bullock (1972) 697-698, M. Gilbert (2011 b) II 543 e J. Noakes et al. (orgs. 2008-2010) III
311-312.

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ucraniano-polacas iam ser enforcadas sob uma acusação injusta de pilhagem, um belga de
Liège, ocupando uma baixa patente na 28ª Divisão SS Valónia, protestou com êxito: «É uma
pura Tierquälerei, e a crueldade para com os animais é severamente punida na Alemanha!»
153.
A perversidade moral que permitiu salvar a vida de três mulheres eslavas conferindo-lhes o
estatuto de animais limitou-se ao Terceiro Reich ou abrange também a ecologia? Aliás, a
perversidade foi maior ainda, pois as mesmas autoridades nacional-socialistas que permitiam a
realização de experiências in vivo nos prisioneiros judeus ou ciganos dos campos de
concentração tinham proibido a vivissecção de animais mediante um conjunto de leis que foi o
primeiro e o mais rigoroso em todo o mundo
154. Aquilo que era proibido fazer aos animais ou até
aos sub-humanos podia fazer-se à anti-raça. Neste contexto talvez não fosse uma bizarria a lei
de Dezembro de 1942 que autorizou os mestiços em segundo grau de judeus e arianos a
licenciarem-se em medicina mas não em veterinária
155, preservando os animais, mais do que as
pessoas, da interferência da anti-raça. Os SS criaram também, no campo de extermínio de
Treblinka, um jardim zoológico com animais nativos da Polónia, cuidadosamente tratados pelos
prisioneiros destinados a morrer
156. Entre o culto da natureza, enquanto apologia da autoridade
e da tradição, e a invocação das raízes, enquanto legitimação do massacre rácico, a ecologia
contemporânea encontra o seu quadro inspirador.

Com a derrota militar do Reich a agricultura orgânica foi atingida pela ignomínia que
cobriu todas as iniciativas fomentadas pelos nacionais-socialistas, e o facto de Darré e os
antroposofistas terem continuado a promovê-la na década de 1950 não contribuiu para a
inocentar
157. Só muito lentamente ela conseguiu renascer. Na década de 1970, ou ainda nos
últimos anos da década anterior, com a dissolução das esperanças socialistas e obreiristas,
começou a surgir nos países anglo-saxónicos e na República Federal Alemã uma audiência de
esquerda para as teses agroecologistas que até então haviam sido conotadas com a extrema-
direita e o fascismo, e daí se expandiram ao resto do mundo
158. Embora esteja perfeitamente
documentada, a história da agroecologia mantém-se obscura pela simples razão de que os
agroecologistas não têm nenhuma vontade de a esclarecer. «A vaga de activismo estudantil
britânica do final da década de 1960 não tinha um componente ambientalista», escreveu um

153 Este caso ocorrido com o SS-Hauptscharführer Müller foi relatado por Saint-Loup (1987) 330. No seu
avanço para Ocidente o Exército Vermelho destacou-se pela quantidade de estupros cometidos; mas como no
regime soviético não existia racismo nem estava difundida a ecologia, quando o oficial Lev Kopelev protestou foi
acusado de «humanismo burguês» e condenado a nove anos de detenção. Ver G. MacDonogh (2009) 26.
Aprenderíamos alguma coisa se aplicássemos a estes dois casos a casuística da teologia moral.

154 W. W. Kay (2008).

155 S. Friedländer (2008) 630.

156 J. Noakes et al. (orgs. 2008-2010) III 627.

157 A. Bramwell (1985) 171-172, 179, 195-197.

158 W. W. Kay (2008).

1376
investigador. «Os activistas estudantis tendiam a ser esquerdistas e anarquistas que faziam
parte de coligações antinucleares e contra a guerra. Passada uma década, muitos destes
contestatários seriam activistas do ambientalismo»
159. A ecologia é hoje o quadro em que se
encontram alguns temas tradicionalistas herdados da direita radical e certas preocupações
surgidas na extrema-esquerda, e este cruzamento e o eco de cada um dos lados no outro
constituem o processo gerador de um renascimento do fascismo.

4. Ernst Haeckel, da criação da ecologia à formação do nacional-socialismo

Poder-se-á argumentar que o mito da natureza, que eu situei na origem das
preocupações dos ecologistas, caracteriza só as modalidades vulgares da ecologia e restringe-
se aos movimentos de opinião suscitados pelo receio instintivo de uma ciência que não se
conhece e de uma tecnologia cujos processos se ignoram. Talvez, mas recordemos as ideias e o
percurso do fundador, o biólogo alemão Ernst Haeckel, que na sua Morfologia Geral dos
Organismos, publicada em 1866, empregou pela primeira vez a palavra ecologia para designar a
relação dos animais com o seu meio
160.
A anulação da especificidade da história mediante a aplicação directa das leis da
natureza à esfera social, que constitui um dos temas característicos da ecologia, encontrava-se
já presente nos estudos de Haeckel, quando reivindicou para a ciência da evolução biológica o
carácter de uma ciência histórica
161. Para ele, que era um biólogo e trabalhava apenas com
materiais oriundos da biologia, isto correspondia a supor que a história da humanidade se
regesse por mecanismos idênticos aos que ditavam a evolução das espécies. E como
professava acerca da selecção natural uma concepção aristocrática
162, as suas opiniões sociais
não precisavam de encontrar outros fundamentos. O encadeado explícito da argumentação
científica apresenta-se, aliás, ao invés dos seus percursos ideológicos, porque o objectivo último
— e por isso silencioso — da ciência consiste em apagar os traços de qualquer justificação
ideológica. O tipo de história que Haeckel aplicava ao estudo da evolução caracterizava-se por
confundir o geral e o individual. Retomando uma velha ideia, Étienne Serrès havia proposto a
hipótese de que a formação biológica de cada organismo individual recapitulasse de maneira

159 Id., ibid. (sub. orig.).

160 E. Mayr (1982) 121.

161 Id., ibid., 70-71. A. Messer (1946) 597 observou que a corrente filosófica em que Haeckel se integrava,
o monismo materialista, não distinguia geralmente entre a vida no sentido biológico e a vida no sentido histórico-
cultural.
162 L. Poliakov (1971) 309.
1377
condensada o desenvolvimento biológico de toda a série em que esse indivíduo se integrava.
Nestes termos, tratava-se apenas de afirmar a existência de um paralelismo entre escalas
estáticas de formação, sem nenhuns pressupostos evolucionistas. Mantendo uma atitude
contrária ao evolucionismo, Agassiz deu àquela hipótese uma expressão mais ampla e, apesar
da expectativa prudente de Darwin, que correspondeu talvez a uma discreta simpatia, Haeckel
retomou com entusiasmo a opinião de Serrès e conferiu-lhe uma feição extrema, inserindo-a na
perspectiva evolucionista formulada por Darwin
163. Segundo Haeckel, «a ontogénese [história da
formação do indivíduo] é uma recapitulação resumida e condensada da filogénese [história da
espécie], condicionada por leis de hereditariedade e de adaptação»
164. A aplicação desta tese à
sociedade era já um lugar-comum graças à concepção de que as fases do desenvolvimento do
ser humano corresponderiam à evolução da humanidade, de modo que os povos considerados
primitivos eram assimilados a crianças. O racismo dos colonizadores encontrava assim uma
oportuna justificação em termos biológicos, e no que se referia à noção mais ampla de história
aquela tese implicava que qualquer complexidade fosse anulada. Como observou ironicamente
um cientista, «uma análise da ontogénese revelar-nos-ia tudo acerca da filogénese, ou seja,
acerca da linha de antepassados comum. Se fosse verdade, seria um princípio heurístico
realmente maravilhoso»
165. Ora, para aplicar à análise da sociedade um modelo histórico deste
tipo é necessário pressupor uma perfeita concordância da formação dos indivíduos com o
desenvolvimento do grupo social dominante, e dificilmente se imagina uma política e uma
pedagogia mais conservadoras do que aquelas que daqui se podem deduzir. No que se refere à
noção de natureza, a similitude entre as histórias do indivíduo e da espécie confere à natureza o
carácter de um todo indiferenciado, realçando-lhe assim o equilíbrio.

Ao considerar a evolução biológica como objecto de uma ciência histórica, Haeckel pôde
também defender que a ciência dos organismos fosse transferida para o plano das ciências
inorgânicas
166. Numa das Trinta Teses sobre o Monismo, redigidas em 1904 e publicadas quatro
anos depois, ele insistiu na afirmação de que toda a natureza, tanto orgânica como inorgânica,
estava sujeita a um processo de evolução único
167. Não havia, a bem dizer, lugar para
perspectivas científicas diferenciadas com esta noção de totalidade natural, que confundia, por
um lado, o orgânico e o inorgânico e, por outro lado, o orgânico e o social. Numa forma tão
extrema de monismo encontrou Haeckel a chave das questões filosóficas, conseguindo em todo

163 E. Mayr (1982) 471 e segs.

164 Citado em id., ibid., 474.

165 Id., ibid., 474.

166 Id., ibid., 115.

167 A. Messer (1946) 604-605.

1378
o mundo uma audiência muitíssimo considerável, pois a sua mais conhecida obra de divulgação,
Os Enigmas do Universo, publicada em 1899, contava em 1914 com traduções em vinte e quatro
idiomas, numa tiragem total superior a trezentos mil exemplares
168. É elucidativo considerar as
aventuras de uma doutrina que se iniciou erigindo em modelo interpretativo as leis da natureza,
cujos ataques aos dogmas cristãos e ao pensamento conservador tradicional eram bastante
apreciados nos meios da social-democracia alemã
169, e que acabou por inspirar várias correntes
do panteísmo esotérico e ter uma presença significativa no misticismo biológico adoptado pelos
nacionais-socialistas
170. Como escreveu apreciativamente uma historiadora da ecologia, este
«materialismo monista converteu-se cada vez mais num vitalismo monista»
171.
A ecologia comum nossa contemporânea, que enaltece uma natureza pretensamente
harmoniosa para condenar como uma aberração as contradições sociais, pode sem receio
invocar a obra de Haeckel. Por seu lado, ao apresentarem como espécies biológicas cada uma
das pretensas raças, os racistas encontraram um excelente modelo numa teoria que via na
formação do indivíduo não só o resumo da história da espécie mas ainda a chave dos seus
segredos. Parecia assim confirmar-se a noção, de que os hitlerianos fizeram um amplo uso, de
cada indivíduo como repositório temporário do sangue da raça. Não espanta que Haeckel tivesse
seguido a vertente mais declaradamente racista do darwinismo. Foi ele o primeiro a usar a teoria
da evolução para propor uma classificação hierárquica das raças humanas, situando os negros
no nível inferior, para onde os relegava uma suposta proximidade dos macacos, e colocando no
estádio mais avançado os alemães, os anglo-saxónicos e os escandinavos
172. Adversário activo
da mestiçagem, Haeckel foi um entusiasta da eugenia
173, tendo sido nomeado em 1904
presidente honorário da recém-fundada Sociedade de Higiene Racial
174, e com efeito a eugenia
era uma modalidade coerente de ecologia. Em primeiro lugar, quando negava a especificidade
social e convertia a sociedade numa biologia, a eugenia estava a obedecer ao que seria um dos
principais artifícios da doutrina ecologista, a aplicação directa das leis da natureza à esfera da
história. E, em segundo lugar, depois de ter transformado as contradições sociais reais numa
imaginária diferença entre raças, a eugenia procurava liquidar algumas delas, manter outras em

168 Id., ibid., 595; K. A. Schleunes (1990) 31.

169 A. Messer (1946) 602; A. Quinchon-Caudal (2013) 24.

170 A. Pichot (2000) 127 n. 103.

171 A. Bramwell (1985) 174.

172 Acerca do carácter racista da obra de Haeckel ver J. Biehl (1995) 60, A. Pichot (2000) 25-27 e P.
Staudenmaier (1995) 7-8. É interessante que os trabalhos de Haeckel tivessem sido introduzidos em França por
Vacher de Lapouge, um dos mais importantes e activos teóricos do racismo francês. Ver a este respeito Z. Sternhell
(1978) 165. É estranho que K. A. Schleunes (1990) 31 tivesse afirmado que Haeckel não era racista.

173 A. Pichot (2000) 176, 182; L. Poliakov (1971) 313.

174 A. Herman (1997) 137.

1379
posição secundária e conferir a uma só a hegemonia, de maneira a instaurar na humanidade o
mesmo tipo de equilíbrio que a ecologia veio a atribuir à natureza.

Haeckel morreu em 1919, com oitenta e cinco anos, vociferando em termos anti-semitas
contra a república dos conselhos bávara
175. E não se limitou às palavras. «A Liga Monista, que
Haeckel fundara para difundir a sua doutrina, é [...] considerada hoje como um dos laboratórios
onde se formou aquilo que viria a ser a doutrina biológico-política nazi», recordou um autor
interessado pelos meandros da história da ciência
176 e um historiador do fascismo frisou que
esta Liga «insistia na necessidade de uma revolução cultural, não sócio-económica, para
desenvolver a raça graças a um Estado forte e autoritário»
177. Ora, o facto de a Liga Monista ter
prosseguido a sua propaganda também no meio operário
178 contribuiu para os cruzamentos
ideológicos indispensáveis à constituição do fascismo. Na realidade a teia era ainda mais
espessa, porque, enquanto membro da Thule Gesellschaft, Haeckel situou-se no próprio centro
gerador do nacional-socialismo.

Associação esotérica de carácter estritamente racista e originariamente ligada às
movimentações anti-semitas de Theodor Fritsch, a Thule Gesellschaft, cujo nome se referia ao
mito hiperbóreo, foi fundada no início de 1918 e chegou talvez a reunir mil e quinhentos
membros, atraindo várias figuras da alta sociedade de Munique. Não teria ficado na história,
porém, se se limitasse a registar como filiados um príncipe, uma condessa, um barão e o douto
professor Haeckel, e abriu as portas igualmente a alguns boémios da extrema-direita mais
violentamente racista, como o literato Dietrich Eckart, o primeiro a introduzir Hitler nos meios
capazes de o apoiar financeiramente, ou Julius Streicher, o mais fanaticamente anti-semita de
todos os anti-semitas, proprietário de jornalecos em que o escândalo sexual se confundia com a
chantagem, e que seria até ao fim um dos mais firmes suportes do partido nacional-socialista.
Pela Thule Gesellschaft passaram também artistas frustrados, como Alfred Rosenberg, que em
breve se tornaria o doutrinador do nacional-socialismo, e jovens estudantes que a ambição e o
racismo levariam ao destino conhecido, como Rudolf Hess, o futuro braço direito de Hitler, e
Hans Frank, que se alçaria à posição de um dos principais juristas do Terceiro Reich e haveria
de governar a Polónia ocupada. Eckart morreu cedo, no final de 1923, nem outra coisa seria de
esperar num alcoólico e morfinómano. Mas para os outros, e embora ainda não o soubessem, o
esoterismo hiperbóreo foi o prefácio do julgamento em Nuremberga. Convidados frequentes
eram também Anton Drexler e Gottfried Feder, fundadores e provisórios chefes de um

175 P. Staudenmaier (1995) 8.

176 A. Pichot (2000) 104. Ver também W. W. Kay (2008).

177 S. G. Payne (2003 b) 29.

178 A. Herman (1997) 232.

1380
grupúsculo sem membros nem expressão, o Partido Operário Alemão, a que Hitler daria muito
em breve outro nome, outra amplitude e outro horizonte. E como o fundador da Thule
Gesellschaft havia sofrido a influência de Lanz von Liebenfels, este foi mais um elo a ligá-la a
Hitler. Em 1919, quando a revolução alemã chegara ao auge e Munique se encontrava
governada pelos conselhos de operários e soldados, a Thule Gesellschaft mantinha-se em
estreito contacto com o corpo franco Oberland, cuja intervenção havia de ser decisiva para o
massacre da república dos trabalhadores. Em 1919 a Thule Gesellschaft assinalava, portanto,
boa parte dos contornos de um novo espaço político e ideológico
179, e ao morrer em Agosto
desse ano, no exacto momento em que o hitlerismo começava a formar-se e no preciso meio em
que se formava, Haeckel estabeleceu um elo ininterrupto de continuidade entre a ecologia
científica e a política racista.

Quando Haeckel formulou a definição de que «a política é biologia aplicada»
180 abriu o
caminho que permitiu mais tarde aos seguidores de Hitler proclamarem, com as consequências
bem conhecidas, que «o nacional-socialismo não é mais do que biologia aplicada»
181. «Já no
seu início [...] a ecologia manteve uma relação íntima com um meio político veementemente
reaccionário», resumiu um historiador. «No ponto central deste complexo ideológico encontra-se
a aplicação directa e sem mediações das categorias biológicas à esfera social»
182. Ora, as
condições geradoras do mais catastrófico dos fascismos estão reproduzidas nos nossos dias, e
o programa que os nacionais-socialistas pretenderam realizar com a politização da biologia
tornou-se agora muito mais amplo, já que os ecologistas ambicionam converter a política numa
ecologia aplicada, e a ecologia abrange não só a biologia mas a totalidade do meio ambiente.
Aquilo a que por uma lastimável degenerescência terminológica continua a chamar-se esquerda
apresenta-se agora sob a bandeira da ecologia política.

179 Acerca da Thule Gesellschaft ver J. P. Faye (1980) 115 e 162 e segs. Ver também N. Cohn (1992) 176,
J. C. Fest (1974) 191-193, Ch. A. Gabel (1988) 14, E. Klautke (2011) 82-83, S. G. Payne (2003 b) 151 e A.
Quinchon-Caudal (2013) 54-55. Quanto à participação de Haeckel na Thule Gesellschaft ver P. Staudenmaier
(1995) 8. Nas Memórias escritas enquanto estava preso em Nuremberga, Rosenberg mencionou a Thule
Gesellschaft, mas foi omisso quanto à sua participação. Ver A. Rosenberg [s. d. 1] 18-20. J. Noakes et al. (orgs.
2008-2010) I 11 classificaram a Thule Gesellschaft como «o nome com que se encobria o quartel-general do
movimento völkisch [racista] de Munique» e Joachim Fest, op. cit., 193 e A. Sohn-Rethel (1987) 154 atribuíram-lhe a
responsabilidade pelo assassinato de Kurt Eisner. Talvez seja importante saber que, segundo Sh. F. Weiss (2010)
41, em Munique vários membros da secção local da Sociedade Alemã de Higiene Racial mantinham relações
estreitas com organizações políticas da extrema-direita anti-semita. Com efeito, Egbert Klautke, op. cit., 81 mostrou
que havia uma certa sobreposição entre o movimento anti-semita e os movimentos naturistas e indicou (pág. 82)
que um antigo assistente de Haeckel passara a dedicar-se à propaganda racista.

180 Citado em University of California Museum of Paleontology [s. d.].

181 E. Black (2003) 270, 318; S. Kühl (1994) 36, 121 n. 39. Ver ainda as nn. 186 a 191 do capítulo 1 da
Parte 4. Afigura-se-me muito estranho que as obras de Haeckel tivessem sido proscritas no Terceiro Reich,
conforme indicou O Diabo, 12 de Janeiro de 1936, pág. 7.

182 P. Staudenmaier (1995) 8. As ideias ecologistas de Haeckel influenciaram ainda Rudolf Steiner, o que
reforçaria posteriormente a sua repercussão no nacional-socialismo. Ver id. (2011).

1381
5. O pós-fascismo ecologista
1

Talvez pareça estranho que os mitos e preconceitos da ecologia se tenham divulgado
em alguns meios científicos com não menos vigor do que noutros sectores da sociedade,
quando em épocas anteriores a caça às bruxas e o pavor sistemático perante o progresso
haviam singularizado as pessoas mais incultas e tacanhas ou de mentalidade mais retrógrada. E
embora a população comum continue a desconfiar da generalidade da pesquisa científica devido
ao isolamento em que prossegue a actividade e à obscuridade terminológica com que envolve os
resultados, quando se trata da ecologia passa-se o oposto e os leigos nesta matéria delegam
aos cientistas partidários da ecologia a função, que estes assumem de bom grado, de fiscalizar o
restante meio científico consoante critérios que pouco ou nada possuem de científico. Cedo se
chegou a um ponto tal que já em 1990, quando uma conceituada revista pediu a vários cientistas
um parecer acerca de um relatório elaborado sob a égide do Congresso dos Estados Unidos,
onde se concluíra que as consequências das descargas acidentais de petróleo nos oceanos
estavam longe de ser tão nocivas para o meio ambiente como vulgarmente se julgava, os
entrevistados só acederam com a condição de não serem divulgados os seus nomes, pois
concordavam com a principal ilação expressa no relatório
183. No ano seguinte a mesma revista
publicou um artigo em que um reputado biólogo, ao declarar que não havia dados suficientes
para avaliar a dimensão da extinção das espécies, acerca da qual os ecologistas tecem
considerações tão alarmistas como fantasiosas, pediu que lhe fosse mantido o anonimato, senão
«eles matam-me por eu dizer isto»
184. De então em diante a situação piorou. A que se deve tal
ambiente de medo no interior do próprio meio científico?

O fraccionamento crescente das disciplinas académicas e a compartimentação a que
foram submetidas dificultam aos profissionais de cada especialidade a obtenção de uma visão
global dos problemas, a única que permite situar os desequilíbrios tecnológicos numa
perspectiva histórica e considerá-los no plano social. Afastados da reflexão sobre os
fundamentos da ciência, na grande maioria estes profissionais tornaram-se mais técnicos do que
cientistas, e assistimos então ao curioso espectáculo de muitos deles se erguerem numa fúria
apocalíptica contra a própria liberdade científica.

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